Artigo

A ORIGEM DA IDEIA DO DIREITO: uma reflexão de Émile Durkheim a partir da crítica à obra de Gaston Richard
Gerardo Clésio Maia Arruda
Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS)
E-mail: clesioarruda@yahoo.com.br
Bruno Queiroz Oliveira
Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS)
E-mail: brunoroz@bol.com.br
RESUMO
Neste artigo discute-se a origem da ideia do direito, com base no pensamento de Émile Durkheim, engendrado na crítica ao livro Essai sur l’origine de l’idée de droit, de Gaston Richard. As reflexões de Durkheim, expostas em artigo no ano de 1893, funcionaram como fio condutor das ilações aqui produzidas. Ressaltam-se as críticas de Durkheim que negam e/ou reafirmam as teses basilares presentes nos argumentos de Richard. E, principalmente, explicitam-se os argumentos que sustentam a construção histórica da ideia da arbitragem, da garantia, do delito, da pena e do elemento comum a estas noções constituintes da ideia do direito, ou seja, a solidariedade. Conclui-se que, ao procurar demonstrar que a solidariedade é a essência do direito, o trabalho de Durkheim aqui enfocado apresenta os primeiros ensaios do método empregado pelo sociólogo no campo jurídico.
Palavras-chave: Émile Durkheim; Gaston Richard; Direito; Solidariedade.
ABSTRACT
In this article is discussed the origin of laws idea, on given grounds of Emile Durkheim thoughts, begeted on the criticismo of the book Essai sur l’origine de l’idée de droit, Gaston Richards. The reflections of Durkheim, exposed on the article in the year of 1893, were as the conduct of ilation here producted. Its projected the criticism of Durkheim that denies or reafirm basilar tesis presente on arguments of Richard E., mostly, make explicit arguments that sustaim the historical construction of the arbitrated ideia, of guaranteee, of transgression, of sentence and the common element of this constituting notions by the ideia of law, therefore, solidarity. Consequently concludes, that by looking to demonstrate solidarity the essence of law, the work of Durkheim here enfocade shows the firts essays of the method used by the sociologist in the juridic field.
Keywords: Emile Durkheim; Law; Solidarity.
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OLIVEIRA, Bruno Queiroz
INTRODUÇÃO
Émile Durkheim1 escreveu o artigo intitulado L’origine de l’idée de droit no ano de 1893, onde refletiu criticamente o pensamento de Gaston Richard2 que, no ano anterior, publicara o livro Essai sur l’origine de l’idée de droit, à época recepcionado festivamente por coadunar elegância expositiva e inteligência argumentativa. Apesar da distância temporal que nos encontramos deste debate intelectual, o trabalho de Émile Durkheim, um texto de aproximadamente dez páginas, continua sendo uma referência atualizada de como se deve perquirir e submeter a testes de comprovação hipóteses com pretensão de validade científica.
Por isto, para além de um registro histórico de reflexões embrionárias que, posteriormente, contribuíram para erigir sua sociologia jurídica, o artigo de Durkheim aqui enfocado trata-se também de um modelo exemplar de resenha crítica, que, sem dúvida, se coloca ainda hoje como exemplo metodológico para este tipo de trabalho. Sem desconsiderar esta contribuição do sociólogo para a literatura científica, as questões suscitadas ao longo deste texto foram sistematizadas enquanto possibilidades de se constituir em fonte inspiradora para o delineamento de abordagens que tencionem a apreensão da realidade contemporânea.
Na consecução deste artigo optamos por tracejar um caminho que respeitasse o mais aproximadamente possível os percursos realizados originalmente no artigo de Durkheim, que serviu de fio condutor para a exposição das ideias aqui explicitadas. Neste sentido, procurou-se expor todas as concordâncias do sociólogo concernentes as argumentações de Gaston Richard, salientando inclusive as questões que foram objeto de referências elogiosas. Mas, para que se evitasse o risco de não atender a preocupação que atravessa toda a produção durkheimiana, a saber, o rigor científico na investigação dos fenômenos sociais, e que, como não poderia ser de outra forma, também se encontra presente neste seu breve comentário à obra de um seu contemporâneo, procurou-se cercar do máximo de cuidado na explicitação das negações realizadas às ideias e nos encadeamentos propostos por Gaston Richard. Isto porque, invariavelmente, tais negações se realizam com o objetivo de ir além do desejo de demonstrar sua nulidade, na medida mesma em que se tenciona a superação dialética de uma tese que originalmente, dado a forma de sua apresentação ou mesmo pela insuficiência de fatos que sejam mais significantes para sua validação, parecem não se sustentar como hipótese demonstrativa da realidade.
Com efeito, o artigo L’origine de l’idée de droit, publicado em 1893, foi produzido num espaço e num contexto socioeconômico e cultural específico e longínquo, considerando os dias atuais. Isto pode suscitar ponderações quanto a insignificância deste trabalho como arcabouço
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válido para nos auxiliar na tentativa de compreender problemas contemporâneos. Mas, ante a tais especulações, exponho a reflexão de Darbo-Peschanski (1992) que, ao discutir as relações entre ética e política, considerando a realidade mundial e, colateralmente, a brasileira às vésperas do século XXI, se apoiou no pensamento dos gregos antigos objetivando localizar nas diferenças elementos capazes de contribuir para o esclarecimento, por intermédio de estruturas de análises, do objeto pesquisado. E levanta a hipótese de que, quando nos referimos a uma nova ordem jurídica internacional ou às causas humanitárias que requerem o direito de ingerência, faz sentido observar os historiadores da Antiguidade, uma vez que, guardadas suas particularidades, tencionaram pensar a ordem e a justiça do mundo, delineando assim um modelo de apreensão da lógica e da complexidade da realidade.
Não é demais lembrar que o conjunto da obra de Emile Durkheim foi produzida num período histórico mundial de incertezas. Em particular, na França, do último quartel do século XIX, assistiu-se a transformações significativas nos campos da economia, da política e da cultura. Rodrigues (1990) sumariza este conturbado contexto referenciando a proclamação da III Republica francesa a 4 de setembro de 1871, a votação da Constituição de 1875 e a eleição de Mac-Mahon, primeiro presidente sob sua égide; na dimensão cultural, a instituição do divórcio, após acirrados debates que se estenderam de 1882 a 1884, a implantação do sistema educacional laico e obrigatório em 1882; no aspecto político-econômico, o acirramento das lutas entre os interesses dos trabalhadores e empregadores; e, apesar de se vivenciar um quadro econômico de dificuldades, devido às dívidas de guerras, indica a existência de uma ambiência na França deste período que, contraditoriamente, exalava uma esperança que apontava para uma marcha da humanidade rumo a um avanço na direção de um futuro promissor, pois estava-se às vésperas de vigorosas inovações tecnológicas, principalmente a difusão do aço, da energia elétrica e do início do petróleo como fonte de energia e de insumos industriais.
Iniciava-se a Segunda Revolução Industrial, que trouxe para a circulação e o consumo um amplo conjunto de novas mercadorias, dos automóveis aos aviões, passando por toda gama de eletrodomésticos, assim inaugurando cadeias produtivas e provocando transformações substantivas nos hábitos e nos costumes. Estes marcos sociais de caráter múltiplos e que abarcam um espectro sócio-cultural-político-econômico geraram um ambiente denominado de “vazio moral da III República”. Destarte, não é exagero afirmar que a sociologia de Emile Durkheim, fortemente influenciada pelos fenômenos de sua época, configuradores de uma mentalidade coletiva que associava angústia e esperança, justamente por isto, trata-se de uma referência obrigatória na discussão que objetiva compreender os fenômenos sociais em períodos marcados pela incerteza.
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1. OS QUATRO ELEMENTOS FUNDANTES DA IDEIA DO DIREITO
Ao refletir acerca dos elementos constitutivos do direito, com base na crítica ao livro de Gaston Richard, publicado em 1892 e intitulado Essai sur l’origine de l’idée de droit, Émile Durkheim localiza, nesta obra, a existência de um esforço intelectual que procura delinear uma argumentação lógica contra o prejulgamento e, por decorrência, uma tentativa de contribuir com a filosofia do direito via abertura de uma nova frente para explicar o direito como dever. O livro se apresenta como uma novidade à época, segundo Durkheim, porque se posiciona frontalmente contrário, simultaneamente, tanto a doutrina dos utilitaristas quanto a doutrina dos metafísicos. Ambos são igualmente identificados como incapazes de explicar o direito como dever, uma vez que se assemelham no entendimento acerca do individualismo. Pois, se de um lado, o interesse pessoal é o fim único objetivado na dogmática utilitarista, premissa idêntica à adotada no individualismo; de outro lado, a moral para o metafísico se constitui numa apoteose da personalidade individual. Durkheim chama a atenção para a possibilidade de críticas quanto a esta última observação,
pois algumas doutrinas metafisicas, como o hegelianismo, vai numa direção radicalmente contrária. Para Hegel (1997), sempre que se objetive estudar qualquer forma de regulação social, o ponto de partida jamais poderá ser o indivíduo considerado isoladamente. Mostra-se deveras atual a ideia de que a sociedade constitui um aglomerado involuntário de individuos que convivem em reciprocidade em razão de uma necessidade não planejada. Ou seja, de acordo com Hegel (1997, p. 169), “o indivíduo somente existe em sua relação mitológica com o outro, ao passo que a lógica individualista se fundamenta numa identidade apartada e isolada sobre si mesma.
Emile Durkheim ressalta, ainda, o kantismo como parcialmente em oposição ao individualismo, uma vez que dá relevância ao princípio que submete o indivíduo a uma lei da qual ele não foi protagonista, de sorte que o indivíduo se queda à imperiosidade de uma regra que se lhe impõe de forma impessoal; porém, deve ser observado que esta impessoalidade pode ser reduzida ao indivíduo abstraído e idealizado.
A adequação do indivíduo a uma regra que se impõe imperiosamente induz à conclusão de que a dogmática do egoísmo, seja concernente aos utilitaristas ou aos metafísicos, distingue todo comportamento orientado por convenções à condição de dever, ao considerá-lo incondicionalmente como sendo uma doação, um sacrifício ou uma resignação. Isto leva Emile Durkheim a sentenciar que o pensamento de Gaston Richard induz à compreensão de que o direito não se funda no individualismo, porque a prática jurídica não pode se reduzir à compaixão.
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Durkheim assevera que o equívoco individualista se assenta no fato de que empiristas e aprioristas investigam a ideia do direito em abstrato, de tal maneira que ele se apresenta como se fosse instituído independente das condições reais de desenvolvimento. A sua crítica se fundamenta na inobservância de que se trata de uma decorrência da vida em sociedade a necessidade da determinação do que o indivíduo pode exigir de outro ou de todos e que todos podem exigir do indivíduo, ou seja, as relações jurídicas engendram-se na teia de relações sociais travadas no cotidiano, como necessidades intrínsecas.
O sentido empregado por Horkheimer e Adorno (1973, p. 25) para o termo sociedade reforça o entendimento aí explicitado, uma vez que, para os teóricos da Escola de Frankfurt, a sociedade se trata de uma teia tecida no entrelaçamento das relações de todos os homens, em que se criam relações de dependências de uns em relação aos outros, sem que ninguém escape desta armadilha; além do que a subsistência da coletividade depende completamente da “unidade das funções assumidas pelos coparticipantes, a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional; em que todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionados, em grande parte, pela sua participação no contexto geral”. Vê-se, neste conceito, a sociedade como sendo apreendida nas relações obrigatórias que se dão entre os seus componentes e nas regras que as sustentam, ao funcionar como parâmetro para as ações de seus membros e emprestando regularidade às relações de cada um com todos e de todos com cada um .
Este entendimento, também presente no pensamento de Durkheim, leva o sociólogo a asseverar que a filosofia do direito deve buscar sempre uma aproximação com a sociologia. E desvela o objeto da obra de Gaston Richard como sendo a identificação das influências sociais que suscitaram a ideia do direito e impulsionaram sua evolução histórica. Para Durkheim, uma abordagem com este viés se trata de uma proposição científica de grande envergadura, pois a noção do direito é um fenômeno que se compõe a partir de elementos que devem ser analisados em suas particularidades. E assim procede Gaston Richard, e Durkheim segue-o observando criticamente.
A arbitragem é o primeiro elemento a ser explicitado, dado o entendimento de Gaston Richard de que as sentenças arbitrais são derivadas dos costumes codificados; por isto a anterioridade do seu surgimento ante os demais elementos constituintes da ideia do direito e a aceitação de que sua instituição tenha ocorrido em concomitância à vida social.3 Durkheim interpreta que Gaston Richard pressupõe como sendo derivado desta relação intrínseca indivíduo- sociedade-indivíduo, que origina uma mutualidade em suas determinações que torna incapaz o discernimento entre o fator estruturante e o estruturado, a existência de dois estados de consciência no indivíduo que se encontram em potencial e prontas a se transmudarem em ideais claras e
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objetivas. Sendo uma destas consciências a concepção dos fins sociais, entendida como a compreensão quanto a necessária proteção coletiva contra toda e qualquer causa de destruição. Esta concepção sustenta a máxima que defende ser a sociedade uma entidade que tem como fim primordial a manutenção da própria existência, de tal maneira que ela se volta contra homens e coisas que se coloquem como ameaça. E a segunda consciência que repousa nos indivíduos é a crença na existência de uma luta permanente dos membros da coletividade, que se engendra na busca contínua de cada um para atender seus desejos. Arruda e Teixeira (2015), ao interpretarem o pensamento de Thomas Hobbes a respeito do elemento gerador da felicidade, asseveram que o homem tem o desejo sempre voltado para algo, num movimento sem fim. Outrossim, com base nesta afirmação, apontam que Thomas Hobbes conclui que há no homem uma tendência infinita para a aquisição das coisas que ele pensa como sendo bom. Para Russel (1969, p. 73), “a felicidade implica progresso continuo; consiste em prosperar, não em ter prosperado; não existe a felicidade estática”.
Ao explicitar estas duas consciências, Émile Durkheim salienta o caráter contraditório de suas tendências. Isto ocorre porque a primeira consciência atua no sentido de garantir a preservação da unidade de todos e de objetivos comuns, o seu exercício age como freios que funcionam para a contenção de práticas percebidas como nocivas à integridade do grupo. Já a segunda consciência pode ser vista como um sentimento que enxerga o indivíduo como sendo naturalmente voltada para o desenvolvimento de esforços que lhe proporcione condições de alcançar os objetos intuídos como proporcionadores de prazer. Vê-se, então, que a tendência presente na primeira consciência tem o potencial de conter a tendência presente na segunda consciência por intermédio da repressão aos seus excessos.
Portanto, encontra-se no cerne desta contradição a produção de mecanismos de controles dos conflitos, que os impede de se generalizarem e ocasionarem guerras abertas. A violência sempre esteve presente nos fenômenos sociais. Vale ressaltar que Maffesoli (1987), diante da constatação deste fenômeno como sendo algo permanente na trajetória civilizacional, propugna que, antes de se formular estratégias de combatê-la, é interessante analisar a maneira de negociar com ela.
Eis aí onde se estruturam os constrangimentos que impulsionam os indivíduos a submeter seus litígios ao arbítrio de outrem. É também neste processo que nasce as formas de constrangimento sobre aquele que arbitra, que se vê obrigado a intervir pressionado pelo sentimento da coletividade. Em suma, a arbitragem resulta de forma direta e imediata das interações sociais, fazendo crer que mesmo sociedades muito rudimentares produzem as condições necessárias para o seu engendramento.
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A existência da arbitragem não é suficiente para dizer-se da concretização da ideia do direito, para tanto faz-se necessária a garantia desta arbitragem à vítima. Noutras termos, é preciso que a vítima possa recorrer à arbitragem sempre que ela se fizer necessária, de sorte que o culpado esteja impedido de obstar-lhe essa possibilidade. A arbitragem e a sua garantia para a vítima tratam- se de coisas diferentes, que nem sempre estiveram hermeticamente imbricadas. Émile Durkheim discorre que Richard Gaston demonstra que no processo civilizatório encontram-se fases vividas pelas sociedades primitivas em que os julgamentos não possuíam força executória, como também se registram fases em que mesmo as partes não estavam obrigadas a submeter seus litígios a outrem. Daí se deriva a ideia da garantia como um novo elemento surgido na trajetória civilizacional.
Para perscrutar seus elementos fundantes, Émile Durkheim indica que Gaston Richard levanta a seguinte questão: qual o fator determinante para que os homens organizassem esta garantia? Para Durkheim, esta inquirição do autor que ele analisa se erige nas mesmas razões que motivam as especulações da filosofia experimental do direito. Isto porque os filósofos engajados nesta escola creem que somente um aparelho de coerção exterior ao indivíduo e resultado de uma convenção poderia engendrar este tipo de garantia. Tal aparelho seria originado no cálculo interessado que levou a humanidade a optar pelos malefícios da obediência e da disciplina aos malefícios de maior magnitude gerados por estado permanente de guerra.
Entretanto, Émile Durkheim se contrapõe a essa tese e assevera que não é verdade que o homem seja um ser utilitário e que o cálculo tenha sido o artesão da história. Justamente por isto não concorda com a ideia de que a anarquia tenha sido para o homem o objeto de horror como supôs Hobbes (1989); uma vez que se prevalecesse a hipótese do autor de Leviatã, acredita Durkheim que jamais teríamos colocado em marcha o desenvolvimento civilizacional. Propõe que, para se identificar a causalidade dos fatores determinantes da defesa da garantia de todos à arbitragem, faz-se necessário empreender um exercício de lógica contrário ao proposto por Hobbes. Ou seja, são nas disposições simpáticas e altruístas e não nos sentimentos interessados que devemos investigar a solução do problema. Numa palavra, o que faz com que a sociedade obrigue o acusado a se submeter a arbitragem e a não obstar a garantia da vítima a mesma é que todos se sentem solidários a este último.
É a forte disposição presente em cada indivíduo que o leva a desenvolver o sentimento de simpatia em relação aos demais membros de sua coletividade, como também lhe direciona para não aceitar passivamente que um dos seus seja vítima da ação de um outro e não tenha o prejuízo ressarcido. Isto se deve ao fato de que todos têm a consciência de que o mal que aflige um membro da sociedade não pode generalizar-se, porque colocaria todos na condição de vítima em potencial.
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Em suma, a sociedade assume naturalmente uma causa que não é sua. É nesta premissa que Émile Durkheim sustenta sua oposição a Thomas Hobbes e afirma que a existência e a permanência da coletividade demanda, para além da sua organização na forma de Estado, que os indivíduos que a compõe se sintam solidários na luta pela existência.
Como observa Blais (2008), “a comunidade, com sua tradição e sua consciência coletiva, preexiste à sociedade jurídica e política, mas é o estado que garante a cooperação e a justiça nos contratos, ou seja, aos olhos de Durkheim, a verdadeira solidariedade. Com efeito, o sociólogo francês defende que se encontra justamente neste sentimento totalmente interior a causa asseguradora da garantia, contrariamente ao que defendem os utilitários, que delimitam como sendo sua fonte um constrangimento externo e artificial. Porém, salienta que a constituição do Estado, embora não seja sua causa originária, sem dúvida proporciona regularidade ao exercício desta garantia, que está enraizada na consciência da coletividade.
A concepção da ideia da arbitragem e da garantia pressupõe a existência da ideia do delito, dado que a garantia se trata de uma proteção e possui como condição sine qua non a possibilidade da ameaça e/ou da agressão. Têm-se, assim, que a ideia do delito se constitui noutro elemento instituidor da ideia do direito, sendo assim uma ideia que lhe antecede. Esta sentença traz perturbação ao entendimento do senso comum que compreende o delito como uma ação que viola o direito, pois o direito é apreendido como antecedente a ação delituosa. Émile Durkheim chama a atenção para a fórmula apresentada por Gaston Richard que diz que este último entendimento subverte a ordem real dos fatos. Isto porque defende que em sendo a representação do direito construída anteriormente ao delito, estar-se-ia pressupondo as ações caritativas e a simpatia de uns em relação aos outros como uma energia que transitaria sem obstáculos e destituído da interferência de sentimentos contrários. Desta forma, não haveria necessidade de se instituir a garantia e, por decorrência, o direito não se originaria. Na estrutura do pensamento elaborado por Richard Gaston faz-se necessária a existência da sociabilidade para a concepção da ideia do direito, mas é precisa uma sociabilidade em que o desordenamento esteja presente de forma parcial e intermitente; ou seja, se predominasse exclusivamente uma sociabilidade que de maneira permanente e em sua totalidade se localizasse a desordenação, estar-se-ia diante de um estado de guerra, por outro lado, se esta sociabilidade estivesse completamente destituída de conflitos, seria uma entidade perfeita, portanto, em uma extremidade ou na outra não estariam dadas as condições necessárias ao surgimento da ideia do direito.
Destas últimas ponderações, levanta-se outra questão, a saber: se a noção do direito depende da noção do delito, onde se origina esta última e onde alicerça seus pressupostos? Émile Durkheim
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aponta que Richard Gaston discorda da tese que idealiza o delito como sendo uma representação elaborada a partir do legislador4, bem como rejeita o pensamento que enxerga o delito como um ato exclusivamente nocivo. Ele o compreende como uma coisa natural e que tem suas condições instituídas na sociabilidade, que, justamente por isto, não pode ser algo que se faz a partir da mudança da compreensão dos homens de Estado quanto aos comportamentos que devam ou não ser criminalizados. Daí a sua formulação da máxima de que o que constitui o delito são as manifestações destituídas de disposições altruístas.
Émile Durkheim explica que Gaston Richard compreende por disposições altruístas não somente a probidade e a justiça, mas também a piedade filial, o sentimento nacional, o pudor, o sentimento de honra, etc. O que leva Durkheim a avaliar que sua definição é bem mais abrangente do que a de criminologistas influentes de sua época, como a do italiano Garófalo5, uma vez que o seu conceito alargado de delito permite vinculá-lo às condições fundamentais da vida social. Com efeito, não é o legislador que substancia o ódio coletivo no egoísmo nocivo, ou seja, ao tipo que confronta e atenta contra o objetivo essencial da sociedade; pois, para a emergência deste sentimento, é preciso que haja uma sociedade coerente e consciente de sua unidade. Enfim, é no altruísmo que se fundamenta a ideia do delito; salientando que se nos povos inferiores ainda aparece de forma obscura é porque o altruísmo entre estes ainda não chegou ao nível de desenvolvimento observado nas sociedades civilizadas.
Até este ponto da crítica de Émile Durkheim à obra de Gaston Richard, vê-se formar, com base num encadeamento sequencial dos seus elementos constituintes, a ideia do direito. Partiu-se da compreensão de que os regramentos dos conflitos se originam no seio da sociabilidade, portanto, que a arbitragem e a sua garantia são consequências das relações sociais que dão consistência ao tecido social que se desenvolve tendo como fim último a proteção de cada um dos seus membros. A perquirição realizada para identificar e dissecar os fundamentos nos quais, segundo Durkheim, Gaston Richard se apoia para elaborar sua definição do delito, nos mostrou qual a fórmula que a sociedade se guia para a elaboração das estratégias de solução dos conflitos. Numa palavra, a sociedade combate o egoísmo, repele a insociabilidade. Em busca de se aproximar o mais fielmente possível da noção de direito, Durkheim explicita que Gaston Richard se propõe identificar quais são os meios utilizados no combate ao egoísmo nocivo.
Para alcançar seu fim último, a proteção de seus membros contra ameaças, a sociedade utiliza dois procedimentos. Diante de uma ação danosa, a sociedade obriga o culpado a reparar o dano causado, podendo ainda em certos casos aplicar uma pena. Gaston Richard caminha em sua reflexão, de acordo com a crítica de Durkheim, para uma fórmula que conduz os dois
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procedimentos para uma unidade. Para ele, estamos diante de duas formas diferentes da ideia de dívida. Nestes termos, enxerga tanto a repressão penal quanto a repressão civil como sendo derivadas do costume da submissão, que se trata do elemento fundante da repressão. Desta perspectiva, a submissão é percebida como uma compensação da injustiça causada pelo crime; assim sendo, o crime se trasmuda em dívida contraída pelo criminoso.
A marcha civilizatória alargou o espaço para a obrigação do culpado funcionar como reparação ao mal causado pelo criminoso em substituição ao costume da submissão. A mesma compreensão se aplica às obrigações surgidas das relações contratuais. Acerca desta proposição, Durkheim (2017, p. 7) salienta a seguinte afirmação de Gaston Richard: “Numa passagem interessante, o autor mostra que o direito contratual, bem longe de ter sido o fato primordial da vida jurídica, como o dizem certos teóricos, é, ao contrário, um simples prolongamento do direito criminal”. Portanto, com base nesta perspectiva analítica, não seria exagero afirmar que o direito criminal se trata do germe originador do direito em sua integralidade.
Derivado do mesmo nexo causal que o leva a identificar a origem da repressão penal e da repressão civil no costume da submissão e, na sequência, na ideia da dívida, Gaston Richard, como expõe Durkheim, traz a pena também para o estatuto de uma dívida contraída. A pena corresponderia, assim, a uma dívida de seguridade contraída pela sociedade em relação aos seus membros. O autor explicita sua tese ao defender que, de um lado, o crime suscita e arrasta contra o criminoso o ressentimento de toda a comunidade e, simultaneamente, erige-se neste processo uma necessidade de vingança. A vingança coletiva, da mesma forma que a vingança privada, coloca em xeque a ideia de garantia, trata-se, então, de uma perturbação da ordem. Justamente por isto, a sociedade vê-se obrigada a garantir o criminoso contra a própria cólera. Por outro lado, a sociedade é também obrigada a se proteger contra ameaças e agressões a seus membros, evitando que se generalizem. Nesta dicotomia em que a sociedade se obriga a estabelecer garantia para aqueles que são objeto de sua vingança, ao mesmo tempo em que é obrigada a garantir sua estabilidade e permanência de sua unidade, produz-se a pena. Como sintetiza Gaston Richard, vê-se aí as duas formas engendradas a partir da submissão: uma é substituto da vingança privada; outra, da vingança pública.
2. A SOLIDARIEDADE ENQUANTO CONDIÇÃO PRIMEIRA DA IDEIA DO DIREITO
A noção da arbitragem, da garantia, do delito e da pena constituem os quatro elementos que juntos dão consistência à noção do direito. Vê-se que esta noção que muitas vezes aparece no senso comum como algo simples, dado a sua aparência de unidade e indivisibilidade, na verdade, trata-se
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de um fenômeno extremamente complexo. O que promove esta visão equivocada é um processo psicológico que provoca o desaparecimento nas consciências dos indivíduos das partes que, quando agrupadas, dão forma à noção de direito.
Para Durkheim, Gaston Richard, ao se esforçar para explicar este processo psicológico que atua de forma a fazer desaparecer as partes constituintes do direito, traz à tona o fato de que na base de cada uma das partes formadoras do direito encontra-se um elemento comum, ou seja, todos os quatro elementos derivam da mesma fonte: a solidariedade social. Uma vez que é precisamente a solidariedade social que induz os litigantes a submeterem suas querelas a um árbitro. Assim como, trata-se também do fator que gera o sentimento de partilha com a causa e a dor da vítima. E, ao se investigar o crime no concernente a sua essência, vê-se que não é outra coisa que um atentado contra a solidariedade. Por fim, mas de extrema significância, a investigação acerca da origem da ideia da pena e da reparação civil remete à compreensão de que ambos são instrumentos completamente direcionados para a proteção contra as vinganças individuais e coletivas. Neste sentido, pode-se afirmar que a solidariedade se trata da essencialidade do direito.
Neste ponto de sua crítica, Émile Durkheim realiza uma inflexão na sua exposição; em primeiro lugar, salienta os aspectos positivos no método adotada por Gaston Richard, chamando a atenção para o seu espírito de observação, para o refinamento de sua análise quando do detalhamento de cada aspecto de seus argumentos, enxerga no autor uma engenhosidade dialética que lhe possibilita o enfrentamento e o desvendamento de questões complexas, mas principalmente elogia sua capacidade lógica de promover encadeamentos de fatos relevantes para desvelar o objeto estudado, tudo isto realizado num estilo literário muito elegante. O estilo da exposição e o rigor da argumentação observados no autor possibilitam de maneira clara e precisa concluir que a solidariedade é a alma do direito. Esta assertiva propugnada por Gaston Richard é plenamente aceitável, entretanto, como crítico arguto, Durkheim desenvolve reflexões em que salienta algumas questões passíveis de críticas, bem como de forma sucinta estende e aprofunda alguns argumentos presentes na obra do autor por ele analisado.
O direito e as violações do direito, para Émile Durkheim, constituem duas ordens de fatos concomitantes e contemporâneos, justamente por isto, torna-se impossível a hipótese de que existe procedência de um sobre o outro. Portanto, não é possível argumentar uma anterioridade de encadeamento em que a existência de um se desse condicionada à existência primeira de outro. Apesar deste questionamento, Durkheim considera tal procedimento metodológico irrelevante, pois assente que esta busca pela precisão cronológica da emergência de fenômenos sociais não é fundamental para a reflexão sociológica. Isto porque o que importa mesmo para a sociologia é
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precisar quais são as relações que levam os fenômenos a se projetarem uns sobre os outros. É supérfluo, enfatiza Durkheim, o esforço para apresentar os conceitos logicamente enfileirados. Émile Durkheim coloca para si uma questão que pensa ser mais importante: a racionalização
de Gaston Richard é rigorosa? Isto o leva a inquirir sobre a validade do que ele considera basilar na obra de Richard, ou seja, coloca sob suspeição a afirmação de que existe mesmo uma compaixão que define as regras imperativas de comportamento; e, derivado deste primeiro questionamento, traz um segundo, a saber, o de que estas regras seriam jurídicas. Durkheim observa que da perspectiva dialética trata-se de algo que afeta a concepção geral da obra. Mas, por outro lado, lembra que Richard, como se refere já no título de sua obra, procura explicitar a gênese da ideia do direito e não do direito propriamente dito. Entretanto, Durkheim chama a atenção para o fato de que Richard parece fazer uma análise onde considera o direito como um conjunto de coisas, de realidades dadas, e, desta forma, deveria pesquisar as regras apoiado no método das ciências naturais; porém, ao invés disto, o seu procedimento se dá como um sistema de conceitos ligados logicamente entre eles e colocados sob a dependência de um conceito supremo que origina todos os demais.
Em suma, esta é a fórmula empregada por Gaston Richard para enfrentar o problema a que se propõe, que fica explícita quando se constata que o autor expõe como a ideia da dívida estava implicada na ideia do delito, que, por sua vez, estava vinculada à ideia da garantia, estando esta última, sustentada na ideia da arbitragem, que, por fim, se assenta na ideia da solidariedade. Observa Émile Durkheim que Gaston Richard não admite em sua análise que algumas destas noções, como também aquelas que as envolve, nos sejam dadas como coisas. Elas são apresentadas como sendo resultado de uma construção progressiva, portanto, uma vez que existam, no transcurso de seus desenvolvimentos engendrariam o direito.
Durkheim obsta que o direito é, na verdade, resultado de diferentes condições de experiências, entretanto, a fórmula adotada por Gaston Richard em nada nos autoriza a crer que tenha ocorrido desta maneira. Ora, para que se possa postular a existência da ideia do direito, faz-se necessário que o direito exista. Neste sentido, o que existe na realidade são os direitos, ou seja, uma multiplicidade indeterminada de regras jurídicas. E é preciso ainda considerar que cada uma dessas regras está assentada em causas particulares e se tratam de respostas a fins específicos.
As regras nascem de causas fortuitas e de uma maneira plenamente inconsciente. Os homens, em suas atividades coletivas, dão formas a regras de ações, sem que tenham consciência das necessidades sociais as quais elas correspondem. Com base neste pensamento, Durkheim acredita que cada povo, em épocas determinadas, têm uma certa ideia do direito e de como ele atua sobre a humanidade. Não há dúvida, segundo Durkheim, de que está ideia tenha uma origem, mas
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que se trata de algo que pode ser apreendido sem a necessidade do desprendimento de esforços magnânimos.
Para Durkheim, a ideia do direito emerge diretamente das regras que funcionam a olhos vistos. Numa sentença, a ideia do direito resulta do direito já existente, reflete uma estrutura que foi elaborada e funciona no cotidiano dos indivíduos. Como sintetiza Durkheim (2017, p. 9): “Nossa ideia de mundo não passa de um reflexo do mundo onde nós vivemos. Ela exprime a essência das coisas que ela representa”. É esta essência que deve ser pesquisada. Visto desta forma, pode -se dizer que há entre todas as espécies jurídicas caracteres comuns, que são suas essências erigidas a partir da vida coletiva. Portanto, a noção do direito não pode ser o germe de onde se originou o direito.
Ao finalizar sua crítica, Durkheim sugere que a reflexão acerca da ideia do direito seja realizada com base na rejeição do hábito arraigado de se distinguir a noção de justiça como direito da compaixão, entendimento este que vislumbra a justiça como base elementar da moral, sendo seu coroamento realizado pelo direito da compaixão. Para Durkheim, a análise de Gaston Richard redireciona esta ordem e demonstra ser a compaixão o fundamento do direito. Embora trace uma trajetória correta, as razões que são por ele apresentadas não são suficientemente convincentes. Uma vez que acredita ser a compaixão a alma do direito, e que nasce do sentimento do conjunto dos membros da coletividade contra a guerra injusta, contra os ataques e ameaças aos direitos reconhecidos.
A solidariedade percebida em sua formação a partir desta lógica pressupõe a existência a priori de uma justiça, que a sua natureza teria sido preliminarmente determinada. Diante desta proposição, Durkheim levanta o seguinte questionamento: esta determinação fez-se então independentemente de todo sentimento de solidariedade, e esta interveria somente para assegurar a defesa dos direitos, uma vez estabelecidos? Em resposta, pondera que, em sendo esta sentença verdadeira, poder-se-ia afirmar que a antiga teoria seria verdadeira em grande parte e satisfaria o fato mais essencial.
Émile Durkheim, após estas considerações, arremata afirmando que os direitos de cada um são definidos graça às concessões e aos sacrifícios mútuos; pois o que é acordado para uns é necessariamente abandonado por outros. O direito que eu reconheço a outrem de guardar os frutos de seu trabalho implica que eu reconheça a faculdade de me apoderar. O direito resulta então de uma limitação mútua de nossos poderes naturais, limitação que se faz no espírito de compreensão e de harmonia.
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CONCLUSÃO
O trabalho de Émile Durkheim, que nos serviu de base para as reflexões realizadas ao longo deste artigo, aparece nos dias de hoje como uma fonte inspiradora para a realização de resenhas de obras relevantes. A veracidade desta informação encontra legitimidade quando se observa que, em um trabalho extremamente sucinto, o sociólogo explicita de forma objetiva as ideias norteadoras, ao mesmo tempo em que procede uma investigação dos argumentos que lhes dão sustentação, e sempre sem perder de vista o método empregado pelo autor analisado. Por outro lado, reflete deste a forma expositiva até o encadeamento dos fatos adotados para justificar as assertivas e as hipóteses realizadas, em busca de salientar as inovações agregadas ao estado da arte, mas sem deixar de apontar pontos obscuros e argumentos que demandam aprofundamentos. Demonstra, ao afirmar e negar partes das teses expostas, e, principalmente, porque este procedimento amplia o debate sobre o tema e abre fissuras a serem exploradas, que o fazer científico se trata essencialmente de uma construção social.
Ao percorrer o caminho adotado pelo autor analisado para a estruturação de seus argumentos, Durkheim produziu uma reflexão em que chama a atenção seguindo o pensamento do autor na demonstração da construção das noções da arbitragem, da garantia, do delito e da pena, como estes quatro elementos vão se encadeando e originando a noção do direito. Salienta, Émile Durkheim, o fato de Gaston Richard apontar na base destas noções a solidariedade como germe de onde todas as outras se erigem; mas o autor concebe a justiça como uma ideia já presente nos indivíduos, portanto, que a solidariedade intercede para preservá-la de ameaças. Neste sentido, apresenta uma fórmula em que a ideia de justiça antecede as coisas concretas que lhe dá sustentação; diante disso Durkheim é peremptório, tal entendimento nos induz a pensar que a ideia do direito teria produzido o direito, que, então, seria algo descolado da solidariedade.
De um lado, Emile Durkheim salienta o esforço de Gaston Richard que busca justificar a emergência dos elementos constituintes da ideia do direito na teia de relações sociais construída no cotidiano dos indivíduos que interagem uns com os outros na busca de garantir suas sobrevivências; mas, de outro lado, critica a análise de Richard que em princípio se assenta na concepção de que o indivíduo traz em si a pressuposição do sentimento de justiça. Ora, para o pensamento durkheimiano aparece aí uma inversão que deriva a formulação da ideia de concepções abstratas e não do mundo concreto, das coisas existentes no mundo vivido.
Enfim, para Durkheim, o direito resulta de múltiplas situações concretas existentes na vida cotidiana; assim, o direito emerge no cerne das relações de uns membros da sociedade com os
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outros, e que daí se codifica tornando-se uma representação. Vê-se aí, nesta contraposição ao pensamento de Gaston Richard, toda a radicalidade de Durkheim na defesa da vida social como o lugar, por excelência, da estruturação das formas de pensar, de sentir e de agir, enfim, de todas as ideias e de suas significações.
Não é demais lembrar que o ano em que Émile Durkheim publicou, na forma de artigo, sua crítica ao livro de Gaston Richard, coincidiu com a publicação, em 1893, de sua obra seminal A divisão social do trabalho6. Vê-se, então, que o pensamento de Durkheim exposto no seu artigo traz ao conhecimento público, en passant, traços de pensamentos estruturadores de sua sociologia jurídica, que aparece de forma mais acabada no livro Lições de sociologia7, publicado no ano de 1950, que retratam aulas ministradas entre os anos de 1890 a 1900, registradas em manuscritos intitulados Física dos costumes e do direito. Portanto, para além de um registro histórico, o artigo de Émile Durkheim que foi aqui discutido se trata, principalmente, de uma fonte de apreensão de seu método adotado no campo jurídico.
REFERÊNCIAS:
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NOTAS:
1 Émile Durkheim nasceu na França em 1858 e faleceu em 1917. Diretamente influenciado pelo positivismo de Auguste Comte, dedicou sua trajetória intelectual na construção de uma ciência que possibilitasse o entendimento dos comportamentos coletivos. Sua grande preocupação era explicar os elementos capazes de manter coesa a nova sociedade que ia se configurando após a Revolução Industrial . Metodologicamente adotou o funcionalismo em seus trabalhos, sendo considerado por alguns o fundador da sociologia acadêmica, publicou obras que são referências teóricas-empíricas para o conhecimento sociológico, antropológico e para a psicologia social.
2 Gaston Richard fez doutorado em letras e filosofia, em Paris, tendo defendido as teses Essai sur l'origine de l'idée de droit e Le mécanisme psychologique par Descartes. Foi nomeado professor de filosofia no Liceu de Harvre e, posteriormente, para a cadeira de sociologia na Universidade de Bourdeaux. Destacou-se por suas publicações na revista L'Année sociologique, que obtiveram larga repercussão no meio acadêmico francês na primeira década do século XX.
3 A arbitragem como sendo resultado de uma necessidade erigida nos costumes é uma tese que encontra respaldo na discussão que a antropologia cultural realiza quanto a relação entre política e cultura. Mas, para tanto, faz-se necessário entender a cultura, como sendo algo bem mais profundo do que um conjunto coletivamente elaborado de cultos e costumes, dado que se trata de estruturas de significados que expressão e dão concretude as experiências dos homens; e a política, mais do que golpes e constituições, deve ser vista como o campo em que essas estruturas se desenvolvem e têm visibilidade pública. A partir deste procedimento, segundo Geertz (1989), torna-se possível o estabelecimento de nexos existentes entre cultura e
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política. Partindo das investigações feitas tendo como campo de pesquisa a Indonésia, Geertz toma este país como caso concreto para especular acerca deste tema de estudo, ou seja, de como cada povo em particular elabora o seu fazer político. Herdeira de tradições polinésias, índicas, islâmicas, chinesas e europeias, a Indonésia foi palco de grandes abalos motivados por paixões ideológicas que alcançaram e influíram na lógica e funcionamento de todas as instituições da sociedade, como o exército, o judiciário, a universidade, a imprensa e os partidos. Abalos estes que se explicam, grande parte, nas características deste pais, que é não só geograficamente um arquipélago, mas que, principalmente, estrutura-se a partir de múltiplas divisões étnicas, que o constitui como um universo cultural marcado pelo contraste e pela contradição. Geertz afirma que a inconsistência de sua institucionalização e os constantes movimentos que leva a Indonésia a oscilar entre governos e administrações públicas extremadas ideologicamente deve-se a recusa entranhada na sociedade de se colocar contraria as convenções, sendo esta uma prática muito mais significativa para o estado permanente de crise política-institucional do que a simples divisão interna em suas muitas minorias raciais e religiosas. De sorte que a história da Indonésia se constitui de lutas travadas entre os grupos que extrapolam a questão de interesses políticos e econômicos, pois se dão no direito de atribuir sentido a verdade, a justiça, a beleza, a moralidade. Apoiado nestes pressupostos, Geertz (1989, p. 211), entende que: “Os processos políticos de todos os países são mais amplos e profundos do que as instituições formais destinadas a regulamentá-los. Algumas das decisões mais críticas que concernem à direção da vida púbica não são tomadas nos parlamentos, mas nos reinos não-formalizados do que Durkheim chamou a consciência coletiva”.
4 Dentre as polêmicas que mais rondaram a discussão acerca do bem jurídico-penal merece destaque a indagação se a existência dos bens jurídicos é anterior a construção eminentemente jurídica, de modo que eles preexistem à norma, e, portanto, são consagrados por essa como essenciais ao desenvolvimento humano, ou, se, estes são reconhecidos nessa perspectiva somente desde efetiva legitimação por intermédio da consagração normativa. A ideia de bem jurídico apareceu na primeira metade do século XIX. Nessa quadra histórica, os penalistas pertenciam à corrente defensora da noção de que o Direito Penal tutelava direitos, de modo que o delito representava a lesão de um direito. Por óbvio, essas ideias partiam da perspectiva do contrato social, pois a partir dessa noção surgiu um direito a ser respeitado e aflorou um dever a respeitar, sendo o delito consistente numa lesão desse direito a ser respeitado e um dever de respeitar, que, de modo sintético, consistia na liberdade como direito consagrado do contrato social (BUSTO RAMIRES, 1984, p.45). As origens do conceito surgiram no bojo do movimento iluminista, objetivando traçar balizamentos ao legítimo exercício do poder punitivo. Nesse momento, surgiram os contornos para a ideia de crime na perspectiva individualista que tinha como pressupostos essenciais o dano social, o direito subjetivo e a necessidade de pena (SILVEIRA, 2003, p. 38).
5 Garófalo é considerado um dos fundadores da Scuola Positiva italiana, que estabeleceu uma contraposição metodológica, ao se apoiar no método empírico-dedutivo, alicerçado na observação dos dados e dos fatos, oposta ao método abstrato e dedutivo, adotado pela Criminologia Clássica. De acordo com Gomes e Molina (2012, p. 191), a tese de Garófalo acerca da fundamentação do comportamento criminoso se alicerça na existência de uma suposta anomalia de caráter psíquico ou moral. “Trata-se de um déficit na esfera moral da personalidade do indivíduo, de base orgânica, endógena, de uma mutação psíquica, transmissível por via hereditária e com conotações atávicas e degenerativas”. Portanto, Garófalo mantém em sua concepção da criminalidade traços do pensamento lombrosiano, pois mesmo que levante alguns aspectos sociais como relevantes na compreensão dos fatores criminológicos ainda centraliza o elemento explicativo no autor do delito. Lombroso (1983, p.502), por sua vez, afirma que o delito, tanto pela estatística como pelo exame antropológico, parece um fenômeno natural, ou seja, no linguajar dos filósofos é um fenômeno necessário, como o nascimento, a morte, a concepção, as doenças mentais, do qual é frequentemente uma variante. Afirma ainda que os atos institivamente cruéis dos animais não parecem mais separados como por um abismo, daqueles atos do homem criminoso.
6 Este trabalho de Émile Durkheim (1999) é para seus críticos e biógrafos a primeira formulação da adoção do funcionalismo na sociologia.
7 Esta obra de Durkheim (2013) reúne aulas ministradas pelo sociólogo que foram transcritas no manuscrito originalmente intitulado Física dos Costumes e do Direito, trabalho este que teve sua primeira edição publicada pela Faculdade de Direito da Universidade de Istambul.
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AUTORES:
Gerardo Clésio Maia Arruda
Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Christus (UNICHRISTUS) e Professor Titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutor e Mestre em Sociologia, Especialista em Geografia e Graduado em Ciências Econômicas.
Bruno Queiroz Oliveira
Doutor em Direito Constitucional, Mestre em Direito Público. Professor do Centro Universitários Christus (UNICHRISTUS). Advogado Criminalista.
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