
O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL: Poder Judiciário roraimense e possíveis apontamentos jusdiversos
Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo Universidade Federal Fluminense (UFF)
RESUMO
Esse artigo trata do estudo de caso denominado “Primeiro Júri Popular Indígena”, ocorrido em Raposa Serra do Sol. A metodologia pretendida na pesquisa envolve a descrição dos fatos ocorridos no julgamento e possíveis contextualizações de alteridade e direito à diferença para delinear a quadro jurídico de análise. Os juristas, sobretudo aqueles que pautam conteúdos decisórios, necessitam de uma maior esfera de compreensão para o entendimento caso a caso das especificidades dos diversos povos que habitam o território nacional em nítida abertura cognitiva, o que não nos permite a perspectiva meramente formalista. Essa decisão judicial advinda do Tribunal de Justiça de Roraima mencionada na pesquisa, em relação ao procedimento do Tribunal do Júri, pode contribuir para a construção desse por vir, como busca de novas posturas a serem alcançadas, em que se permitiria a valorização das especificidades indígenas e seus costumes.
Palavras-chave: Povos Indígenas. Poder Judiciário. Jusdiversidade.
"FIRST INDIGENOUS POPULAR JURY" IN RAPOSA SERRA DO SOL - Roraima Judiciary and possible jusdiverse notes
ABSTRACT
This article deals with the case study named "First Indigenous People's Jury", held in Raposa Serra do Sol. The methodology sought in the research involves the description of the facts occurred in the trial and possible contextualizations of alterity and right to difference to delineate the picture analysis. Jurists, especially those who guide decision-making content, need a greater sphere of understanding for the case-by-case understanding of the specificities of the various peoples who inhabit the national territory in clear cognitive openness, which does not allow the merely formalist perspective. This judicial decision from the Court of Roraima mentioned in the research, in relation to the procedure of the Court of the Jury, can contribute to the construction of this to come, as a search for new positions to be reached, which would allow the valuation of indigenous specificities and their customs.
Keywords: Indigenous Peoples. Judicial power. Jusdiversidade.
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AZEVEDO, Thaís Maria Lutterback Saporetti
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DAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS:
O enfoque no direito à diferença, além do campo teórico, deve partir para busca de decisões judiciais que ultrapassem a ideia envolta no monismo estatal e no positivismo jurídico, esse último, em sentido ampliado, na imbricação do direito com a legislação posta, de modo a que se abra espaço a outras possibilidades de articulação e ao reconhecimento das decisões e das práticas originárias dos povos indígenas, bem como de seus costumes e tradições.
Esse cenário contrasta, de certo modo, com a fundação dita moderna da compreensão do Estado como fonte de produção hegemônica das normas jurídicas que pela retórica da cidadania, da igualdade e da soberania, tratou de forçar homogeneizações culturais – a supervalorização da identidade nacional – ou tornar ilegais (no sentido de desvios), práticas e comportamentos que não seguiam a cartilha dos valores instituídos com status de lei.
Como resultado da sociodiversidade e da rearticulação do Direito nos moldes positivados, é possível encontrar no cenário do Judiciário roraimense, de forma particular, um caso jurisprudencial que pode trazer novas luzes sobre a discussão da diversidade e as decisões judiciais penais na temática indígena, apesar das dificuldades no campo jurídico estruturado. Essa pesquisa toca o caso do Primeiro Júri Popular Indígena, processo que tramitou sob o n. 0045.13.000166-7 (numeração única 000166-27.2013.8.23.0045), na Justiça Estadual de Roraima.
1. DOS CONTORNOS FÁTICOS DO “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA”
No dia 23 de janeiro de 2013, no período vespertino, os irmãos Elcio da Silva Lopes e Valdemir da Silva Lopes, indígenas da comunidade da Enseada, de etnia Macuxi, encontravam-se no estabelecimento comercial conhecido por “Mercadinho dos Peões”, situado na sede do município de Uiramutã. Era prática comum que os indígenas saíssem de sua comunidade para fazer compras na vila ou resolver questões com o poder público, como ocorrido naquele dia.
No local, também estava Antônio Alvino Pereira, indígena da comunidade do Orenduque, próxima da Guiana Inglesa, de etnia Patamona, que viria ser vítima de um crime praticado pelos réus.
Ocorreu que, após desentendimento entre os presentes, Elcio, munido de faca, desferiu golpe que atingiu a região cervical (pescoço) de Antônio, causando-lhe grave ferimento.
Logo em seguida, não tendo identificado que o ferimento proviera de Elcio, que o atingira por detrás, Antônio dirigiu-se a Valdemir para revidar a lesão que lhe fora provocada, tendo-o acertado com socos. No entanto, Valdemir sacou de um canivete e desferiu golpe que atingiu o braço de Antônio de forma superficial.
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Em razão da aproximação de populares que contiveram o conflito, não houve mais agressão entre os réus (Elcio e Valdemir) e a vítima (Antônio). Antônio foi encaminhado ao hospital da localidade para receber tratamento médico. Elcio e Valdemir, com a chegada da polícia militar, foram presos em flagrante, apesar de não terem oferecido resistência à prisão.
Com a finalização do inquérito policial, o Ministério Público denunciou ambos, Elcio e Valdemir, por homicídio na modalidade tentada, qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (teriam agido de surpresa ao se aproximarem pelas costas da vítima e quando essa mantinha diálogo com outro indígena).
A denúncia apontou ainda que:
Restou apurado que a vítima é indígena e de cor negra e que os denunciados que também são indígenas agrediram a vítima sob a alegação que de que era um “kanaimé”, que na linguagem indígena significaria um “matador de gente”, e por suspeitarem que a vítima teria matado uma criança indígena, assim, praticaram as agressões contra a vítima motivados por vingança (autos do processo, fls. 03).
Houve a audiência de instrução e julgamento, realizada no dia 30/07/2014, em que foram ouvidos a vítima e os réus, bem como as testemunhas arroladas pelo Ministério Público, Marlon Pereira (filho da vítima), Francisco de Assis (dono do mercado), Mozarildo Padrinho (primo dos réus) e pela defesa, Valderir da Silva Lopes (irmão dos réus) e Agnaldo Freitas (motorista que havia levado aos indígenas até Uiramutã). Após toda a instrução processual, os réus foram, então, pronunciados, nos termos da denúncia, pela tentativa de homicídio qualificado nos termos anteriormente expostos.
Nesse contexto, além dos réus e da vítima, todas as testemunhas acima estavam presentes quando do acontecimento dos fatos. O primo dos réus, Mozarildo, inclusive teria participado de toda a discussão com a vítima, que teria se originado supostamente em virtude do fato de Antônio dizer conhecê-lo e sua comunidade, mesmo que a recíproca não fosse verdadeira. No entanto, os diferentes relatos não permitem precisar quem teria proferido propriamente ameaças mais incisivas durante o conflito, em tom de ameaça à vida do outro.
Segundo Elcio, o fato é que Antônio estava discutindo com Mozarildo e também o teria ameaçado, além de dizer que conhecia esse último e a sua comunidade, bem como que “teria deixado um garrote lá amarrado”. Valdemir confirmou a oitiva desse enunciado, que teria motivado a (in)compreensão dos réus sobre a figura do kanaimé em relação à vítima.
Na sentença de pronúncia, interessante perceber que o juiz da causa solicitou a intervenção do Ministério Público Federal no feito, ao entendimento de que apesar de não se tratar de causa atinente aos “direitos indígenas”, o que atrairia a competência da Justiça Federal, cuida-se de peculiar feito meritório e procedimental, haja vista a principal alegação da defesa centrar-se em tradição indígena - “kanaimé” -, e o pretenso ilícito criminal ter ocorrido em terra indígena, e terem
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indígenas como réus e vítima, o que reclamaria a realização da sessão do Júri em terra indígena, com jurados indígenas ao fito de dar legitimidade ao ato, uma vez que serão julgados “verdadeiramente” por seus próprios pares (autos do processo, fls. 159).
Nessa mesma decisão, foi determinada a realização de um laudo antropológico, o que a meu ver se justifica para o adequado entendimento da demanda em relação aos aspectos cognitivos suscitados, notadamente o significado do “kanaimé” para esses povos indígenas. Oliveira indaga sobre as insuficiências do julgamento de uma pessoa, membro de outra sociedade, guiada sobre os valores próprios de sua cultura, tendo o antropólogo a função de dar sentido ao fato moral, compreendê-lo de modo a esclarecer minimamente seus contornos, seja para si próprio ou para seus leitores. Não cabe a ele o papel de julgar, como tarefa do juiz e do moralista, bem como, do homem comum que na imersão de seu cotidiano é impelido a essa tarefa na condição de orientar seu próprio comportamento (Oliveira 2017: s/p).
O laudo foi confeccionado pelo antropólogo Ronaldo Lobão, que de início assinala que a “expertise” antropológica não deve ser incorporada ao processo judicial como uma “verdade sobre os fatos”, e sim, como interpretação factível, informada pelos olhares da Antropologia e do Direito (autos do processo, fls. 169).
O documento assinala que o significado do kanaimé pode assumir diferentes dimensões entre os grupos indígenas roraimenses, dentro de cada etnia e nos diferentes contextos em que é acionado. Todavia, importante para o presente caso, seria a interpretação mais recente sobre o kanaimé para os Macuxi, etnia a qual pertencem os réus, da comunidade da Enseada. É o que se destaca:
(...) o kanaimé é necessariamente um Outro, com o qual não se tem, teve ou se pretende ter alguma relação. Sua descrição ou representação é construída por sinais diacríticos: selvagem, sujos, estrangeiros, moradores de lugares distantes nas serras. O epíteto Kanaimé representa uma categoria de acusação lançada ao Outro com o qual não se pode ter relação, mediação ou contato. Outro forma de nomear p kanaimé é “rabudo”, uma aproximação da cosmologia nativa com a cosmologia cristã.
Representações contemporâneas sobre o kanaimé atualizam seu poder de se tornar invisível e o classificam como assassino, atemorizador, “bandido, guianense, perseguidor, rabudo, entre outras”. Às vezes não age mais nas sombras, procura conversar, se apresenta pessoalmente para lutar. (Autos do processo, fls. 173).
Na literatura, também há narrativas acerca da figura do kanaimé:
Entre os Makischí e Taulipáng, há muitos kanaimé, diz Manduca, entre os Majonggóng, é claro não existe nenhum único.
O conceito de kanaimé desempenha um papel muito importante na vida desses índios. Designa, de certo modo o princípio mau, tudo que é sinistro e prejudica o homem e de que ele mal consegue se proteger. O vingador da morte, que persegue o inimigo anos a fio até mata-lo traiçoeiramente, esse “faz kanaimé”. Quase toda morte é atribuída ao kanaimé. Tribos inteiras têm a má fama de ser kanaimé. Kanaimé, porém, é sempre o inimigo oculto, algo inexplicável, algo sinistro. “Kanaimé não é um homem” diz um índio. Ele anda por aí, à noite e mata gente, não raro, com a maça curta e pesada, com a que se leva ao ombro durante a dança. Com ela, parte “em dois todos os ossos” da pessoa que ele encontra; só
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que a pessoa não morre imediatamente, mas “vai para casa”. À noite, vai para casa, porém fica com febre, e depois de quatro ou cinco dias, morre”.
Quem experimentou no próprio corpo as agudas febres da Guiana, especialmente a malária com os seus sintomas, entende essa crença dos índios.
“Matar um kanaimé é uma boa ação, e não acontece nada com o homem” (Koch-grümberg 2006: 70).
A partir dos elementos apresentados para identificar a vítima como kanaimé, o laudo antropológico considera justificável a associação feita por Elcio, Valdemir e Mozarildo. Porém, há a clara e precisa ressalva que não se afirma, em hipótese alguma, que Antônio seja um kanaimé ou que tenha agido ou praticado atos que o qualifiquem como tal. O que se sugere é a possibilidade de, no contexto evidenciado, no acontecimento ocorrido no Mercadinho do Peão, ser compreensível tal abordagem. Reproduzimos a seguir os elementos suscitados no laudo antropológico.
Como primeiro aspecto, teriam ocorrido mortes na comunidade da Enseada significadas como provocadas por kanaimé, tanto do avô como de um sobrinho dos réus. A comunidade estava amedrontada diante do ocorrido.
O segundo aspecto é que circulava boato, em Uiramutã, de haver um kanaimé andando pela região. Antonio circulava pela região vendendo facões e comprando carne e frango, bem como corresponde a uma boa mimese de kanaimé por suas características pessoais.
O terceiro aspecto é que a vítima afirmava conhecer a comunidade da Enseada, mas, os outros, que sempre lá habitaram, não o conheciam. O kanaimé é que teria a faculdade de ter estado invisível na comunidade.
Além disso, como quarto e último aspecto apresentado no laudo, as palavras “amarrar o garrote” (condizente com a representação do kanaimé) e outras ameaças apontadas pelos réus, teriam determinado a reação em relação à vítima.
Ressalvadas as elucidações do laudo antropológico, no dia 23 de abril de 2015, foi realizada a sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.
2. DA SESSÃO DE JULGAMENTO
Após tratativas entre o Judiciário roraimense e as lideranças indígenas de Raposa Serra do Sol, decidiu-se pela realização do julgamento no Centro Comunitário Maturuca, o que determinou a presença de muitas pessoas interessadas em assistir o plenário do Júri. Essa é a imagem do dia do julgamento:
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Imagem 15: Sessão de julgamento do Primeiro Júri Popular Indígena

Fonte: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/04/juri-indigena-em-rr-absolve-um-reu-e-condena-outro-mp-diz- que-vai-recorrer.html. Acesso em 07/11/2016.
Participei diretamente da defesa nesse julgamento como advogada de defesa. Com certa antecedência da data marcada para a sessão, dirigi-me a Roraima e comecei a levantar informações sobre a ocorrência do crime, as representações envolvidas e o comportamento pretérito dos réus. Estive na comunidade da Enseada e, por questões de logística (nível do rio e dificuldades de transposição), não pude ir até a comunidade do Orenduque, mas recolhi relatos sobre os seus costumes e a situação da vítima. Confirmei a informação com o relato de indígenas de que havia um kanaimé rondando a região, inclusive, com mortes atribuídas à entidade.
Fiquei responsável pela defesa do réu Élcio, o que efetivamente desferiu o golpe que ocasionou o corte no pescoço da vítima. Na sustentação oral, segui um roteiro de defesa que perpassava cinco pontos principais: i. explicar o Tribunal do Júri; ii. tratar do inquérito policial; iii. e do processo judicial, particularmente, com um maior espaço de fala para as teses defensivas; iv. focar na vítima e no restabelecimento das relações comunitárias e por último, e não menos importante, v. discutir o tema da interculturalidade. De antemão, esclareço que parti da compreensão desse processo como documento-discurso que sintetiza o ponto de vista de agentes oriundos de diferentes contextos socioculturais e trajetórias de vida que se reuniram do espaço- tempo judicial para representar concepções sobre fatos, valor e normas pela ótica da diversidade de significação e da relação de poder instituídos pelo saber jurídico, mas que, de todo modo, pelo modelo adotado, seguindo as noções formais do Tribunal do Júri disciplinado no Código de Processo Penal, haveriam de convergir na garantia na legitimação das promessas da modernidade
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jurídica ocidental: pacificação da lide, segurança jurídica e proteção dos direitos (Oliveira 2012: 45).
Então, na sustentação da defesa, como primeiro ponto, realizei explicação sobre o próprio rito do Tribunal do Júri, com foco determinado pelas noções de sua origem, sentido, importância e significação específica articulada para a realização do que se denominou “1º Júri Popular Indígena”. O Poder Judiciário de Roraima, representado pelo juiz do caso, realizou reuniões com os líderes indígenas da região e assembleia datada no último desses encontros (dezembro de 2014), em que pelo menos 270 lideranças foram favoráveis à realização da sessão de julgamento na TI Raposa Serra do Sol.
Em sua concepção inicial, o Tribunal do Júri configura a participação popular direta nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, de modo a assegurar que o réu seja julgado por seus semelhantes. Por isso, o Conselho de Sentença composto por indígenas atenderia a ideia do julgamento pelos próprios “pares”, não se afastando da lógica idealizada para o julgamento. Incumbe ao Júri o julgamento de delitos considerados de elevada gravidade, envolvendo os crimes dolosos contra a vida, como no caso do homicídio, infanticídio, participação em suicídio e crimes conexos. No caso em análise especificamente, como antes visto, tratou-se de processo penal por tentativa de homicídio.
Para a configuração da lista de jurados, observou-se o rito estruturado no Código de Processo Penal, com o acompanhamento do procedimento tanto pela defesa quanto pela acusação. Não houve qualquer impugnação ao ato, baseado na configuração social da região e no sentido pensado para o julgamento, revestindo-se de legitimidade.
Quanto à importância do feito, não deve ser considerado como um evento solto, mas sim atento aos conceitos de jusdiversidade necessários ao contexto do Judiciário roraimense, tal como estabelecido em outros processos judiciais – o primeiro deles é chamado caso Basílio, que tramitou na Justiça Federal de Roraima, sob o n. 92.0001334-1; ii. o segundo é o caso Denilson, que tramitou na Justiça Estadual de Roraima, sob o n. 0090.10.000302-0 (numeração única 0000302- 88.2010.8.23.0090) que, somados ao caso em apreço, fornecem fecundo material de análise para a pesquisa jurisprudencial com contornos do direito à diferença em perspectiva intercultural.
No caso do “Primeiro Júri Popular Indígena”, além disso, há um nítido caráter de aproximação com as comunidades indígenas, com a possibilidade de se articular uma dimensão de aprendizado, a partir do entendimento de como se dá o funcionamento do Tribunal e de como o Poder Judiciário julga os casos penais. No entanto, como se demonstrará adiante, esse objetivo não foi plenamente alcançado.
No segundo ponto, ao se tratar do inquérito policial, o que se buscou apontar não foi somente os apontamentos estatais na condução do procedimento, mas sim o intuito foi exatamente
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demonstrar uma narrativa factível dos fatos, a partir da compreensão do réu diante do contexto de cometimento do delito.
Nesse cenário, na explicação do caso, antes mesmo do fato em si, a defesa articulou a situação vivenciada pela comunidade da Enseada diante de duas mortes ocorridas anteriormente e atribuídas à ação do kanaimé – um senhor, de nome Damasceno, avó dos réus, que havia sido tuxaua da comunidade e gozava de boa saúde até o óbito, bem como de um menino de nome Virlane, de aproximadamente 8 anos de idade, primo dos réus, que foi encontrado morto e amarrado com um cabresto no curral da comunidade. Essas duas mortes haviam atemorizado os indígenas da região, com a possibilidade de que um kanaimé estivesse rondando a área.
Por outro lado, ao tratar de temas ligados ao “sobrenatural” partilhado pelos indígenas, busquei ter o cuidado de enfrentar o assunto de forma séria e comprometida, não diminuindo ou sublevando as crenças e costumes. Assim, foi um difícil trabalho de buscar em meu próprio universo linguístico, representações adequadas que dessem conta de traduzir a figura do “kanaimé” que transita entre as dimensões do real e do sobrenatural. Logicamente, não que os indígenas necessitassem dessa compreensão (o que impactaria na decisão do Conselho de Sentença), mas, as partes componentes desse processo judicial, em minha visão, detinham a tarefa de construir pontes para a análise por parte de indígenas e não indígenas, com base na ideia de traçar um horizonte de respeito em relação às culturas indígenas.
Por isso, baseei a figura do kanaimé como uma crença (no sentido de acreditar na sua existência, no ato de dar fé) e não como uma lenda ou mito. Nas diversas sociedades, há muitas representações do sobrenatural enquanto entidades que impactam diretamente na configuração do mundo natural e esses planos se imbricam, o que exige dos interlocutores que se debruçam sobre esses fenômenos noções de alteridade (além do mero ato de tolerar) e respeito.
Essa ordem de representação estava presente desde as descrições nos termos de declarações (depoimentos e interrogatórios) no inquérito policial, por parte dos réus, da vítima e das testemunhas. Inclusive, o próprio Antônio afirmou que um dia antes de ir para Uiramutã, onde viria a ser vítima do crime, sua tia Lucy foi a sua residência e comentou que estava havendo uma “fofoca” na cidade que ele seria um kanaimé. Antônio declarou que, por não ter envolvimento nesse “tipo de coisa”, mesmo assim foi até a vila, porque precisava fazer compras.
Por conta dessas especificidades, não se pode entender o fato que deu origem ao transcorrer do inquérito policial de forma dessincronizada em relação a essa visão de mundo mais ampliada. Além disso, durante o período do inquérito policial, os réus ficaram recolhidos na penitenciária agrícola de Monte Cristo por um breve período de tempo (pouco mais de uma semana), com a homologação da prisão em flagrante, e depois, foram liberados com a concessão de liberdade provisória sem fiança – com as condições de i. não afastamento da comarca por prazo superior a 15
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(quinze) dias, salvo autorização judicial; ii. comparecimento a todos os atos sempre que intimados; iii. comparecimento bimestral à sede do juízo para informar suas atividades regulares; iv. proibição de frequentar bares e boates após 22:00h e v. proibição de portar armas ou fazer uso de bebidas alcoólicas, sob pena de perdimento da liberdade. A defesa destacou que as condições foram integralmente cumpridas pelos réus, sem nenhum incidente.
Em relação ao processo penal, como terceiro ponto da sustentação oral, antes de se adentrar nas teses defensivas, foram traçados alguns aspectos para destaque em plenário.
Primeiramente, foi necessário desenvolver argumentação sobre a função do Ministério Público na ação penal, ressaltando seu papel social na titularidade do processo. O objetivo foi reverter a tentativa dos promotores de atribuir à defesa como pactuante de discurso negativo a priori contra a atuação do órgão ou uma fala direcionada ao MP como “colecionador de condenações” . Contudo, em um cenário no qual a atuação do MP, como acusador no Júri, traz à tribuna o
mapa da violência no Brasil, em nítido fomento à lógica do medo que impulsiona a ampliação do direito penal positivo, bem como à carcerização como resposta ao cometimento do delito, contrapus a lógica defensiva para um sentindo diametralmente oposto.
A condenação penal tem um significado altamente estigmatizante para as pessoas que cometem crimes e, notadamente, a função ressocializadora da execução penal não tem sido atendida a contento. Em especial, no contexto indígena das penitenciárias roraimenses, é sobrelevado o preconceito em relação aos detentos/reclusos indígenas. Portanto, pautei como importante pensar no significado da condenação no processo em curso.
Além disso, nesse sopesamento, a conduta social e a personalidade dos réus também devem ser levadas em consideração. Élcio é casado, pai de dois filhos, trabalhador na roça, nunca havia sofrido condenação criminal ou respondido a qualquer processo penal. Valdemir é casado, pai de cinco filhos, trabalhador na roça e vaqueiro na comunidade, nunca havia sofrido condenação criminal ou respondido a qualquer processo penal. O próprio dono do mercado, Seu Francisco de Assis, que separou o confronto entre a vítima e réus, sinalizou que eram pessoas de “boa paz” e que não era de seu conhecimento que houvessem se envolvido em transtornos anteriores. Por outro lado, segundo relato dessa testemunha, o comportamento dos irmãos estava visivelmente alterado pelo consumo de bebida alcóolica no bar.
Outro ponto discutido em plenário, disse respeito à atuação de Mozarildo no crime. As falas tanto da vítima, como dos réus e das testemunhas convergem para narrar que a animosidade e o conflito que se instaurou foram originados do diálogo entre Mozarildo (primo dos réus e figurou no processo judicial na condição de testemunha) e Antônio (vítima), partindo daí a suposição de que Antônio seria um kanaimé. Em sua inquirição, o promotor Carlos Paixão questionou sobre o papel central que Mozarildo teria para o cometimento do delito, suspendendo a ordem de perguntas com
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as respostas evasivas da testemunha, e ainda, ao argumento de que deveria ter figurado na condição de autor do crime, como réu no processo penal em curso e que teria sido orientado a mentir. Como advogada de defesa, não havia feito qualquer orientação anterior à testemunha sobre o seu depoimento em plenário, além disso, o MP teve a oportunidade de oferecer denúncia também contra ele, mas não o fez. Prometeu fazê-lo em data futura, o que não ocorreu.
3. DAS TESES DEFENSIVAS
Sedimentados alguns apontamentos sobre a explicação do Júri, inquérito policial e ação penal, passei propriamente para as teses defensivas, ponto chave na sustentação oral. A defesa do Élcio, bem como a de Valdemir, foi toda baseada na confissão dos acusados, que reconheceram o cometimento do delito e se mostraram proativos na elucidação do processo. Destaquei, assim, que havia sinceridade em elucidar o crime, partindo do entendimento de que, naquele contexto específico, foi real a possibilidade de os réus considerassem que a vítima seria um kanaimé.
Em decorrência do fato de o Conselho de Sentença ser composto por pessoas do povo, que não se atêm aos rigores dos institutos jurídicos utilizados no processo penal, as teses defensivas foram trabalhadas de modo mais ampliado e pouco ortodoxo, permitindo-se certa flexibilização nas categorias. Além do que, antes de utilizar a terminologia propriamente jurídica, muitas vezes, dotada de incompreensão para aqueles que não transitam no campo jurídico, realizei toda a explicação do conteúdo daquilo que queria ver reconhecido, para depois dar a nomenclatura adequada que constaria na quesitação elaborada pelo juiz. Seguem as teses defensivas:
i. Legítima defesa
Em decorrência dos óbitos anteriores ocorridos na comunidade da Enseada e acreditando que estava diante do kanaimé, o réu reagiu em sua legítima defesa e de seus parentes (no sentido indígena). Os requisitos da injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, devem ser relativizados a partir do entendimento de que as mortes causadas caracterizavam a injusta agressão ou mesmo a possibilidade de que viesse a ser vítima naquele momento; eram atuais porque ocorridas recentemente na comunidade e os ânimos dos indígenas estavam sobressaltados diante desses fatos ou iminentes porque o ocorrido poderia se repetir, além do que ao se caracterizar direito seu ou de outrem, tanto pode ser visualizado o direito dos próprios réus que compreenderam estar diante um kanaimé ou da comunidade que vinha sofrendo com a atuação daquela entidade. Segundo relato dos indígenas, ao se deparar com um kanaimé, só há dois enquadramentos possíveis: a morte da pessoa por um kanaimé ou a morte do kanaimé pela pessoa.
ii. Inexigibilidade de conduta diversa
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Se não há possibilidade de sobreviver ao kanaimé, a não ser matando-o, tem-se, então, que o réu (Élcio) não poderia agir de outro modo, como tentou fazer. Trata-se, por essa via, de um dever moral partilhado na crença Macuki: matar o kanaimé. Ao tomar essa atitude, não há possibilidade de punição, pois, é encarada como um honra para esse povo indígena.
iii. Causa supralegal de exclusão da ilicitude
Se entendermos que ambos os parâmetros elencados anteriormente (legítima defesa e causa supralegal de exclusão da ilicitude) não se encaixaram propriamente nos parâmetros legais, nos rigores do ordenamento jurídico, podemos entender que a reação dos réus, diante de um suposto kanaimé, é compreendida como uma causa que escapa à legislação. Não está na lei, mas, está na ordem das crenças partilhadas pelos indígenas, compreensível nesse universo cognitivo. Assim, há uma causa supralegal de exclusão da ilicitude.
iv. Desclassificação
Como tese bastante subsidiária, pois, o foco maior deu-se nas três primeiras, sustentei que o delito praticado por Élcio fosse desclassificado para lesão corporal, a partir da argumentação de que a posição do ferimento, no contexto em que se deu, não seria capaz de lhe causar a morte. Além do que se teria ineficácia absoluto do meio - com o uso de uma “faca de descascar laranja”, instrumento descrito em diversas passagens no inquérito policial.
v. Homicídio privilegiado
Como último apontamento, destaquei a possibilidade de se entender que se tratou realmente de tentativa de homicídio, mas, com causa de diminuição da pena ao argumento de que o réu estava sob violenta emoção.
O fato de o crime ter sido baseado na crença do kanaimé já ocorreu em outras passagens no Judiciário roraimense. Particularmente, tomei conhecimento de caso envolvendo também dois irmãos da etnia Macuxi, Rosildo da Silva Miguel e Osmário Felisberto Miguel, que no dia 25/11/1996, ao pé da Serra da Mala, próximo à Maloca do Bismarck, município de Normandia, mataram um índio chamado Mistalhin Costantino, acreditando tratar-se de indivíduo possesso pelo espírito kanaimé. Os réus admitiram que mataram a vítima, mas alegaram legítima defesa. O indígena Rosildo foi absolvido pelos jurados, mas numa flagrante injustiça, seu irmão Osmário foi condenado por quatro votos a três (Pereira 2009: 05-08).
Para fins da sustentação oral, citei o caso como acima exposto, no entanto, para fins deste artigo, é importante destacar que antes desse resultado final, houve julgamento pela Justiça Federal, em que os jurados negaram a tese defensiva (ao quesito “o acusado, no momento do ocorrido, supôs estar sendo agredido por um ser espiritual, conhecido na cultura indígena como kanaimé?”) e condenaram os réus. Dessa decisão, ambos recorreram para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região que reconheceu por unanimidade ser caso de incompetência da Justiça Federal, não
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adetrando no mérito da causa e anulando o julgamento, com a determinação de que o processo fosse julgado na Justiça Estadual.
Assim, o processo passou a tramitar na 1ª Vara Criminal de Boa Vista e, novamente, submetidos ao Tribunal do Júri, um dos irmãos foi absolvido e o outro foi condenado. O promotor que atuou no Júri recorreu acerca do réu absolvido, para anular o julgamento e os defensores públicos recorreram para anular o Júri do acusado condenado, mas em ambos os casos o Tribunal de Justiça de Roraima manteve o julgamento e as decisões dos jurados.
Pereira (2009) destaca que não há congressos, seminários ou grupos de estudos interdisciplinares que discutam a aplicação do direito penal aos indígenas roraimenses, sendo que pouco se escreve sobre o tema e, na seara jurídica, a bibliografia é ainda mais escassa, apesar da grande ocorrência de casos criminais envolvendo indígenas nos mais diversos delitos (Pereira 2009: 09).
Por isso, o julgamento em apreço teria inserção nesse cenário mais explanado, com a necessidade de se voltar os olhos para as tradições e costumes indígenas, além do fato de revelar a sobrelevância das peculiaridades e vicissitudes das questões indígenas envolvidas no procedimento, que não foram apagadas.
E, na estrutura defensiva, além da preocupação com o réu, como último aspecto discorrido, foi tratado o panorama da interculturalidade presente na causa, mas, de maneira alargada, envolvendo as relações comunitárias afetadas pelo delito.
Nesse ponto, inicialmente, demonstrei a preocupação com a vítima, com primado pela sua vida. Antônio, de origem da etnia Patamona, não era um kanaimé e nem a comunidade do Orenduque era uma comunidade de kanaimés. O que houve foi um engano, o qual poderia ser compreendido naquele contexto específico que se instalou o fato. Além disso, a vítima já tinha recuperado suas condições de trabalho, após período que ficou impossibilitado de exercer suas atividades. Os réus deveriam ressarci-lo pelo ocorrido, o que, inclusive, era de sua própria vontade, manifestando o interesse que fosse feita uma recomposição dos danos sofridos. Assim, resolvido o processo penal, as comunidades poderiam voltar a dialogar e restabelecer o convívio harmonioso entre os indígenas.
Após encerrada a sustentação oral defensiva não houve réplica por parte do Ministério Público. Em seguida, o juiz procedeu à votação dos quesitos, sendo lidas e explicadas à significação legal aos jurados. Em relação ao réu Elcio, os jurados reconheceram a autoria e a materialidade do delito, bem como sua intenção de matar a vítima, que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade. No entanto, o quarto quesito, com a cláusula geral, se o jurado absolve o acusado, o Conselho de Sentença respondeu afirmativamente pela absolvição. Em relação ao réu Valdemir, os jurados reconheceram a autoria e a materialidade do delito, mas, no terceiro quesito, responderam
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negativamente quanto à intenção de matar a vítima, tendo sido o delito desclassificado para lesão corporal. Na dosimetria da pena aplicada pelo juiz, foi fixada a pena base em três meses de reclusão - em regime aberto e devendo recorrer em liberdade.
3.1. Do Recurso De Apelação
O Ministério Público recorreu da sentença, nos termos dos arts. 593, inciso III e 600, § 4º do CPP. Em suas razões, apresentadas mais de sete meses depois da sessão de julgamento, a argumentação ministerial pautou-se pela mácula ao princípio do juiz natural no caso, na medida em que teria havido a formação de um Conselho de Sentença parcial e ainda pela constituição de um “Tribunal de Exceção” no julgamento pela escolha dos jurados indígenas.
Apresentei as contrarrazões para o réu Elcio e a Defensoria Pública o fez para o réu Valdemir. Os argumentos foram convergentes, iniciando-se pela intempestividade das razões do Ministério Público em afronta ao princípio da duração razoável do processo - o direito à liberdade não pode ficar ao alvedrio de processos longos e cujo trâmite ofende os prazos legalmente previstos. Todavia, essa preliminar não foi reconhecida pela Tribunal de Justiça, afirmando-se haver mera irregularidade.
No enfrentamento do mérito, a defesa pautou-se pela observância do devido processo legal no rito do Tribunal do Júri, como a seguir demonstrado.
Em relação ao sorteio dos jurados, a sua origem refletiu especificamente o arranjo geográfico da área, não se traduzindo em qualquer pecha de nulidade. Logicamente, o Tribunal do Júri traduz a base territorial em comento. O que se vislumbrou foi a clara impropriedade na argumentação ministerial ao tratar as comunidades indígenas em tom massificado e como se estivessem organizados em patamares hierarquizados (“subordinadas a liderança indígena estabelecida no centro indígena Maturuca”). O Ministério Público demonstrou claro desconhecimento das estruturas organizacionais desses povos indígenas e utilizou categorias analíticas infundadas para justificar seu embasamento, como o conceito de “bloco indígena”.
Aliás, sendo a idealização do Tribunal do Júri justamente o julgamento entre pares, isso é o que se visualizou no caso. O município de Uiramutã, seja pelo Censo Indígena do IBGE ou pelo Censo Universal deste mesmo órgão, é um dos municípios com maior percentual de população indígena no país, ocorrendo o mesmo com o município de Normandia, que também se conforma com a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Veja-se os dados do Censo de 2010 para a composição populacional do município de Uiramutã e Normandia:
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Tabela 6: Dados do Censo de 2010 para o município de Uiramutã
População 2010
8.375
Área da unidade territorial (km²) 8.065,564
Densidade demográfica (hab/km²) 1,04
Código do Município 1400704
Gentílico uiramutansense
Prefeito ELIESIO CAVALCANTE DE LIMA
Fonte: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=140070&search=roraima|uiramuta
Tabela 7: Dados do Censo de 2010 para o município de Normandia
População 2010
8.940
Área da unidade territorial (km²) 6.966,811
Densidade demográfica (hab/km²) 1,28
Código do Município 1400407
Gentílico Normandiense
Prefeito JAIRO DE AMILCAR ARAÚJO
Fonte: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=140040&search=roraima|normandia
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Agora, em termos percentuais dos indígenas localizados nos Municípios roraimenses:
TABELA 8: Municípios com as maiores proporções de população indígena do País, por situação do domicílio
Roraima – 2010
Total Urbano Rural
Código Município % Código Município % Código Município %
1 1400704 Uiramutã 88,1 1400704 Uiramutã 56,9 1400704 Uiramutã 93,0
2 1400407 Normandia 56,9 1400407 Normandia 18,1 1400456 Pacaraima 91,7
3 1400456 Pacaraima 55,4 1400159 Bonfim 9,3 1400407 Normandia 70,5
4 1400027 Amajari 53,8 1400027 Amajari 8,7 1400050 Alto Alegre 63,9
5 1400050 Alto Alegre 45,9 1400456 Pacaraima 7,9 1400027 Amajari 60,5
6 1400159 Bonfim 42,5 1400100 Boa Vista 2,2 1400159 Bonfim 59,5
7 1400282 Iracema 18,0 1400050 Alto Alegre 1,8 1400100 Boa Vista 38,0
8 1400175 Cantá 12,4 1400175 Cantá 1,1 1400282 Iracema 33,5
9 1400233 Caroebe 5,6 1400233 Caroebe 0,5 1400175 Cantá 14,6
10 1400506 São João da Baliza 4,3 1400282 Iracema 0,5 1400506 São João da Baliza 13,7
Fonte: http://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas-2.html
Em 2010, eram 8.940 habitantes no município de Normandia, somados com os 8.375 habitantes de Uiramutã, o resultado ainda é inferior ao número de indígenas da TI Raposa Serra do Sol:
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Tabela 9: Pessoas residentes em terras indígenas, por condição de indígena, segundo as Unidades da Federação e as terras indígenas - Brasil – 2010
Pessoas residentes em terras indígenas
Unidades da Federação e terras indígenas
Total (1)
Condição de indígena
Declararam-se indígenas
Não se declararam, mas se consideravam indígenas
Não se declararam e nem se consideravam indígenas
Roraima 50 406 40 220 6 285 314
Ananás 14 X X X
Anaro 39 X X X
Aningal 208 208 - -
Anta 115 - 99 14
Araçá 1 080 615 428 31
Barata Livramento 669 329 336 3
Bom Jesus 107 46 51 8
Boqueirão 460 441 18 1
Cajueiro 113 67 45 -
Canauanim 834 59 773 1
Jabuti 307 282 25 -
Jacamim 1 518 1 511 7 -
Malacacheta 776 736 38 2
Mangueira 80 51 29 -
Manoa / Pium 2 009 1 722 277 8
Moskow 559 488 71 -
Muriru 155 153 1 1
Ouro 180 146 33 -
Pium 312 223 82 7
Ponta da Serra 175 - 168 -
Raimundão 363 38 313 12
Raposa Serra do Sol 17 750 14 640 2 462 114
Santa Inez 163 126 31 4
São Marcos 7 948 4 493 452 7
Serra da Moça 479 352 125 2
Sucuba 213 88 124 -
Tabalascada 553 503 43 5
Trombetas / Mapuera (2) 427 411 14 1
Truaru 354 342 12 -
Waimiri-Atroari (2) 446 438 3 -
Waiwái 300 261 28 11
Yanomami (2) 11 700 11 410 188 79
Fonte: http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf
Ou seja, não há nenhuma incoerência que os jurados desse julgamento pelo Tribunal do Júri tivesse um corpo de jurados formado por indígenas. O magistrado, na sentença de pronúncia,
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afirmou tratar-se “peculiar feito meritório e procedimental, haja vista a principal alegação de a defesa centrar-se em tradição indígena e o pretenso ato ilícito criminal ter ocorrido em terra indígena, e terem indígenas como réus e vítima, o que reclama a realização da sessão de Júri em Terra Indígena, como jurados indígenas com o fito de dar legitimidade ao ato, uma vez que serão julgados ‘verdadeiramente’ por seus próprios pares”.
O Judiciário brasileiro tem, assim, o desafio de lidar com as demandas advindas dos povos indígenas, o que evoca um olhar revestido de especificidades a fim de criar horizontes epistemológicos que auxiliem em uma justa compreensão jurídica. Essa teria sido a proposta da CRFB/88 ao garantir o reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, crenças e tradições, entre outros (arts. 231 e 232, 215 e 216 da CRFB/88). Nesse contexto, o conceito de jusdiversidade opera como catalisador de uma nova lógica de afirmação de direitos e políticas identitárias. A Convenção 169 da OIT da traz ainda os seguintes dispositivos:
Artigo 5º Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:
a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos; Artigo 9o
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Com todas as dificuldades apresentadas para fazer valer esses dispositivos e consagrar a jusdiversidade, temos decisões que se somam a essa em comento para evidenciar a afirmação do respeito aos indígenas brasileiros. Assim, o “Primeiro Júri Popular Indígena” não trata de um julgamento solto e isolado, mas da estruturação de novos contornos jurisprudenciais em relação aos direitos indígenas.
Há, logicamente, como salienta Duarte e Baptista, o risco da observância de comportamentos externos segundo códigos internos, o que compromete a capacidade de compreensão do outro e se pauta em julgamento segundo nossos próprios juízos de moralidade, o que pode levar a um comportamento etnocêntrico e na intervenção valorativa de atos de terceiros - intolerância com a diferença. Em contrapartida, por outro lado, encara-se a possibilidade de construção de pontes que levam ao reconhecimento das diferenças e das sensibilidades jurídicas locais e, ao mesmo tempo, privilegiam a interação dialogada entre elas - dilemas a serem enfrentados na busca de uma adesão legítima ao Estado, ao Direito e às suas instituições (Duarte; Baptista 2014: 69-70).
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Esse caso específico evidencia a não ocorrência de um Tribunal de Exceção, baseado em esforço argumentativo distorcido, e sim o primeiro julgamento de um Tribunal do Júri popular indígena, ocorrido em caráter itinerante, no Centro Comunitário Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com severas dificuldades de realização e desafios permanentes.
A realização do júri em Maturuca foi aprovada e apoiada pelo Tribunal de Justiça. O Ministério Público Estadual concordou com a realização do júri naquela localidade. Dois promotores estiveram em ação, bem como um defensor público. O presidente do Tribunal de Justiça de Roraima, na ocasião, acompanhou pessoalmente os trabalhos, bem como um procurador de justiça do Estado de Roraima. A Imprensa registrou, antes, durante e depois do julgamento. Assim, cabe indagar, todas essas autoridades e público testemunharam/participaram de um "tribunal de exceção"?
Ultrapassada a sessão em plenário, os envolvidos no processo (réus e vítima) e suas comunidades voltaram a dialogar para alcançar a recomposição do conflito e o restabelecimento das relações comunitárias, ultrapassando a visão do Direito Penal meramente repressiva. Além disso, houve o processo de avaliação do ritual do Tribunal do Júri - considerado como violento e desrespeitoso - e o consequente ritual indígena, que buscou a pacificação da vida social entre as 119 comunidades que mantêm vínculo com o Centro Comunitário Maturuca, entre elas a comunidade da Enseada, dos réus e a Comunidade de Orinduque, da vítima.
Em evento posterior, os réus e a vítima estiveram presentes no Centro Comunitário Maturuca, sinalizando que o processo judicial híbrido - parte do Estado e parte dos indígenas, apesar dos percalços na aproximação dessas sensibilidades jurídicas, conseguiu efetivamente religar os laços de sociabilidade entre ofensores e ofendidos, tanto na esfera individual quanto na coletiva. No julgamento da apelação criminal, de relatoria do Desembargador Ricardo Oliveira, no
início do mês de setembro de 2016, foi rejeitada a preliminar de intempestividade do recurso e negado provimento ao recurso, por unanimidade. No voto do relator, reconheceu-se que todas as fases para a formação do Conselho de Sentença teriam sido cumpridas pelo juízo fielmente, sem irresignação anterior por parte do Ministério Público e sem prejuízo para a acusação.
3.2. Dos Deslindes do Caso
Após o transito em julgado do acórdão, no final do mês de setembro de 2016, Julio Macuxi, vice coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste, filho de seu Jacir (tuxaua do Centro Comunitário Maturuca), esteve na Universidade Federal Fluminense para participação de debates e oficinas sobre o primeiro “Tribunal do Júri Indígena” em Raposa Serra do Sol.
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Nessa ocasião, tive a oportunidade de dialogar mais detidamente sobre as consequências desse julgamento. A narrativa dessa liderança indígena lançou novas luzes sobre o evento, com o detalhamento da reunião ocorrida no dia seguinte após o júri para avaliar o ocorrido em plenário e estabelecer os deslindes do caso. Os réus foram penalizados pelas comunidades indígenas, bem como a vítima e a testemunha Mozarildo - com o estabelecimento de penalidades para cada um deles, desde à prestação de serviços coletivos e trabalhos comunitários, desterro para outra comunidade indígena, entrega de cabeças de gado, participar das celebrações religiosas, proibição de ir à sede do município de Uiramutã e não consumir bebida alcóolica durante a penalidade. Nesse panorama, todos teriam tido participação para a ocorrência do crime que teria por principal motivação o desentendimento oriundo do consumo de bebidas alcoólicas. A ingestão de bebidas alcoólicas é apontada como um grave problema social para essas comunidades indígenas, sobretudo, quando relacionadas àquelas introduzidas por comportamentos externos que não guarda conexão com os costumes locais e com as práticas de produção comunitária (no caso, “caxiri” e “pajuaru”). O estabelecimento de penalidades tenta acompanhar, muitas vezes, a quantidade do consumo e a intensidade do álcool presente na bebida (das mais fracas às mais fortes), sendo mais brando, por exemplo, no caso da cerveja e mais acentuado em se tratando de cachaça. Inclusive, ainda na década de 1970, diversas lideranças indígenas uniram-se na Maturuca para pactuar a proibição de bebidas alcoólicas na localidade, atribuindo a esse comportamento como determinante para uma desfragmentação social e como elemento de manipulação/deterioração dos indígenas a partir do fornecimento por garimpeiros e fazendeiros. No crime específico em apreço, a alteração comportamental pelo consumo de álcool teria ocasionado o derramamento de sangue, apontado como um crime gravíssimo que deve ser penalizado com rigor.
Julio Macuxi enfatizou também que, na visão dos indígenas, a realização do Tribunal do Júri no malocão da homologação da terra indígena, com o objetivo dos indígenas de entenderem o funcionamento e o julgamento dos delitos por parte do Poder Judiciário, foi prejudicada por conta do tom desrespeitoso e acalorado traduzido em plenário na atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público. Nesse sentido, a lógica do contraditório não se apresentou com argumentativa, mas sim enfática em desqualificar o discurso do outro, como comumente ocorre nos tribunais brasileiros. O juiz do caso, Aluízio Vieira, relata que, logo depois da sessão de julgamento, Seu Jacir, uma das maiores lideranças de Raposa Serra do Sol e tuxaua do Centro Comunitário Maturuca, disse-lhe que “não imaginava que o julgamento dos brancos ocorria dessa maneira e que, a partir de então, ainda mais, iriam resolver todos os problemas da comunidade entre eles” (Vieira 2016: 81). Do mesmo modo, em declaração para a imprensa que acompanhou o julgamento, o coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal e muito diferente da forma deles (indígenas do Centro Comunitário Maturuca), mais
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respeitosa e educativa de julgar, bem como, de acordo com ele, a ação mudou a forma como os indígenas lidarão com os conflitos a partir da realização do júri (Portal g1 – Globo 2016: s/p). Esse relato é corroborado na dissertação de mestrado de Moraes, que precede à realização do julgamento, com o apontamento de que a justiça formal e o formato estatal brasileiro de administração de conflitos em grande parte não atende às demandas dessa comunidade indígena e acaba trazendo outros problemas, o que determina a percepção formulada por vários indígenas que não gostam de “ver nas mãos do Estado” os problemas internos às comunidades indígenas que antes eram resolvidos pelas lideranças locais. A preocupação, nesse sentido, reside em repor o equilíbrio comunitário (Moraes 2015: 106).
Por conta de todas essas indicações, muitas vezes, fica manifesta a necessidade das comunidades indígenas resolverem os problemas internos e não levá-los ao Judiciário, revelando o protagonismo indígena e o fortalecimento dos conselhos comunitários, com a aproximação das ações e iniciativas das lideranças indígenas. Além do que, na esfera penal, o encarceramento em relação aos indígenas não atenderia a qualquer processo de ressocialização (“recuperação dos parentes”), retornando para as comunidades indígenas desagregados de seus aspectos culturais. Nessa lógica, emergiu a diferenciação entre as características próprias da forma de fazer justiça na perspectiva local (orientada pela reconciliação e para a manutenção de uma ordem social geral) e a formalmente partilhada pela “justiça estatal” (orientada por direitos individuais e para a punição de culpados). Simião questiona, em sentido que me é partilhado nesse caso, sobre a postura estatal em conhecer o direito costumeiro e sua legitimidade, a partir das práticas usuais de administração dos conflitos, em contrapartida à visão do Estado em apostar sempre na promessa civilizatória do direito positivado que efetivamente não atende, em muitos casos, a esses grupos de pertencimento (Simiâo 2013: 34-36). É nesse sentido que também articula Dan:
A justicia indígena, ou seja, uma certa concepção de ordem social que determina o modo de aplicação e a função do direito dentro das comunidades indígenas respeitando seus valores não é recente, ela existe e é anterior ao próprio Estado. Porém, nessa nova fase constitucional, a proposta estatal é o ―reconhecimentoǁ do que acreditam ser sistemas jurídicos indígenas adaptados e que aqui está sendo lido como uma forma de ajuste ao sistema jurídico monista uma vez que considera aspectos jurisdicionais e condições do Estado e que mantém a hierarquia com base em uma Constituição no topo dessa pirâmide legislativa. Não se pode falar em justiça indígena, mas sempre em vários tipos de justicias indigenas. (Dan 2016: 98)
Por essa via, outra consequência advinda dessas experiências e a visibilidade que se construiu em torno do julgamento em Raposa Serra do Sol, bem como das práticas jusdiversas experimentadas por esses povos indígenas, foi a criação do 1º Pólo de Conciliação Indígena no cenário brasileiro em setembro de 2015. O Presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, esteve no centro comunitário Maturuca para inaugurar o funcionamento desse polo. A imagem a seguir mostra esse momento:
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Imagem 16: Inauguração do 1º Pólo de Conciliação Indígena

Fonte: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/09/lewandowski-inaugura-em-rr-1-polo-de-conciliacao-indigena- do-brasil.html. Acesso em 10 de setembro de 2016.
O que se vislumbra é o reconhecimento do Estado por meio de uma instância oficial de Justiça para as reuniões e a aplicação dos costumes no modo de resolver conflitos ou punir aqueles indígenas que cometeram desvios em suas condutas dentro da TI Raposa Serra do Sol. O órgão foi denominado de Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Brasil, com funcionamento contínuo e vinculação à comarca de Pacaraima, município encravado dentro da TI. Muitas vezes, no embate com o Estado há imposição da forma (e do conteúdo) em conflito
com a prevalência da cultura, entretanto, no caso do Cejusc, o que visualizo é certa sobrelevância desse último aspecto em tom de valorização dos costumes indígenas. Além do que, sem abandonar o caráter formalista, o CNJ conferiu certificados de conciliadores e mediadores de conflitos aos indígenas que participam desse contexto de atuação jurídica. A entrega desses documentos não refletiu qualquer “curso de formação”, como divulgada pela própria assessoria de imprensa do STF, ao afirmar que os indígenas teriam sido “treinados” para a função (PORTAL STF 2016, s/p), e sim conferiu a certificação para aquelas lideranças indígenas que já desempenhavam, de forma tradicional, esse papel de atuação para resolver os conflitos existentes, mas também esse quadro evidencia a falácia do monismo jurídico quando confrontado com a realidade de fato e obriga que o Judiciário enfrente essa temática com a perspectiva da resistência praticada pelos povos indígenas em contrapartida à dominação colonializante.
Em meu ponto de vista, não vislumbro contradição, e sim uma falsa antinomia na estruturação desse pólo na TI Raposa Serra do Sol, que uma análise cuidadosa pode resolver. Assim é que se pode adotar como estratégia (Bourdieu 2003: 55) se servir do Estado na tentativa de se liberar de suas influências para lutar contra as pressões exercidas pelo Estado, o que também ocorre
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na figura do Poder Judiciário. Assim é que se tira partido das possíveis garantias de independência que o poder estatal lhe confere para afirmar características de autonomia em relação ao Estado por parte dos povos indígenas, mesmo com todas as dificuldades envolvidas nessa postura emancipatória.
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Os juristas, sobretudo aqueles que pautam conteúdos decisórios, necessitam de uma maior esfera de compreensão para o entendimento caso a caso das especificidades dos diversos povos que habitam o território nacional em nítida abertura cognitiva, o que não nos permite a tábua rasa do direito positivo brasileiro. As decisões judiciais advindas do Tribunal de Justiça de Roraima, em relação ao procedimento do Tribunal do Júri, podem contribuir para a construção desse por vir, como alcance de novas posturas a serem alcançadas, em que se permitiria a valorização das especificidades indígenas e seus costumes.
Esses contornos diferenciativos e plurais obrigam o Poder Judiciário a se posicionar e construir uma nova concepção de justiça, que passa pelo exercício simultâneo de reconhecimento de identidades e redistribuição nos sentidos da igualdade (Cittadino 2005: 121).
O reconhecimento das especificidades indígenas (e das populações tradicionais em sentindo ampliado) envolve, deste modo, noções peculiares que não se amoldam nas configurações jurídicas formais e demandam o direito à diferença, o que representa uma grande dificuldade no campo jurídico estruturado. Há possibilidade de se vislumbrar uma alternativa jurídica frente ao monopólio da jurisdição? É preciso pensar o direito além das deficiências do monismo estatal.
Em síntese, o que verdadeiramente espero com essa pesquisa é que tenha auxiliado em entender um pouco melhor os processos de significação dos direitos indígenas frente ao Judiciário brasileiro. E, desse modo, evidenciar os limites e as dificuldades em se lidar com o direito à diferença, apresentando experiências inovadoras e uma perspectiva que desconstrua a retórica do formalismo jurídico, do caráter privatista do Direito e indicar a possibilidade de novas experiências que se estruturam aos poucos, como nas decisões do Judiciário de Roraima. Reforço, então, a necessidade de construir horizontes epistemológicos no Direito que partam da valorização da multiplicidade cultural.
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CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 100-122 121
AZEVEDO, Thaís Maria Lutterback Saporetti
O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL:...
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AUTORA:
Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF
E-mail: thaislutterback@gmail.com
CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 100-122 122