UMA ANÁLISE DOS DEBATES LEGISLATIVOS DA LEI 12.850/13 E A CRIMINALIZAÇÃO DO MST

Vanessa Ferreira Lopes Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

O presente trabalho busca apresentar, de forma preliminar, os resultados da pesquisa de mestrado, em que se analisa o processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) na Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), ocorrido em Goiás. Para tanto, utiliza- se do método indiciário proposto por Ginzburg (1989). A pesquisa debruça-se primeiro sobre a gestação da legislação (Lei 12.850/13). Em segundo momento, analisa-se o processo judicial. Utiliza-se do conceito de Estado Penal (Wacquant 2001) para compreender o tratamento político- jurídico despendido pelo Estado brasileiro ao MST, baseado no paradigma punitivo. Palavras-chave: Lei 12.850/13. Criminalização dos Movimentos Sociais. Debates Legislativos.

ANALYSIS OF LAW 12.850 / 13 LEGISLATIVE DISCUSSIONS AND CRIMINALIZATION OF THE MST

ABSTRACT

This article aims to analyze preliminary results of MST criminalization process in Organized Crime Act (Law 12.850/2013), due to a lawsuit in Brazilian State of Goiás. Therefore, the data was analyzed following evidential paradigm, according to Ginzburg (1989). The legislative elaboration of normative and the MST criminalization lawsuit were the collected data. Wacquant Penal State concept was used to explain the legal-political treatment applied by Brazilian State to MST, based in punitive paradigm.

Keywords: Law 12.850/2013. Social Movements Criminalization. Legislative Debates.

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LOPES, Vanessa Ferreira

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca apresentar, de forma preliminar, os resultados de pesquisa de mestrado em que se analisa o processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ocorrido em Goiás, em que quatro integrantes são tipificados a partir da Lei 12.850/13. Eles tiveram ordens de prisão decretadas e foram efetivamente presos sob a acusação de pertencerem a uma organização criminosa. Este processo judicial corre no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO).

Para tal análise, a metodologia adotada é o método indiciário proposto por Carlo Ginzburg (1989). Compreendendo a criminalização perpetuada como um processo complexo, a pesquisa debruça-se primeiro sobre a gestação da legislação que introduz o conceito de organização criminosa. Foca-se, primeiramente, na análise dos debates legislativos, a partir das notas taquigráficas, reuniões de comissões, as justificativas de emendas e a norma jurídica produzida. Em um segundo momento, analisa-se o processo judicial que deu ensejo à tipificação do MST.

Para tanto, utiliza-se o conceito de Estado Penal (Wacquant 2001) para compreender o tratamento político-jurídico despendido pelo Estado ao MST, baseado no paradigma punitivo. Embora o processo de criminalização dos movimentos sociais e, em sentido mais amplo, da pobreza, não se constitua um fator novo nas formas de controle social exercidas pelo Estado, considera-se que o caso em questão pode ser considerado emblemático do quadro de adesão subjetiva à barbárie (Batista 2012) que se caracteriza pelo clamor punitivo da sociedade no contexto neoliberal.

Torna-se bastante ilustrativo o editorial do jornal O Estado de São Paulo que ressaltava a utilização da lei de organizações criminosas como inovação jurídica necessária e essencial ao combate do MST.

Durante décadas, as decisões dos tribunais relativas às invasões do MST foram baseadas no velho Código Penal editado em 1940, especialmente no dispositivo que tipifica o crime de formação de quadrilha. Dado o anacronismo desse texto legal, os advogados do MST habilmente conseguiram explorar suas brechas e obter decisões favoráveis na segunda instância dos tribunais. Isso explica o pequeno número de militantes punidos pela Justiça, em comparação com o elevado número de invasões. No caso em questão, porém, o Ministério Público não baseou suas denúncias no Código Penal, mas na Lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas e entrou em vigor em 2013. Foi a primeira vez que membros do MST foram acusados criminalmente com base nesse texto legal. Entre outras inovações, a lei prevê que os inquéritos criminais possam correr em sigilo. Também autoriza a delação premiada e permite infiltração de agentes, quebra de sigilo fiscal, bancário e telefônico. E, diferentemente do enquadramento das invasões pelo crime de formação de quadrilha, a Lei 12.850/13 pressupõe a teoria do domínio dos fatos, com base na qual qualquer militante de uma organização criminosa pode ser acusado em qualquer inquérito. (Opinião 2016)

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Nesse sentido, compreender o processo específico de criminalização por que passa o MST e que aponta para um movimento mais geral de criminalização e repressão à ação política organizada, perpassa pela análise do processo de produção da norma, ou seja, pelos discursos e embates que tiveram lugar no âmbito legislativo, e das transformações que causa no próprio direito penal. Logo, nesse artigo realizamos uma análise do processo legislativo que resultou na Lei 12.850/2013, procurando entender quais discursos e conceitos são mobilizados em torno desse marco normativo. Qual a tônica dos discursos que justificaram a necessidade da criação da norma? Quais foram os argumentos (e obviamente suas premissas ideológicas) suscitados ou silenciados em relação ao P.L 150/2006? Qual a demanda por pena que ensejou a tipificação de organizações criminosas e aumentou as possibilidades de meios de prova no processo penal, no contexto brasileiro?

1. ASPECTOS METODOLÓGICOS E TEÓRICOS

Adotou-se o método indiciário de Carlo Ginzburg, compreendendo a importância dos dados tidos como marginais, que têm o condão de revelar aspectos antes escondidos ou encobertos. Tendo em vista que a pesquisa contou com material empírico em que as fontes são majoritariamente documentos oficiais ou de instituições estatais, tais como os processos judiciais, o material de tramitação do PL 150/06 no Congresso Nacional e ainda publicações da imprensa, verificou-se a importância de uma metodologia que fosse capaz de desvelar, para além do discurso técnico ou formal, as construções ideológicas, as opções políticas e sociais ali contidas.

Dessa forma, o método indiciário permite vislumbrar não só aquilo sobre o que está explícito, mas também sobre o que está silenciado.

[o] paradigma indiciário [...] pode se converter num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social com a do capitalismo maduro. [...] Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. (Ginzburg 1989: 177)

Para entender o tratamento político-jurídico dispensado ao MST pelo Estado, é necessário compreender a racionalidade punitiva brasileira aviltada pelas permanências coloniais, e ainda o contexto global de expansão dos diplomas penais.

Compreendemos que o contexto global de governança neoliberal é marcado por duas frentes significativas por parte da gestão estatal que são, de um lado, a desintegração das políticas estatais de assistência e dos serviços públicos e, de outro, a desregulação dos direitos trabalhistas e fluidez do capital internacional. Wacquant (2001) aponta que esse duplo movimento gera, como estratégia neoliberal, o encarceramento em massa da pobreza. Com a erosão do modelo de Estado

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de Bem-Estar social, que nem chegou a firmar-se na América Latina, Wacquant alerta que estaríamos vivenciando o Estado penal, tendo em vista a massificação da criminalização da pobreza.

[...] Na medida em que se desfaz a rede de segurança (safety net) do Estado caritativo, vai se tecendo a malha do Estado disciplinar (dragnet) chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço social americano. O desdobramento desta política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado opera segundo duas modalidades. A primeira e menos visível, exceto para os interessa dos, consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas “classes perigosas” (Wacquant 2001:28).

Esse fato pode ser verificado na medida em que o Estado elege certas categorias como “perigosas”, para uma legitimação da política de rigidez máxima e intolerância com os pequenos delitos, contribuindo para um clamor punitivo na sociedade e que se traduz em “maneira de pensar do sistema punitivo” (Pires 2004) no judiciário, em que a única resposta adequada e possível seria a prisão.

Dentro desse contexto, Canotilho (2008:235) observa que o “discurso antigarantista” coloca as garantias processuais penais presentes nas constituições como empecilhos à realização da persecução criminal. Mas que, na verdade, esse discurso é sintoma de uma crescente influência do “direito penal contra o inimigo” sobre as legislações penais, que se manifesta pela “ criminalização antecipada”, e ainda se traduz na “tutela antecipada” dos bens jurídicos, com a crescente aceitação do crime de perigo indireto, atenuação da presunção de inocência e radicalização da pena prisão. Zaffaroni (2007) analisa como o Estado gesta essa imagem de inimigo a ser combatido,

que desumaniza o outro, legitimando assim a sua eliminação. Nomear o MST como “organização criminosa” não é pouco simbólico nesse contexto. Por isso, a utilização da Lei de Organizações Criminosas torna-se tão paradigmática.

2. A LEI 12.850/13

Nesse contexto, insere-se a Lei de Organizações Criminosas, a Lei 12.850/13. O PL 150/2006 foi apresentado como proposta individual em 23/05/2006. O projeto passa a tramitar como PL 6.578/09 na Câmara Federal e é aprovado como Lei Ordinária 12.850/13.

A lei possibilita a delação premiada, aumenta as hipóteses de quebra de sigilo bancário e fiscal e ainda permite as interceptações telefônicas, ambientais e de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos.

A justificativa da autora do projeto, a senadora Serys Slhessarenko já traz elementos muito importantes para análise:

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Ora, não nos parece que as idéias participantes do vocábulo “associar” sejam suficientemente explícitas para a compreensão mais abrangente do fenômeno delitivo que mereça o nomen iuris de “crime organizado” (não obviamente “organização criminosa”, que possui um sentido mais sociológico que jurídico-penal) (Senadora Serys Slhessarenko, justificativa do PL150/06)

A indicação que essa lei pretende ter um caráter “mais abrangente do fenômeno delitivo” é muito importante, pois o processo penal é regido pelo princípio da taxatividade, significando que os tipos penais têm que ser objetivos e bem delimitados sob pena de abarcar uma generalidade que impede a defesa qualificada do acusado e rompe suas garantias conquistadas desde o Iluminismo frente ao Estado.

Outro ponto que merece destaque na justificativa apresentada pela senadora é quanto à descrição do sujeito que seria o acusado no seu PL.

Qualquer um pode, em tese, atuar no crime organizado, e não apenas pessoalmente, mas também através de interposta pessoa. Nada impede, portanto, que alguém possa agir às ocultas, colocando-se por detrás do operar criminoso. (Senadora Serys Slhessarenko, justificativa do PL150/06)

Outra vez a inexatidão dos termos nos remete à utilização possível e sugerida pela própria autora da teoria do domínio dos fatos, ou seja, que se utilize dessa tese de forma errônea, para descortinar quem estaria por “detrás do operar criminoso”. A emenda n. 15, por exemplo, propunha alargar ainda mais a abrangência do tipo penal para incluir as organizações ainda que informais.

Justificativa da Emenda 15: Conforme sugestão do Senador Jéferson Perez, acrescenta-se a expressão “ainda que informalmente” para assegurar-se que a organização criminosa possa ser considerada como tal ainda que apresente estrutura informalmente estabelecida.

A emenda n. 1, apresentada pelo Senador Antônio Carlos Valadares, que inclui o terrorismo no PL 150/06, sem ao menos defini-lo, merece destaque, pois apesar da justificativa apresentada, foi aprovada sem nenhuma discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.

Com efeito, fica evidente que a faceta de uma organização criminosa terrorista não se limita (somente) ao ato de terror “per si”, mas abarca a captação de recursos financeiros capazes de subsidiar e viabilizar o ato de terror. 2 Ademais, geralmente são constituídas 2 ou 3 organizações criminosas com a finalidade do terrorismo, sendo que enquanto uma delas é a responsável pela captação dos recursos necessários para a prática criminosa, a outra organização é responsável pelo planejamento e organização de toda o sistema, enquanto uma terceira organização é a entidade que pratica o ato de terror finalístico. Lógico que, em seu conjunto, tais organizações formam uma só e única entidade criminosa, daí serem chamadas de células criminosas; mas a esperteza e o conhecimento específico dessas entidades perfazem uma divisão que, muitas vezes, uma organização não conhece a outra organização, evitando que a captura policial de uma delas não gere a captura policial de toda a organização. A presente emenda busca evitar tal situação. (Justificativa emenda n.1)

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Canotilho (2008) já alertava para o impacto do 11 de setembro americano nas legislações processuais penais e, em especial, nas garantias paulatinamente sacrificadas em nome de um pretenso alcance para se combater o inimigo, que não poderia se dar ao luxo de obedecer e manter as garantias já positivadas nas Constituições nacionais.

O “Direito penal contra o inimigo” que hoje, exerce profunda influência sobre alguns sistemas penais, designadamente, o norte-americano e o europeu, tem testado o acerto das suas propostas constitucionais e penais em três setores das políticas e legislações criminais – a legislação anti-terrorista, a criminalidade organizada e a delinquência sexual [...]. Um traço comum da legislação inspirada no “direito penal contra o inimigo” é aquele que na doutrina germânica se designa por “criminalização antecipada” (Vorfeldkriminalisierung), fundamentalmente reconduzível a (1) tutela marcada, e intencionalmente antecipada, de bens jurídicos (segurança, ordem, bens materiais e pessoais); (2) centralidade do paradigma do crime de perigo indirecto, de forma a possibilitar a incriminação de condutas que, em abstracto, se revelam inidóneas e desadequadas para criar aquelas situações de perigosidade legitimadoras de antecipação de intervenção penal; (3) formulação estrutural dos pressupostos (Tatbestände) incriminatórios com especial subvalorização dos pressupostos objetivos essenciais do direito penal caracterizadores do Täter (Gesinnung)strafrecht; (4) inversão dos onus probandi, atenuando a presunção de inocência do arguido; (5) radicalização da pena de prisão nos seus limites máximos e mínimos, e intensificação do rigor repressivo as várias modalidades de execução de penas, acompanhadas de bloqueio e políticas criminais alternativas; (Canotilho 2008: 236)

Cabe destacar que o PL 150/06 é paradigmático quanto a essa problematização levantada por Canotilho, pois permite várias hipóteses destacadas por ele. Possibilita, por exemplo, pela emenda apresentada pelo senador Demostenes Torres, a infiltração policial com os seguintes fundamentos:

Neste momento que o Congresso Nacional busca dar ao Brasil uma moderna lei de repressão ao crime organizado, tal mecanismo de investigação não poderia desaparecer do nosso ordenamento jurídico. (Justificativa emenda n. 4 Senador Demostenes Torres)

Ainda sobre o impacto no imaginário que se estabeleceu, considerando as garantias constitucionais como empecilhos a persecução criminal, Canotilho (2008) observa que há uma inversão. Antes eram consideradas essenciais pois protegiam os indivíduos contra o arbítrio estatal agora, apenas impedem uma suposta persecução ao inimigo mais eficiente e moderna.

A própria natureza e caracterização dos dois direitos como “direitos fragmentários”, um porque (o direito constitucional) se deve conceber como “ordem quadro fundamental”, e outro (o direito penal) porque se autolimita com ultima ratio como proteção dos bens jurídicos criminais nos quadros do “inimigo”. A pressão recai sobre as Constitu ições, obrigando-as reverter os respectivos textos, sobretudo no âmbito das liberdades e das garantias transformando as regras em exceções e as exceções em regras (exemplos: quanto as hipóteses de violação do domicílio, quanto a interceptação das comunicações, quanto a vigilância da privacidade, quando a extradição de nacionais). [...] O direito penal abre-se a novos tipos de ilícito e acolhe conceitos de eficácia que põem em dúvida sua radical autolimitação de direito de ultima ratio em instrumento de polícia e de cruzada contra os “inimigos”. Com as mutações naturais da sua historicidade, em direito penal de permanência evolui para um direito penal de emergência. (Canotilho 2008:237)

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Percebe-se pela construção discursiva presente nas justificativas das emendas um tratamento excepcional empreendido em relações às garantias constitucionais, tendo em vista uma suposta gravidade do tipo penal a ser combatido. Recorre-se ainda ao discurso de combate à corrupção para obter o consenso entre os atores políticos. Quando se levanta a necessidade de punição para os crimes financeiros e ainda mais em relação a corrupção, justifica-se o recrudescimento das penas e diminuição das garantias.

Sabe-se, ainda, que crime organizado, para que possa atingir seu escopo, emprega determinados modos de execução. Há um espectro muito amplo de modus operandi. Frequentemente, vale-se da manobra fraudulenta, do tráfico de influência ou mesmo de atos de corrupção. Infelizmente, não há como negar a estreita ligação entre o crime organizado e a corrupção. (Justificativa emenda 16)

Diante das garantias processuais penais solapadas somente na análise preliminar do PL 150/06, é possível apontar para um indicativo de seletividade e construção da imagem de um inimigo, para o qual se elimina as garantias e direitos.

O discurso punitivista é de tal forma capilar, que se observa um certo consenso em relação à necessidade de mais tipos penais que estabeleçam mais formas de criminalização e seu recrudescimento ao largo da tramitação desse PL. Os espectros políticos mais diversos convergem quanto às legislações criminalizantes, o que parece apontar para o que Batista (2012) descreve como adesão subjetiva à barbárie.

3. O PROCESSO JUDICIAL

O processo de criminalização da Ação Penal (201601141208 TJ-GO) é uma forma de agir promovida pelo Estado e carrega toda uma estrutura ideológica que o sustenta. A concepção dos operadores do Direito sobre o papel social do MST na ocupação de terras permitiu que eles os enquadrassem em uma tipificação penal que se refere a organizações criminosas.

Esse simples ato, ou seja, a denúncia, nos aponta para uma hipótese relacionada ao sentir, em relação ao próprio movimento social desse operador. Permite-nos ainda especular sobre a raiz autoritária de sua formação e do exercício da profissão. Pois elegeu uma legislação com uma série de possibilidades de produção de provas consideradas por alguns inconstitucionais para etiquetar e acusar trabalhadores rurais sem-terra que reivindicavam a democratização do acesso à terra no país. Nos termos da denúncia:

Trata-se de um ajuntamento de aproximadamente mil pessoas, que atendem ordens informais dos líderes do movimento, e que têm se valido da prática dos diversos crimes ora narrados, para obterem vantagem indiretamente. Isso porque pretendem forçar o governo a criar para eles, no local invadido, um assentamento rural, sem o preenchimento dos

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requisitos legais pertinentes. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS. Vara Criminal da Comarca de Santa Helena de Goiás.201601141208.)

Esse processo tem como característica principal a coerção, primeiro no processo criminal e ainda em alguns casos na aplicação da pena de prisão. Esse processo guarda em si a demonstração do monopólio da força pelo Estado e ainda a violência simbólica muito evidenciada.

Se a estrutura política (luta de classes) de uma dada formação social é chave no entendimento do discurso político, o inconsciente (que Freud chama de sistema do inconsciente) é crucial para a compreensão dos sentimentos, afetos, emoções que dizem respeito ao conteúdo do próprio discurso e a ele estão irremediavelmente presos, embora latentes. Uma teoria da ideologia deve, por conseguinte, desdobrar-se na explicação da relação pensar/agir (estrutura ideológica x sistema de inconsciente). Ela deve sugerir como o discurso se relaciona com o sentir e o agir, evidenciando as contradições, os antagonismos, e mostrando como a prática política resolve, na prática, tais contradições. Assim, devemos interrogar-nos não apenas sobre o não-dito no discurso, mas também, e principalmente, sobre aquilo que é interdito, proibido de ser dito, porque foi reprimido. (Cerqueira Filho 1982 :34)

No que esse processo tem de expressão da ideologia dominante podemos destacar o etiquetamento penal, em outras palavras a nomeação. Bourdieu (2004), ao estudar a formação do Estado moderno, coloca como sua característica fundamental justamente a possibilidade de nomeação – poderíamos, assim, fazer um paralelo com a nomeação do movimento social como organização criminosa, ou seja, para muito além da responsabilização individual da conduta de agentes, significa estender a amplitude dos efeitos de preconceito e estigma a toda a organização social do MST, em sua amplitude nacional, não só local.

Tendo em vista tal preocupação, a pesquisa voltou-se à análise da produção legislativa da referida lei, por entender que permitiria vislumbrar os termos colocados na sua elaboração, o que os representantes legislativos procuravam atingir, quais termos reproduziam em termos de ideologia e qual a sua concepção em relação às garantias processuais penais. Quais demandas por pena os representantes estavam respondendo? Aferimos preliminarmente através da tramitação no Senado Federal da PL 150/06, que deu origem à lei, que muitos senadores com formação jurídica tiveram destaque nessa produção legislativa (a senadora que propôs o PL 150/2006, o relator na Comissão de Constituição e Justiça e ainda os dois senadores que apresentaram emendas em relação ao texto inicial, todos eles tinham graduação em Direito) e que, não obstante, não sustentaram posições garantistas sobre a temática da segurança pública.

Diante do quadro de “adesão subjetiva à barbárie” (Batista 2012), que se caracteriza pelo clamor punitivo da sociedade no contexto neoliberal, é necessário atentar-se ao agigantamento do Estado Penal, principalmente quando esse se manifesta através da criminalização dos movimentos que aspiram novas sociabilidades, novos espaços coletivos democráticos.

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Até agora o material analisado das primeiras emendas ao PL original e debates nas comissões do Senado Federal demonstram uma legislação muito autoritária suprimindo garantias. Por exemplo, houve a regulamentação de diversos tipos de produção de prova que são considerados controversos por diminuírem ou anularem a possibilidade do contraditório real do réu, entre eles a delação, a intercepção telefônica, de contas, dados, ambiental e ainda bancário e fiscal, além da figura dantesca do agente infiltrado – enfim uma ofensiva autoritária nas garantias constitucionais. Negando a aparente neutralidade e igualdade supostamente alcançada na lei, como esse elemento capaz de colocar as regras do jogo e garantir um mínimo de previsibilidade, e, nesse caso o processo penal, que desde o iluminismo e a virada do castigo corporal para a pena de reclusão de liberdade, é visto como garantia aos acusados frente ao estado, nesse momento essa legislação representa sérias agressões às garantias civis dos indivíduos frente ao estado e as figuras de delação e infiltração adicionam elementos imprevisíveis ao próprio processo de acusação já tão autoritário e de raízes inquisitoriais (Prado 2005) entre nós.

Isso também provoca a reflexão sobre os efeitos da etiquetação ou nomeação do MST como organização criminosa, para além dos efeitos imediatos e concretos que significou a prisão provisória de dois militantes por vários meses.

Ao pensarmos na sua função ideológica, como representação da classe dominante nas suas relações com as suas condições materiais, podemos como hipótese levantar que uma função possível é de que tal processo busca romper a solidariedade, aspecto essencial para a classe dominada e suas lutas (anulando-a ou diminuindo as chances de que ela ocorra). Em outras palavras, o agir político pretendendo também atingir as relações subjetivas (afeto) da classe dominada. O MST enquanto movimento social, no ano de 2016, tinha realizado maciças ocupações em Goiás. Assim podemos, a partir da reflexão sobre ideologia, investigar a hipótese de que foi importante essa nomeação "organização criminosa" para além dos seus efeitos de coerção, também uma tentativa de rompimento dos laços de afeto entre a classe dominada, os camponeses potenciais que poderiam se juntar às ocupações e/ou a elas prestar ajuda ou apoio e a disputa em torno da legitimidade da ocupação de terras e do questionamento do latifúndio.

Impede-se, assim, que se veja como legítimas, pela própria classe subalterna, as ações de ocupação, visto que essa questiona os pressupostos do latifúndio, da propriedade privada, e em última instância da ordem jurídica. Tanto que, nos termos da denúncia, citada acima no texto, a acusação de vantagem ilegal se refere a “forçar” o governo a realização da reforma agrária! – que é uma política constitucionalmente positivada. O texto, não por acaso, falseia quem realmente exerce a violência, colocando aqueles que reivindicam uma política pública como violentos, enquanto é o

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próprio Estado que, através do processo criminal e ainda da desocupação do terreno está exercendo a violência (nesse caso, o “uso legítimo da força”), impondo a manutenção da propriedade privada. Zaffaroni (2000), já atento às funções da mídia no processo criminal, inclui entre as agências do sistema penal as “agências de comunicação social”, que, por sua vez, exercem o que Batista (2012) denominou executivização no processo de criminalização. Para esse último autor, isso significa que:

Desgarrando-se de suas bases estruturais econômicas, o credo criminológico da mídia constitui-se como um discurso que impregnou completamente o jornalismo. Esse discurso aspira a uma hegemonia, principalmente sobre o discurso acadêmico, na direção da legitimação do dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos sociais. Este discurso habilita as agências de comunicação social a pautar agências executivas do sistema penal, e mesmo a operar como elas (executivização), disputando com vantagem, a seletividade com tais agências. A natureza real desse contubérnio é uma espécie de privatização parcial do poder punitivo, deslanchado com muito maior temibilidade, por uma manchete que por uma portaria instauradora de inquérito policial. (Batista 2012:19)

A pesquisa nos provocou acerca da relevância do etiquetamento penal do MST como "organização criminosa" e suas implicações contextualizadas na luta de classes. Nesses dois casos, o afeto é político e significa se atentar às imbricações entre sentir/pensar e agir (Cerqueira Filho 1982) e as implicações disso na análise do material empírico.

Esses aspectos, sem prejuízo da conexão de classe, permitem colocar como hipótese durante todo o trabalho que o afeto é político e que provoca consequências (agir) no mundo, para além do individual. Não é possível, dessa forma, desconsiderar o substrato de formação jurídica e das permanências do caráter da formação da sociedade brasileira, pois estas exercem implicações muito concretas, como procuramos cotejar neste trabalho, no processo de criminalização do MST.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Cabe destacar que, no Brasil, a visão autoritária sobre às classes populares, principalmente quando essas ousam se organizar, não é nova, mas remete às raízes de nossa formação histórica.

A visão de mundo tomista, espraiada na Península pela prática política e ideológica dos jesuítas, sustentava uma concepção de sociedade rigidamente hierarquizada, produzindo efeitos de longa duração, com fortes desdobramentos para os afetos e as emoções de formações históricas. (Neder 1996:132)

Vera Batista, no seu livro “O medo na cidade do Rio de Janeiro” (2003), realizou a pesquisa em dois tempos – respectivamente em relação a revolta dos Malês, na Bahia e a sensibilidade punitiva no Rio de Janeiro, da década de 1990 – fazendo uma reflexão potente em que

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recupera as raízes do medo e da inflamação do discurso perigosista advindos do período escravocrata.

A autora trabalha com o conceito de permanências culturais de longa duração, ou seja, que perpassam contextos históricos e se atualizam. O medo gerado por uma revolta negra no Império brasileiro, ainda que contido rapidamente, gerará a adoção de políticas de segurança e restrição à reunião da população negra por muito tempo tanto na Bahia, mas também com reflexos na cidade do Rio de Janeiro:

A polícia se inquietava então com o sentido religioso, a organização “em pleno superior ao que deveríamos esperar de sua brutalidade e ignorância”, a capacidade de ler e escrever e o mistério dos papéis que os livrariam da morte. [...] A importância da rebelião malê na Bahia se inscreve, assim, não só pela sua configuração política e militar, mas pelas inquietudes que passam a circular no nível do imaginário das elites da época (Batista 2003:228)

A autora, ainda recuperando o trabalho do historiador Sidney Chalhoub, mostra que, com a ruína do sistema escravocrata, a legislação a ser debatida na Câmara é a criminalização da ociosidade.

Chalhoub, ao estudar, as “operações policiais” travadas para eliminação das habitações coletivas e das epidemias na corte imperial da segunda metade do século XIX, afirma que é nessa época que pontifica o conceito de classes perigosas. Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças.

[...]Calorosamente aclamado pela imprensa, a destruição do “valhacouto de desordeiros” é um dos marcos iniciais de uma concepção que se fundava para a gestão das diferenças sociais na cidade; construía-se a noção de que as classes pobres eram perigosas, e de que a cidade poderia ser gerida “tecnicamente” ou “cientificamente”. Para Chalhoub, estas duas crenças têm contribuído historicamente para a inibição de exercício da cidadania e até para fundamentar políticas genocidas de controle social (Batista 2003:37)

Daí é possível estabelecer relações para constatar de que forma as classes pobres, negras ou subalternizadas construíram e seguem construindo sua cidadania no Brasil, desde a abolição da escravatura até nossos dias, tendo que resistir a marcos e soluções repressivas e autoritárias. Fica evidente a semelhança da adoção de políticas criminalizantes para responder a organização social, seja ela na luta por quaisquer direitos, mas principalmente aos ligados à democratização do acesso à terra como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.

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LOPES, Vanessa Ferreira

UMA ANÁLISE DOS DEBATES LEGISLATIVOS DA LEI 12.850/13 E A CRIMINALIZAÇÃO DO MST

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AUTORA:

Vanessa Ferreira Lopes

Mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF), E-mail: vanessa_lopes@id.uff.br

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 123-134 134