MORAIS, Hugo Belarmino de
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Figura 3: Zoneamento Pedoclimático (ZON)
Fonte: Folder – Secretaria de Agricultura e Pesca do Estado da Paraíba (SEDAP), 2018.
Realizado pela Embrapa Solos em cooperação técnica com o Governo do Estado da Paraíba, este zoneamento se caracteriza por uma ampla pesquisa de campo a fim de levantar, na chamada “área de influência” do canal, cenários de produção agrícola. Perguntado sobre o motivo deste zoneamento específico, o entrevistado respondeu:
Entrevistado: então a gente espera desse trabalho que está sendo executado pela Embrapa Solos além dos mapas de solos que está sendo feito, os mapas de aptidão climática, né, para cenários de anos secos, anos regulares, anos chuvosos, né. Bem como manejo de média e alta tecnologia, certo? Para um leque de culturas, nós adotamos neste trabalho um leque de culturas que são as principais da região já, então nós temos o abacaxi que é forte na
região, a cana-de-açúcar que é forte nessa região, o milho tá, o sorgo... então no caso, visando o desenvolvimento da produção de grãos também nessa região que tem um potencial fantástico, então com esse leque de culturas.
Entrevistadora: E a agricultura familiar, tá prevista?
Entrevistado: Assim, não tem um foco, o foco é agropecuária como um todo, o desenvolvimento das cadeias produtivas das culturas e aí, no contexto tá, independente do tamanho do produtor, se ele é mini, médio, grande, então...
Entrevistadora: Eu perguntei e eu vou te dizer porque... porque a agricultura familiar ela produz no varejo, é no varejo e na oportunidade de mercado, mas no varejo ela é biodiversificada então ela tem mandioca, milho, feijão... ela dá um sustento, ela tem uma dimensão que não é só do desenvolvimento regional mas também da reprodução da própria unidade familiar camponesa e é difícil você ver isso numa carta dessa, não é verdade? Entrevistado: Sim, sim.
[…]
Entrevistadora: É porque eu só não consigo enxergar a agricultura familiar nessas aptidões. Entrevistado: mas assim a gente tem uma visão o seguinte: que a agricultura familiar ela tem esse contexto, essa característica, de diversificação de culturas né, o que é natural e o que é bom. mas a gente tem o conceito seguinte, de que é preciso melhorar a sua forma
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de trabalho em termos de tecnologia, até para que ele tenha melhores resultados econômicos… possa evoluir também, não ficar estagnado no tempo... então ao mesmo tempo, por exemplo, nós temos uma empresa que se instalou aqui, vou citar um exemplo, aqui em Mulungu, em que ele fez um plantio de uma área de milho em sequeiro, né, não irrigado, em que utilizando tecnologia ele chegou a obter 7 toneladas de grãos por hectare, e agricultores bem próximos da propriedade dele não estava chegando a 1000 quilos por hectare, então o que é que tá faltando aí? não é solo, não é clima, é tecnologia, para melhorar a sua capacidade de produção dentro daquela mesma área, sem precisar a área de produção…
(ENTREVISTA. Servidor da Secretaria de Agricultura e Pesca do Estado da Paraíba 2018)
Os dados prévios apontam, pois, que tanto as obras do Canal quanto o planejamento de médio prazo buscarão privilegiar e incentivar algumas culturas agrícolas ligadas ao agronegócio do agreste e litoral norte da Paraíba, como o caso do abacaxi, cana-de-açúcar e milho. Já o sorgo, cultura sem muita tradição na Paraíba e que tem uma relação direta com a produção de ração animal, parece estar sendo mapeado exatamente para a constituição de uma cadeia produtiva ligada à agroindústria avícola. Como se observa no seguinte trecho da entrevista, há uma “força da demanda” ligada à esta cadeia produtiva, citando um produtor de milho:
Entrevistador: Quem é esse produtor de milho?
Entrevistado: Ele tem uma área na Bahia, tem áreas em outros setores e ele veio aqui para Paraíba, ali entre Mulungu e Gurinhém e numas áreas lá ele plantou milho e teve um ano que não deu muito bem porque também choveu muito pouco, pegou sete anos de seca seguido aí que também não ajudou muito, mas a maioria do seus cultivos ele faz programado dentro daquela faixa de período invernoso daquela região, melhores índices pluviométricos, e de certa forma é um empreendimento que deu certo.
Entrevistadora: Mas ele não tem uma área pequena... é uma área boa?
Entrevistado: É, é uma área boa... teve ano que ele plantou 700 ha, teve um ano que ele chegou a implantar 2000 ha, então, assim, é uma área importante. E a demanda é grande. A demanda é grande.
Entrevistadora: Força de demanda.
Entrevistado: É, força da demanda. Nós temos bem próximo dessa área onde ele plantou a sede da Guaraves, que é o maior produtor de frango aqui do Estado da Paraíba, um dos maiores do Nordeste.
Entrevistadora: Ah, Milho com frango. Entrevistado: Então, frango come milho, né. Entrevistadora: Complexo milho-frango, tá bom.
Entrevistado: Ele com essa área, ele não atendia nem 30% da demanda da Guaraves, en tão nós temos aí um potencial fantástico e um mercado aberto né, para expansão desse negócio. Bom, é, então essa é a visão que a gente tem com esse estudo, de melhorar também neste aspecto né, o agricultor familiar possa evoluir também neste aspecto, com conhecimento do solo que a gente vai ter nesse trabalho, conhecimento mais aprofundado do clima que a gente vai ter, e que a gente vai gerar mapas de toda essa região, a gente vai ter o conhecimento né, e a gente vai ter a tecnologia para que a assistência técnica possa assessorar melhor esse pessoal para avançar na sua produtividade.
Entrevistadora: Como você enxerga a integração desse agricultor familiar nesse esquema de desenvolvimento regional? Como você imagina um agricultor familiar de 2 hectares se integrando nessa força da demanda que você chama? Só se ele for integrado verticalmente por exemplo, pela Guaraves?
Entrevistado: Integrado pela Guaraves, através de organizar em cooperativas, associação de produtores, então o associativismo é fundamental neste desenvolvimento.
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Entrevistadora: Então você vê o agricultor familiar como um processo de integração no projeto geral?
Entrevistado: Sim, sem dúvida.
(ENTREVISTA. Servidor da Secretaria de Agricultura e Pesca do Estado da Paraíba 2018)
Aponta-se para um cenário que poderá ampliar os atingidos, agora não só pela construção da Barragem de Acauã e da construção do Canal, mas caso este planejamento ligado ao Zoneamento saia “do papel”. Não se trata somente das áreas que foram desapropriadas para construção do Canal – que já representaram diversos conflitos e impactos – mas de uma grande região que está sendo mapeada para produção agrícola às margens do Canal, provavelmente para instalação de perímetros irrigados e inclusive recebendo investimentos “de fora”. Se nossa hipótese estiver correta, pode- se repetir, assim, o modelo que foi desenvolvido na região da Chapada do Apodi nos Estados do Ceará e Rio Grande do Norte que produziu e produz diversas violações (Brito 2016).
Enquanto esse planejamento está sendo realizado, um dos atingidos pela Barragem de Acauã (que reside exatamente na Comunidade Melancia, de onde se inicia o Canal), opina sobre as diferentes visões desses grandes projetos. Ele e sua família foram entrevistados em sua casa. Não só foram atingidos pela construção da Barragem de Acauã quanto sofreram com problemas posteriores no momento da construção do Canal e dizem que a construção do Canal piorou sua situação:
Entrevistado: A situação nossa não é fácil não. Você não vê perspectiva de nada. Te m quatro, cinco, seis famílias morando dentro de uma casa de placa.
Entrevistadora: Como é que pode isso né? Entrevistado: Não tem pra onde crescer. Entrevistadora: Mas piorou muito depois do Canal? Entrevistado: Por causa do Canal piorou... aumentou né. (…)
Mãe do entrevistado: Eles pensavam que ia dar muito trabalho para as famílias, mas, assim, deu... passou um ano e depois demitiu essas pessoas.
Entrevistadora: Quem que demitiu, não entendi.
Mãe do entrevistado: O Canal, pegaram muita gente aqui. Entrevistadora: Para trabalhar, pra fazer o canal? Entrevistado: Mas a conversa na verdade...
Entrevistadora: O canal ficou pronto todo mundo foi embora?
Mãe do entrevistado: E num ficou pronto não.
Entrevistado: Não. Foi depois que esfriou... Depois que esfria aquela pressão do povo, depois daquela audiência… contrataram muita gente daqui, contrataram daqui para justificar que era bom, depois, pé na tábua pra todo mundo.
Entrevistadora: Mandaram embora? E contrataram da onde?
Entrevistado: De outro lugar mais pra frente.
Entrevistador: Do caminho?
Entrevistado: Do caminho... que é pra justificar o canal pro povo se acalmar aí você contrata quem tá às margens.
Entrevistadora: Dizendo que o canal também ia dar emprego a muita gente.
Entrevistador: Vai dando emprego no caminho.
Entrevistado: Emprego de quinta categoria né, porque os empregos bom são do pessoal de fora... nunca tem daqui em emprego bom.
(ENTREVISTA. Atingido pela Barragem de Acauã - Comunidade de Melancia 2018)
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Nossa chave de interpretação, no entanto, apareceu em outra entrevista, desta vez com o “setor produtivo”, ainda em João Pessoa. A expectativa do “setor produtivo” ligado à Cana-de - açúcar é descrita a seguir. Acerca do Canal há uma avaliação positiva pelo seu potencial, embora o próprio representante demonstre preocupações e dúvidas quanto às formas de gestão e uso das águas:
Entrevistado: a primeira coisa a gente tem que agradecer desse canal ter chegado, eu acho que todo mundo tem uma expectativa positiva, tá certo? porque numa região onde a gente precisa de um complemento, que nessa região não é totalmente árida, é uma região de transição, é uma região que tem anos bons, anos que não chove tão bem, e que com esse canal com certeza seria um complemento, de a gente ter uma segurança hídrica de poder produzir não só cana como outras culturas. (…) Agora o que a gente precisa ver com negócio de governo, é que quando pega gestão pública em perímetros irrigados, a maioria não tiveram muito sucesso... (…) Então a expectativa dos produtores é que esse canal sirva eh, não só que... que a gente sabe que a prioridade de um canal e de água até na própria lei já é bem clara, finalidade número um: consumo humano, número dois: consumo animal, e terceiro: outros fins. Então nos outros fins é onde vai entrar a questão da irrigação, tá certo? (…) hoje, se esse canal começasse a funcionar hoje não teria como funcionar, que ele ai ligar nada a coisa nenhuma... pelo menos a coisa nenhuma lá tá cheia, tá certo? Isso é uma ligação de Bacias aonde essa de Araçagi todos os anos, não sei se vocês sabem disso aí, tem conhecimento, todo ano ela fica com sua capacidade total. Todo ano ela sangra, tá certo? (…) se todo mundo já está com a tranquilidade que isso vai ser bom, muita gente tá em dúvida, porque você tem uma propriedade que tá lá, que foi dos seus avós a cem anos, nunca chegou nenhuma política pública, nenhum canal desses nem coisa nenhuma, na hora que chegar isso vai ser bom ou ruim? Todo mundo vai dizer que vai ser bom, ninguém sabe se é bom. Porque, me diga uma coisa, tá lá, aí faz uma desapropriação que passa com 60 metros desapropriado dentro da sua propriedade, se você não tiver acesso vai servir de quê isso aí pra você? Primeira pergunta, você vai poder usar essa água? como é que vai ser usada essa água? Então, a gestão dessa água é que é o principal, porque não adianta você gastar bilhões de reais, tá certo, ligar um canal desse e você ficar vendo a água passar sem poder usar. (…) Dinheiro no Brasil nunca faltou não, falta é o dinheiro que desvia prum lado pro outro, usa errado, mas dinheiro nunca faltou. Então a expectativa e o que a gente tem que ver é o uso dessa água, como é que vai ser usada... porque a gente sabe que tem período aqui, o Nordeste não é seco 100% não, aqui você tá vendo chovendo aqui hoje, esse litoral nosso aqui, durante todo o ano
uns três, quatro meses tem uma estação chuvosa aqui abundante… Essa barragem de Araçagi vai continuar todo ano sangrando no mês de março, abril, qual seria o negócio racional e importante, uma iniciativa público-privada aonde os produtores pudessem usar esse canal para abastecer suas reservas, suas pequenas barragens, seus reservatórios, durante o período que não tivesse precisando, que tivesse sobrando água... (…) porque se não tiver cuidado a única coisa que vai servir é desviar essa água, uma parte dessa água, que ia descer direto aqui por Santa Rita e ia cair aqui em Cabedelo, se não tiver um uso racional dessa água, ela vai desviar um pouco e chegar lá embaixo no mar e passar por aqui e não deixar nada de pro dução…
(ENTREVISTA. Representante da Associação dos Plantadores de Cana da Paraíba 2018)
Observa-se, pois, a relação entre a construção do Canal e a expectativa – que queremos confirmar na tese – de uma espécie de segurança hídrica para o capital.
Em suma, não se trata, pois, de pensar a produção agrícola como exceção e necessidade de abastecimento como regra, mas de colocar a água e sua gestão em função das demandas do agronegócio, do presente e do futuro .
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A água, aqui, é vista como um complemento ou como um recurso hídrico, não como um bem comum. E a palavra gestão é entendida como ampliação do controle e/ou mercantilização para o seu uso ligado ao agronegócio através de parcerias público-privadas. A água é lida, aqui, como meio direto e indireto da acumulação capitalista e a sua gestão deve ser um facilitador deste processo.
4. CONCLUSÕES INCONCLUSAS: O CAMINHO DAS ÁGUAS SE FAZ CAMINHANDO?
O cenário acima descrito aponta, pois, para uma pesquisa ainda em curso e que está buscando comportar-se em termos teóricos e metodológicos com a dinâmica que a água exige: que vise à clarificar a complexidade e apontar as contradições muito mais do que “resolvê-las” em termos teóricos ou “fossilizá-las” em termos empíricos. Para estudos que envolvem a temática em termos jurídicos e sociológicos, o desafio ainda é muito grande e está só iniciando11 .
Por outro lado, os relatos obtidos durante as entrevistas praticamente impõem uma abordagem multi ou interdisciplinar para sua análise. Ressaltamos este aspecto metodológico no nosso trabalho, que antes de tudo busca compreender as novas fases de acumulação capitalista e sua conflitualidade no tema das águas, tarefa que não é possível de realizar sem um profundo reconhecimento das limitações das áreas do conhecimento compartimentalizadas, o que aponta para uma contribuição metodológica importante que gostaríamos de ressaltar: todo conflito socioambiental ou territorial exige, por excelência, a interdisciplinaridade.
Outra dimensão importante trata da forma com que os dados anteriormente mapeados puderam ser parcialmente confirmados ou não pela atividade de campo realizada. Ao realizar este exercício entre teoria e prática se (re)definem parâmetros e se (re)constroem criativamente novos processos e projetos ancorados na realidade concreta, evitando que esta mesma realidade se transforme em um mero “por exemplo” para comprovar teorias previamente formuladas, ainda que estas teorias sejam importantes indicadores do processo dinâmico e complexo com o qual o capital, em termos internacionais, se expande e se acumula.
Mais propriamente, consideramos que a realidade necessita desta assunção conflituosa a fim de ser melhor compreendida. As contribuições do pensamento latino-americano que tem se debruçado em apontar tanto os cenários de luta e quanto de ampliação do despojo são, portanto,
11 Importante apontar que o tratamento dos dados da pesquisa empírica foi só iniciado, motivo pelo qual as informações preliminares apresentadas aqui ainda poderão ser confirmadas ou negadas. São mais de 15 horas de entrevistas e 4 00 fotos, além de um conjunto de documentos importantes oficiais. Desta forma, nos contentamos em apresentar uma parte inicial deste processo para seguir com as inquietações que foram reformuladas a partir de nossa experiência empírica e que está em processo de sistematização.
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fundamentais para compreensão ampliada do que estamos vivendo. Trata-se, portanto, não somente de uma ampliação do conflito capital-trabalho, tal qual foi formulado ainda no século XIX, mas de uma multiplicidade de contradições interdependentes e determinadas pelo capital em relação à própria vida humana e não humana.
No caso do Nordeste e do semiárido, considerada região-problema por diversas abordagens (neo)desenvolvimentistas com base num determinismo geográfico ou climático, o desafio para pensar em alternativas é ainda maior. Isto porque lidamos não somente com as dificuldades inerentes aos conflitos socioambientais no Brasil em virtude da concentração de terras e do racismo ambiental. Mas também porque dentro da própria esquerda se produziu um discurso que – intencionalmente ou não, pouco importa – reproduz as narrativas do capital.
Exatamente por isso encaramos que o caminho da pesquisa necessita fazer-se no caminho, assim como o caminho das águas que realizamos e que ainda irão, por certo, nos trazer diversos outros dados importantes para entender essa complexa e dialética teia de realidades hidroterritoriais a que não se quer somente compreender, mas transformar.
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AU TOR:
Hugo Belarmino de Morais
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Ex-Bolsista do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior - CAPES (PDSE - CAPES). Professor Assistente de Direito da Universidade Federal da Paraíba. Integrante do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF – PPGSD) e do Instituto de Pesquisa em direitos e movimentos sociais (IPDMS). Advogado e assessor jurídico popular.
E-mail: hugobelmorais@gmail.com
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A RESERVA LEGAL E AS LEGALIDADES RESERVADAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa Universidade Federal do Paraná (UFPR)
RESUMO
Neste artigo, pretendemos apresentar dissonâncias entre os conflitos socioambientais e a reforma agrária no Estado do Rio de Janeiro. As idiossincrasias da implementação de um Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), que nasceu como uma experiência e uma conquista de setores subalternizados, torna-se, no caso estudado, uma decisão do Estado para reordenamento territorial da comunidade rural de Sebastião Lan II. Como uma proposta de cima para baixo, sem participação efetiva dos beneficiários da política de reforma agrária, reapresentamos o acúmulo de uma disputa fundiária, anteriormente formulada pela ideia de contradição entre o paradigma preservacionista e a prática da agricultura familiar. Destaca-se o objetivo de investigar a constituição da Reserva Legal como uma pista de movimentos não aparentes de concentração de terras.
Palavras-chave: Reforma Agrária. Reserva Legal. Sebastião Lan II .
LEGAL RESERVE AND LEGALITIES RESERVED FOR AGRARIAN REFORM IN THE STATE OF RIO DE JANEIRO
ABSTRACT
In this article, we intend to present dissonances between socioenvironmental conflicts and land reform in the state of Rio de Janeiro. The idiosyncrasies of the implementation of a Sustainable Development Project (PDS), which was born as an experiment and an achievement of subalternized sectors, becomes, in the case studied, a decision of the State for territorial reordering of the rural community of Sebastião Lan II. As a top-down proposal, without effective participation of the beneficiaries of the land reform policy, we re-present the accumulation of a land dispute, previously formulated by the idea of contradiction between the preservationist paradigm and the practice of family agriculture. We highlight the objective of investigating the constitution of the Legal R eserve as a trail of non-apparent movements of land concentration.
Keywords: Land Reform. Legal Reserves. Sebastião Lan II.
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COSTA, Rodolfo Bezerra de Menezes da
A RESERVA LEGAL E AS LEGALIDADES RESERVADAS PARA A REFORMA AGRÁRIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INTRODUÇÃO
Neste artigo, pretendemos relacionar conflitos socioambientais e a reforma agrária no Estado do Rio de Janeiro. A partir da permanência de um coletivo de trabalhadores rurais por 21 anos em situação de acampamento, indagaremos sobre as razões e movimentos quase cíclicos de tentativas de exclusão/expropriação. Mesmo assim esses trabalhadores conseguiram atingir a condição de reconhecimento social e institucional como uma comunidade rural, a de Sebastião Lan II.
Mesmo sem a devida regularização fundiária, a comunidade tem a singularidade de integrar um conjunto de redes econômicas, religiosas e culturais. Isso ocorreu a partir da sua presença na vida do município e da comercialização de sua produção (ainda que realizada sem qualquer financiamento público). Em que pese sua precarização dentro da estrutura social, fundamentalmente por serem acampados, encontram-se numa posição social que não oferece dotação de cidadania plena e os reduz a um estado de liminaridade.
A área onde se encontra a comunidade rural Sebastião Lan II, chamada de Brejão, localiza - se entre as cidades de Casimiro de Abreu e Silva Jardim, interior do Estado do Rio de Janeiro. Em 1997, a conquista dessa terra foi conduzida em conjunto pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e pelo sindicalismo rural. Ao mesmo tempo que permitiu a reintegração de uma área grilada para a União, colocou em evidência uma articulação entre uma lógica produtivista e uma lógica preservacionista. Vizinhos de uma Reserva Biológica, que tem como finalidade a preservação do mico-leão dourado, faz-se necessário destacar as diferentes dinâmicas impostas e os constrangimentos ambientais sob os quais esses trabalhadores são obrigados a conviver.
O estudo do caso justifica-se pela longevidade do conflito, pela interseção entre diferentes campos (jurídico, político, econômico, agrário e ambiental) e, principalmente, pelo acompanhamento da trajetória dos agentes sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) por cerca de 16 anos. Essa situação pôde oferecer ao olhar curioso e indagador uma análise interessante sobre um processo de mudança de posição social realizado pelos próprios agentes, sujeitos dessa mudança com recursos criativos e possivelmente “inventados” a partir de sua determinação social exótica (liminar).
De trabalhadores rurais sem-terra em luta pela reforma agrária, passaram a se constituir enquanto uma comunidade rural que vive a ambiguidade de ser reconhecida enquanto tal e é, simultaneamente, marginalizada dos principais processos decisórios dos quais são ou deveriam ser beneficiárias. Eis que a mudança da posição social que permitiria a regularização fundiária do
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território para constituição de um PDS (Projeto de Desenvolvimento Sustentável), uma exigência do Estado para qualificá-los como assentados, sintetiza uma proposta de reforma agrária que contraria a prática cotidiana e a experiência com a terra em curso.
Essa contradição entre o plano institucional para o desenvolvimento do assentamento, aqui considerado como o modelo de reforma agrária proposto pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), e a dinâmica social emergente apareceu e se constituiu com a presença da Universidade (UFF). Essa presença ocorreu através da atuação formalizada em projetos de pesquisa e de extensão, na condição de uma assessoria sociojurídica, o que corresponde às práticas do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF)1, um núcleo de caráter interdisciplinar, voltado para a formação de investigadores de campo e de assessoria aos movimentos sociais organizados.
Essa presença da Universidade, apesar de conduzida ao longo de quase duas décadas, de modo intermitente, teve dois momentos mais relevantes e duas formas diferenciadas. Esse recorte faz-se necessário para que se possa compreender o lugar de pertencimento diante da comunidade, através das formas pelas quais foram sendo conduzidas as duas mais significativas modalidades de pesquisa-ação2. As motivações das intervenções e as entradas na história de Sebastião Lan II colaboraram e interferiram na construção de sua identidade enquanto uma comunidade rural. E, dialeticamente, permitiu à Universidade repensar seu lugar nessa relação ao longo desses anos.
A primeira experiência aconteceu no ano de 2002, quando a Universidade pública fica em evidência como agente harmonizador de um conflito entre o Ibama3 (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e Incra. Para atender essa demanda, a reitoria da UFF formou uma equipe através de uma norma de serviço, que formalizou o GT Ecosocial.
Enquanto Universidade, nesta oportunidade realizamos então o processo de gestação de um Laudo Multidisciplinar (2007), ouvindo todos os agentes em conflito em suas diferentes versões, mas a partir de um lugar acadêmico especializado. O caráter da pesquisa e extensão desenvolvidas o tornavam indissociáveis dos seus efeitos políticos, que culminou com a assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).
Depois, em 2013 (passados dez anos da primeira pesquisa), fomos convidados pelo Incra para acompanhar uma reunião formal, com a presença de autoridades técnicas e do próprio
1 Coordenado pela professora Dra. Ana Maria Motta Ribeiro.
2 Sistematizada por Carlos Rodrigues Brandão (1981), essa metodologia se constitui de uma abordagem que nos permite levantar dados da realidade e intervir nela, agindo no sentido de alcançar contradições e provocar redefinições a partir da sugestão de temas de reflexão.
3 No decorrer do tempo o Ibama será substituído pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) no caso estudado aqui.
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COSTA, Rodolfo Bezerra de Menezes da
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superintendente regional do Instituto, no sentido de viabilizar o PDS. O primeiro contato nos revelou de imediato uma enorme resistência da comunidade à proposta. Descobrimos que não houve qualquer tentativa de abrir o debate à participação da comunidade na construção democrática dessa escolha de PDS.
Finalmente a comunidade procurou a equipe da UFF quando da publicação da portaria criando o PDS, sem as considerações sobre os efeitos “negativos” apresentados em reuniões prévias. Mas, naquele momento, a presença da Universidade estava reduzida aos professores do direito e da sociologia, ambos trabalhando na Linha de Pesquisa conflitos socioambientais do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD). Nesse momento surge a Ação Civil Pública (ACP) contra o Incra para garantir um processo de assentamento que respeitasse a trajetória de conquista da terra e os investimentos realizados ao longo de duas décadas de ocupação da área . A ACP representa também o ingresso de uma nova agência, a Defensoria Pública da União.
A modalidade PDS surge no Rio de Janeiro como uma proposta que havia sido gerada na experiência de Chico Mendes na Amazônia, e uma trajetória marcada por uma conquista de um segmento subalternizado, formulada pela experiência dos seringueiros. Nesse caso aqui em foco apareceu, ao contrário, como uma decisão do Estado, na forma de um modelo importado e estranho à lógica local. Esse novo modelo acabou sendo imposto como se fosse “uma forma aparentemente progressista” pela idealização da experiência originária e terminou por gerar mais conflitos, por ter sido formulado desta vez ao contrário de sua emergência: como uma proposta de cima para baixo, induzida pelo Estado, e sem qualquer participação dos interessados que seriam foco dessa política pública. Essa oferta para comunidade significou, de modo pouco racional, um acúmulo da mesma disputa fundiária anteriormente formulada pela ideia de um conflito supostamente intransponível entre o paradigma preservacionista e a prática da agricultura familiar.
Vale destacar o fato de que o Incra não pode ser pensado, certamente, como uma entidade homogênea e harmônica. Assim, optamos por olhar o agente de reforma agrária além das formas tradicionais, portanto tentamos perceber e descrever as vontades políticas ou vaidades, representações, decretos, estudos e laudos, diferentes temporalidades institucionais versus a dinâmica social, a atuação profissional ineficiente ou equivocada, os efeitos da intervenção e a atuação (ou inação) dessa agência.
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1. A UNIVERSIDADE E AS PARCERIAS INTERINSTITUCIONAIS
Ao longo de cerca de 16 anos (entre 2003 e 2018) houve uma série de aproximações entre a UFF e o Incra, através da qual se pretendia desenvolver uma parceria para assessorar o processo de implantação do PDS Sebastião Lan II. Enquanto era projetada uma assessoria ao Incra, a dinâmica social impôs um reposicionamento. O descaso do Incra quanto à consolidação dessa parceria aliado a um pedido de ajuda da comunidade reconfiguraram a dinâmica da pesquisa em assessoria sociojurídica.
Os constrangimentos ambientais e as limitações de práticas agrícolas ating em significativamente a comunidade rural de Sebastião Lan II, impacto que se reflete em diferentes restrições de acesso à renda da terra e aos usos do território. Com o desenvolvimento da reflexão, tornar-se-á mais claro que essas restrições começam a configurar mais claramente novas formas contemporâneas de espoliação e, ao mesmo tempo, novas formas de resistência.
A demanda, por parte do Incra, para que se fizesse uma análise mais geral e se desse o suporte necessário para a implementação do PDS mostra a relevância de uma pesquisa para aprofundar a compreensão sobre a reforma agrária. A aceitação da UFF ao convite atendeu às missões institucionais do Observatório Fundiário Fluminense, do GT Ecosocial e da linha de pesquisa em Conflitos Socioambientais do PPGSD4. Essa resposta reafirmou o compromisso ético dos pesquisadores5 para acompanhar o processo de assentamento da comunidade Sebastião Lan II. Mais de dez anos depois do Laudo a comunidade continuava numa situação de “acampados”. Construímos internamente um projeto no início de 2014. Esse projeto foi produzido após
uma assembleia em Sebastião Lan II, em 2013, em que constatamos a grande rejeição ao modelo PDS, aliada a uma aparente campanha interna de setores que se sentiram não contemplados. A sensação de não ser contemplado ia além de não ser considerado “apto” para o PDS, mas principalmente por não conseguir vislumbrar uma transição agroecológica. Além disso, muitos agricultores não se sentiram à vontade com a possibilidade de mudança de lotes, não aceitando que algumas áreas de trabalho fossem coletivas.
O projeto contemplava algumas “Oficinas de sensibilização” para que, em seguida, pudéssemos construir as “Oficinas do PDS”. Precisávamos estudar essa modalidade de assentamento junto com a comunidade, compreendendo as diferentes dinâmicas existentes e as alternativas que poderiam emergir. Para essas oficinas, utilizaríamos como estratégia a participação
4 Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito – Universidade Federal Fluminense.
5 O Observatório Fundiário Fluminense (sob coordenação da professora Ana Maria Motta Ribeiro) e o GT Ecosocial (sob coordenação do professor Wilson Madeira Filho).
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dos órgãos ambientais, que deveriam, no futuro, participar de algumas instâncias decisórias do assentamento. Ainda que a situação de liminaridade sociojurídica possa explicar a ausência da comunidade em determinados espaços políticos, não se justificava a falta de projetos de educação ambiental no Sebastião Lan II.
Mesmo sem recursos, apenas com “promessas” de concessão de diárias para auxiliar nos trabalhos de campo, organizamos uma primeira Oficina, em junho de 2014, no dia em que a comunidade comemorava seus 17 anos de ocupação. Tínhamos como objetivo realizar uma discussão sobre as diferenças entre um projeto de assentamento convencional e o PDS.
Ao ingressarmos na comunidade, cerca de 40 moradores já estavam nos esperando, sendo que contávamos com a possibilidade da vinda de funcionários do Incra, pois o convite fora enviado. Coletamos as dúvidas sobre o PDS, principalmente no que tange às seguintes questões: a diferença entre titulação da terra e direito real de uso, possibilidade de deixar a terra como herança, possibilidade de indenização sobre as benfeitorias já construídas, limites de produção, organização dos lotes e a própria organização da comunidade, com a interferência dos órgãos ambientais.
As discussões transcorriam calmamente, projetamos mapas do território (com os desenhos do projeto de PDS) e trechos de uma cartilha do INCRA sobre essa modalidade de reforma agrária. Nesse momento, surge a informação de que o superintendente do Incra estava na sede da Reserva Biológica de Poço das Antas, para comemorar os 40 anos da unidade de conservação. A indignação tomou conta da comunidade e a discussão sobre o PDS ficou em segundo plano. Não foi possível continuar os debates, diante do questionamento: “O que estamos fazendo aqui?”; “Por que o Gustavo [superintendente] está na Reserva e não aqui?”, entre outros.
Até que um dos presentes sugere o encerramento das discussões, sendo solicitado o micro - ônibus da UFF para que se realizasse uma ocupação simbólica na Reserva Biológica de Poço das Antas, proposta aceita por todos. O principal objetivo seria constranger o superintendente do INCRA, por ele preferir se reunir com os gestores da unidade de conservação, membros da AMLD (Associação Mico-Leão Dourado) e com políticos regionais do que estar presente num evento dentro da Comunidade Sebastião Lan II. E a data era simbólica para eles: o aniversário da ocupação. O bolo que seria consumido na sede da Associação6 foi levado para dentro da Reserva. Estavam presentes crianças, idosos e lideranças da comunidade. Apesar dos limites do
micro-ônibus, dos sustos do caminho, conseguimos chegar à sede da Reserva. Mas o superintendente do Incra já tinha ido embora. A comunidade foi recepcionada pelo gestor da unidade de conservação, que se colocou à disposição para acolher todos os presentes. O bolo foi
6 A Associação citada no texto refere-se à Associação dos Trabalhadores Rurais de Sebastião Lan - Gleba II
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cortado dentro da reserva, com o primeiro pedaço simbolicamente cortado pelas mãos do chefe da Reserva com uma das ocupantes originárias do Sebastião Lan II. Em seguida, retornamos à sede da Associação e lá deixamos os cerca de 30 membros da comunidade. Esse evento, possivelmente, foi determinante para que o Projeto de assessoria da UFF ao Incra fosse, providencialmente, “esquecido”. Chegamos a entrar em contato por telefone, mensagens e e-mails, mas não houve nenhuma resposta do Instituto.
2. A PORTARIA DE CRIAÇÃO DO PDS SEBASTIÃO LAN II
As mudanças internas na Associação da comunidade Sebastião Lan II eram sensíveis e a ausência do movimento social organizado fez com que a mesma se integrasse a novas formas e redes de solidariedade. Segundo fontes próximas do INCRA, sabíamos que havia então o temor de que essa nova organização interna implicasse uma nova postura, mais reativa ao PDS. Esse cenário conflituoso fez com que, em dezembro de 2014, o INCRA publicasse uma portaria7 criando o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Sebastião Lan II, com a capacidade de abrigar 44 famílias (cerca de metade das famílias lá existentes).
Em 2015, a UFF foi chamada a intervir novamente – agora pelos agricultores da área, os quais se apresentavam em plena dinâmica social e produtiva. Dessa vez, o conflito se estabelece entre o próprio Incra e a comunidade a ser assentada. Na ótica das lideranças da comunidade, a autarquia fundiária colocava-se como um preposto da gerência ambiental, ao tentar impor um modelo de PDS que induzia a constrangimentos preservacionistas radicais. Para os acampados, essa nova versão da presença do Estado torna-se uma fonte de conflitos, haja vista que a atuação do Incra passa a ser pautada pela defesa quase intransigente da preservação ambiental, acima de sua agenda pela reforma agrária, situando-se contra aqueles a quem deveria resguardar.
Bases para a publicação da Portaria do Incra que criou o PDS Sebastião Lan II, a Licença Prévia do Inea (Instituto Estadual do Ambiente) e a Nota Técnica do Incra desconsideraram as duas décadas de experiência humana e a sua relação com a terra. Nesse sentido, assustados com a possibilidade de despejo e também com a possível demolição de uma infraestrutura a duras penas construída (casas, uma Igreja e a sede da Associação), a UFF foi acionada pelos trabalhadores rurais .
7 Portaria INCRA SR(07) RJ - Nº 31, de 02 de dezembro de 2004: “Art. 1º Destinar o referido imóvel à constituição de um assentamento ambientalmente diferenciado, na modalidade Projeto de Desenvolvimento Sustentável, denominado PDS Sebastião LAN II, código SIPRA RJ0004259, área de 1.541,6144ha [...], localizado no Município de Silva Jardim, no Estado do Rio de Janeiro” .
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Fomos procurados pelas lideranças da Associação em tom de desespero, a partir de suspeitas e dos temores de uma possível demolição e remanejamento de famílias da comunidade, além de outras consequências ainda não totalmente claras da Licença Prévia. As primeiras leituras sobre os efeitos do modelo de PDS apontaram para uma nova forma de expansão da Reserva Biológica, através de uma Reserva Legal do PDS proposto. Percebemos uma mesma intencionalidade que dissociava a reforma agrária do cuidado ambiental, como se fossem polos opostos.
Percebe-se, nessa lógica política, a reedição de um mesmo conflito, que fora, a princípio, "derrotado" e superado no passado. Nesse sentido, a revolta inicial da comunidade mais do que se justifica, pois, apesar de inúmeras restrições em termos de crédito, visibilidade e direito ao exercício da cidadania, os agricultores resistiram e permaneceram na área. Vale estudar a peculiaridade como interesses ambientais conservadores – certamente estabelecidos como portadores de ideias contrárias à democratização da estrutura fundiária – se organizam para recolocar uma disputa como se fosse uma novidade.
De uma perspectiva sociológica, devemos destacar dois movimentos. Em primeiro lugar, a ação criativa dos preservacionistas que demonstra a persistência de sua atuação sob uma orientação antirreforma agrária. Em um segundo momento, deve-se analisar a oposição dos moradores ocupantes, capazes também de se reinventar e de recolocar-se no cenário desta contenda pela resistência. Na gênese desse confronto, há algumas “zonas de conforto” que devem ser investigadas: por que o PDS aparece como um risco para a comunidade? E por que o diálogo com um fazendeiro é mais interessante para os grupos preservacionistas da região do que o diálogo com um grupo de trabalhadores rurais?
De imediato, encaminhamos a solicitação de ajuda para a Defensoria Pública da União (DPU). A Defensoria, em diálogo com as lideranças da comunidade e com a UFF, resolveu mover uma Ação Civil Pública (ACP) contra o Incra. Segundo o defensor Bernard dos Reis Alô, houve um tratamento diferenciado, por meio do qual os futuros assentados foram estigmatizados em relação às grandes propriedades do entorno da Reserva, que não precisam cumprir tantas exigências.
As famílias não foram contempladas nos estudos prévios do Incra como autoras do processo, mas sim como famílias a serem inseridas em um projeto aparentemente não existente. Esse pressuposto resultou em enormes problemas técnico-políticos decorrentes dessa contradição. Enquanto, por exemplo, a Licença Prévia (LP) exigiu “não iniciar qualquer atividade antes das licenças de instalação e de operação”, desconhecia-se o fato de que a comunidade já existia e praticava agricultura e criações há cerca de duas décadas.
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Pode-se facilmente constatar que o regime de posse não foi contemplado tanto pelo Incra como pelo Inea, tendo em vista que a área rural em questão é fonte de sustento para a comunidade Sebastião Lan II. Esse elemento é fundamental para compreender como os diferenciados graus de liminaridade social e jurídica impuseram à comunidade a reprodução de práticas sem assistência do Estado.
A ACP aponta elementos do TAC não respeitados tanto pelo Incra como pelo Ibama, tais como: implantação paulatina, nos assentamentos já existentes, da prática da agroecologia; realização de estudos no sentido de conectar gradativamente a Reserva Biológica por corredores ecológicos, florestais e agroecológicos; recuperação das matas ciliares ao longo dos canais Aldeia Velha e São João; transformação da área do Brejão em espaço modelo para a prática da agroecologia, com práticas de agrofloresta; e capacitação dos agricultores e trabalhadores rurais. Portanto, a vedação de edificações ou qualquer tipo de construção na faixa marginal de proteção dos cursos d'água e nascentes surge como uma condicionante nova, não explicitada pelas entidades ambientais e de reforma agrária durante os anos de ocupação da área. Ou seja, as casas, as igrejas, a sede da Associação e demais benfeitorias não aconteceram de um dia para o outro. A instalação de uma rede elétrica com financiamento público, a distribuição de água pela Prefeitura de Casimiro de Abreu e as multas recebidas pelos agricultores demonstram que essa “ausência” de regulação do Estado foi, sim, uma forma de presença.
As lideranças enfatizavam essa nova tentativa de ordenamento como uma ameaça para a sobrevivência da comunidade de Sebastião Lan II, concretizada na limitação do número de lotes; na imposição de um novo sistema de agrovila – mesmo que o sistema de produção e organização das moradias fosse individual; e também na desconsideração das construções e benfeitorias já construídas, o que poderia implicar em prejuízo financeiro imediato para as famílias.
Pelo novo assentamento, a área da reserva legal chegaria a 999,14 ha, muito acima do exigido pela legislação. Outro ponto chamava a atenção: o fato de a LP exigir o início de um “Plano de Restauração Florestal das APPs [Áreas de Preservação Permanente] e RL [Reserva Legal] até um ano depois da sua aprovação". Esse último elemento, além de desconsiderar toda a experiência da comunidade, impõe uma relação entre o homem e o meio ambiente que resgata o mito da natureza intocada (Diegues 1996), na medida em que não reconhece a possibilidade de convivência harmoniosa entre a agricultura e a conservação. Nessa linha de raciocínio, restaurar não é sinônimo de conservar, mas significa, antes de tudo, a recuperação de uma natureza anterior à interferência do ser humano, o que, na prática, significaria transformar mais da metade do assentamento em um brejo/pântano novamente.
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A ACP teve o efeito imediato de impedir qualquer ato do Incra referente à retirada dos trabalhadores da região, que era a grande preocupação da comunidade. Assim, ao suspender o processo de licenciamento até o julgamento da ação, a ACP solicitava ainda a invalidade das condições impostas pelo Incra durante o licenciamento ambiental. A UFF foi indicada como amicus curiae (amigo da corte), um terceiro elemento que demonstra interesse na causa, em virtude da relevância da matéria. O representante legítimo da sociedade fora do processo foi o professor Wilson Madeira Filho, através do GT Ecosocial. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que foi encaminhada a ACP, optamos por uma negociação simultânea. Esse momento representou uma mudança de posicionamento da UFF no processo de criação do PDS. Surge, assim, a proposta de assessoria direta ao movimento social.
3. ASSESSORIA SOCIOJURÍDICA DO OBFF E DO GT ECOSOCIAL
Em vez de assessorar o Incra no processo de sensibilização da comunidade para a construção do PDS, o Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) e o GT Ecosocial alteraram seu foco de atuação, passando a fornecer um suporte mínimo para os trabalhadores rurais de Sebastião Lan II. Nosso intuito era o de acompanhar o processo institucional, na busca pela integração entre os imperativos de conservação da natureza com as necessidades de sobrevivência da comunidade de pequenos agricultores.
Importante ressaltar que as lutas que criaram as condições de invisibilidade social e política referem-se não apenas a uma população estigmatizada, mas aos laços invisíveis de um conflito que reafirma ou dilui os limites entre as diversas categorias em disputa. Essas categorias são materializadas politicamente nos discursos sobre a classificação da natureza, construídos por agentes do Estado ou da sociedade civil, que deslegitimou tecnicamente o saber construído através da experiência.
Ao mesmo tempo em que setores do Estado deram aspectos de “legalidade” a um conhecimento construído através da exclusão de uma população subalternizada, essa mesma comunidade redefiniu seu próprio território de vida. Em linha com essa orientação, retomamos os contatos com as lideranças de Sebastião Lan II e, no primeiro semestre de 2015, re alizamos reuniões no sentido de planejar novas estratégias de ação.
Nesses encontros, percebeu-se o grande temor da comunidade quanto à efetivação do PDS nas modalidades e nas condicionantes impostas. A primeira reunião tinha um caráter eminentemente formal, na qual a comunidade foi orientada a encaminhar suas demandas
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diretamente ao órgão responsável por sua defesa. Nas duas reuniões subsequentes, levantaram-se os questionamentos da comunidade à Nota Técnica construída pelo Incra, que forneceu bases para a Licença Prévia do Inea e a consequente portaria de criação do PDS. Naquele momento inicial, fazia-se necessário compreender e identificar os pontos conflitantes.
Na visão das lideranças presentes, o grande desafio seria provar que a situação de liminaridade sociojurídica da população de Sebastião Lan II, não significava que viviam mais sob lonas. A temporalidade (18 anos, na época) já alterara a infraestrutura básica de sobrevivência: já havia a presença de luz elétrica, a coleta de lixo, o transporte escolar, a construção de uma sede comunitária, o processamento de alguns alimentos e a igreja construída.
A identificação dos agricultores pelos lotes, criados durante a ocupação, tornou- se referência tanto para o Incra quanto para outros órgãos do Estado e, assim, a comunidade se constituiu. Tratados como “absurdos”, os documentos elaborados para a construção do PDS evidenciavam, para eles, um desconhecimento ou mesmo a má intenção de setores que agiam por dentro das instituições do Estado para inviabilizar a reforma agrária. Esses “absurdos” se materializavam, por exemplo, nas medidas que tentavam limitar a limpeza dos canais artificiais criados ainda pelo antigo grileiro, tratando-os como cursos de água naturais.
Apesar de a Reserva Legal comprometer a maior parte do assentamento, as lideranças não se posicionavam contrárias a ela, indicando até mesmo áreas já tratadas como tal, mesmo sem serem oficializadas. Construímos coletivamente uma proposta de criação da uma Reserva Legal mais extensa, que abrangesse não somente o território de Sebastião Lan II, mas que incluísse também o somatório das áreas de Sebastião Lan I, II e III. Como o assentamento de Lan I foi condenado judicialmente – e a área do suposto Lan III estava invadida por fazendeiros locais – o Incra poderia reprojetar a Reserva Legal, incorporando essas áreas e criando o grande território de Sebastião Lan.
Essas foram estratégias de argumentação construídas para os primeiros diálogos entre a comunidade e o Incra. Pretendíamos que a ACP retomasse a construção do PDS a partir do reconhecimento de práticas e experiências em curso – e não como um assentamento a ser criado hipoteticamente, como se não existisse uma comunidade vivendo há quase duas décadas no local. Em reunião no Incra, pretendíamos trazer à tona as diferentes percepções sobre o PDS, que
não estavam claras para todos os agentes envolvidos. O encontro iniciou-se pela leitura de uma carta discutida internamente na comunidade, na qual evidenciavam-se alguns constrangimentos:
O Incra não teve a coragem para tirar o grileiro desta área [...] o povo que tomou a área das mãos do grileiro nunca teve assistência a não ser com cestas básicas. Se o Incra aqui hoje está de carro, é porque o povo daqui correu atrás pra abrir a estrada [...] muita luta de
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alguns companheiros que aqui resistem até hoje. Pois dos 419 que ocuparam essa área pela primeira vez [...] ficamos 76 nesse tempo todo. (Acampado A)
A intervenção tentava mostrar como a organização da área ocorreu sem assistência. Essa ausência não representou um entrave para a auto-organização; pelo contrário, a divisão dos lotes foi facilitada pelas valas criadas pelo próprio grileiro. Dessa forma, o Incra pôde identificar cada uma das famílias, e esse simples cadastramento permitiu a construção de uma infraestrutura mínima, o planejamento da produção, a recepção de luz elétrica. Ou seja, toda uma dinâmica comunitária foi, ao mesmo tempo, criada e desconsiderada no momento da criação do PDS.
Segundo os membros da comunidade presentes à reunião, diante de tantos exemplos de assentamentos que não são viáveis, o Incra do Rio de Janeiro estaria desperdiçando a oportunidade de regularizar um assentamento viável. Eles denunciaram que “muitas vezes tiram pessoas que não estão produzindo e colocam pessoas que não têm aptidão para a agricultura. O pré- assentamento está totalmente organizado” (Acampado C). Diante da existência de uma infraestrutura básica, a reivindicação é baseada na manutenção da divisão das parcelas, pois, para eles, “somos o único pré assentamento com toda estrutura de um assentamento, ou até melhor” (Acampado A).
Sobre a possibilidade de reflorestar qualquer área interna, havia um acordo prévio, desde que as mudas fossem doadas. Assim indicam a possibilidade de construção de corredores florestais para ligar a Reserva Biológica à Fazenda Arizona, com trechos de vegetação. A polêmica sobre a inviabilidade do assentamento Sebastião Lan, condenado judicialmente pela prática agrícola, em função da dinâmica de chuvas, foi questionada da seguinte forma:
Quanto ao Assentamento Sebastião Lan I, se não deu certo, é porque o Incra não entra com o planejamento correto, porque cada localidade tem uma tendência agrícola diferente. Não existe assistência para controlar os erros. Fizemos o levantamento de nossa produção agrícola, e temos certo que Silva Jardim não produz no restante do município o que se produz aqui no pré-assentamento. Se estamos aqui até hoje é porque gostamos do nosso lugar, não queremos Vila Agrícola muito menos um Portal. Queremos nos sustentar aqui, em nossa terra, em nossa casa. (Acampado A)
Nesse momento, a citação dos técnicos do Incra dá origem à primeira polêmica. Houve uma Ação Civil Pública, condenando o Incra8 e obrigando-o a indenizar os assentados de Sebastião Lan I. Essa condenação tinha como referência o fato de o instituto ter feito a reforma agrária numa área que não era propícia para o tipo de agricultura praticada. Então havia o temor de que o mesmo acontecesse em Sebastião Lan II, que ficava no outro lado do canal do rio São João. Nesse sentido, intervém o ouvidor do instituto, questionando:
8 Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal contra o INCRA, envolvendo os assentamentos Sebastião Lan I e outro assentamento de Cachoeiras de Macacu.
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O senhor disse que o Incra não tem planejamento correto lá para o Sebastião Lan II. Eu não sou engenheiro, mas acredito que o planejamento correto vem de um trabalho técnico de engenharia. Vocês têm esse planejamento correto? (ouvidor do Incra)
A pergunta representou uma violência simbólica, a imposição da formação acadêmica para um agricultor familiar, cujo conhecimento foi construído pela experiência. A questão foi respondida com simplicidade: “Às vezes eu posso dizer palavras que não condizem, é mostrar que nós, com todas as dificuldades, estamos na mesma área e estamos produzindo. O Lan I, por exemplo, deu no que deu” (Acampado A)9 .
Esse item não tinha uma relação imediata apenas com as condições de produção, mas com a própria permanência de um número mínimo de famílias, que deveria ser superior aos 44 indicados para assentamento. Para o próprio Incra, a condição de ampliação do número de famílias exigiria um novo estudo e algum respaldo técnico, que demonstrasse erros e incoerências dos estudos anteriores. Essas exigências aparecem tanto no discurso dos técnicos do Incra como na fala do superintendente.
Há assim o retorno do discurso sobre a peculiaridade do assentamento numa área de zona de amortecimento da Reserva Biológica, que se soma a uma ameaça do próprio órgão em abandonar a área diante dos constrangimentos ambientais. Essa ameaça, segundo as lideranças da comunidade, foi feita várias vezes e recebida com silêncio pelos trabalhadores rurais. Esse silêncio significava não uma aceitação, mas um constrangimento. Repete-se o argumento sobre a possibilidade de a comunidade apresentar novos estudos, um constrangimento recorrente durante a reunião. Nesse momento, uma agricultora de Sebastião Lan II, a partir da experiência de trabalho nessas duas décadas, contra- argumenta:
Só queria falar que os estudos, essa coisa de alagamento, há 18 anos, a gente fez um documento que mostra que a gente produz lá na tal área alagada. E outra questão é assim, na medida em que o Incra deixou pra assentamento 44 famílias não vai sobrar 10. [...] Ou então, assim, essas 44 vai descer muito porque na área que ficou pra assentamento não cabe essas famílias, as 44. [...] ... a gente fez um documento que viu que não dá... 44 famílias não vai ser assentada ali. E ainda vem uma seleção que vai sobrar o que? Umas 10? Umas 15 famílias? Porque as áreas que diz aqui que tá alagada é a área que a gente fez um documento provando que está sendo produtiva há 18 anos. (Acampada B)
Há evidências, posteriormente comprovadas por novos trabalhos de campo do Incra e por relatórios anteriores, de que existe produção na área. A questão da conjugação da qualidade da terra
9 Com um tom elevado o Acampado A diz: “E o Lan I deu no que deu, foi feito o assentamento sem acompanhamento técnico e deu no que deu, foi cancelado, e a área é fértil e produtiva, só que para culturas próprias para o local. O pior de tudo [é que] o INCRA tem duas áreas. Uma na mão de um grande fazendeiro chamado Ozanã Almeida, que ocupou a área a muitos anos e nunca sequer que a gente saiba foi intimado para entregar a área ao INCRA. Depois tem a área conhecida como dos Peçanhas, onde seria feito o assentamento que se chamaria Lan III. Sendo que é a melhor área de todas, pois ela fica num relevo mais alto em relação ao Lan I e Lan II ”.
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e os alagamentos periódicos não implica a impossibilidade da produção, mas sim em um risco. Esse grau de risco transformou-se em critério, e é esse critério que é questionado pela experiência da comunidade.
O contra-argumento é apresentado com exemplos por outro agricultor. A periodicidade das chuvas não é anual, como demonstram os dados de pluviosidade na região. Faz-se relevante citar que os próprios indicadores de pluviosidade regionais foram elaborados por agricultores da própria comunidade de Sebastião Lan II. Nesse sentido, a relação entre as culturas desenvolvidas na área deve relacionar-se ao clima e a uma assistência técnica adequada, o que não foi o caso de Sebastião Lan I.
As colocações indicam a necessidade de revisão dos estudos científicos que contrariam a experiência humana, e as falas dos assentados demonstram essa contradição. As alterações no meio ambiente, provocadas por 20 anos de agricultura, não foram consideradas, tanto do ponto de vista de reconhecimento institucional como da perspectiva de readaptação do homem e da natureza. Não queremos dizer que os agricultores tenham sido “impecáveis” na condução de suas produções, mas que o reconhecimento das práticas pode significar também uma reorientação agrícola, inclusive com um viés agroecológico. Não existe meio ambiente puro e neutro; o meio ambiente é um artefato do homem e a natureza, um artefato humano. Assim, inaugurou-se um outro debate, em relação ao caráter político dos estudos técnicos, ou seja, a impossibilidade de participação dos agricultores na elaboração dos mesmos, ou na impossibilidade de participar de fóruns específicos no Incra, Inea ou ICMBio.
De acordo com os relatos, havia evidências de que a perspectiva preservacionista, as limitações ambientais e a redução da área de agricultura haviam surgido no próprio Incra. E ssa acusação pode ser relativizada ao compreendermos que há uma disputa interna no órgão, assim como houve um TAC que limitava a ação do instituto. A necessidade de realizar uma nota técnica que fosse aprovada por órgãos ambientais, possivelmente, orientou a formulação de um projeto de assentamento com um viés menos produtivista. O debate, por parte da comunidade, entende que essa perspectiva não só atende as demandas dos preservacionistas, mas também impede o desenvolvimento de qualquer agricultura minimamente sustentável.
O argumento sobre a falta de recursos sobre novos estudos por parte do Incra apresenta- se como uma possível ameaça, diante da possibilidade de um assentamento que pode não contemplar metade da comunidade. Ao mesmo tempo em que uma trabalhadora rural faz referência ao conflito na Assembleia que anunciou que seriam 44 os assentados, ela sublinha o risco de vida das lideranças que permanecerem no local, se a outra metade não for assentada. Eis que surge um
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momento de bate-boca na reunião. Pois o presidente da Associação, concordando com a fala acima, enfatiza o posicionamento do Incra:
Acampado C: Acho que vocês ficaram muitos anos ouvindo poucas pessoas e não o povo. Superintendente: Não me faça me meter na Associação ou na Comunidade de vocês... Acampada B: Mas uma morte vai ser uma morte num conflito agrário, não é?!
A reunião termina com o choro de uma das lideranças, que pedia ajuda, cansada pela demora e pela dificuldade de coordenar uma comunidade que já apresentava uma série de conflitos internos. Esses conflitos colocavam a Associação como mediadora de formas de uso da terra para além da sua missão, ou seja, um poder de policiar práticas de outros agricultores e negociações de terras envolvendo fazendeiros próximos e especuladores de terra. O conflito entre a terra para trabalho e a terra para especulação estava presente na comunidade.
4. A RESERVA LEGAL E AS LEGALIDADES RESERVADAS
No território do Vale do São João há que se sublinhar a importância da Reserva Biológica de Poço das Antas. Então, antes mesmo de ser publicada a Licença Prévia do Inea, em julho de 2013, o ICMBio, através da unidade de conservação citada, emitiu parecer técnico10 (em 8 de agosto de 2012) com ressalvas sobre a criação do PDS, já adiantando as condiciona ntes corroboradas pelo Inea11 .
Não podemos saber como seria o projeto se a comunidade fosse consultada na época, mas podemos compreender algumas das razões para a construção da licença a partir da leitura do Parecer Técnico do ICMBio. Nesse documento, há referências aos incêndios, à expansão populacional da cidade de Casimiro de Abreu e à concomitante especulação imobiliária. Sobre tal risco, tanto o Incra quanto o ICMBio concordavam que o PDS seria como uma “boa solução”, na medida em que poderia representar uma ocupação produtiva e um controle de acesso à terra. Entre os riscos enumerados com a implantação do assentamento, o órgão ambiental destaca a ocorrência de incêndios, como prática recorrente da cultura regional. Outra preocupação refere-se ao aument o da densidade demográfica, presente em Parecer Técnico12 .
10 Laudo Técnico nº 03/2012.
11 Em entrevista realizada em 2016, o chefe da Reserva Biológica mostra que “Na época em que o Incra pediu a licença, foi montada uma Câmara Técnica [...] específica pra isso [...] foi discutido, foi acordado e saiu nosso parecer. [...] O projeto tava redondo já [...] Acho que talvez se o Incra tivesse chamado eles [a comunidade] pra conversar não sei se o projeto sairia dessa forma” (Chefe da Reserva).
12 “[...] com o advento do assentamento, existe um significativo aumento da densidade demográfica no local, assim como, de todas as atividades inerentes à produção agrícola. Tal realidade determina o aumento do fluxo de pessoas na área, devido à presença do assentamento, ou da presença das pessoas que se aproveitam das vias de acesso para
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Na releitura dos documentos foi possível identificar um diálogo e questionamentos entre o Incra e o ICMBio. Houve esforços dos servidores do Incra, mas retrocessos nessa negociação, por mais que as intenções fossem de ampliar o acesso e uso do PDS pelos trabalhadores rurais. Podemos citar alguns exemplos, como o item no qual o órgão ambiental exigia inicialmente um "Plano de Recuperação Florestal" – alterado posteriormente para um "Plano de Restauração Florestal", para as Áreas de Preservação Permanente (APP) e a Reserva Legal. Há uma diferença entre "recuperar" e "restaurar". Enquanto a "recuperação" busca uma recomposição da função da vegetação no ambiente em destaque, evitando a erosão do solo para regular processos como ciclos da água, a "restauração" pretende restabelecer processos naturais que façam a vegetação retornar o mais próximo possível da sua condição original.
Mantiveram-se na redação original os itens que obrigam o Incra a retirar todos os moradores que fizessem qualquer uso das Áreas de Proteção Integral ou da Reserva Legal do PDS, e a demolir e retirar toda a infraestrutura existente nessas mesmas áreas. Ou seja, manteve-se a restrição de uso dessas áreas (que representam mais da metade do PDS). Apesar de a retirada da população e as limitações de uso da Reserva Legal poderem ser compreendidas como medidas drásticas, há outras que colocam em risco a sobrevivência da comunidade. Em entrevista realizada com o chefe da Reserva Biológica de Poço das Antas descobriu-se que as condicionantes ambientais mais severas, como o tamanho da Reserva Legal e a restrição da área agrícola, não foram pré-condições consideradas para a implantação do PDS.
A ausência do diálogo também é reconhecida pelo chefe da Reserva como uma medida que poderia permitir uma construção coletiva da Nota Técnica para o Sebastião Lan II. Ainda que haja uma diferença entre a função do órgão ambiental e o órgão da reforma agrária, o Incra, aparentemente, incorporou o discurso preservacionista no momento da emissão da nota técnica.
Ao se referir à vizinhança, indagamos sobre as fazendas particulares do entorno e as atividades que podem colocar em risco a sobrevivência da Reserva Biológica. A resposta foi reveladora de uma rotina interna dos técnicos responsáveis pela vigilância e controle dos limites da unidade de conservação.
A gente não tem problema com fazenda não, não tem não. Hoje em dia, o que a gente tem de problema pra Reserva? Caça, o principal problema, caça de animal silvestre, tudo quanto é tipo de bicho. E incêndio, entendeu?! Hoje em dia o incêndio só entra lá pelo Lan, Lan II, é o único lugar que entra incêndio. A gente não se preocupada com nada mais da Reserva
prática de lazer ou de atos deletérios ao meio ambiente como, por exemplo, a caça, o extrativismo, a soltura de animais domésticos para pastoreio, entre outros. [...] aumento significativo de animais domésticos, diretamente associado ao aumento da população, principalmente, cães e gatos que instintivamente têm o hábito da caça. Diante do cenário apresentado, fica evidente a necessidade de se fazer um controle de acesso ao assentamento, de forma que as pessoas que ali se dirigirem são as que têm alguma relação com as atividades desenvolvidas no assentamento”. Laudo Técnico nº03/2012 – Reserva Biológica de Poço das Antas, p. 3.
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[...] inclusive o pessoal sai de carro daqui todo dia, 11 horas da manhã vai lá, em Lan, fica lá com o carro parado lá por causa de incêndio. O único lugar que pega fogo. Não pega mais pela BR, pelas fazenda não pega mais fogo porque é tudo mata, por baixo não pega fogo porque o rio São João é muito largo. O único lugar que entra fogo é ali. Caça entra por tudo que é lugar, caça não tem jeito, entendeu?! As fazendas, não tem problema (Chefe da Reserva Biológica).
A existência de uma rotina de controle e vigilância sobre a comunidade de Sebastião Lan II é relatada com simplicidade e tranquilidade. Mas deve-se ressaltar que, entre as autuações elencadas e demonstradas pelo chefe da unidade de conservação, constavam também autuações contra fazendas privadas, a Petrobras, a autopista fluminense e uma empresa de energia, que cortou árvores dentro da Reserva. Ou seja, apesar de uma rotina direcionada à comunidade vizinha à Reserva, há uma grande seriedade no trabalho de defesa e cuidado com toda a zona de amortecimento. Em seguida, o chefe da unidade destaca dois casos de autuação contra agricultores familiares da comunidade de Lan II.
O que se destaca dessas autuações é que o Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi repassado apenas para o ICMBio, desconsiderando os moradores de Sebastião Lan II, que, até hoje, não conhecem a forma como o Incra cadastrou o próprio território em que vivem. Isso cria uma série de problemas, em que as vítimas sequer podem referenciar suas atividades agrícolas de acordo com planejamento territorial. A implantação desse cadastro deu-se em 5 maio de 2014. Na inscrição do imóvel rural no CAR, os proprietários/posseiros devem localizar o imóvel georreferenciado, informando a localização de APP, áreas de uso restrito, áreas consolidadas, apresentar uma proposta de Reserva Legal e declarar a existência de áreas de remanescentes de vegetação nativa. O CAR desvincula aspectos fundiários da necessidade de titulação das áreas cadastradas, ele é autodeclaratório (Cunha 2017).
Em pesquisa realizada sobre o município de Silva Jardim, em especial sobre o CAR c omo ferramenta de planejamento do uso do solo, Cunha (2017) avalia dados da APA da Bacia do Rio João/Mico-Leão Dourado. A autora faz um mapeamento das áreas propostas de reserva legal e das áreas de imóveis totais cadastradas pelos proprietários/posseiros do município. Dessa forma, tivemos acesso ao formato do assentamento de reforma agrária declarado pelo Incra, como se pode visualizar no mapa a seguir:
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Figura 1: Área de reserva legal declarada no CAR em Sebastião Lan II

Fonte: CUNHA, 2017
Como podemos ver no mapa acima, resta apenas uma pequena área para exploração agropecuária, sendo a maior parte do “futuro” assentamento Sebastião Lan II uma Reserva Legal. No mapa visualizamos em marrom escuro a Reserva Legal e a parte mais clara a área destinada para as atividades agrícolas e residências dos trabalhadores rurais. Portanto, há uma semelhança entre os discursos preservacionistas de 2002, conduzidos pela ONG AMLD durante a elaboração do Laudo, que defendiam que os agricultores familiares tivessem acesso a apenas 20% da área para agricultura, enquanto 80% fossem destinados para conservação ambiental.
Coincidentemente, em 2013, quando da elaboração da licença prévia, o somatório das áreas da faixa marginal de proteção do Rio Aldeia Velha e APP São João (4,06%), a Reserva Legal (64,81) e o remanescente de vegetação nativa (9,21) resultam na restrição de acesso da população do PDS em 78,08%. Ou seja, há uma limitação ao acesso dos futuros assentados ao território, baseada nas mesmas premissas do conflito ocorrido em 2002 entre o antigo Ibama e o Incra, mediado naquela época também pela UFF. Apesar de o empreendedor ser o Incra, a proposta de criação do PDS surge com semelhanças às ideias preservacionistas de quase 10 anos atrás – quando agências não governamentais e estatais de preservação exigiam a retirada dos trabalhadores rurais das bordas da Reserva Biológica.
Quando conversávamos com alguns ambientalistas sobre a história da ocupação de Sebastião Lan II, sempre surgia uma reação negativa imediata. Ao relatarmos que a ocupação ocorrera numa terra grilada por um fazendeiro, incorporando uma área anteriormente pertencente à
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Reserva Biológica, a informação sobre a existência de um decreto do governo federal (de 1965, antes da criação da unidade de conservação) sobre a indicação dessa área para reforma agrária parecia irrelevante.
A partir dessa “pista”, pesquisamos referências capazes de explicar, dentro do movimento preservacionista, essa reação negativa à reforma agrária a priori, como uma política de E stado inferior à preservação ambiental. Foi assim que encontramos a noção de Protected Area Downgrading, Downsizing and Degazettement (PADDD, possível tradução: Redução de tamanho, recategorização ou desafetação)13 .
Essa referência estava no documento intitulado "Unidades de Conservação sob Risco"14 , em que a ONG World Wide Fund for Nature (WWF-Brasil) procurava retratar a ofensiva contra áreas protegidas, em que se destacam a grilagem de terras e a mineração. Na leitura de conjuntura da ONG internacional, faz-se relevante citar as pressões promovidas por integrantes da base parlamentar do governo Michel Temer (agosto/2016), com forte lobby dos setores ruralistas e de mineração. No dossiê, há uma compilação de dados e relatos dos eventos15 .
No documento citado não é possível associar ou traduzir necessariamente assentamentos humanos como assentamentos de reforma agrária, por mais que saibamos que existam danos ambientais em muitos assentamentos. Essa ressalva faz-se necessária, porque existe no mesmo documento grande ênfase crítica aos grandes projetos de desenvolvimento, na grilagem de terras por grandes fazendeiros e nos projetos da bancada ruralista, sem referência a movimentos sociais de agricultores familiares, sem terras ou populações tradicionais como agentes produtores de PADDD. Então, podemos reinterpretar essa noção de assentamentos humanos como mais próxima à noção de expansão da malha urbana e do agronegócio do que da reforma agrária.
Até 2018 podíamos contemplar a localização dos PADDDs no Estado do Rio de Janeiro, disponibilizada num site específico, sob gestão da WWF. Esse espaço virtual compila dados e informações mundiais sobre eventos de PADDD, por meio do qual foi possível identificar, no
13 "Downgradin - A decrease in legal restriction on the number, magnitude, or extent of human activities within a protected area by the relevant authority. Downsizing - A decrease in size of a protected area as a result of excision of land or sea boudary change. Degazettement - The functional loss of legal protection for an entire protected area ." (Disponível em: http://www.padddtracker.org/, acessado em 20/01/2018). Tradução livre: Recategorização: Uma diminuição na restrição legal sobre o número, magnitude ou extensão das atividades humanas dentro de uma área protegida pela autoridade relevante. Redução de tamanho: Uma diminuição no tamanho de uma área protegida como resultado da excisão da mudança de terra ou mar. Desafetação: A perda funcional de proteção legal para toda uma área protegida ".
14 WWF, CARTILHA DOSSIÊ BRASIL, 2017
15 Estudo publicado em 2016 pela Biological Conservation compilou eventos de redução de tamanho, recategorização ou desafetação de Unidades de Conservação no Brasil entre 1900 e 2014. Os 67 eventos de PADDD envolviam uma área de 110 mil quilômetros quadrados e haviam se acelerado no final dos anos 2000. Tinham como pr incipais justificativas a geração de energia elétrica ou assentamentos humanos. (WWWF 2017: 6)
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território do Vale do São João, o seguinte registro de eventos, de 1900 até 2017: 12 casos de recategorização (envolvendo 18.065,78 km²); 43 casos de redução de área de preservação (com 83.909,72 km²); 17 casos de desafetação (compreendendo 14.768,72 km²). Tais evidências demonstram que o impacto ambiental no Vale do São João está muito além dos assentamentos de reforma agrária, tanto do ponto de vista das dimensões envolvidas como do ponto de vista dos projetos em curso no estado.
Mesmo se considerarmos toda a área do Sebastião Lan como um PADD, essa mesma área representaria apenas 0,13% do total dos 116.744,22 km² relatados pela WWF, como áreas preservadas “vítimas” de redução de tamanho, recategorização ou desafetação. Num sentido histórico – ainda mais quando pensamos que o PDS significa a manutenção do território como propriedade do Estado – a ocupação realizada pelo movimento social pode ser traduzida como uma ação de recuperação de terras públicas. Ou seja, o movimento social retirou das mãos de um grileiro, responsável pela devastação da Mata Atlântica, devolvendo ao poder público a possibilidade de regularizar e conservar a natureza, a partir de orientações ambientalmente diferenciadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS :
O binômio Reserva Legal ou Legalidades Reservadas diz respeito a uma circularidade de ideias ou “fluxo insondável das coisas” que reeditam formas diferenciadas da mesma exclusão. A impossibilidade de acesso à reforma agrária é reeditada na impossibilidade de utilizar a área de Reserva Legal atualmente. Em resumo, a permanência ou o retorno do paradigma da expropriação: em um primeiro momento, a criminalização dos movimentos sociais quando denunciavam a grilagem da terra (década de 1990); em seguida, a suposta incompatibilidade da relação entre agricultura e conservação do meio ambiente (década de 2000); e, por último, a restrição de acesso das famílias a serem assentadas pela ampliação do tamanho da reserva legal e restrição de uso (década de 2010).
Vale lembrar que, entre 2002 e 2003, uma das principais polêmicas encaminhadas por representantes da Reserva Biológica e representantes da Ong Associação Mico-Leão- Dourado (AMLD), apontava para a necessidade de expansão da reserva biológica, para que se desse a reprodução da respectiva espécie animal. Para tal empreendimento, a Ong oferecia-se como parceira da comunidade para implementação do projeto, com suporte financeiro e patrocínio de uma empresa.
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Indagada por técnico do Incra na época sobre quem investiria e quem compraria essas terras, a representante da AMLD apresentou duas possibilidades: a desapropriação, feita pelo Incra para essa finalidade específica, ou a compra das terras pela própria Ong (AMLD), com posterior fragmentação entre as famílias da área. Questionada por um professor da UFF sobre a temporalidade desse projeto e as perspectivas econômicas das famílias do Brejão, ela respondeu que o investidor (ou a empresa) teria o prazo de quarenta anos para se responsabilizar pelo projeto, sendo que, nos anos posteriores, as famílias seriam as responsáveis pela preservação da floresta. A dirigente da Ong ainda enfatizou a forma de utilização dos lotes, em que cada um dos assentados deveria destinar “20% para a agricultura sustentável e 80% para fins de preservação, havendo, nessa área maior, possibilidades de implantação de sistemas de agrofloresta” (UFF, 2007: 102). Bem próximo dos quase 78% do território com uso restrito pelo PDS sugerido.
Há, portanto, evidências de novas formas de expropriação, em que a reserva legal, no caso empírico, pode se transformar em legalidades reservadas de acesso a renda da terra. Quem se beneficiará de um suposto não uso dessas áreas? Quais agências têm seus recursos financeiros captados pela exclusão de assentados dessa área? Segundo os trab16alhadores rurais, a redução do tecido social da comunidade e a redução da área útil impossibilitará a manutenção da atual força política para acesso a serviços básicos conquistados, como escola e coleta de lixo, além de riscos à produção.
Essa restrição à renda da terra ou da natureza refere-se, essencialmente, às novas técnicas e caminhos institucionais criativos de setores específicos para impor seu ordenamento sobre o território e manter a elevada concentração da terra. A dialética de um conhecimento produzido de baixo para cima, dos movimentos de ocupação da terra para as agências do Estado teve, em Sebastião Lan II, a singularidade de colocar em evidência a tensão do discurso ambientalista, que pode ser instrumentalizado ideologicamente para construir uma ruptura entre o ser humano e a natureza – e não sua harmonização. A Reserva Legal, que é um dos componentes mais importantes para a preservação dos recursos naturais, pode ser usado, tal como demonstrado, como instrumento particularmente complexo quando não integrado a uma perspectiva humana da função social da propriedade e à democratização do acesso à terra.
REFERÊNCIAS :
BRANDÃO, C.R. (org). 1981. Pesquisa Participante. Ed. Brasiliense, SP, 3. edição.
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CUNHA, Daniela Pinaud de Oliveira. 2017. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) como instrumento de planejamento da paisagem rural: um estudo de caso na APA da Bacia do Rio
São João/Mico-Leão-Dourado, RJ. Dissertação. Mestrado. Jardim Botânico do Rio de Janeiro. DIEGUES, Antonio Carlos. 1996. O Mito da Natureza Intocada. São Paulo: Ed. Hucitec. LOBATO DA COSTA, Rodolfo Bezerra de Menezes. 2018. Estudo de Caso sobre o
Acampamento dos Sem Terra Sebastião Lan II nas Bordas da Rebio de Poço das Antas (RJ): Formas de Não Realização da Reforma Agrária. Doutorado. Tese, Universidade Federal
Fluminense.
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. 2007. Laudo multidisciplinar em conflito sócio - ambiental: o caso da reforma agrária no entorno da Reserva Biológica de Poço das Antas. Wilson Madeira Filho, Ana Maria Motta Ribeiro, Mônica Cox de Britto Pereira, Dario de Andrade Prata Filho (coordenadores). Série Pesquisas nº2. Niterói: PPGSD- UFF.
WORLD WILDLIFE FUND. 2017. Cartilha Dossiê Brasil. Download:
https://d3nehc6yl9qzo4.cloudfront.net/downloads/dossiebrasil_v9_2.pdf, acesso em 10/01/2018. AUTOR:
Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa
Professor – Departamento de Sociologia – Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor e Mestre em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal Fluminense - PPGSD/UFF.
E-mail: rodolfolobato@hotmail.com
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ADEVOLUTIVACOMO PRÁTICA DIALÓGICA/DIALÉTICA DA SOCIOLOGIAVIVA DO OBSERVATÓRIO FUNDIÁRIO FLUMINENSE: o caso da luta pela terra na Fazenda Cabaceiras
Emmanuel Oguri Freitas Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
RESUMO
Este artigo é o resultado de uma prática de pesquisa desenvolvida pelo Observatório Fundiário Fluminense (ObFF), no contexto da Sociologia Viva, que consiste em retornar às comunidades pesquisadas/assessoradas com intuito de devolver e apurar os resultados preliminares ou finais de pesquisa. Esta prática denominamos como devolutiva. Apresentamos o espaço escolhido pela comunidade do assentamento 26 de Março para nosso encontro de devolutiva: a Escola Municipal de Ensino Fundamental Carlos Marighella. Como resultado, apontamos as categorias de estratégia usada pelos subalternizados e as manobras realizados pelos fazendeiros. Identificamos que a devolutiva pode ser relevante para o projeto da Sociologia Viva, pois retorna considerações sobre a pesquisa realizada para a comunidade, possibilita uma reavaliação do material analisado, refo rçando um diálogo com os sujeitos da investigação e abre novas possibilidades de pesquisa/assessoria. Palavras-chave: Sociologia Viva. Devolutiva. Processo Judicial.
THE DEVOLUTIVE AS ADIALOGICAL/DIALETIC PRACTICE OF THE LIVING SOCIOLOGY OF THE FLUMINENSE FUNDARY OBSERVATOR Y: The Case of the Struggle for Land at Cabaceiras Farm
ABSTRACT
This article is the result of a research practice developed by the Fluminense Land Observatory (ObFF), in the context of Living Sociology, which consists of returning to the researched communities in order to return and ascertain the preliminary or final research results. This practice we call as devolutive. We present the space chosen by the settlement community March 26 for our return meeting: the Carlos Marighella Municipal Elementary School. We point out the strategy categories used by the subordinates and the maneuvers performed by the farmers. We identified that the feedback can be considered relevant for the project of Living Sociology, since it returns some considerations about the research carried out for the community, allows a reevaluation of the collected material, reinforcing a dialogue with the research subjects and It opens up new possibilities for research / advice.
Keywords: Living Sociology. Devolutive. Judicial Process.
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FREITAS, Emmanuel Ogu ri
A DEVOLUTIVA COMO PRÁTICA D IALÓGICA/DIALÉTICA DA SOCIOLOGIA VIVA DO OBSERVATÓRIO FUNDIÁRIO FLUMINENSE: ...
INTRODUÇÃO
Este artigo é o resultado de uma prática de pesquisas desenvolvida pelo Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) que consiste em retornar às comunidades pesquisadas/assessoradas com intuito de devolver e apurar os resultados preliminares ou finais de pesquisa. Esta prática estamos denominando como devolutiva. A pesquisa original que resultou na devolutiva que abordamos neste artigo apresenta um enfoque crítico sobre processos sociais balizados, sobretudo, pelo sistema judicial, numa luta que fora nascida na estrada e adentrou os tribunais, resultando numa história a ser contada sobre a ação dos movimentos sociais populares. Tratamos do conflito estabelecido na Fazenda Cabaceiras, sudeste do Pará, e as estratégias de luta empreendidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) no mundo concreto, representadas na disputa jurídica, através de análise da narrativa tecida nos processos judiciais e administrativos. Durante a pesquisa, analisamos a utilização do trabalho escravo contemporâneo como elemento fundamental para a desapropriação da Fazenda Cabaceiras. Nos idos do ano de 2004, o Governo Federal decretara a desapropriação desta terra de propriedade da família Mutran1, em razão da reincidência de utilização do trabalho escravo e pelo descumprimento da legislação ambiental. Além da pesquisa na ação de reintegração de posse, analisamos o processo administrativo junto ao INCRA e a ação de desapropriação referente ao imóvel. Durante o primeiro trabalho de campo, que ocorreu em março-maio de 2009, entrevistamos membros do Poder Judiciário, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), acampados e lideranças do MST.
A devolutiva para a comunidade do Assentamento 26 de março, nome atual da antiga Fazenda Cabaceiras, ocorreu entre os dias 02 e 08 do mês de outubro de 2017. O retorno ao campo em que ocorreu a pesquisa se deu no contexto da disciplina Prática de Pesquisa que estava ligada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) da Universidade Federal Fluminense (UFF), mais especificamente no âmbito do Projeto de Pesquisa “Laboratório de Justiça Ambiental: Baía de Guanabara e CAJUFF Oriximiná”, coordenado pelo Professor Wilson Madeira Filho. Procedemos a uma missão de pesquisa e assessoria à região Sudeste do Pará que contou com a participação de Wilson Madeira Filho e Ana Maria Motta Ribeiro, além do autor.
1 A família Mutran é conhecida em todo Estado do Pará pela forma violenta com que ocupou e foi titulada em razoável porção de terras públicas e pela intensa participação junto ao poder político local. De acordo com Emmi (1999), a família Mutran pertencia à oligarquia dos castanhais.
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O artigo está dividido em duas partes. Na primeira seção, apresentamos o ato da devolutiva, ressaltando o espaço em que a mesma ocorreu, por entender que a Escola Carlos Marighella2, ao mesmo tempo em que faz parte da constituição da luta promovida pelo MST na Fazenda Cabaceiras, representa um elemento importante do repertório de ações coletivas desenvolvido pelo movimento.
Na segunda seção, tratamos do resultado mais direto da devolutiva na produção do texto final da tese de doutoramento que foi fruto da pesquisa participante que resultou neste artigo. A roda de conversa e os dias que passamos no Pará foram responsáveis pela apresentação das categorias “estratégia” e “manobra” como formas de explicação e análise dos dados coletados nos processos judiciais. Nas considerações finais, sistematizamos os acúmulos proporcionados pela prática da devolutiva e encaminhamos alguns desdobramentos para seus usos.
1. O ESPAÇO DADEVOLUTIVACOMO LUGAR DAEDUCAÇÃO DO CAMPO
Iniciamos o relato sobre a prática da devolutiva apresentando o espaço escolhido pela comunidade do Assentamento 26 de Março para nosso encontro: a Escola Municipal de Ensino Fundamental Carlos Marighella. Seu reconhecimento e as melhorias que recebeu ao longo dos anos são considerados como conquistas da luta por uma determinada concepção de reforma agrária.
A escola foi uma das iniciativas que compuseram o repertório de argumentos jurídicos (estratégia) utilizados para manutenção da ocupação, que, por vezes, enfrentou a violência estrutural que marcou a história da antiga Fazenda Cabaceiras. A data de ocupação da área, que se tornou o nome do assentamento, é emblemática, pois a entrada no imóvel se deu justamente um ano depois do assassinato de duas lideranças estaduais do MST do Pará, “Fusquinha” e Doutor”, de acordo com Rita, liderança do MST no Estado do Pará34. Pouco tempo depois da ocupação, criaram a escola na primeira área de acampamento, ainda em uma pequena parte da reserva florestal. Em 2000, o Ministério da Educação (MEC) reconhecera sua existência, passando a ser a primeira escola pública reconhecida oficialmente dentro de uma área de acampamento de movimento social.
2 Carlos Marighella foi um político baiano que durante anos foi militante do PCB e que, após sua expulsão do partido em 1967, integrou a guerrilha contra a ditadura empresarial-militar através da Aliança Libertadora Nacional (ALN).
3 Os nomes dos sujeitos entrevistados por terem relação com o MST ou por serem assentados na área denominada Assentamento 26 de março foram alterados para preservar a identidade dos mesmos por questão de segurança.
4 Rita é uma das lideranças do MST no assentamento, onde tem um lote. Exerce cargo na direção estadual no movimento e é oriunda da região. Foi uma das responsáveis por nos receber na sede do MST e nos acompanhou na maioria das entrevistas. Tem formação política sólida e é um quadro importante do movimento. Sua entrevista foi concedida em Março de 2009.
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FREITAS, Emmanuel Ogu ri
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Em 2004, ao avançarem a ocupação para uma área perto da sede da fazenda, transferiram a unidade de ensino para um galpão recém-construído para trabalhadores contratados para trabalhar em empreitadas. Esse prédio teria sido uma obrigação assumida em uma Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelos antigos fazendeiros com os fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que haviam flagrado trabalho escravo no imóvel naquele ano. No final de 2018, a escola contava com 51 alunos no Ensino Infantil, 157estudantes no Ensino Fundamental I, 91 alunos no Ensino Fundamental II, 82 jovens e adultos matriculados na Educação para Jovens e Adultos (EJA). No ano de 2016, a escola recebeu repasses da ordem de R$ 37.290,00, configurando a materialização de uma das bandeiras do MST no processo de ocupação da fazenda que pertenceu à família Mutran: educação no campo para assentados e para a população rural da região.
A unidade de ensino de educação no campo conta, ainda, com 30 funcionários e 12 salas de aula; fornece alimentação para os alunos produzida, em parte, no próprio assentamento e conta com infraestrutura razoável, chegando a possuir um laboratório de informática com computadores. Alguns trabalhadores da escola foram estudantes que se formaram em cursos ligados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) e que partilham os conhecimentos adquiridos com os novos “sem-terrinhas”. É o caso de uma assentada, Magdalena, que resgata sua história e conta sobre seu compromisso para com a pequena escola: “Hoje, estar aqui, estudei des de 99, não, desde 2000, e tô aqui até hoje. Hoje, eu sou funcionária aprendiz e quero seguir aprendendo todo dia, né?”5 .
A prática da pesquisa participante que desenvolvemos pelo viés da Sociologia Viva guarda profunda relação com o compromisso político do pesquisador/assessor e o campo popular. Trata- se de um esforço coletivo de apresentar a práxis dos subalternizados, evidenciando como as formas de vida, luta e resistência da classe trabalhadora podem oferecer caminhos aos impasses produzidos pelo desenvolvimento capitalista. De acordo com Brandão (1999):
Conhecimento coletivo, a partir de um trabalho, que recria, de dentro para fora, formas concretas dessas gentes, grupos e classes participarem do direito e do poder de pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seu saber a respeito de si próprias. Um conhecimento que, saído da prática política que torna possível e proveitoso o compromisso de grupos populares com grupos de cientistas sociais, por exemplo, seja um instrumento a mais no reforço do poder do povo. Poder que se arma com a participação do intelectual (o cientista, o professor, o estudante, o agente de pastoral, o trabalhador social e outros profissionais militantes) comprometidos de algum modo com a causa popular (BRANDÃO 1999:9- 10).
5 Magdalena é assentada no PA 26 de março e foi uma das ocupantes originárias do acampamento. Estudou na escola Carlos Marighella e hoje ela é funcionária aprendiz na instituição. É natural do Estado do Pará. Seu depoimento se deu na reunião em que fizemos uma devolução preliminar dos resultados da tese na Escola Carlos Marighella em outubro de 2 017.
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Cabe, portanto, ao pesquisador/assessor enfrentar a tarefa de resgatar essas narrativas que podem ser apresentadas como histórias de vida, estratégias jurídico-políticas, estruturas culturais de ação, pertencimento e luta. Admitimos a necessidade de se escovar a história a contrapelo para dar visibilidade às lutas dos subaltenizados.
Nesse compasso, podemos afirmar que os assentados do “Assentamento 26 de março” têm histórias de vida e luta muito parecidas, pois são oriundos de processos de territorialização e desterritorialização contínuos. Ou participaram de tentativas de ocupação de terras na própria região do Araguaia, ainda crianças acompanhando os pais, ou vêm sendo desterrados desde os projetos estatais de expansão das fronteiras agrícolas. As trajetórias passam pelos despejos nas terras cultiváveis do Mato Grosso, Goiás e, finalmente, no Estado do Pará. São filhos e filhas de camponeses desterrados ou os próprios despejados de outras áreas. Sua consciência de classe foi construída na oposição daqueles que lhes despossuíram, mas também na identificação de interesses comuns entre si ligados à reprodução de seus modos de vida, de organização e de produção. Assim, passam a enfrentar os fazendeiros da região, mas também buscam ressignificar a compreensão que os entes estatais possuem sobre suas demandas e estratégias de luta.
Os sujeitos que passam por um processo de formação política tão intenso, como no caso dos que lutam pela terra, têm questionado os usos que a academia faz das pesquisas desenvolvidas com objetos ligados às suas práticas. Passaram, portanto, a não fornecer dados para pesquisas acadêmicas que versem acerca dos conflitos em que estejam envolvidos. Trata-se de uma reação normal para grupos e movimentos que tê sido repetidamente estudados e analisados por membros da academia que nunca retornam os resultados de suas pesquisas para as comunidades investigadas. Adevolutiva tem papel fundamental na retomada e reconstrução dos laços que tocam universidade e movimentos sociais proporcionando troca de saberes tão necessária para a produção científica crítica.
Desde a década de 1970, uma forte crítica dos movimentos e grupos populares à tentativa de tornar os sujeitos em objetos de pesquisa nos têm colocado novas questões. Os próprios grupos passam a produzir outras problemáticas e metodologias, cobrando resultados práticos das pesquisas em relação às necessidades mais imediatas de suas lutas e debates internos. Conforme Brandão (1999: 11) passam a reivindicar “participar da produção deste conhecimento e tomar posse dele”. No caso concreto da devolutiva que procedemos, uma roda de conversa na escola, que contou com a participação das lideranças do movimento, além de assentados e assentadas, (coordenadores de núcleos e de brigadas, funcionários da escola e lideranças do MST no Pará) foi o momento principal do ato de devolutiva. Reuniões com algumas lideranças para levantamento de
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novos problemas e visitas a outras ocupações também foram efetuadas para oferecer a dimensão da continuidade da luta e os impasses que a conjuntura apontavam.
Além da possibilidade de retorno do resultado da pesquisa para a comunidade, a devolutiva se constitui como uma oportunidade para o Estado/Universidade suscitar e participar de uma reflexão coletiva sobre caminhos, impasses e resultados obtidos direta e indiretamente pela ação coletiva no contexto da política pública da reforma agrária. Para o pesquisador, sujeito que participa e é afetado pela pesquisa, a devolutiva possibilita testar considerações parciais, assim como apresentar questões que tenham surgido ao longo análise dos dados coletados.
No nosso caso específico que trabalhamos com a pesquisa sociojurídica, o período de permanência na cidade de Marabá, propiciou, ainda, acessar os processos judiciais e administrativos relacionados ao conflito pela fazenda e, com isso, investigar os impasses e desafios que se colocam para efetivação do direito à terra e ao território no caso estudado. Os assentados aproveitaram para tirar diversas dúvidas sobre o processo judicial e pudemos fazer algumas diligências junto aos juízes e promotores da vara agrária de Marabá.
Mapa 1: Sobreposição de mapas do assentamento feitos pelo INCRA e pela comunidade

Fonte: MST e INCRA
Um caso importante que pudemos aprofundar durante a missão tem relação com disputa entre o INCRA e os assentados sobre o desenho do assentamento. O mapa apresentado acima é uma sobreposição de imagens. Um mapa foi produzido pelo INCRA para subsidiar o processo de
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desapropriação e implantação do Projeto de Assentamento (PA). O outro, sobreposto, foi produzido pela comunidade, representando a real distribuição dos lotes. Trata-se de uma “guerra dos mapas”, em que o MST se recusa a manter uma postura passiva diante da atuação da autarquia agrária, colocando-se no espaço de luta e enfrentando, até mesmo, as determinações do INCRA para se fazer presente na área com base na sua estratégia. Pudemos problematizar junto à autarquia agrária a diferença do mapa produzido por seus técnicos e a disposição real dos lotes, reforçando esse debate tendo em conta a experiência dos assentados.
A área consolidada como “Assentamento 26 de março” abriga, desde 2009, o Campus Rural do Instituto Federal do Pará (CRMB). Fundado como Escola Agrotécnica de Marabá em 2008, criada pela Lei 11.534/07 (MARINHO, 2016, p.145), esta unidade de educação do campo foi apresentada pela primeira vez como fato relevante no processo de desapropriação da Fazenda Cabaceiras para obstar a suspensão do andamento da ação judicial pelo juiz, em razão dos acordos que já estavam sendo elaborados para sua viabilização. O Ministério da Educação, o Centro Federal de Educação Tecnológica do Pará (CEFET-PA) e a Fundação de Apoio à Educação Tecnológica, Pesquisa e Extensão do CEEFET-PA (FUNCEFET-PA) haviam fechado convênios para disponibilização de recursos físicos, econômicos e pedagógicos para construção e funcionamento da escola.
O CMRB faz parte da política de expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica que, a partir da integração do CEFET-PA com as Escolas Agrotécnicas Federais de Castanhal e Marabá, criou o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IFPA) (MARINHO, 2016, p. 145). Seu foco é na educação profissional do campo e no campo, ancorada na luta e na “prática social dos povos do campo”, considerando a “realidade dos sujeitos como ponto de partida do processo pedagógico” (MARINHO, 2016, p.147). Trata-se, de acordo com seu Projeto Político Pedagógico de educação contra-hegemônica pautada na valorização da vida e da justiça social, a serviço do trabalhador e não do capital, comprometida com o processo de mudança, autonomia dos sujeitos e transformação social (MARINHO, 2016, p.148).
O Assentamento 26 de março está estabelecido em uma área de aproximadamente 10.200 hectares, dividido em 6 núcleos compostos, em média, por 20 famílias cada. São 206 famílias assentadas, dispostas nos núcleos e algumas nas laterais do assentamento, denominadas vicinais. As estradas internas do assentamento são de terra batida, mas apresentam condições de direção excelentes, pois, constantemente, são reformadas e a máquina para aplainar o solo passa com regular periodicidade. De acordo com relatos de lideranças do acampamento durante a devolutiva, algumas seitas religiosas neopentecostais tentaram construir igrejas nas áreas comuns dos núcleos
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de habitação, mas, depois de reunião deliberativa da comunidade, foram impedidas de continuar a obra. Pela proximidade com a Vila Sororó, alguns serviços básicos são acessados naquela localidade. As igrejas também se situam por lá, permitindo o acesso rápido dos praticantes religiosos que partem do assentamento para seus cultos e missas.
O papel da educação do campo na construção do espaço territorial do assentamento - seja pela deliberação democrática e coletiva pela proibição de instalação de igrejas no interior da fazenda, seja pelo reconhecimento da importância dessas mesmas religiosidades na constituição da sociabilidade dos assentados - foi reforçado nos debates ocorridos no momento da devolutiva. Retornamos, ainda, à comunidade a ideia de que a presença da Escola Carlos Marighella e a promessa de instalação da escola agrotécnica federal foram fundamentais no processo judicial para a manutenção da posse. Este dado foi muito bem recebido, revelando que, em um momento de queda no número de ocupações e despropriações para reforma agrária, resgatar a força de determinadas estratégias dos subalternizados pode proporcionar energia para as lutas e acumular conhecimentos objetivos para os grupos sujeitos da pesquisa.
2. O PAPEL DA DEVOLUTIVA NA PRODUÇÃO DE CATEGORIAS DE ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS NA PESQUISA
Um importante elemento que resultou na definição do tratamento que daríamos aos discursos que permeavam o processo judicial surgiu no momento em que fazíamos a devolutiva na Escola Carlos Marighella e nas visitas aos gabinetes dos juízes e promotores da vara agrária. Até aquele momento, estávamos tratando as disputas entre os fazendeiros e os sem terras exclusivamente através da chave da narrativa oficial de um lado, na qual os fazendeiros colavam suas pretensões, e pela ideia de contra narrativa produzida pelo MST e seus assessores jurídicos.
Atroca de saberes possibilitada pelo encontro dentro da Escola Carlos Marighella reforçou nossa percepção de que os sujeitos da luta disputavam a noção de legal e ilegal. Construíam imagens de si e dos outros antagonistas, mas deixavam clara a situação daqueles que lutam da posição subalternizada, nos apresentando a medida de desigualdade que se coloca através da luta de classes, que os obriga a traçarem estratégias muito bem definidas, criativas e públicas dos ocupantes, em oposição aos fazendeiros que trabalhavam numa lógica mais automatizada, legalista e subterrânea.
O processo de territorialização do MST no Pará teve uma série de moment os emblemáticos. Primeiro, porque a luta pela terra na região se dava de forma específica, através das ocupações individuais de lotes, mas que contavam com a organização dos sindicatos de
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trabalhadores rurais. O trinômio do homem, a arma e o lote (GUERRA, 2013) passaria a conviver com a forma-movimento estabelecida pelo MST, com as devidas alterações que a configuração regional poderia oferecer.
As capas dos jornais locais nos dias que se seguiram a 24 de março de 1998 apresentavam a reclamação indignada dos membros da família Mutran de que o MST planejava “invadir” a área pertencente à empresa da família. Em entrevista ao jornal “Correio do Tocantins”, Dhélio Mutran, um dos proprietários da fazenda, informava que as “três mil pessoas” que estariam acampadas no INCRA, em Marabá, estariam prontas para promover a invasão de sua área, razão pela qual ingressaria em juízo com ação possessória.
Essa série de eventos levou os fazendeiros a promoverem um interdito proibitório com o objetivo de impedir a entrada dos sujeitos na área. Alegavam que haveria elementos suficientes para acreditar na possível “invasão”, requerendo que o juiz expedisse ordem proibitiva em relação aos réus e suas supostas pretensões. O interdito proibitório é um tipo de ação que visa impedir o que os agentes do campo jurídico classificam como turbação ou esbulho da posse, conforme se pode perceber na leitura do artigo 932 do antigo Código de Processo Civil. Atualmente, o dispositivo que disciplina a questão é o artigo 567 do novo Código de Processo Civil, que reproduz o mesmo texto do antigo diploma legal:
Art. 567. O possuidor direto ou indireto que tenha justo receio de ser molestado na posse poderá requerer ao juiz que o segure da turbação ou esbulho iminente, mediante mandado proibitório emque se comine ao réu determinada pena pecuniária caso transgrida o preceito (BRASIL, 2015).
Os fazendeiros ingressaram na Justiça Comum, na vara cível, instaurando o processo número 028.1998.1.001033-1. O juiz prontamente atendeu ao pedido do autor em um tipo de decisão que tem certa regularidade nos tribunais brasileiros. Essa seria a primeira de três reintegrações de posse que seriam concedidas por aquele juízo em um processo judicial que durou nove anos desde a entrada dos ocupantes em 1999 até a imissão na posse no ano de 2008.
A narrativa dos fazendeiros se expressaria na dinâmica das relações de dominação, especialmente no sul/sudeste do Pará, revelando as manobras fundiárias de fração da classe dominante para “legalizar o ilegal”6, pelo uso da grilagem, aforamentos, enfiteuses e outras formas de apropriação territorial que contam com a participação de sujeitos públicos e privados na sua consecução. A contradição apontada nessas práticas é fonte de inspiração para a construção e
6 Esta reflexão apareceu na fala de Rosalvo, que é assentado no PA 26 de março e faz parte da equipe da Escola Carlos Marighella. Sua fala foi colhida durante a roda de conversa de devolução dos resultados preliminares da tese em outubro de 2017.
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atuação do MST, através de seu setor de “frente de massa”, na constituição da sua legitimidade na região7 .
Ao falar de contra narrativa nos referimos ao processo de luta pela terra organizada pelos subalternizados em atos, práticas e reflexões pragmáticas que se colocam na esfera pública e são base e resultados da ação coletiva. A contra narrativa é uma agência política dos subalternizados na tentativa de se estabelecer a luta contra a narrativa oficial. É partindo da narrativa oficial (contida em processos e documentos oficiais), que buscamos identificar uma produção própria dos camponeses, apresentadas por representantes nas ações judiciais. Entendemos que o caso analisado na Fazenda Cabaceiras é um exemplo em que essa contra narrativa conseguiu imprimir um conteúdo de rebeldia na narrativa oficial: a ilegalidade da propriedade privada estabelecida às custas da dignidade humana e da preservação ambiental.
Compreendemos que os subalternizados têm recorrido à experiência no enfrentamento do habitus (BOURDIEU, 2010) de um judiciário conservador, em regra, passando a mobilizar formas específicas de atuação e representação. É esse repertório que resulta da produção de significados construídos e articulados pelos movimentos sociais que passamos a denominar estratégias. De etimologia grega stratēgía, que se referia ao ofício do general, o termo assumiu na língua portuguesa um caráter militar, mas, também, o sentido de racional utilização de recursos para se atingir determinado fim8. Retomamos o elemento da estratégia, pois nos parece que a forma dos movimentos sociais produzirem a ação coletiva se dá nesses marcos, da guerra de posição.
Primeiro, o nosso principal inimigo, inimigo de classe, é o latifúndio, a burguesia agrária, toda ela detentora da terra e monopolizadora da política agrícola do governo e tal. Desde que nós começamos a nos territorializar, nós definimos que ao invés de nós querermos ter um número significativo de grandes ocupações, decidimos que iriamos caminhar muito lentamente e que cada ocupação não seria apenas para a família ser assentada, terem a terra, mas seria cada ocupação que se transformasse em acampamento, haveria de estar colocada como questão central a construção do nosso movimento, a construção do nosso programa de reforma agraria e que esse assentamento pudesse cumprir uma função, uma disputa política ideológica com a sociedade num patamar mais avançado. E por isso, nós decidimos nos territorializar de maneira muito lentamente. Era mais ou menos assim: nós não
7 Frente de massa é o setor responsável por fazer o denominado trabalho de base, trabalhando tanto no plano da consciência, quanto na organização de novas ocupações. É essencial nos processos de territorialização do MST e estabelece uma ponte de integração entre o movimento e os que estão chegando (FERNANDES, 1996).
8 estratégia es·tra·té·gi·a sf
1. Arte de planejar e coordenar as operações das forças militares, políticas, econômicas e morais envolvidas na condução de uma guerra ou na preparação da defesa de um Estado ou comunidade de nações.
2. Arte militar que se ocupa do equacionamento tático das operações e movimentações de um exército tendo em vista conquistar uma vitória ou lograr condições vantajosas para vencer um inimigo.
3. Arte de utilizar planejadamente os recursos de que se dispõe ou de explorar de maneira vantajosa a situação ou as condições favoráveis de que porventura se desfrute, de modo a atingir determinados objetivos.
4. Manobra ou artifício engenhoso; ardil, subterfúgio, estratagema (MICHAELIS 2017).
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podemos sair agora e de maneira deliberada fazer muitas ocupações e na hora que vir o vendaval a gente ser um pé de alface, e esse vendaval da violência, da intolerância, da marginalidade e da criminalização pudesse nos levar, pudesse nos destituir como tal 9 .
De acordo com Medeiros (2002: 88), ao longo de sua trajetória, o MST estabeleceu duas frentes específicas de luta: “a criação de fatos políticos (acampamentos, ocupações, marchas)”, que fossem capazes de promover desapropriação dos “latifúndios”; bem como a tentativa de transformar os assentamentos em “modelos de organização e produção”, com intuito de demonstrar a “eficácia” da reforma agrária e para “permitir a liberação de quadros para expandir o movimento pelo país”. No caso da entrada do MST na região sul/sudeste do Pará, a materialização desses dois princípios resultou na escolha da família Mutran como “inimigo” e do PA 26 de março como modelo de reforma agrária para a região.
Para compreender a dinâmica de atuação processual dos fazendeiros, mobilizamos a ideia de manobra. De etimologia francesa, manœuvre tem significados relacionados com mão de obra, com as ações ou formas de dirigir o funcionamento de algo, mas também, em sentido figurado, com ardil, tramoia ou intriga10. Advogados de fazendeiros, gerentes de fazendas e os próprios suposto s proprietários das áreas em disputa manobram a legislação, as instituições estatais e o debate na mídia de forma orgânica, pois possuem as ferramentas para tal.
Apostei nesses dois vernáculos por entender que a “margem de erro” assumida nas ações dos movimentos sociais na luta pela terra seria menor em função de elementos estruturais e culturais como o habitus e as regras do campo jurídico (BOURDIEU 2010). A importância da estratégia para aqueles que têm maior dificuldade em produzir provas e narrativas que possam ser corroboradas pelo sistema judicial, em oposição aos grupos economicamente dominantes que têm a legislação e o judiciário mais próximos dos seus anseios, e que, portanto, trabalham na lógica das manobras, nos habilita a ofertar esse quadro explicativo marcadamente político, sem perder em profundidade analítica.
Ao retornar da missão devolutiva ficou mais claro para nós que a organização dos dados colhidos no processo judicial deveriam ser considerados levando em conta três dimensões: jurídica,
9 Entrevista concedida por Mário em março de 2017. Mário era uma das lideranças do MST no Estado do Pará, mas já tinha sido da direção nacional e vivido em diversos estados da federação na articulação do MST. Sua família já era de ocupantes em outras tentativas de assentamentos nos estados de Goiás e Mato Grosso. É um intelectual do movimento que tem formação popular, apesar de articular muito bem leituras acadêmicas. É poeta. Em 2011, passou a atuar no Movimento dos Atingidos pela Mineração.
10 manœuvre; ma.nœuvre; nf.
1. manobra, exercício.
2. obreiro, servente.
3. FIG ardil, tramoia, intriga. (MICHAELIS, 2017)
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histórica e simbólica. Entre as ideias de modernidade, barbárie e outros elementos da dinâmica socioespacial local, a discussão entre os advogados dos sem-terra e os representantes dos supostos proprietários na ação de reintegração de posse nos apresenta alguns dos elementos iniciais do que estamos denominando narrativa camponesa. Por outro lado, a análise do processo também nos oferece os elementos de legitimação da dominação do território pelos fazendeiros e o cenário desolador que se pretende relacionar à entrada do MST na região.
Gostaríamos de destacar alguns desses núcleos discursivos e agrupá-los, conforme mencionamos acima, em três modalidades distintas de conteúdo ou forma: jurídico, histórico e simbólico. Apresento-os nos quadros abaixo:
Quadro 1: Núcleos discursivos JURÍDICOS em disputa nos processos judiciais sobre a Fazenda Cabaceiras
FAZENDEIROS/REPRESENTAÇÃO MOV. SOCIAL/ REPRESENTAÇÃO
Título de propriedade justifica a posse Função social da propriedade
Estabelecer Estado de Direito pelo cumprimento das liminares, justo receio, perigo iminente
Apresença do Ministério Público (MP) no processo como fiscal da lei, receio justo, perigo da arbitrariedade do Estado
Citação genérica por impossibilidade de individualização dos ocupantes
Citação ilegal, pois os sujeitos da petição inicial não ocuparam a área
Este quadro coloca em destaque a dinâmica das ações judiciais e os principais argumentos jurídicos que foram mobilizados com o objetivo de estabelecer vantagem sobre o outro. Os elementos são contrastados em oposições por conta da forma como o processo se desenvolve. A prática advocatícia dos representantes (advogados) os obriga a responder a todas as provocações da outra parte, num ritual que é denominado contraditório e se configura num princípio processual. A diferença de armas não dá vantagem a nenhum dos lados, desde que seus advogados saibam manipular os elementos de forma (processuais) e de conteúdo (materiais).
No caso dos representantes dos fazendeiros, os cursos de Direito são especializadas em formar nesse tipo de “doutrina jurídica”. Entretanto, no caso dos advogados dos movimentos, estes tendem a desenvolver sua formação nos núcleos de assistência jurídica universitária ou nas obras direcionadas e produzidas desde a década de 80 por militantes da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e suas congêneres.
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Quadro 2: Núcleos discursivos HISTÓRICOS em disputa nos processos judiciais sobre a Fazenda Cabaceiras
FAZENDEIROS/REPRESENTAÇÃO MOV. SOCIAL/ REPRESENTAÇÃO
Paz no campo até a chegada do MST
Família violenta, que usou a pistolagem e se beneficiou da conivência estatal
Compra de terras e beneficiária de políticas de colonização na apropriação territorial
Grilagem de terras públicas, desvio de finalidade nos aforamentos de castanhais
Produção modelo de fazenda dedicada à criação de gado Nelore
Degradação dos castanhais para abertura de pastos
O segundo quadro que apresentamos, para sistematizar os elementos que denominamos históricos, revela a narrativa construtora da imagem do outro, também num sentido de comparação. Na primeira linha, enquanto a narrativa dominante apaga a história de violência produzida pelo exercício da força que possibilitou sua hegemonia na região, a narrativa camponesa rememora esse passado como de violência e morte. O movimento social se coloca na tarefa de apresentar os escombros do passado. Sua estratégia é produzir o conflito para tentar demostrar as contradições entre a imagem romântica do passado oligárquico.
O exercício das manobras não assume sua posição de dominação, utilizando-se de um discurso de ordem. A propriedade nessa narrativa da dominação é legal, produtiva e produtora de paz no campo. Os advogados dos movimentos, através de imagens trazidas pelas notícias de jornal e estudos produzidos por grupos aliados, demonstram que esse passado idílico nunca existiu e apontam a ilegalidade da dominação oligárquica.
Quadro 3: Núcleos discursivos simbólicos em disputa nos processos judiciais sobre a Fazenda Cabaceiras
FAZENDEIROS/REPRESENTAÇÃO MOV. SOCIAL/ REPRESENTAÇÃO
Meios ardis, táticas de guerrilha, criminosos contumazes, justo receio
Patrimonialismo, trabalho escravo, falsas comunicações de crimes, receio justo
Barbárie, violência e degradação ambiental Barbárie, violência e degradação ambiental
Uso do Ilegal para si e denúncia do ilegal para ou outro, conivência estatal
Uso do Ilegal para si e denúncia do ilegal para ou outro, conivência estatal
O terceiro quadro é interessante, porque apresenta a dinâmica de substantivação do outro e elementos simbólicos que em certa medida acabam convergindo em termos discursivos. Se o fazendeiro apresenta, nos autos processuais, o “justo receio”, conceito jurídico indeterminado e sem definição legal expressa, o advogado dos movimentos apresenta o que denominei como receio justo, que consistia no medo real de uma reintegração de posse.
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Além de produzir para dentro do processo, para o campo jurídico stricto sensu, os argumentos “falam” para fora. O “receio justo” também foi apresentado na solicitação de participação do Ministério Público no processo, na condição de fiscal da lei. Diante da configuração conservadora que se apresenta pela apreciação que o Juízo fez do processo, a solicitação de mais Estado na figura de um outro campo burocrático (MP) que possa vir a equilibrar a disputa é lançada como parte da estratégia de resistência da ocupação e no intuito de proporcionar a anulação de atos processuais ocorridos sem a presença o Parquet.
Não obstante o uso do “positivismo de combate”, estratégia do movimento do Direito Alternativo (CARVALHO, 1998) e da necessidade de se remeter ao “direito achado na rua” (SOUZA JÚNIOR, 2008) por parte da representação jurídica oferecida pelos advogados do MST, é no campo da luta concreta que os elementos da disputa se fazem mais presentes e apresentam força de convencimento, conferindo legitimidade à narrativa camponesa. Essa transposição de imagens para os autos processuais que, para nós, se configura enquanto rememoração da luta dos subalternizados é o que estou denominando narrativa camponesa.
As falas dos membros do poder judiciário e das polícias, das secretarias estaduais e ministérios executivos, bem como do Ministério Público também denotam, em diferentes medidas, as lógicas dos campos estatais ou aparelhos numa perspectiva do Estado em disputa, em que se destacam as “divisões internas no seio do pessoal de Estado em amplo sentido”11 ( POULANTZAS 2000: 156-157). Em Bourdieu (2014), observamos uma interessante leitura para compreender a dinâmica do Estado que pode balizar essa diferença de percepções dos diversos campos estatais (campo jurídico, campo administrativo, campo intelectual, campo político propriamente dito).
Esses campos estão, pois, em concorrência uns com os outros, e é nessa concorrência que, de certa forma, se inventa o Estado, se inventa uma espécie de poder “metacampo”, encarnado pelo rei enquanto há rei, mas que depois será o Estado. Cada campo quer agir sobre esse metacampo para triunfar simultaneamente sobre os outros e dentro de seu camp o (BOURDIEU 2014: 7644).
A via judicial para solução dos conflitos coletivos e nas lutas por terra tem sido um jogo obrigatório para os movimentos sociais na disputa pelo Estado. Seja para manutenção das ocupações que são atacadas pelas ações possessórias, seja nos processos de criminalização dos sujeitos que participam das disputas por território, o direito reitera-se como uma retórica que altera a situação dos sujeitos.
O acúmulo das lutas, suas convergências e as outras diversas determinações, conjuntur as locais e nacionais resultaram no ambiente propício para o surgimento da narrativa sobre o conflito
11 Itálico no original .
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FREITAS, Emmanuel Ogu ri
A DEVOLUTIVA COMO PRÁTICA D IALÓGICA/DIALÉTICA DA SOCIOLOGIA VIVA DO OBSERVATÓRIO FUNDIÁRIO FLUMINENSE: ...
por terra que modificou a titularidade da antiga Fazenda Cabaceiras, estabelecendo uma narrativa camponesa memorável e digna de ser recontada pelas famílias que vivem no Assentamento 26 de março.
CONSIDERAÇÕES FINAIS :
Neste artigo, nosso intuito foi apresentar a prática da devolutiva e seus possíveis ganhos para o resultado da pesquisa participante no contexto da Sociologia Viva. O retorno à comunidade do assentamento 26 de Março possibilitou que pudéssemos assumir definitivamente a experiência de luta pela terra na Fazenda Cabaceiras na dimensão de uma narrativa camponesa ancorada em estratégias racionais e legais que podem servir de modelo para outras lu tas.
Ao ocupar a terra e produzir o conflito (luta de classes), o MST se “presenta” no acontecer histórico, revelando as contradições que estavam no subterrâneo das percepções, “escondidas e domesticadas” (RIBEIRO, 2008). A ocupação, chamada pela mídia e pelo judiciário de “invasão”, feita como “transgressão” contra uma ordem injusta reivindica um “ethos” de licitude, de mito político, que visibiliza e enfrenta o ilícito que existia na fazenda. A classe é o sujeito da história. A narrativa se coloca pela contradição da dialética da história. Para promover a visualização da contradição é que o conflito foi instaurado. O movimento dialético da história nos permite observar tanto a narrativa de uma história que é produzida pela hegemonia da dominação, como a que é intentada por baixo, de baixo, onde os esforços são, em regra, dispersos e facilmente anulados, mas é no conflito, quando se equiparam as forças, presentes e claras, que podemos revelar as contradições. Desse ponto, podemos voltar a olhar para o futuro e organizar as novas estratégias.
A partir da análise das três pequenas tabelas que produzimos com base no processo de reintegração de posse, pudemos identificar que o contraditório exibe um sistema de definição de si e do outro em contraposição. Em certo sentido, se disputa a denúncia de ilegalidade em relação ao outro. Mesmo que se admita a própria ilegalidade, aponta-se o “ilegal” do “inimigo” como muito pior. Trata-se da disputa pelo ilegal alheio, na qual o que está em jogo é a universalização das pretensões próprias de cada classe em relação às respostas possíveis que os compartimentos estatais podem oferecer. “Quem produzia a ilegalidade pior?” “Nós ou eles?” Que símbolos os subalternizados mobilizaram nessa disputa? Aprodução de gêneros alimentícios, a convivência com a mata, a escola e sua educação emancipadora, o trabalho digno e a propriedade dividida pelo e para o povo pobre do Pará. Símbolos que reafirmavam sua constituição como agência da classe
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trabalhadora e que antagonizavam com o outro: grileiro, violento, usurpador da ação do estado, escravagista e destruidor da natureza.
Por outro lado, os fazendeiros atribuíram aos sem-terra as imagens da barbárie: invasores, armados e violentos, criminosos, destruidores da natureza, inaptos para o campo e oportunistas. Foram imagens trazidas nos processos judiciais que procuram destruir a pretensão do outro e que dialogam com o habitus (BOURDIEU, 2010) do campo jurídico local, quiçá nacional. As pretensões jurídicas foram colocadas com intuito universalizante e a luta se deu página a página nos autos processuais.
Foi na roda de conversa que fizemos em uma das atividades da devolutiva que um dos assentados problematizou a tensão entre ilegal e legal que terminou por influenciar nossa análise sobre o caso nos tribunais. O retorno aos assentados sobre o papel da escola nos autos judiciais e a forma como algumas outras comunidades passam a usar o fator da educação no local da luta como um elemento legitimador de ocupações e para titulações de populações tradicionais e povos originários foi um resultado importante no contexto da Sociologia Viva.
Destacamos, ainda, que o retorno à região da pesquisa apontou para uma série de problemas e novos temas de pesquisa por conta das situações que a luta intensa por território na região vinham desvelando. Recebemos demandas para pesquisas que investiguem: o estoque de terras transferidas pelo Estado do Pará aos grandes proprietários/fazendeiros/empresas por via dos aforamentos de castanhais; levantamento de dados sobre possíveis reintegrações de posse que já haviam sido autorizadas pela vara agrária de Marabá; uma análise das organizações de representação dos fazendeiros da região que reassumiam o papel de truculência explícita e estavam desrespeitando até mesmo decisões jud iciais.
Podemos concluir que a devolutiva pode ser considerada relevante para o projeto da Sociologia Viva, uma vez que retorna de forma crítica e solidária algumas considerações sobre a pesquisa realizada para a comunidade. Além disso, possibilita uma reavaliação do material previamente recolhido de maneira que reforça um diálogo constante com os sujeitos da investigação e, ainda, abre novas possibilidades de pesquisa/assessoria com os movimentos sociais.
A devolutiva é certamente e basicamente DEVOLVER para os agentes em observação da pesquisa os resultados que o pesquisador concluiu sobre a agência deles e permitir que aqueles que vivem a experiência real possam questionar o teórico e o olhar da academia. É, ainda, uma oportunidade para que o olhar da academia possa entrar em debate com eles e defender sua teoria crítica dialética como igualmente necessária para a compreensão estratégica e a contrapelo sobre o capitalismo. É o momento do embate entre o Pensar e o Sentir que coloca em igualdade as duas
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dimensões em disputa e assim rompe com o desejo imediatista dos agentes sociais pela teoria pensada por agentes da academia militante, bem como os devolve aos agentes da academia uma narrativa tomada pelos saberes ativos e vividos pelos subalternizados que se organizam coletivamente em situações de conflito.
REFERÊNCIAS :
BOURDIEU, Pierre. 2010. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
BOURDIEU, Pierre. 2014. Sobre o Estado: Cursos no Collège de France (1989-92). Rio de Janeiro: Companhia das Letras .
BRANDÃO. Carlos Rodrigues (Org.). 1999. Pesquisa Participante. São Paulo: Brasiliense. BRASIL. 2015. Código de Processo Civil/ Lei nº13.105. Brasil: Brasília.
CARVALHO, Amilton Bueno de. 1998. Teoria e prática do Direito Alternativo. Porto Alegre: Síntes e.
EMMI, Marília Ferreira. 1999. Aoligarquia do Tocantins e o domínio dos castanhais. Belém: UFPA/NAEA.
FERNANDES, Bernardo Mançano. 1996. MST: formação e territorialização. São Paulo: Hucitec. GUERRA, Gutemberg Armando Diniz. 2013. O posseiro da fronteira. Belém: Editora Paka- Tatu. MARINHO, Dalcione Lima. 2016. Rompendo cercas e construindo saberes: a juventude na
construção da educação profissional do campo no Sudeste do Pará. Recife: Imprima.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. 2002. Movimentos Sociais, disputas políticas e reforma agrária de mercado no Brasil. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ e UNRISD.
MICHAELLIS. 2017. Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos.
POULANTZAS, Nicos. 2000. O Estado, o poder, o socialismo. São Paulo: Paz e Terra.
RIBEIRO, Ana Maria Motta. 2008. O Pólo Sindical do Submédio São Francisco: das lutas por reassentamento à incorporação do cultivo de maconha na agenda. Tese de Doutorado, UFRRJ.
SOUSAJÚNIOR, José Geraldo de. 2008. Direito como liberdade: o Direito achado na rua: experiências populares emancipatórias de criação do Direito. Tese de Doutorado, Universidade de Brasília.
AUTOR:
Emmanuel Oguri Freitas
Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Doutor em Sociologia e Direito pelo PPGSD – UFF. Membro do Observatório Fundiário Fluminense
E-mail: emmanuel.of@gmail.com
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RACISMO E VIOLÊNCIA CONTRA QUILOMBOS NO BRASIL
Eduardo F. de Araújo Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Givânia Maria da Silva Universidade de Brasília (UnB)
RESUMO
No ano de 2018 a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Terra de Direitos, a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia e Coletivo Joãozinho do Mangal – Assessoria Jurídica Popular lançaram o relatório Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil com a finalidade expor em âmbito nacional e internacional as violações de direitos humanos perpetradas contra quilombolas no Brasil. Além do viés de denúncia, o relatório contribui para compreensão das formas de (re)existências através das mobilizações políticas e jurídicas por direitos. O relatório compila memórias e lutas sociais, jurídicas, políticas e culturais desenvolvidas por lideranças quilombolas e das assessorias jurídicas. A identidade a ancestralidade e as territorialidade compõe uma circularidade de saberes-fazeres que demonstram a atualidade das reivindicações dos quilombos frente à ordem neocolonial, neoliberal e racista da sociedade e do Estado brasileiro. Em 2003 foi promulgado o Decreto 4.887, com a finalidade de regulamentar os direitos constitucionais (Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988) ao território. O Decreto foi atacado pela frente ruralista em 2004 perante o Supremo Tribunal Federal, o julgamento durou 14 anos. Em 2018 o STF acatou a tese de constitucionalidade defendida pelos quilombolas.
Palavras-Chaves: Racismos. Direitos Humanos. Assessoria Jurídica Popular.
RACISM AND VIOLENCE AGAINST QUILOMBOS IN BRAZIL
ABSTRACT
The National Coordination of Articulation of Quilombola Rural Black Communities, Land of Rights, the Association of Rural Workers' Lawyers of Bahia and Collective Joãozinho do Mangal - Legal Advice, in 2018, launched the report Racism and Violence against Quilombos in Brazil with the national and international violations of human rights carried out against quilombolas in Brazil. In addition to the reporting bias, the report contributes to understanding the forms of (re) existence through political and legal mobilizations by rights. The report compiles social, legal, political and cultural memories and struggles developed by quilombola leaders and legal advisors. The identities, ancestralities and territorialities make up a circularity of know-how that demonstrate the relevance of the quilombos' claims to the neocolonial, neoliberal and racist order of society and the Brazilian State. In 2003, Decree 4.887 was promulgated, with the purpose of regulating the constitutional (CRFB / 1988) rights to the territory. The Decree was attacked by the ruralist in 2004 at the Federal Supreme Court, the trial lasted 14 years. In 2018 the STF complied with the thesis of constitutionality defended by the quilombolas.
Keywords: Racism. Human rights. Legal advice for social and popular movements.
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ARAÚJO, Eduardo F. de RACISCMO E VIOLÊNCIA CONTRA
SILVA, Givânia Maria da QUILOMBOS NO BRASIL
BREVE INTRODUÇÃO SOBRE OS QUILOMBOS NO BRASIL
Viajei por tantos mares atravessei tantos mundos
tornei-me um deus desterrado
dentro de um outro terreiro um a um perdi meus reinos
meus tesouro s meus assuntos
mas serei um deus guerreiro mesmo que um navio negreiro me leve pra outro mundo
sou oxum e iemanjá sou os ventos de iansã beleza, força, coragem
todas na grande viagem vem junto obá e nanã sou ogum e sou xangô
sou oxóssi o caçador ferro, fogo e paciência levados pra terra estranha
sem hoje, só, amanhã. (Orixás, Alice Ruiz)
O lapso temporal compreendido entre os séculos XIV-XIX registra que cerca de dez milhões de africanos(as) foram sequestrados de África e trazidos(as) para as Américas, o Brasil teria recebido por volta de três milhões e meio destas(es) escravizadas(os). O colonialismo, caracterizado pelas violências (físicas, psicológicas e/ou simbólicas) e os racismos atravessam os últimos 500 anos na sociedade brasileira, tanto em um plano macrossocial quanto nas micro relações do cotidiano.
O historiador Flávio Gomes (2003: 447) aponta que o entendimento sobre a colonização do Brasil pressupõe a utilização de duas chaves interpretativas que aparentemente são concorrentes, mas se articulam, formando um passado estanque, um presente amorfo e um futuro insólito – são elas o essencialismo ou idealismo sobre a formação das resistências por um lado, e a naturalização da violência praticada pelos colonizadores de outro.
O autor propõe que se perceba o processo de colonização e escravidão não apenas pela natureza bélica, mas (talvez sobretudo) no estabelecimento de padrões culturais, econômicos, científicos, jurídicos e políticos que forjaram a sociedade brasileira. O uso do essencialismo ou da naturalização produzem memórias que congelam outras possibilidades de narrativas submersas e ao mesmo tempo escondem reações ao status quo. Em relação aos quilombos silenciam “ experiências históricas, envolvendo trocas culturais, dominação, conflitos, protestos e confrontos que uniram, inventando, Europas, Américas e Áfricas” (Gomes 2005).
No ocidente europeu do norte, se um espectro rondava a Europa em 1888, antes, no Haiti em 15221, no Brasil em 15752 e em 16053 eram nítidas as mobilizações e as práticas i nsurgentes
1 No ano de 1522 ocorreu o primeiro levante de escravizados em São Domingos – posteriormente, Haiti, primeiro país a abolir a escravidão.
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contra o sistema colonial escravista, sendo o Quilombo de Palmares uma das referências destas rebeliões no Brasil. Diversas pesquisas e autores (Arruti 2006; Gomes 2005; Lopes 1998) analisaram a experiência de resistência dos povos escravizados, mais especificamente na região nordeste do Brasil e sua relação com o Quilombo de Palmares. Pesquisas apontam que o início de Palmares é no final do Século XVI, na região da Serra da Barriga (atual estado de Alagoas), e as batalhas contra as tentativas de invasão por parte dos holandeses e dos portugueses duraram cem anos.
A estimativa é que entre 15 mil e 30 mil pessoas formaram o contingente populacional do Quilombo de Palmares, composto por ex-escravizados, negras(os) libertas(os), pessoas brancas pobres e grupos de povos originários refugiados, ou seja, formaram uma sociedade quilombista, conforme aponta Abdias Nascimento (2002). Não existe idealização por parte das pesquisas, como se ali fora uma parte do continente africano dentro do Brasil, mas assumindo a perspectiva de que qualquer que seja o tipo de agrupamento societário – este formado por imposição da colonização - constitui dinâmicas políticas, culturais, sociais, étnicas e outras que não foram previamente estabelecidas, mas, sim, confirmam a rebelião contra as violências do sistema escravista e o desejo de liberdade.
Várias foram as lideranças do Quilombo de Palmares, sendo em Zumbi (o último líder) e em Dandara (guerreira de Palmares) as representações icônicas das lutas por liberdade, pelo fim da escravidão e de resistência da população negra no Brasil4 .
O quilombo5 no Brasil é uma dentre outras forma de enfretamentos contra a escravidão. A exploração e a opressão no período da colonização, porém, são aa primeiras a terem um dispositivo normativo a conceituá-las e uma previsão de punição exemplar em caso de localização identificada. De acordo com o Conselho Ultramarino, de 1740, em informe enviado ao Rei Dom João V de Portugal, o quilombo seria: “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele” .
O historiador Décio Freitas (1982: 47) também demonstra que não houve apenas enfretamento bélico contra as insurreições da população negra, mas a intenção de impingir um
2 Data de 1575 a primeira expedição com o intuito de reprimir a formação de mocambos e quilombos no Brasil, tal fato ocorrido na província da Bahia.
3 Provável ano da consolidação do quilombo dos Palmares, o quilombo resistiu até o ano de 1710 quando os últimos residentes deixaram os povoados.
4 Zumbi foi morto e decapitado no dia 20 de novembro de 1695. A cabeça de Zumbi foi exibida em praça pública durante dias, em Recife. No Brasil, o dia 20 de novembro (dia da Consciência Negra) é comemorado em contraposição ao dia 13 de maio de 1888, assinatura da Lei Áurea (abolição da escravidão) pela Princesa Isabel.
5 Associação Brasileira de Antropologia (ABA) conceitua quilombo enquanto “uma herança cultural e material que lhes confere uma referência presencial no sentido de ser e pertencer a um lugar e a um grupo específico .” <http//:www.abant.ogr.br>. Acesso em 12 de jan. de 2019.
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esquecimento destes conflitos com o intuito de forjar uma identidade “brasileira”. Na transição entre o período escravista oficial (1530-1888) e começo da República Velha no Brasil (1889- 1930), os quilombos se consolidaram, principalmente nas regiões de exploração da monocultura da cana - de-açúcar e da mineração (Ribeiro 1995).
Outras formas de organização comunitária se estabeleceram na história política e fundiária do Brasil, seja pela “interiorização dos libertos dentro de latifúndios, na compra e doação de terras ” (Almeida 2002), nas alianças políticas com os abolicionistas, na participação em revoltas populares e na condição de abandonados nos centros urbanos. Flávio Gomes (2005) aponta a existência de diversas formas de organização destes quilombos, autodenominadas de terras de preto, mocambos, comunidades rurais, posseiros de engenho, lugares de preto e outros.
Os quilombos no Brasil através de suas dinâmicas políticas, sociais, raciais, culturais e econômicas, transcenderam a definição do Conselho Ultramarino de 1740 e aportam no termo quilombo dimensões de ancestralidade e territorialidade vinculadas (relacionais) ao continente africano, principalmente ao identificar no Bantu, língua da África Central (Centro-ocidental) a definição de Quilombo ou Kilombo enquanto acampamento, reunião de acampamentos ou união. Através da língua Iorubá a referência da palavra Quilombo é habitação (Lopes 1998).
Outros estudos mais avançados indicam os pertencimentos da expressão Quilombo a outras nações e idiomas dos Reinos de África, o que é natural pelo fato de que o processo de escravização forçou a relação de povos de África com hábitos, línguas, tradições e cosmovisões diversas, por vezes até inimigos entre si, mas que em um novo continente, diante das situações adversas, se autorganizaram.
O mais revelador é que o caráter racista e criminalizante constituído pela colonização portuguesa ao termo quilombo se transformou em sinônimo de liberdade, transgressão, revolta e identidade, sendo recuperado como termo forjado pela reunião de povos negros múltiplos e de luta antirracista.
A inclusão na Constituição Federal da República do Brasil de 1988 (CFRB 1988) dos artigos 215, 216 e do artigo 68 dos Atos das Disposições Transitórias Constitucionais (ADCT) sã o marcos normativos conquistados por duras batalhas travadas nos anos de 1970 e 1980 no Brasil. Neste momento de transição, de uma ditadura civil-militar para a democracia, o movimento negro denunciou o mito da falsa “democracia racial” no Brasil e resgatou a imagem de Zumbi dos Palmares enquanto símbolo antirracista e da afirmação pelo reconhecimento das pautas políticas no âmbito jurídico. Cabe apontar que, desde 1889 – começo da República no Brasil, um ano após a abolição da escravidão – , a CFRB 1988 é o primeiro instrumento legal a indicar os quilombos enquanto sujeitos de direitos.
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