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Uma vez que não há mandato autorizado para várias decisões, a representação é mais forte quando carrega os vestígios da discussão que levou à autorização ou quando, de outra forma, se justifica persuasivamente numa prestação de contas pública (Young 2006: 156) .
Nesse sentido, tendo em vista a baixa proporcionalidade entre as vinte nove audiências públicas e apenas quatro Projetos de Lei gerados com mesmos temas, esse aspecto da representação apareceu de forma bastante frágil na análise da atuação das parlamentares.
Ainda assim, a realização das Audiências Públicas demonstra uma forma mais democrática de fazer política, em que a população é chamada a discutir e se posicionar. Nessa situação possuem a oportunidade de denunciar, cobrar e solicitar pessoalmente às representantes suas demandas. Além do diálogo em Audiência, o Projeto de Lei nº 1844/2016 – sobre publicidade sexista
-, destaca-se por apresentar na sua justificativa outra forma de contato entre representantes e eleitorado.
A informação de que ele decorre de uma construção coletiva com a UBM demonstra que as parlamentares se preocuparam em dialogar com movimentos sociais e, neste caso, não apenas um movimento mulheres, mas um movimento que se declara feminista.
A UBM, União Brasileira de Mulheres, é uma entidade feminista nacional8 - com núcleos em diferentes cidades -, sem fins lucrativos, que atua no fortalecimento dos direitos das mulh eres, desde a sua criação em 1988 e possui frentes de atuação tanto individuais – em atos, formações, reuniões, entre outros -, quanto junto à órgãos e parlamentares, por meio de consultas e propostas (Rangel 2012) .
A atuação da UBM também demonstra a contrapartida do eleitorado para a representação positiva da parlamentar, pois “os membros do eleitorado são mais bem representados quando se organizam para discutir suas concordâncias e diferenças uns com os outros e com os representantes” (Young 2006: 173).
Assim, as críticas que cabem à superficialidade e ao baixo número das proposições, não devem ofuscar a importância de ter temas como esses debatidos dentro da ALERJ.
O contexto de retirada de direitos básicos das mulheres; violência misógina explícita e legitimada e; o pequeno número de deputadas na Casa refletem que esses poucos Projetos de Lei e temas abordados significam tanto a resistência das deputadas em propô-los quanto a riqueza da modalidade de Audiência Pública por permitir essa dinâmica acontecer.
Da mesma maneira, o número baixo de Projetos de Lei e Leis com temas relacionados à Audiências Públicas aqui apresentado, não significa que não há outras propostas e leis com os mesmos temas abordados em Audiências Públicas em outros períodos da legislatura. O fato a ser
8 Para saber mais sobre a UBM e outros movimentos nacionais feministas consultar a pesquisa de Patricia Rangel em: RANGEL, P. D. Movimentos feministas e direitos políticos das mulheres: Argentina e Brasil. 2012.
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destacado é que a “utilidade” da Audiência Pública se aproxima da ideia de um espaço de formação. Oportunidade em que as parlamentares aprendem sobre temas aos quais elas não têm, ou tem pouca, atuação parlamentar.
Conforme as atas das reuniões da CDDM, verifica-se que a maioria dos temas de Audiência Pública são propostos pela presidenta da CDDM, deputada D. A entrevistas com as suas assessoras demonstrou que as demandas por audiências públicas chegam tanto por meio das demandas da CDDM, quanto de movimentos feministas.
Tento em vista que ambas a assessoras responsáveis pela CDDM, em nome da presidenta, fazem parte do movimento feministas UBM, é possível inferir que as pautas também possuem uma perspectiva feminista.
Isso pode ser um dos motivos que explique a distância entre os temas das Audiências e das Legislações. A realização da Audiência possui um crivo mais flexível do que a propostas legais , também dependem menos da articulação com parlamentares e não tem um rito longo para sua realização.
Assim, afloram as contradições sobre os temas e legislações decorrentes das audiências Públicas realizadas, presididas e compostas pelas mesmas parlamentares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Se propor a pensar a produção legislativa para mulheres por meio da atuação parlamentar e, a partir de uma perspectiva feminista, analisar a relação com as Audiências Públicas, resultou na necessidade de pensar e firmar diversos aspectos, antes mesmo de olhar para o extrato da realidade delimitado pela pesquisa.
Uma primeira questão é a desconexão entre a produção legislativa e a representação por perspectiva: ainda que todas as deputadas tenham produção legislativa especificamente direcionada às mulheres, quando o tema é derivado e direcionado pelas discussões realizadas nas Audiências Públicas, a propositura legislativa é bastante baixa (dois projetos da mesma deputada e dois projetos coletivos). Desta forma, a representação por perspectiva, que teria nas Audiências Públicas um espaço privilegiado para sua realização, não se concretiza .
Assim essa análise demonstra que tanto a realidade quanto as propostas teóricas refletem importantes potencialidades e limites na atuação parlamentar de mulheres .
As diferentes formas das deputadas representarem demandas de mulheres não se trata de uma novidade ou limite da realidade. Ela somente reforça que o olhar essencialista sobre a prática política não consegue corresponder à pluralidade, que é inerente a ela, ainda que se trate de um grupo todo formado por mulheres .
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Por todos esses motivos, é possível pensar a função destas Audiências Públicas9 como um momento de contato com temas e pessoas: as audiências são realizadas, os temas são debatidos e a população tem espaço para fala. Mas isso não se transforma em proposições legais.
Disso é possível perceber que a organização das audiências por membras dos movimentos feministas e mesmo a presença e fala de militantes feministas, não é capaz de gerar ações legislativas.
Isso, no entanto, não significa irrelevância das audiências. Para além dos dados de pouca relação com as proposições legais, verificou-se que é por meio das Audiências públicas que três situações importantes ocupam o parlamento: a) temas “tabus” são levados à discussão; b) as deputadas são informadas sobre assuntos dos quais não possuem bagagem teórica e política e; c) especialistas, militantes e sociedade civil têm a oportunidade de cobrar diretamente de parlamentares mulheres, mais responsabilidade política com questões que perpassam suas semelhantes.
Assim, verificou-se que as Audiências Públicas são mais um espaço que reflete o movimento de tensão dos direitos das mulheres, que passa por uma vigilância permanente das vias burocráticas e institucionais, por onde eles são debatidos, construídos, retirados e também insivibilizados. Considera-se, pois, que também faz parte do processo de luta reconhecer que a política
institucional precisa ser conhecida e analisada pelos movimentos feministas. Nesse sentido, pesquisar direitos das mulheres através de um campo que não é receptivo às lutas de mulheres e feministas foi também uma maneira de construir um panorama, para se pensar nas brechas pelas quais as lutas das mulheres podem se infiltrar.
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9 São elementos importantes as limitações propositais e estruturais das Audiências Públicas, como o local de rea lização (tendo em vista que sempre ocorre na ALERJ e nunca numa área periférica), o horário (dentro do período “comercial”) e baixa divulgação da atividade.
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AUTORA :
Naiara Coelho
Mestra do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, bolsista CAPES.
E-mail: nc.naiaracoelho@gmail.com
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O DIREITO QUE SE PRODUZ EM COMUM: as “regras de convivência” nas experiências do projeto cantinas solidária da Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS
Flávia Almeida Pita Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Universidade Federal Fluminense (UFF) RESUMO
No projeto Cantinas Solidárias, da Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia, Brasil), grupos de trabalhadoras(es) vivenciam a experiência de produzir e comercializar alimentos em cantinas da Universidade, transformadas em espaços pedagógicos daquele programa de extensão e pesquisa. Pretende-se apresentar, neste texto, a experiência de acompanhamento do processo de normatização autogestionária do trabalho coletivo, que envolve a reflexão sobre as regras produzidas pelas(os) trabalhadores(as), a sua percepção como um fenômeno de caráter jurídico não estatal e sua importância para a construção do comum a partir do trabalho associado. Configurada a partir dos princípios da pesquisa participante, a proposta, muito embora não prescinda de reflexões teóricas sobre a caracterização de tal fenômeno normativo como jurídico, centra-se sobretudo na preocupação de identificar, a partir da práxis, as características e os sentidos que assumem, no trabalho coletivo autogestionário, as regras produzidas espontaneamente pela convivência, assim como o papel que podem representar nas desafiadoras lutas populares por formas contra-hegemônicas de reprodução da vida.
Palavras-chave: Direito. Trabalho Coletivo Autogestionário. Comum. Normatização.
THE RIGHT THAT IS PRODUCED IN COMMON: “co-habitation rules” in the experiences of the solidarity canteens project of the UEFS Popular and Solidarity Economy Initiative Incubator
ABSTRACT
In the “Solidarity Canteens”, a project of the Incubator of Popular and Solidarity Economy (Universidade Estadual de Feira de Santana, State of Bahia, Brazil), groups of workers experience the production and commercialization of food in canteens of the University, transformed into pedagogical spaces of that extension and research program. The aim of this paper is to present the experience of monitoring the self-management lawmaking process of collective work, that involves reflection on the rules produced by the workers, its perception as a non-state legal phenomenon and its importance for the construction of the common from the associated work. Based on the participant research principles, the proposal, although not without theoretical reflections on the characterization of such normative phenomenon as juridical, focuses mainly on the concern to identify, from the praxis, the characteristics and the senses that assume, in the self- managed collective work, the spontaneous rules produced by the coexistence, as well as the role they can play in the challenging popular struggles for counter-hegemonic forms of life re production.
Keywords: Law. Self-management Collective Work. Common. Lawmaking process.
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INTRODUÇÃO
Neste texto apresento reflexões a partir de experiências de pesquisa e extensão realizadas no âmbito da Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da Universidade Estadual da Feira de Santana – IEPS-UEFS. Integro o coletivo interdisciplinar deste programa de pesquisa e extensão desde 2010, cujas ações desenvolvem-se em torno da ideia de “um caminho de diálogo potencializador da resistência e de experiências voltadas à consolidação de um novo modo de produção e organização do trabalho e da sociedade”, enfatizando-se “a mobilização e fortalecimento das organizações sociais que trabalham de modo coletivo, cooperativo, associativo e autogestionário, considerando a economia popular e solidária1 enquanto movimento de economia política dos setores populares” (IEPS-UEFS 2011). Em seu âmbito desenrolam-se, de forma simultânea, diversos projetos que, sob a perspectiva da pesquisa participante (Brandão 1984), combinam pesquisa e extensão voltadas para a busca de resposta para os problemas e lutas das classes populares.
A partir desse mesmo espaço empírico, também desenvolvo, desde 2016, pesquisa de doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense, em que tenho tido a oportunidade de sistematizar e aprofundar um conjunto de ações que foram e vêm sendo desenvolvidas pela Incubadora em torno da organização jurídica de iniciativas de trabalho coletivo autogestionário. Sob o título provisório de “Direito e colonialidade do poder: um olhar a partir do problema da personificação jurídica de grupos de trabalho associado da economia popular e solidária no Brasil”, a pesquisa tem como objetivo principal “investigar a questão da personificação jurídica de grupos de economia popular e solidária, a partir da experiência dos grupos envolvidos nos Projetos Cantinas Solidárias, fazendo desta perspectiva uma janela para pensar o papel do direito de matriz europeia no bojo de relações de trabalho associado no nordeste brasileiro”.
O Projeto Cantinas Solidárias, iniciado em 2013, envolve a “incubação”2 de iniciativas populares, a que se oportuniza a produção e comercialização de alimentos em duas cantinas do
1 São diversos os embates teóricos em torno do escolhemos denominar economia popular e solidária (vide Lechat 2002, Gago 2018, Aguilar 2018). A complexidade da realidade que o conceito tenta abarcar explica a sua equivocidade. De todo modo, fala-se aqui, em linhas gerais, de arranjos econômicos cujos traços característicos centrais, não obstante sua heterogeneidade, são a organização de coletivos de trabalhadores(as) que têm como pretensão atuar de forma autogestionária, num movimento de diferenciação da lógica da exploração do trabalho pelo capital. Fazem parte do discurso envolvido nesta forma de trabalho princípios como solidariedade (em oposição ao individualismo e competitividade das práticas hegemônicas), gestão democrática, propriedade coletiva dos meios de produção.
2 Em sua “Carta de Princípios”, a IEPS define incubação como “processo político, prático-educativo de organização e acompanhamento sistêmico a grupos envolvidos no processo econômico popular e solidário”. Adotam-se “os fundamentos da economia popular e solidária possibilitando a integração solidária dos sujeitos, colocando como valor es principais o trabalho coletivo, o conhecimento e o atendimento às necessidades sociais da população” (IEPS- UEFS, 2011).
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campus central da UEFS, transformadas em espaços pedagógicos da Incubadora. O projeto encontra-se na sua quarta edição, tendo passado pelos espaços dois grupos urbanos da cidade de Feira de Santana (entre 2013 e 2016) e dois grupos rurais (um deles de uma comunidade quilombola), que iniciaram sua participação no projeto em 2016 e 2017 e lá prosseguem até o momento. Muito embora as vivências com os grupos tenham aberto perspectivas de pesquisa em várias áreas, no meu caso a preocupação central tem sido a observação do modo como se dá a sua organização jurídica, sob dois prismas diferentes: por um lado, a sua convivência com os limites, exigências e peculiaridades do ordenamento jurídico estatal, especialmente no que diz respeito à questão da personificação jurídica (ou, na expressão mais corrente, da sua “formalização”– isto é, a facejurídica mais evidente dos complexos conceitos de formalidade/informalidade3); por outro, o modo como o fenômeno jurídico acontece, à revelia do Estado, na auto-organização do trabalho e da convivência no comum que resulta deste tipo de experiência popular e coletiva.
É dessa segunda perspectiva que me aproximo neste texto, tratando da experiência de acompanhamento do processo de normatização autogestionária do trabalho coletivo, sub- projeto que envolve a reflexão sobre as regras produzidas pelas trabalhadoras4 (“Projeto Regras de Convivência”), a sua percepção como um fenômeno de caráter jurídico não estatal e sua importância para a construção do comum a partir do trabalho associado.
Muito embora devam ser tangenciadas algumas questões teóricas sobre a caracterização de tal fenômeno normativo como jurídico – considerando que toda uma longa tradição das ciências jurídicas vai no sentido contrário – , a preocupação central da pesquisa é, sobretudo, a de identificar, a partir da práxis, as características e os sentidos que assumem, no trabalho coletivo autogestionário, as regras produzidas espontaneamente pela convivência, assim como o papel que podem representar nas desafiadoras lutas populares por modos de existência5contra - hegemônicos.Com o projeto buscamos, afinal, contribuir para a construção de espaços em que está
3 O duplo formalidade/informalidade assume sentidos muito mais amplos do que a mera adequação do sujeito à “forma” – isto é, às regras legais de personificação e à regularidade perante a Administração Pública. Neste sentido, um grupo formalizado juridicamente pode ser, por sua atividade e demais características, considerado como parte do “setor informal” da economia. Trata-se de categorias marcadas por intenso debate teórico, iniciado na década de 1970, com pesquisas patrocinadas pela Organização Internacional do Trabalho, sobretudo em África (Hart 1973), e se complexifica ao longo das décadas seguintes, nos embates acerca das peculiaridades do mundo do trabalho dos países do “terceiro mundo”, sobretudo África e América Latina. Neste contexto também se inserem as discussões em torno da economia popular e solidária (ou simplesmente economia solidária, expressão adotada no Brasil pelas políticas públicas dos governos petistas entre 2003 e 2016). Nos últimos anos, as investidas neoliberais – ao sul e ao norte do equador –, com uma intensa precarização da classe trabalhadora, tem alterado os termos da discussão, passando-se a falar então de um a “nova informalidade”, que não mais escolhe suas vítimas entre os países mais pobres. Historiando o debate e sua evolução, consulte-se Machado da Silva 2002, Peres 2017, Gago 2018.
4 Utilizarei o feminino pela predominância quase absoluta das mulheres nos grupos, como adiante será esclarecido.
5 A contraposição entre “modos de existência” e “modos de produção” é feita por Mina Navarro (2013), a partir do desenvolvimento do pensamento de Massimo de Angelis.
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em jogo não só a reprodução da vida por meio do trabalho concreto, não alienado6, mas a produção de estratégias políticas para a participação autônoma do decidir coletivo, o respeito à opinião do outro, o aprendizado para o diálogo, a convivência sem hierarquias.
A exposição é dividia em duas partes. Na primeira, apresento a experiência: os grupos, o projeto “regras de convivência”, o que fazemos juntos(as) e como fazemos. Na segunda, reflito sobre a experiência sob o prisma mais diretamente jurídico. Embora aqui – considerando o predomínio da compreensão do Direito como produção do Estado – tenha de início de sustentar teoricamente porque entendo as “regras de convivência” como Direito, a intenção principal é iniciar alguma sistematização das observações acerca de como as normas construídas no exercício de autogestão dos grupos funcionam na dinâmica de luta das trabalhadoras, nos desafios da convivência e do exercício coletivo do poder – como elas podem contribuir, afinal, para produção do comum – categoria que igualmente é mobilizada no texto.
1. AS TRABALHADORAS E SUAS REGRAS DE CONVIVÊNCIA
O primeiro projeto Cantina Solidária, iniciado em 2013, contou com a participação da Copermasol, grupo urbano majoritariamente feminino7. A oportunidade de ocupar o espaço de alimentação da Universidade fez o grupo crescer numericamente, reunindo pessoas que, embora se conhecessem (pela vizinhança na Queimadinha, bairro popular de Feira de Santana), nunca haviam trabalhado juntas. O processo gerou, como é de se imaginar, conflitos constantes e, por consequência, uma demanda do grupo pela “ajuda” da Incubadora na sua solução.
A minha atuação, enquanto integrante da área jurídica, foi direcionada pelo próprio grupo, então, para pensar estratégias que tornassem possível um convivência menos turbulenta: antecipando as principais zonas de conflito (em especial, divisão do trabalho e dos ganhos, ent rada e saída de novas integrantes, dinâmicas de exercício do poder interno), pensando mecanismos de
6 Ou do fazer, como propõe John Holloway (2013), a partir da ideia da “dupla natureza do trabalho”, desenvolvida por Marx para desvendar o processo de abstração do fazer em trabalho sob o capitalismo. “O fazer concreto, então, não é totalmente subordinado ao trabalho abstrato [...]. Certamente ele existe no trabalho abstrato: o trabalho abstrato é a forma na qual o fazer concreto existe na sociedade capitalista. O fazer que está envolvido em qualquer tipo de produção é sujeitado, direta ou indiretamente, aos requisitos da produção para o mercado, os requisitos da produção de valor [...]. Mas o fazer existe também em revolta contra o trabalho abstrato: em toda recusa da autoridade alienada, em toda tentativa de ganhar controle sobre o processo de trabalho ou de desenvolver atividades significativas fora da jornada de trabalho ou como um emprego alternativo, ocasionalmente também como explosões de recursa (carnavais, motins, rebeliões)” (Holloway 2013: 168- 169)
7 O grupo, na verdade, começou sua relação com a IEPS em 2008, tendo sido a primeira experiência da incubação do Programa. No seu início contava com cerca de 20 pessoas, dedicando-se à produção de alimentos. A falta de um local para trabalhar, equipamentos, recursos fez o grupo minguar, até quando, em 2013, iniciou-se o Projeto Cantinas Solidárias, com a oportunidade de ocuparem a cantina do módulo VII da UEFS. No período que se inicia em 2013 (de que cuido neste texto), o grupo também variou numericamente, mas contou apenas com uma (efêmera) presença masculina.
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mediação destes conflitos8, propondo uma “visualização” mais sistemática das regras que elas iam criando à medida que conviviam. Foi esta a origem do que acabamos chamando, meio de improviso, de “regras de convivência”.
O trabalho, assim, respondia à metodologia que guia os trabalhos da IEPS – a que temos preferido denominar de pesquisa participante9 –, no sentido do compartilhar coletivo do processo de produção do conhecimento pelos(as) integrantes “acadêmicos(as)” do projeto e pelas trabalhadoras que factualmente protagonizam a realidade. É um processo certamente difícil e não é rara a sensação de insegurança da equipe – “a gente não sabe o que está fazendo”, leio nos meus registros daquele tempo em uma das reuniões semanais da IEPS. A pesquisa participante caracteriza-se por um movimento contínuo e pendular do pesquisador em relação à realidade: dela se aproxima e se afasta continuamente, num processo que é comparado por René Barbier (2007) a uma espiral, onde se sucedem planejamento, ação e reflexão. Nas palavras de Fals Borda (2009: 263), “uma sequência de ritmos no tempo e no espaço que incluem aproximar-se e distanciar-se das bases, ação e reflexão”.
No calor dos acontecimentos e demandas, no entanto, o tempo da reflexão tarda mais do que se gostaria e, na verdade, é em si um processo lento e descontínuo. Só agora, após várias experimentações da produção de “regras de convivência”, talvez estejamos nos aproximando de uma maior clareza do processo, de seus ganhos e perdas, do papel que ele tem para as trabalhadoras e que nele assume a IEPS- UEFS.
Basicamente, o processo consistia em reuniões presenciais, com a presença de professores(as), estudantes e das trabalhadoras, em que se discutiam temas previamente sistematizados, a partir da observação do trabalho na Cantina, das demandas do grupo (“a gente está tendo dificuldade em dividir os turnos” ou “a gente precisa de ajuda para fazer as contas na hora de dividir o dinheiro”), pelas rodas de conversa realizadas em outras frentes do processo de incubação (a exemplo do acompanhamento econômico-contábil ou das boas práticas na produção de alimentos).
8 O que deu origem a outro subprojeto – “Mediação de conflitos no trabalho autogestionário” – , que contou com a participação de duas estudantes do Curso de Graduação da UEFS, como bolsistas de iniciação científica. Sobre ele ver, Santos 2014, Silva 2016.
9 Sem desconhecer a profusão de diferentes linhas dentro deste universo (pesquisa-ação, pesquisa militante, pesquisa luta, pesquisa-ação participativa), temos amparado nossa atuação de forma preponderante na linha teórica latino - americana, construída sobretudo nas décadas de 1960 e 1980 no contexto de movimentos sociais emergentes que estavam inseridos em comunidades populares e de propostas de transformação social e política. A preferência explica - se, primeiro, pela intenção deliberada de privilegiar a tradição latino-americana, e, sobretudo, brasileira – em que se destaca o pensamento de Paulo Freire – e pela centralidade que a educação popular ocupa nos trabalhos de incubação. A metodologia participativa, sob esse prisma, é um instrumento científico que possui dimensão tanto política quanto pedagógica, sendo mais ampla do que a própria pesquisa e preocupando-se com uma continuidade do trabalho, ou seja, com uma transformação positiva da realidade social da comunidade participante do estudo. A transformação social seria o resultado de uma equação que soma a investigação, a educação e a ação social (Brandão 2007).
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Porque no caso da Copermasol, desde o início, houve uma demanda também sempre presente pela “formalização” (nascida da constatação pelas trabalhadoras da falta que fazia o “CNPJ”10 para vários fins – abertura de uma conta bancária, compras mais baratas no atacado, perda de oportunidades de venda em razão da impossibilidade de emissão de notas fiscais etc.), optamos por estabelecer uma ordem nos temas que tinha uma certa homologia com as partes constituinte de um suposto “estatuto” futuro (embora não se tivesse por objetivo naquele momento a “formalização” do grupo como uma pessoa jurídica, ação que nos parecia prematura11). As discussões, no entanto, não eram pautadas por “o quê a Lei dizia” sobre o tema, nem por uma “forma de agir” determinada pela Incubadora. A proposta era captar a forma como elas já vinham agindo a respeito de cada tema, ou como pretendiam agir dentro de um campo que se configurava novo e como iam ajustando os diversos interesses individuais a partir da convivência.
Trazia-se à tona um processo que acontecia de maneira implícita, sem que as trabalhad oras de fato pensassem sistematicamente sobre ele. A prática de discussão coletiva, em si, era algo muito difícil para elas12, em sua maior parte sem uma história prévia de participação em espaços coletivos de decisão, prevalecendo experiências de trabalho subordinado ou do trabalho doméstico de cuidados da casa e dos filhos. A proposta era, então, estimular as trabalhadoras a falar sobre como agiam em grupo ao trabalhar juntas. Professores(as) e estudantes participavam das reuniões, questionando sobre diferentes aspectos, contribuindo com propostas de organização, relatando sobre outras experiências de trabalho coletivo. A equipe da IEPS também responsabilizava-se por transformar as regras orais em um texto escrito, que afinal tomou o mesmo nome criado durante o processo: “Regras de Convivência da Copermasol”13. Transcrevo abaixo algumas regras que o compõem, retiradas aleatoriamente do documento (dividido em três partes: “a divisão do trabalho”; “a divisão dos ganhos”; “a resolução de conflitos”):
Todos devem aprender a realizar todas as tarefas da cantina, e estar disponíveis para realizá-las. O trabalho será dividido por turnos de 6 horas, cujos horários de início e fim
10 Muito embora, segundo a Lei Civil brasileira, a pessoa jurídica “exista” para o Direito já a partir de sua “inscrição do ato constitutivo no respectivo registro”, o processo de formalização somente se completa, verdadeiramente, com um novo processo de “inscrição”, desta feita perante o chamado Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas, banco de dados administrado pela Receita Federal que compreende as informações cadastrais das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Enquanto o grupo não detém o seu “CNPJ”, mesmo já personificado como uma cooperativa, uma associação ou outro qualquer tipo de pessoa jurídica, o processo de formalização não atinge, de fato, o seu objetivo: isto é, tornar possível ao grupo, sob os olhos do Estado, produzir rendimentos para seus componentes atendendo as exigências estatais, especialmente as tributárias.
11 Discuto a questão da formalização jurídica de grupos de trabalho associado no Brasil em Pita 2017 (texto em espanhol) e 2018 (texto em português).
12 A partir desta constatação realizamos uma “oficina” sobre “como fazer uma reunião” – discutindo-se como escolher os temas que seriam discutidos, como organizar as falas, como decidir, como registrar as decisões, como guardar os registros.
13 No caso da Copermasol, este documento escrito serviu de base para um contrato social, organizado nos moldes da Lei Civil brasileira, que deu origem a uma pessoa jurídica, estruturada sob a forma de “sociedade simples”. Tratamos desta experiência em Oliveira, Pita 2017.
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serão determinados de acordo com a demanda de trabalho na cantina. Todos deverão zelar pelo cumprimento dos horários, justificando com antecedência uma eventual falta ou atraso, de modo que o grupo possa se organizar a tempo de substituir a pessoa ausente e não prejudicar o andamento dos trabalhos. As compras serão atribuição de uma equipe, f ormada por um membro de cada turno. O grupo deve priorizar a solução dos problemas através do diálogo e do acordo.
Em 2014, muito em razão da bem sucedida experiência com a Copermasol14, a Administração Universitária concedeu à IEPS, para os mesmos fins, o espaço de uma outra cantina no campus (são quatro no total). Após processo seletivo simplificado, realizado durante o segundo semestre de 2014, inicia-se em 2015 o Projeto Cantina Solidária II com o grupo Sabores, também preponderantemente feminino e urbano. Esse segundo Projeto, com duração originariamente prevista para dois anos, foi prematuramente extinto no final de 2016. As observações feitas pela equipe da IEPS apontavam para o mascaramento de relações de trabalho subordinado, em torno da “líder” do grupo (constatou-se, ao longo do processo, que o grupo reproduziu, na cantina da UEFS, relações de trabalho subordinado que já aconteciam anteriormente entre as mesmas pessoas). Havia, também, muita resistência à participação nas atividades propostas pela Incubadora e o grupo não demonstrou interesse em repetir a experiência das “regras de convivência” – as regras pareciam pré - estabelecidas, e fora de discussão; as reuniões aconteciam preenchidas de silêncio da maior parte do grupo, em contraste com a participação da sua “líder”. Apesar da frustração inicial da equipe da IEPS com o processo, a experiência revelou-se bastante rica para refletir sobre as contradições e obstáculos que enfrenta a construção de um espaço de trabalho autogestionário e sobre a noss a metodologia de atuação.
O Projeto iniciou sua terceira versão ainda em 2016, desta feita com um grupo rural, o Sabores do Quilombo, também preponderantemente feminino, proveniente de uma comunidade quilombola do município de Feira de Santana (Lagoa Grande). O Sabores do Quilombo tem proporcionado uma nova e rica experiência coletiva de construção de “regras de convivência”. Também aqui a demanda do grupo, no sentido da “ajuda” da Incubadora para enfrentar as dificuldades da convivência apareceu cedo (e permanece presente até o momento) e nos fez constatar o caráter “artesanal” do processo: embora em linhas gerais tenha se mantido a metodologia de reuniões periódicas e a proposta de temas de discussão, o novo grupo exigiu da IEPS diferentes reflexões e abordagens. Se a perspectiva inicial – contribuir com o processo de criação das regras que o coletivo de trabalho produzia no processo de sua instituição – já havia se alargado pela realidade, que exigira reflexões sobre a condição feminina, a família, o traba lho
14A equipe da IEPS chegou a realizar, em 2014, pesquisa com os usuários da cantina, como parte integrante do relatório final apresentado à Universidade. Os dados levantados (por meio da aplicação de 80 questionários) indicavam a aprovação do grupo pela comunidade universitária em aspectos como a qualidade do alimento produzido e atendimento, e mesmo a preferência em relação às demais cantinas da universidade.
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informal, os obstáculos do meio urbano, as barreiras à comunicação oral e escrita para as classes populares, o novo projeto colocava (ainda mais) luzes sobre a questão racial (e, junto a ela, sobre os modos de viver quilombola e rural).
Destaco duas características divergentes deste projeto em relação aos anteriores. A primeira diz respeito à ausência, até o momento, da elaboração de um documento escrito que sistematize as regras discutidas. A conveniência da tradução das regras para a linguagem escrita é uma questão aberta para nós, a exigir reflexão. A segunda característica é o elastecimento temporal do processo, que iniciou em 2016 e permanece sendo uma demanda das trabalhadoras. Em reunião, realizada no final de 2018, com o objetivo de avaliar o ano de trabalho e recolher elementos para o planejamento da próxima etapa, as trabalhadoras, ainda às voltas com dificuldades de relacionamento e desconfianças mútuas, elegeram “as regras de convivência” entre os temas que desejavam fosse objeto das atividades com a Incubadora. As regras que conformam um coletivo baseado na autogestão podem realmente ser tidas como “prontas” em um dado momento? A sua reificação como “algo” acabado é possível? É desejável? Quais são seus efeitos sobre o grupo? Ou o que representaria, por outro lado, pensar a produção das regras coletivas como um processo contínuo, que exige sempre rediscussão, renovação? Tratarei destas questões na última parte do texto.
Finalmente, em 2017, inicia-se o Projeto Cantina Solidária IV, selecionando-se um grupo rural da comunidade de Olhos D’Água da Formiga, zona rural de Feira de Santana, para ocupar o espaço da cantina VII. O Delícias da Formiga parte de uma experiência de trabalho coletivo em uma associação juridicamente formalizada (embora o grupo produtivo da cantina não seja, em si, uma associação, mas um grupo informal). A Associação Comunitária de Olhos D’Água da Formiga contava com um grupo produtivo de mulheres, envolvido na produção de alimentos (especialmente sequilhos) para comercialização no Programa Nacional de Alimentação Escolar-PNAE15 .
Nos primeiros meses do processo de Incubação definiu-se o grupo de mulheres interessadas em participar da experiência com a IEPS e iniciaram-se uma série de atividades que envolveram a aproximação com os princípios do trabalho autogestionário e da economia popular e solidária. O que se viu, no entanto, depois de algum tempo, foi uma crescente animosidade entre as trabalhadoras e a presidente da Associação, que também integrava o grupo da cantina. Uma das estratégias utilizadas pela IEPS para contornar os problemas foi, justamente, o anúncio do início do processo de construção das regras de convivência.
15 A Lei Federal n. 11.947, de 16.06.2009, determina que 30% do valor repassado pelo governo federal pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE seja destinado à compra direta de produtos da agricultura familiar.
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Figura 1: Slide utilizado em roda de conversa, ocorrida em 31.01.2018, para planejamento do projeto “regras de convivência” com o grupo Delícias da Formiga
Fonte: Equipe da IEPS-UEFS (arquivos da IEPS- UEFS)

Se, por um lado, a líder do grupo anunciava que “se eu sair o grupo acaba, elas não têm condição de continuar sem mim”, a pauta de questões como a transparência e participação nas decisões sobre a movimentação e divisão do dinheiro do grupo, ou sobre como se dava a divisão do trabalho entre as trabalhadoras (a líder exercia um papel de chefia, sem se envolver, por exemplo, com os trabalhos de preparação dos alimentos) parece ter contribuído para o enfrentamento das demais componentes à autoridade construída por ela ao longo do tempo. Esta primeira fase do processo acabou por resultar na saída da presidente do grupo da cantina, que foi seguida por outras duas pessoas. As demais resolveram prosseguir no projeto, convidando outras mulheres da Associação. As trabalhadoras desde então permanecem desenvolvendo juntas um trabalho muito elogiado na Universidade. Uma delas recentemente nos indicou a vontade de concorrer à presidência da Associação, no pleito que ocorrerá em meados de 2019.
Por fim, menciono brevemente o projeto “Feira de Saberes e Sabores”, por meio do qual a IEPS-UEFS vem realizando uma feira de economia popular e solidária no campus da UEFS. A Feira corresponde igualmente a um coletivo autogestionário formado pelos(as) feirantes, entre os(as) quais estão as trabalhadoras do Sabores do Quilombo e do Delícias da Formiga, além de agricultores(as) das respectivas comunidades – com o que se estabelece um elo com o Projeto Cantinas. Também a Feira tem suas “regras de convivência”, construídas a partir da mesma metodologia. Neste caso, considerando a rotatividade dos(as) componentes, e da possibilidade aberta à inscrição e admissão de novos(as) integrantes, a elaboração de um documento escrito – e publicizável – foi um objetivo inicial, já que era importante para o projeto dar transparência ao
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processo. Neste caso, as regras podem ser consultadas em sua íntegra na página da IEPS-UEFS na internet16 .
2. AS REGRAS DE CONVIVÊNCIA COMO DIREITO DO COMUM
Num primeiro momento, pensar as “regras de convivência” como Direito demanda um posicionamento sobre a discussão teórica acerca do próprio conceito de Direito. Ela se conecta, por sua vez, com a forma como a teoria crítica17 se aproxima desta questão: por um lado, o vaticínio do “fim do Direito” como produto do fim do capitalismo, por outro, o multifacetado tema do pluralismo jurídico. Alerto que, embora esta questão seja tratada em primeiro lugar nesta exposição, isto se dá em função da lógica do raciocínio desenvolvido: a práxis não a exigiu como prioridade e dela cuidarei de maneira breve.
Em segundo lugar – sendo este o prisma que se tem por central no projeto – a preocupação de pensar o processo de construção de regras a partir de sua práxis mesma (para o que é irrelevante saber se elas recebem, ou não, o selo de “jurídicas”), identificando suas características e sua importância para o trabalho coletivo autogestionário, para a construção do comum. Para pensar como este processo pode ser mais ou menos proveitoso para o grupo, e como pode ser mais ou menos útil a nossa participação, enquanto acadêmicos(as) (do Direito, inclusive), na organização comunitária de formas de trabalhar que visam a superar o capitalismo.
2.1. As regras de convivência são direito?
A história do processo de predomínio do capitalismo e do trabalho abstrato é marcada pela crescente autonomização das esferas da economia, da política, do Estado e de seu Direito em relação a outras dimensões do social (Holloway 2013: 107-157). A palavra Direito passa paulatinamente a denominar, em uma construção simbólica que se inicia já no século XV, uma dimensão do social que se vincula ao Estado e se distingue de outros conjuntos normativos (como a moral, a religião, as normas técnicas das profissões) por algumas características centrais: i) o Direito é um só (monismo jurídico), formando um todo racional e sistemático desenvolvido a partir da ideia do direito de propriedade, que adquire sua “positividade” pelas mãos do Estado (fonte única de sua produção e aplicação); ii) ele deixa de ser algo produzido pelas relações humanas em diferentes agrupamentos (e marcado por isso pela multiplicidade – direito romano, canônico, comum, feudal, dos comerciantes, da comunidade) – para assumir o caráter de um “produto” da
16 Acessível em https://incubadorauefs.blogspot.com/p/a-feira-de-saberes-e- sabores.html
17 Entendida aqui como o campo teórico do marxismo, no sentido consagrado por Horkheimer (1983).
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razão, universal e sem história; c) a estatalidade e o monismo do Direito tornam fundamental a distinção do Direito de outros conjuntos normativos (em especial, a moral), para o que de regra são mobilizadas as características da heteronomia (o Direito se impõe sempre por força de uma terceira vontade – o Estado –, de fora para dentro, sobre as relações afetadas por suas regras), da bilateralidade (presença necessária da dualidade credor/devedor) e, por fim, da sanção “organizada”, ou “institucionalizada” (por meio da qual se relembra, mais uma vez, o papel do Estado como sancionador privilegiado)18 .
“Vossas próprias ideias são produtos das relações de produção e de propriedade burguesas, assim como o vosso direito não passa da vontade de vossa classe erigida em lei, cujo conteúdo é determinado pelas condições materiais de vossa existência como classe” – seria “àquele” Direito, delineado pelo capitalismo, que se referiam Marx e Engels no Manifesto19? (2007: 55). Ou, como anunciava o jurista soviético Pachukanis, “a extinção das categorias do direito burguês [...] significará a extinção do direito em geral, ou seja, o desaparecimento gradual do momento jurídico nas relações humanas”? (2017 p. 78). Na tradição dos estudos marxistas do Direito são conhecidas as discussões em torno da relação supostamente necessária entre a “forma jurídica” e o modo de produção capitalista. A superação do capitalismo implicaria o fim o direito? Reproduzindo as desavenças do debate soviético entre Stucka e Pachukanis20, a discussão estende-se ao Direito crítico contemporâneo e à produção brasileira21 .
Embora não tenha como aqui enveredar por essa longa e conflituosa discussão, parto da compreensão de que a convivência nos grupos de trabalho autogestionário submete-se a uma lógica própria, que envolve uma regulação jurídica muito peculiar. Isto porque tal ordem normativa, mesmo que estranha ao Estado e carente de um órgão sancionador, compartilha com o que conhecemos por “Direito” o fato de representar, para aquelas trabalhadoras, a “liga” que faz do
18 Roberto Lyra Filho (1982) (1986) e Luiz Fernando Coelho (1987) desenvolvem mais a fundo estas ideias, demonstrando também o quanto estas características são insuficientes para distinguir as normas jurídicas das demais.
19 Roberto Lyra Filho faz uma síntese dos obstáculos que tornam a tarefa de falar sobre Marx e o Direito um “vespeiro ameaçador e fervente” (1983: 10). Chama de “lógico”(1983: 13) o que derivaria da inconclusa sistematização do método dialético pelo próprio Marx. Salienta também a ausência mesma de um tratamento teórico específico por Marx sobre o Direito (1983: 22). Lyra Filho também retoma o problema cronológico, apontando (e criticando) a conhecida periodicização do “jovem” e o “velho” Marx, a dificultar a leitura processual e integral do pensador alemão (1983: 29) e menciona um obstáculo “psicológico” (1983: 40), onde salienta a desilusão e rompimento de Marx com sua carreira jurídica como elemento que deve ser aquilatado na interpretação de seus posicionamentos sobre o Direito.
20 Lembro aqui a ótima retrospectiva que dele faz Ricardo Prestes Pazello (2014, pp. 262- 322).
21 Destaco nela os seguintes nomes: de Roberto Lyra Filho e seu “Direito achado na Rua” (cuja tradição é levada adiante especialmente pela produção que vem da Universidade de Brasília-UnB, com José Geraldo da Sousa Júnior); Luis Alberto Warat, cuja singularidade de pensamento me faz preferir não vinculá-lo a um grupo específico; o movimento do Direito Alternativo (de Rui Portanova, Amilton Bueno de Carvalho e Edmundo Lima Arruda Júnior, entre outros); o Pluralismo Jurídico de Antônio Carlos Wolkmer e do português Boaventura de Souza Santos ( incluído entre os brasileiros em razão da conhecida e influente pesquisa realizada em uma favela carioca); o movimento do Direito Insurgente, gestado a partir da produção do Instituto Apoio Jurídico Popular – AJUP, no Rio de Janeiro, pela tradição da assessoria jurídica popular de Miguel Pressburger, Miguel Baldez e Jacques Alfonsin; e, por fim, a produção da escola paulista formada em torno, especialmente, de Alysson Mascaro e Márcio Bilharinho Naves.
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grupo um espaço comum de produção, decisão e execução de ideias e ações coletivas, instância de formulação de sua autonomia identitária e política. A intenção não é, porém, capturar o Direito em um conceito sem lugar e tempo, mas exercitar uma ontologia histórico-dependente, em que se enrijece os elementos da realidade apenas o suficiente para garantir a reflexão transformadora – neste caso, para fundamentar a conclusão de que, tanto quanto a Lei produzida pelo Estado, são Direito as regras produzidas pelas trabalhadoras em seu convívio22 .
Em sua tentativa de definição do Direito, Michel Miaille entende-o como um “sistema de comunicação formulado em termos de normas para permitir a realização de um sistema determinado de produção e de trocas econômicas e sociais” (Miaille 2005: p. 96). Gosto da definição de Miaille em especial pelo recurso à ideia de um “sistema de comunicação”. Isto, em primeiro lugar, afasta o senso comum de valorizar a norma, ou mais especificamente, a Lei, para a caracterização do Direito. Neste sistema integram-se tanto valores (isto é, indicativos normativos de como deve ser o comportamento humano) quanto instituições e processos, práticas, modos de agir e de se relacionar que assume a agência humana em comunicação. Em segundo lugar, gosto dela por lembrar que o Direito é, sobretudo, comunicação: “não é sólido, nem líquido, nem gasoso”, como costumava dizer o jurista baiano José Joaquim Calmon de Passos:
Onde situar o Direito, objeto de nosso interesse no momento? [...]
Situa-se, pois, no universo do discurso e da ação, somente existindo enquanto discurso e comunicação, linguagem, processo, fazer operar. Ontologicamente (diria melhor, onticamente) portanto, nada é jurídico ou antijurídico, lícito ou ilícito na conduta humana. O jurídico é sentido e significação, que os homens emprestam a determinados atos seus, para ter atendida certa imprescindível e específica necessidade de convivência social. (PASSOS, 1999, p. 22).
A definição de Miaille e o pensamento de Calmon de Passos abrem-se para a possibilidade de um outro Direito. Ora, se compreendo o Direito como um “sistema de comunicação” que ampara um determinado “sistema de produção e de trocas econômicas e sociais”, outros sistemas de produção de trocas econômicas e sociais gestaram e gestarão “outros Direitos”. Copermasol, Sabores do Quilombo e Delícias da Formiga, em suas diferentes maneiras de negar o absoluto do capital, distinguindo-se do modo capitalista de trabalhar (mesmo considerando as limitações impostas pelo entorno hegemônico do valor23) produzem microssistemas de produção da existência que exigem um sistema normativo peculiar de comunicação.
22 Talvez uma tarefa importante da crítica acadêmica seja a nomeação deste outro Direito, um batismo que fuja ao simples acréscimo de adjetivos (Direito “alternativo”, Direito “achado na rua”, Direito “insurgente”). Resgatar um signo do vocabulário dos espaços em que este outro Direito sempre se produziu e fazê-lo eloquente além dele. Ainda não o encontramos, mas este parece ser um bom exemplo do papel que pode assumir a academia nas lutas populares.
23 Parecem oportunas aqui as categorias marxianas da subsunção formal e material do trabalho (Marx 1978), na for ma como retomadas por Lucia Insalata (2011). Estamos diante de espaços em que a subsunção do trabalho à lógica do capital é tão somente formal – “porque se trata de realidades sociales que, a pesar de ser subordinadas y, de alguna u otra forma, condicionadas por la lógica reproductiva del capital, logran preservar un margen de autonomía más o
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Atribuir o signo do jurídico ao sistema normativo dos grupos de trabalho autogestionário assume, ainda, uma intencionalidade política específica. Na mesma medida que o monismo jurídico estatal possui simbolicamente um sentido estratégico de dominação, a sua negação reveste-se de insubordinação. Reconhecer a possibilidade da simultaneidade de outros Direitos é dar afirmatividade à luta contra a redução da sociedade à sociedade burguesa. É só a esta, afinal, que o Direito estatal acolhe – se o Direito das constituições e leis assume aparentemente como valores um discurso de “igualdade” e “justiça”, isto é negado em suas instituições e processos, já que a linguagem dos textos legais e das audiências, os espaços físicos, os custos, a cor da pele, o predomínio da linguagem escrita, a lógica binário do perder/ganhar, tudo fecha as portas do Direito estatal para a porção que vive no espaço da negação do mundo capitalista (não ocidental, não - branca, não-masculina, não- urbana...).
2.2. As Regras de convivência como Direito do Comum
O “comum” é uma categoria que vem sendo tecida já há algumas décadas e parece assumir aquele mesmo caráter afirmativo: nomeia-se, afirma-se uma práxis que se posiciona em enfrentamento ao modo predominante de viver, trabalhar, se relacionar, lutar, gestionar o poder no mundo capitalista. Ela vem sendo utilizada por nós na IEPS-UEFS para compreender e falar do trabalho coletivo autogestionário e para adjetivar este outro Direito que é produzido pelas trabalhadoras.
A disseminação acadêmica da categoria do comum tem uma história relativamente recente e vertentes diversas. Muito embora o sentido de um espaço político de negação da apropriação privada de bens e de comunhão horizontal de exercício do poder encontre raízes em doutrinas religiosas no ocidente e oriente, no modo de vida de populações originárias das Américas e da África, nos soviets russos, no pensamento comunista e anarquista24, a disseminação do uso acadêmico e político da palavra (no plural ou no singular) é contemporânea dos movimentos
menos amplio en los procesos de significación, articulación y organización de la vida que se desarrollan en ellas (2011: 37-8). É certo, no entanto, que mesmo aí não se está absolutamente afirmando a “desaparición de la explotación y del despojo capitalista o de la ausencia de formas de control político y disciplinario sobre la realidad en cuestión ” (2011: 39). Tais brechas na subsunção real do trabalho, mesmo que ambivalentes, expõem as debilidades do capitalismo, e iluminam espaços de resistência, de luta, de superação.
24 Os franceses Pierre Dardot e Christian Laval (2017) remontam a diferentes modelos de comunismo, como a concepção que “se prendeu ao valor supremo da comunidade” – a concepção de “comunidade de vida” presente n’A República de Platão, ou a tradição judaico-cristã da “comunidade de bens”, elemento igualmente presente nos movimentos heréticos (taboristas, hussitas, valdenses, cátaros, bogomilos diggers) que representaram uma longa tradição de lutas durante o feudalismo e nos momentos iniciais do capitalismo. Em seguida, retomam a tradição do socialismo europeu – o “comunismo da associação dos produtores” que passa tanto pelo socialismo “utópico” (Saint - Simon, Fourier, Proudhon, Owen etc.) quanto pelo concepção marxista de comunismo.
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altermundistas do final do século XX, que disseminaram a metáfora do “cercamento dos comuns” 25
para apontar a permanência dos movimentos expropriatórios (dos recursos naturais, dos serviços públicos, das garantias coletivas conquistadas nos Estados de bem-estar social, dos corpos e desejos dos(as) trabalhadores(as), mulheres26, não-brancos(as) que desvelam a acumulação dita “primitiva” como uma presença necessária e constante para a permanência do capitalismo.
Pierre Dardot e Christian Laval, identificando o comum como “o princípio das lutas atu ais contra o capitalismo” (2017: 24) e propondo-se a fazer sua arqueologia, citam os trabalhados de economia política institucional de Elinor Ostrom e demais pesquisadores estadunidenses, a partir do debate iniciado com “The Tragedy of the Commons” de Garrett Hardin (1968). Laval e Dardot atribuem a Ostrom um lugar de destaque no surgimento do “paradigma dos comuns”, na medida em que, voltando-se seus olhos para o modo como as experiências reais de comum são instituídas enquanto modo específico de gestão de atividades e coisas, “ela realiza um deslocamento decisivo, situando a questão do comum no campo da ação coletiva e de suas condições políticas” (2017: 197 - 198). Os franceses dedicam-se sobretudo, no entanto, ao pensamento Michael Hardt e Antonio Negri, a quem tributam “a introdução da categoria ‘comum’ (no singular) no pensamento político crítico e sua difusão entre o público militante” (2017: 199). Em sua conhecida trilogia (Multidão, Império e Commonwealth27), Hardt e Negri acreditam que “a produção capitalista contemporânea, ao atender a suas próprias necessidades, possibilita e cria as bases de uma ordem social e econômica alicerçada no comum (2016: 10). Os próprios Dardot e Laval, finalmente, partem dos filósofos italianos (valendo-se também de variada gama de referências teóricas, que vão dos diálogos entre Proudhon e Marx aos vieses institucionalistas de Mauss, Cornelius Castoriadis e Sartre, em sua Crítica à Razão Dialética) para propor a categoria de práxis instituinte e uma série de proposições políticas cujo âmago é a proposta de uma “política do comum” – do qual resulta, igualmente, um “direito do comum”: “a práxis instituinte produz seu próprio sujeito na continuidade de um exercício que deve se renovar para além do ato criador, [...] ela é autoprodução de um sujeito coletivo na e pela coprodução continuada de regras de direito” (2017: 472).
A proposta de uma práxis instituinte do comum é significativa para pensar a experiência das “regras de convivência” do trabalho autogestionário. No entanto, apesar da consistente empreitada teórica e da ousadia do formato propositivo, Dardot e Laval parecem pecar pela “hybris do ponto zero” de que fala Santiago Castro-Gómez (2005)28: não entendemos possível traçar uma
25 No sentido explorado por Marx no famoso capítulo 24 do volume I d’O Capital, em que reconstrói historicamente a “Assim chamada acumulação primitiva” (2017 : 785- 833).
26 Como o demonstra Silvia Federici 2017.
27 Na edição brasileira traduzido como “Bem Estar Comum” (2016)
28“[…] una de las consecuencias de la hybris del punto cero es la invisibilización del lugar particular de enunciación para convertirlo en un lugar sin lugar, en un universal. Esta tendencia a convertir una historia local en diseño global,
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história fidedigna do comum sem um descentramento do olhar da Europa em direção ao sul global. À exceção de rápidas menções à Guerra da Água cochabambina ou às experiências das fábricas recuperadas argentinas, os franceses não chegam a explorar as ricas lutas e reflexões produzidas fora da Europa. O predomínio da abstração em detrimento da reflexão a partir das lutas e experiências concretas desde abajo dá-lhes um tom etéreo e estrutural, minando, a nosso ver, o pretendido potencial político de suas ideias. Os Autores não chegam, por exemplo, a tratar – mesmo que abstratamente – das contradições enfrentadas pela práxis instituinte do comum diante da carência de condições materiais para a autonomia – questão das mais essenciais para a realidade das lutas de maior parte dos(as) trabalhadores, em especial ao sul do Equador. Tais lacunas
[…] aleja la discusión política de su carácter concreto para reinstalarla en los nebulosos terrenos de la coherencia abstracta. En este sentido, desde una política desde la autonomía no se trata de prescribir aquello que «debe» hacerse en general, sino de reflexionar en profundidad sobre las dificultades eminentemente prácticas del camino a recorrer para construirlo que en común se proyecta y de encontrar cada vez, procurando no perderse, maneras de sortear obstáculos” (Gutiérrez 2017: 63).
Para a realidade que vivenciamos em nossas pesquisas é muito eloquente a versão que o comum assume no pensamento coletivo do Entramados Comunitarios29, seminário permanente do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Autônoma de Puebla (México): um horizonte comunitário-popular reconhecível nas lutas latino-americanas que se opõem à expropriação capitalista da forma popular (e sobretudo feminina) de reprodução da existência. Lucia Linsalata e Huáscar Salazar reforçam a função pragmática e transformadora do conceito:
Preguntarse el “¿para qué?” de lo común significa, para nosotrxs, reflexionar sobre las múltiples relaciones de cooperación que hombres y mujeres tejemos cotidianamente, en diferentes lugares del mundo, para reproducir nuestra vida de forma satisfactoria; reflexionar sobre las formas históricas de estas relaciones, sus razones, sus potencias, sus límites, sus fragilidades, sus futuros. Significa reflexionar sobre las posibilidades de emancipación social anidadas en el hacer cotidiano de mujeres y hombres que, desde distintas latitudes del planeta, están luchando para conservar, cuidar, amplificar o reapropiarse de las condiciones materiales y simbólicas necesarias para garantizar la reproducción digna de sus vidas. Significa volver a centrar la mirada en las variopintas y coloridas tramas asociativas a lo largo de las cuales hombres y mujeres entrelazamos nuestros haceres de forma autónoma, recuperando – por lo menos en parte – la capacidad de establecer los sentidos, los ritmos y los causes de nuestra vida práctica. Finalmente,
corre paralela al establecimiento de ese lugar particular como centro de poder geopolítico. A la centralidad de España, luego de Francia, Holanda, Inglaterra y los Estados Unidos en el sistema-mundo , corresponde la pretensión de convertir su propia historia local en lugar único y universal de enunciación y de producción de co- nocimientos. […]. La historia del conocimiento, tal como es representada desde el punto cero, tiene un lugar en el mapa, una geografía específica. Asia, África y América Latina, al igual que en el mapa T-O de Isidoro de Sevilla, quedan por fuera de esta cartografía y no son vistas como regiones productoras sino consumidoras del conocimiento generado en los centros”(Castro-Gómez2005: 61).
29 Sugere-se consultar: https://horizontescomunitarios.wordpress.com/. Um rico panorama da produção do Entramados e de nomes fundamentais do pensamento latino-americano sobre o tema (destaco Raquel Gutiérrez Aguilar, Mina Lorena Navarro e Lucia Linsalata , pelo Entramados; Gladys Tzul Tzul, Silvia Rivera Cusicanqui, Luis Tapia, Raúl Zibechi, entre outros) está disponível também no número 1 de El Apantle: Revista de Estudios Comunitários (2015), no dossiê Común, ¿para qué? .
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preguntarse el “¿para qué?” de lo común significa, para nosotrxs, preguntar por los caminos de la autonomía y la audeterminación (2015: 10).
Pode-se, com Dardot e Laval (2017), reconhecer as “regras de convivência” como o Direito de uma práxis instituinte do comum. No entanto, é em busca da potência do comum/comunitário enquanto espaço de luta pela reapropriação da vida e do fazer (Holloway 2013) que se tem pensado nelas. Reconhecê-las como normas jurídicas assume um sentido para esta luta porque explicita a potência política do comum – não se trata apenas de assumir de si para si um compromisso moral com as companheiras de trabalho, nem de criar regras “técnicas” de gestão da produção para garantir sua “rentabilidade”, mas de se reapropriar do poder de estabelecer as regras que tornam possível o espaço coletivo, de discutir sobre os desencontros e produzir o encontro das vontades, de exercitar a assembleia, de valorizar o que há de comum em detrimento da diferença. De fazer, afinal, ao menos na extensão possível do dia-a-dia de reprodução da vida, o que o modo capitalista expropriou em favor da abstração que é o Estado e o “seu” Direito. A aposta é que este exercício tenha a potência de contaminar outras esferas do político e estender-se e generalizar para as outras lutas.
2.3. As regras de convivência na prática dos grupos de trabalho autogestionário do projeto cantinas solidárias
Partindo, portanto, da ideia de que são jurídicas as regras produzidas pelas trabalhadoras no espaço coletivo e autogestionário de trabalho, e que elas fazem parte do processo de elaboração do comum, quero, finalmente, sistematizar algumas observações sinalizadas pelas experiências com as trabalhadoras. Advirto que as conclusões a que chegamos, contudo, não têm a pretensão de se reificar em regras autônomas à realidade: elas servem como inspiração para novas lutas, possibilitam a reflexão a partir da comparação, fazem pensar nos obstáculos que são comuns, sempre considerando o caráter artesanal de cada processo.
Pessoas que se reúnem para exercer uma atividade comum pactuam entre si regras, implícita ou explicitamente. Percebemos os encontros e desencontros, estratégias, sentimentos e recursos simbólicos que compartilham as trabalhadoras nos seus coletivos de trabalho como parte, assim, de um processo de instituição do comum, já que todo o movimento coletivo (compartilhado entre a equipe da IEPS e as iniciativas) se volta para o esforço de dividir espaço, tempo, ben s, propósitos e afetos, com a participação genuína de todas nas decisões e atividades do grupo.
Não se trata de um movimento que se dá de forma “natural” – ele é assumido, de fato, como um esforço, uma reação a práticas contrárias e que estão inscritas na história, nos corpos, nas subjetividades de todas(os) nós, trabalhadoras(es) e pesquisadoras(es). O projeto “regras de
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convivência” foi pensado a partir deste contexto, partindo-se da hipótese de que a reflexão coletiva sobre as regras que são o amálgama de cada grupo autogestionário poderia encorpar este (difícil) acontecer contra- hegemônico.
O conflito assume um lugar importante e ambíguo no cotidiano do trabalho coletivo autogestionário. Por um lado, ele tem se apresentado em nossa experiência, ao contrário que se supõe à primeira vista, como um elemento favorável: mais conflito é sinal de mais autonomia. A apatia e aparente concordância reinante entre as participantes do grupo Sabores – que, como indiquei, estabeleceram uma clara relação de subordinação a uma das trabalhadoras – acabou por negar a presença de elementos de autogestão. Ao contrário, à medida que as trabalhadoras mostram “acreditar” que ali se pode fazer “diferente”, no sentido de construírem espaços de autonomia, a tendência é o recrudescimento dos conflitos. Foi o que entendemos tenha acontecido, por exemplo, com o Delícias da Formiga, em um crescendo de desentendimentos (com um episódio, inclusive, em que se chegou à agressão física) que resultou na saída da participante que tentava exercer uma posição de hierarquia e comando no grupo.
Por outro lado, “brigar”, “discutir”, “agredir”, “desconhecer” corroem a experiência da convivência: de forma ambígua e complexa, o mesmo conflito que sinaliza a autonomia contribui para enfraquecimento de aspectos como confiança, respeito, afeto, solidariedade, prazer em compartir e conviver.
As regras do grupo vão sendo produzidas com a convivência, com a prática do trabalho, sem que ocorra necessariamente a sua explicitação por palavras. O exercício de trazer à tona este processo, falar sobre ele, reconhecer as regras produzidas coletivamente e avaliá-las tem assumido, na nossa experiência, um papel construtivo no processo de elaboração dos laços que fazem o grupo “valer à pena”.
No processo de acompanhamento das discussões dos diferentes grupos, temos identificado dois tipos diferentes de regras. Chamo de “ordinárias” as que disciplinam aspectos cotidianos do trabalho (como a divisão de tarefas, tempo de trabalho, divisão dos ganhos, por exemplo). Elas são mais afetadas pelos ritmos naturais da vida – como os diferentes ritmos de trabalho de cada pessoa, o atraso ou o afastamento que resultam de um filho doente ou de um compromisso externo, a necessidade de cobrir gastos extraordinários. Por isso, a “justiça” ou “injustiça” dessas normas, depende de um olhar mais circunstancial, tem um padrão especialmente móvel. Assim, quanto mais maleáveis, as regras ordinárias parecem melhor cumprir o seu papel. Supomos que, por este mesmo motivo, estas regras geralmente permanecem implícitas ou, no máximo, elas são enunciadas apenas oralmente.
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Já o que chamo de regras “extraordinárias” dizem respeito a aspectos mais perenes da organização do grupo ou acontecimentos que não são corriqueiros: aspectos de sua identidade (nome do grupo) e funcionamento geral (como a dinâmica dos encontros coletivos para discutir e decidir sobre as questões trazidas pelo trabalho), a forma de entrada e saída das componentes, o manejo de bens comuns (desde a compra e venda de equipamentos até a constituição de fundos comuns para garantir a possibilidade de planejar o futuro e se proteger dos revezes). No caso deste tipo de normas, é mais recorrente a iniciativa para tratar deliberadamente de sua formulação e também a demanda para que as regras sejam enunciadas, inclusive na forma escrita.
No curso das diferentes experiências com os grupos, a nossa forma de entender o papel que um documento escrito pode representar neste processo foi mudando. No caso do grupo Copermasol, este era um objetivo enunciado desde o início e finalmente atingido. O amadurecimento das reflexões e a observação da dinâmica do grupo nos revelou, no entanto, dois problemas neste processo. O que se observou é que o documento escrito, depois de pronto, não era de regra acessado pelas trabalhadoras. Nas poucas ocasiões em que percebi isto acontecer, o texto foi apropriado pelas trabalhadoras com maior formação escolar (e maior domínio da leitura do texto escrito), para extrair dele interpretações que lhes favoreciam. O grupo havia decidido, por exemplo, que as trabalhadoras que fariam as compras da matéria-prima receberiam uma remuneração maior, em virtude da complexidade e tempo exigido pela tarefa. O que se demonstrou, no entanto, é que aos poucos as pessoas incumbidas das compras passaram a acumular uma remuneração exageradamente superior, em uma situação que pode ser, sob determinado olhar, considerada injusta. Por vezes a discussão sobre o assunto foi evitada, sob o argumento de que ‘isto já ficou decidido nas regras’ (Pita 2015: 52).
Em segundo lugar, nos demos conta de como era importante a forma como se “registrava” as regras. Se a intenção é garantir uma memória sobre as discussões e decisões do grupo, de modo que elas possam ser acessadas facilmente e utilizadas para solucionar os impasses da convivência, este registro deve ser capaz de comunicar bem. Assim, o modo de traduzir a linguagem oral para a linguagem escrita deveria respeitar, o tanto quanto possível, as formas da oralidade, evitar termos técnicos, inversões sintáticas, palavras estranhas ao vocabulário popular – enfim, tudo que pudesse dificultar a leitura. Uma outra proposta, que está sendo cogitada para os casos dos grupos Sabores do Quilombo e Delícias da Formiga, aponta para uma mudança na forma de registro. Con siderando o uso disseminado dos smartphones (e aplicativos como o Whatsapp) entre as trabalhadoras, pensamos transformar o registro escrito em arquivos de áudio curtos, que poderiam ser compartilhados facilmente e acessados sempre que necessário.
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A reflexão quanto à forma de registro nos conduziu, então, a uma outra questão mais ampla: seria mesmo oportuno “finalizar” as regras, produzindo um “algo” (escrito ou oral), um corpo de normas que funcionam como um “instituído” final?
A enunciação deliberada das regras em um documento (seja escrito ou oral) parece produzir efeitos ambivalentes. Por um lado, tem um efeito agregador, favorecendo a construção de uma identidade para o grupo e a prevenção e a mediação de conflitos. É perceptível, pelas falas das trabalhadoras, o desejo de “acabar as regras”: este ponto final parece assumir um sentido de ponto de início, o instituído fundador do grupo, a sua “constituição”. Por outro lado, o descompasso entre a realidade vivida, sempre em mutação, e as regras, enrijecidas no documento escrito, também favorece as dinâmicas de diferenciação de poder no âmbito do grupo, a partir de vantagens pessoais (as melhores oradoras, as menos tímidas, as que dominam a leitura), o que vai no sentido contrário da efetiva horizontalidade e intensidade da autogestão. Este processo, portanto, deve ser pensado com cuidado, respeitando-se as peculiaridades do grupo (grau de escolaridade, intimidade entre as trabalhadoras, formas peculiares de exercício interno do poder). Neste sentido, ainda, percebemos que a enunciação das regras que chamei de “extraordinárias” parece ter um efeito mais positivo para a convivência do grupo que a das regras “ordinárias”, o que deve ser levado em consideração, em cada caso, para escolher o conteúdo do documento que se deseje produzir, se for o caso.
Dardot e Laval, discutindo o comum enquanto instituição, intuem que “cada comum deve ser instituído por uma prática que abra certo espaço ao definir as regras de seu funcionamento” (2017: 618). A partir de seu conceito de práxis instituinte, os autores parecem corroborar as conclusões a que vimos chegando, propondo que este ato de instituição inicial (relacionado aqui, num viés mais pragmático, ao registro das “regras de convivência” das trabalhadoras) “deve continuar para além do ato pelo qual o comum é criado. Deve ser sustentada ao longo do tempo por uma prática que tenha a possibilidade de modificar as regras por ela própria estabelecidas” (2017: 618).
Por sua vez, ao tratar do caso da Central Cooperativa de Servicios Sociales Lara (CECOSESOLA), longeva e bem sucedida organização cooperativa venezuelana (rede cooperativa que proporciona diferentes tipos de ligação entre produtores e consumidores, espaços de comercialização, serviços cooperativos de saúde, por exemplo), Raquel Gutiérrez Aguilar destaca que :
Lo más interesante […] es su funcionamiento interno y el sistemático esfuerzo realizado por no ser únicamente una «organización» en el sentido rígido que suele asignarse a tal noción: propósitos explícitos – y por lo tanto acotados –, estatutos definidos rigurosamente, modos de funcionamiento instituidos como procedimientos generales, etc. Son «organización en movimiento» en tanto una de las actividades internas que con más cuidado cultivan y cuidan es la reunión colectiva y la conversación (2017: 104).
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A noção de “organização em movimento” (como se autodefine a CECOSESOLA) é contraposta à de instituição na sua versão liberal-estatal, que remete a um momento instituidor reificado no tempo e no espaço (o Estatuto, o Contrato, a Constituição). Observo que o movimento adjetiva a organização, mas não a nega – a CECOSESOLA “não é unicamente uma organização”, mas ainda o é. Pensar na simultaneidade e equilíbrio entre permanências e movimentos, em essência e contingência parece ser uma chave para dosar a centralidade que podem assumir as “regras de convivência” (“extraordinárias” e as “ordinárias”) na produção do comum, de modo que elas possam ser auxiliares, e não obstáculos, dos “cotidianos y persistentes esfuerzos para seg uir produciendo su existencia con base en refrendar acuerdos colectivos una y otra vez, establecer límites internos y externos de las prácticas admisibles, mejorar y perfeccionar prácticas de colaboración y «resolución» de conflictos internos, etc.” (Gutiérrez 2017: 104). Este parece ser um caminho para aproximar o fazer comum (e o seu Direito) do próprio ritmo da vida.
Tudo isso nos faz pensar na importância de reforçar o caráter mutável das regras, bem como em exercitar práticas democráticas para sua alteração e interpretação diante do caso concreto. Incentivar-se, por exemplo, mesmo no documento final, a previsão de momentos de rediscussão periódica das regras, como aconteceu no caso da Feira de Sabores e Sabores:
6.1 Estas regras podem ser alteradas pelo próprio grupo em decisão coletiva de pelo menos 75% (três quartos) das iniciativas presentes na reunião que tiver este objetivo.
6.2 De todo modo, a cada ano, estas regras serão objeto de leitura e rediscussão coletiva, com o objetivo de atualização e melhoramento a partir das práticas e vivências do coletivo que as criou.
A simples “ordem” para rediscussão periódica das regras não é suficiente, por certo – é um mero detalhe em um universo muito maior de questões. Trata-se de um exercício coletivo que pretende uma transformação muito mais profunda e complexa. Cuida-se de desejos, de escolhas, em outros modos de se exprimir corporalmente em relação aos(às) outros(as) – olhar, escutar, modular a entonação da voz, tocar –, da forma de repartir o tempo entre as diferentes atividades, de entender o sentido da liberdade, desejar e fazer escolhas. O que temos tentado fazer é persistir no caminho deste aprendizado.
CONCLUSÃO:
Acreditamos, com Bruno Cava, que devemos nos concentrar, sobretudo “nas potencialidades e oportunidades, muitas vezes fugidias, espontâneas, mais ou menos conscientes, de reinvenção e revolta ante as formas capitalistas”, o que nos faz ter que “descer ao nível dos lugares e tempos em que o trabalho vivo acontece, para pesquisar elementos de autonomia que possam ser
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organizados, entretecidos e propagados” (2012: 61). É neste sentido que as “Regras de Convivência” têm sido objeto de experiências e reflexões compartilhadas com as trabalhadoras dos projetos desenvolvidos pela IEPS- UEFS.
As “Regras de Convivência” são tomadas por nós como parte do esforço de elaboração do comum, a partir do fazer autogestionário, e assumidas como Direito – no sentido de que, muito mais do que simples manifestações de moralidade ou técnica, estabelecem um espaço comum de produção, decisão e execução de ideias e ações coletivas, fundamental para a autonomia identitária e política de cada trabalhadora em relação ao grupo e do próprio grupo enquanto um corpo social organizado.
O processo de produção das regras do grupo tem uma dinâmica diretamente relacionada aos conflitos que caracterizam o encontro coletivo de diferentes subjetividades, especialmente quando isto se dá no âmbito da autogestão. O conflito, aqui, assume um sentido ambíguo: se por um lado é um signo de autonomia, por outro é um elemento corrosivo do sentido e prazer do esforço pelo comum. Entendemos que o exercício de explicitar, discutir, formular e reformular coletivamente as regras que unem o grupo pode ser um elemento importante na busca pelo equilíbrio do papel do conflito no trabalho coletivo que almeja ser horizontal, democrático, solidário – que luta para fazer da fórmula jurídica marxiana “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades” (MARX 2012: 33) a máxima de um outro Direito .
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PITA, Flávia Almeida O DIREITO QUE SE PRODUZ EM COMUM: ...
AUTORA:
Flávia Almeida Pita
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana. Integrante da Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da UEFS. Procuradora do Estado da Bahia.
E-mail: fa- pita@uol.com.br
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A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS E ADVOGADAS DE TRABALHADORES RURAIS DA BAHIA: uma reflexão no campo das teorias críticas do Direito
Maria José Andrade de Souza Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
RESUMO
Fundada num contexto de intensos conflitos no campo agrário baiano, a Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais (AATR), em quase quarenta anos de existência, coincide muitos pontos de sua trajetória com o curso da questão agrária baiana nesse período e constituiu- se numa entidade referenciada no conjunto das assessorias jurídicas populares (AJP) no Brasil. A partir dessa experiência de AJP estabeleceremos um diálogo com as principais tendências que permeiam o campo de práticas jurídicas e políticas da advocacia popular no Brasil – Direito Achado na Rua e Direito Insurgente. A nosso ver, por abordagens distintas, essas tendências tratam a relação dos diferentes interesses no Estado em termos dicotômicos, seja por reduzi-lo à institucionalidade e ao “oficial”, seja por uma leitura tendente à encará-lo como um instrumento da classe dominante, com decorrências nas concepções sobre o Direito e a sua funcionalidade no modelo social capitalista.
Palavras-chave: Advocacia Popular. Teorias Críticas do Direito .
THE PRACTICE OF THE ASSOCIATION OF BAHIA'S LAWYERS: a reflection in the field of critical theories of law
ABSTRACT
Founded in a context of intense conflicts in the Bahian agrarian field, the Lawyers Association in defense of Rural Workers in the State of Bahia (AATR), in almost forty years of existence, coincides many points of its trajectory with the course of the Bahian agrarian question in that period and was constituted in an entity referenced in the set of Commons Legal Advice bodies (AJP) in Brazil. From this experience of AJPs we will establish a dialogue with the main trends that permeate the field of legal and political practices of popular advocacy in Brazil - Law Found in the Street and Insurgent Law. In our view, by different approaches, these tendencies treat the relation of the different interests in the State in dichotomous terms, either by reducing it to the institutional and the "official", or by a reading tending to regard it as an instrument of the ruling class, with consequences in the conceptions about the Law and its functionality in the capitalist social model. Keywords: Popular Advocacy. Critical Theory of Law.
CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 78-99 78
SOUZA, Maria José Andrade de
A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DOS A DVOGADOS E ADVOGADAS DE TRABALHADORES RURAIS DA BAHIA:...
INTRODUÇÃO
O tema sobre o direito e as lutas sociais comporta leituras tão diversas quanto antagônicas, mesmo em se tratando de uma mesma matriz de pensamento. Essa diversidade também se expressa em certas tendências teóricas que permeiam o campo de práticas jurídicas e políticas da advocacia popular, colaborando para distintas leituras nesse âmbito. Neste trabalho, nos voltaremos para a atuação histórica da Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR-BA) junto aos conflitos agrários baianos, problematizando os reflexos das lutas sociais em torno da lei no processo conflitivo de disputas dos interesses no seio do Estado – aqui, concebido enquanto [...] condensação material e específica de uma relação de força, que é uma relação de classe (Poulantzas 2000: 71). Partimos do entendimento de que as principais tendências que permeiam o campo de práticas jurídicas e políticas da advocacia popular no Brasil – Direito Achado na Rua e Direito Insurgente - por abordagens distintas, tratam a relação dos diferentes interesses no Estado em termos dicotômicos, seja por reduzi-lo à institucionalidade e ao “oficial”, seja por uma leitura tendente à encará-lo como um instrumento da classe dominante.
A atuação da AATR perpassa tanto pela diversidade de conflitos no campo agrário baiano quanto pelas contradições presentes em cada período histórico, aspectos pelos quais a própria entidade não passa ilesa no processo conflitivo de disputa dos interesses divergentes no seio do Estado, particularmente relacionados aos conflitos pela posse da terra envolvendo trabalhadores rurais em confronto com pretensos proprietários e projetos desenvolvimentistas.
A AATR é uma das primeiras experiências de assessoria jurídica popular de que se tem registro no Estado da Bahia e no Brasil e, certamente, a que tem uma trajetória mais longa nesse campo – se considerada a sua consolidação como entidade coletiva com essa finalidade1. Guarda também a especificidade, desde a sua fundação, que está inscrita na sigla do seu próprio nome: uma
1 A experiência de assessoria jurídica popular como recurso utilizado pelos trabalhadores rurais na defesa dos seus direitos precede à formação de coletivos de advogados e advogadas populares com essa finalidade. Como destacado por Medeiros (2018), a utilização das estratégias jurídicas pelos trabalhadores rurais remete às diretrizes da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), que publicava cartilhas visando a difusão, em linguagem simples, do corpo legal existente, além dos encaminhamentos de reivindicações para desapropriação de áreas com fundamentação nos dispositivos do Estatuto da Terra (Medeiros 2018: 9). A partir do final da década de 1970 e ao longo da década de 1980, formam-se coletivos de assessoria jurídica popular: Associação Nacional dos Advogados de Trabalhadores da Agricultura – ANATAG/GO (1980), Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia – AATR/BA (1982), Assessoria Jurídica Popular – AJUP/RJ (1987). Como não fizemos um levantamento dos coletivos de assessoria jurídica popular atuantes, nesse momento, mencionamos algumas experiências: além da AATR, Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola/RJ, Conectas Direitos Humanos - SP, Dignitatis Assistência Técnica Popular - PB, Justiça Global - RJ-SP, Gabinete de Assessoria Jurídica à Organizações Populares - GAJOP- PE, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos – MA, Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos - PA, Terra de Direitos - PR-PA- PE.
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SOUZA, Maria José Andrade de
A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DOS A DVOGADOS E ADVOGADAS DE TRABALHADORES RURAIS DA BAHIA:...
assessoria jurídica que atua em defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, o que perpassa também pelo esclarecimento acerca dos direitos de uma maneira crítica. Nesse sentido, a atuação dessa entidade não se restringe à dimensão jurídica, mas reivindica também uma dimensão social, uma dimensão política, uma dimensão democrática, uma dimensão ético-pedagógica e uma dimensão interdisciplinar e multiprofissional (AATR, on line ).
Por uma simples leitura, reconhecemos que a AATR é um foco privilegiado para a análise que nos propomos em razão da sua abrangência, da posição que ocupa nos conflitos agrários baianos, bem como por seu longo histórico de atuação, que atravessa diferentes conjunturas sociais, políticas e jurídicas, com interferências e modificações no seu projeto.
A partir do estudo realizado na Tese de Doutorado em Ciências Jurídicas e Sociais sobre a atuação da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais, o diálogo com as principais teorias críticas do Direito no Brasil busca desvelar as suas contribuições e limites na luta por direitos encampados pelas assessorias populares. Trata-se de um esforço de apresentar as concepções de Direito propostas, bem como saber qual o sentido que conferem à relação do Direito e Marxismo. Em síntese, iremos refletir sobre refletiremos sobre os sentidos e potenciais da luta por direitos dos subalternizados dentro das arenas jurídicas, considerando a experiência de uma advocacia popular em movimento .
1. A AATR E SUA EMERGÊNCIA NO CAMPO AGRÁRIO BAIANO
A Associação de Advogados e Advogadas dos Trabalhadores Rurais da Bahia2 foi constituída entre o final da década de 1970 e início dos anos 1980, ainda no período da ditadura empresarial militar, como resposta a uma conjuntura marcada pela violência institucional e privada direcionada aos trabalhadores rurais e assessores jurídicos que atuavam junto aos posseiros no interior do Estado da Bahia. Em 1977, quando foram assassinados o advogado Eugênio Lyra, em Santa Maria da Vitória, na região Oeste do Estado, e o advogado Hélio Hilarião, em Senhor do Bonfim, região Centro Norte, um grupo de advogados e advogadas, envolvidos com as causas dos
2 É importante observar que a formação de coletivos de advocacia popular, nesse período, não é uma particularidade da Bahia, mas tinha uma abrangência nacional, identificando-se registros de outros projeto similares no Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Ceará. Como evidencia Torres (2017): No Estado da Bahia, o primeiro fruto é a Associação de Advogados de Trabalhadores, que começa a ser gestada ainda no final de 1977, com reuniões sobre o papel do advogado popular e como estabelecer relações com entidades, sindicatos e federação, que garantam o mínimo de segurança. Na mesma linha, também no Estado do Ceará, será criada a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais. O Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP) também surgirá no início da década de 1980, com uma proposta de contribuir no apoio aos movimentos sociais, de formação de novos advogados e de congregar advogados, juristas e cientistas sociais, para aprofundamento das questões do campo (Torres 2017: 67).
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trabalhadores rurais, deu início a constituição da entidade, que viria a ser institucionalizada em 1982, com o propósito inicial de defender e proteger assessores jurídicos que se encontravam vulneráveis às ações de violência por parte de latifundiários e grileiros de terras.
Naquele contexto de intensificação da violência no campo, os assassinatos dos advogados populares não foram tratados como crimes comuns, mas como decorrência de um processo de apropriação e concentração de terras que se manteve pela inexistência de garantias individuais, pela omissão da intervenção pública […] (AATR 1987: 29). Assim, diante das ameaças, da coerção para expulsar os posseiros da terra, sobretudo na região nordeste do Estado, a AATR ultrapassa a sua pretensão inicial – de uma entidade de classe se torna uma associação de defesa dos trabalhadores rurais a partir de um projeto político, que, ainda hoje, faz dessa entidade mais do que uma organização de advogados e advogadas, mas uma forma de militância política, um estado de espírito (AATR, on line ).
No ato de fundação, em 21 de abril de 1982, no auditório da Federação dos Trabalhadores Rurais da Bahia (FETAG/BA), a Assembleia, que contou com uma média de vinte participantes entre advogados, advogadas, estudantes de Direito e a presença de convidados externos3, aprovou o Estatuto e a Carta de Princípios da AATR, que é um documento de referência para a atuação da entidade, com uma demarcação sobre “sua posição de classe e comprometimento com a transformação social; uma visão crítica das leis e das instituições; o zelo pela autonomia4 dos trabalhadores rurais e o cuidado para não desmobilizar as suas lutas com as ações institucionais” (Carta de Princípios 1982).
Nesse sentido, os membros da AATR, desde à sua fundação, não se apresentaram como advogados e advogadas na acepção estritamente profissional5 do termo, mas como assessores jurídicos populares que têm um compromisso de classe, particularmente, com os interesses dos trabalhadores rurais da Bahia.
Ao longo dessa trajetória, a assessoria jurídica e política promovida pela AATR se consolida através de ações que passam pela produção de dados, pela exposição de uma leitura sobre
3 A presença de Miguel Pressburguer, que foi advogado da AJUP/RJ, e Orlando Merssina da Cunha, que foi assessor da CPT/Nacional, evidencia a disposição da AATR em dialogar com experiências de advocacia popular fora do estado da Bahia, e com o fortalecimento desse campo a nível nacional. Miguel Pressburguer se tornou uma referência no campo do direito crítico a partir de sua atuação na AJUP/RJ e pelas reflexões sobre a assessoria jurídica popular e o direito insurgente.
4 Não são incomuns os registros sobre o cuidado da entidade para não suprimir a autonomia dos trabalhadores rurais e suas organizações durante o trabalho de assessoramento. Ao dizer, por exemplo, Finalmente, emprestamos todo o apoio aos homens do campo na luta pela conquista da terra e para que seja feita uma Reforma Agrária sob o efetivo controle dos trabalhadores rurais (AATR 1987: 8 8).
5 Como bem lembra Gramsci, [...] a mediação profissional dificilmente se separa da mediação política (Gramsci 2000: 23) e isso importa para não nos iludirmos em relação a outras formas de mediação profissional que seriam supostamente "desinteressadas" .
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os conflitos agrários e a questão agrária, pela formulação de avaliações sobre a conjuntura política, social e jurídica. Por esse caráter e com uma atuação interdisciplinar, que faz o cruzamento entre ações e objetivos no mesmo caso/situação, a AATR incide na: a) disputa política e jurídica no processo de produção e interpretação das leis; b) formulação de teses jurídicas contra- hegemônicas; c) articulação política nos processos de formação e organização da classe trabalhadora. Com atenção para as mudanças que se processam no campo político, jurídico e no conjunto da sociedade, a AATR atua como um ator que avalia para agir, enquanto age avaliando e se autoavaliando na dialética do conhecimento.
Nessa produção, a AATR se tornou uma entidade de referência com autoridade para emitir parecer sobre a questão agrária baiana e nacional e sobre a legitimidade do direito à terra pelos grupos subalternizados. Em resumo, uma caracterização possível sobre a AATR deve considerar a sua pretensão e a maneira específica como mobiliza o jurídico enquanto se constitui como um ator político e social para incidir nos processos de formação.
Os documentos que informam sobre a atuação da AATR indicam ser esta entidade um ator político e intelectual, que desenvolve uma assessoria jurídica específica, enquanto articula, avalia, formula e incide sobre a realidade social com um projeto político próprio. A título de caracterização provisória, face à escolha decidida (identitária) de agir a contrapelo das relações de dominação no conjunto da sociedade, numa região datada e definida, a Bahia, dirigindo-se aos subalternizados em geral e aos segmentos populares do campo em particular, uma definição possível para AATR: território intelectual orgânico, neste caso, é um campo datado de uma determinada narrativa a contrapelo que representa o modo de ver, analisar o poder para explicar e produzir encaminhamentos táticos. Com isso, provisoriamente6, associamos o papel e atuação desta entidade à definição de Gramsci sobre as ideologias historicamente orgânicas, que são aquelas que organizam as massas humanas, formam o terreno no qual os homens se movem, adquirem consciência da própria posição e lutam (Gramsci 2000: 238).
Trata-se de uma assessoria jurídica popular que tem contribuído com o processo organizativo das comunidades rurais, ao tempo em que colabora com a construção da legitimidade de suas lutas no campo jurídico quando questiona e disputa decisões contrárias aos seus direitos e uma determinada concepção de justiça. Logo, a compreensão sobre os direitos não coincide com os
6 Essa é uma caracterização provisória que precisaria de mais elementos para ser melhor desenvolvida e mesmo para identificar possíveis contradições nessa pretensão, considerando que a AATR tem uma trajetória de 37 anos e ao longo desse tempo vem sendo construída por uma pluralidade de sujeitos. Pensar, por exemplo, se a concepção de classe e militância é permanente e acompanha as questões das distintas gerações e quais os sentidos que atribuem a essas categorias.
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resultados institucionais quando projeta na sua atuação não apenas a reversão judicial e institucional em favor dos trabalhadores rurais que assessora, mas a superação das injustiças do modelo social capitalista, privatista e excludente. Quando realizamos entrevista com uma advogada popular, que é associada da AATR, no bojo do trabalho de dissertação de mestrado, ao perguntarmos “Como você avalia a via judicial para resolução do conflito?”, nos foi dito:
Sim, não tinha outra saída porque quando a gente começa uma série de ações sem interpelar quem de direito, né, você acaba deixando que a autoridade caracterize aquilo como fazer justiça com as próprias mãos. Então, a gente entrava na justiça não era porque a gente acreditava no Judiciário. A gente ajuizava, judicializava, para depois não sermos acusados de termos agido à revelia, de ter agido com as próprias mãos. Não é que a gente acreditava que ali, pelo Judiciário a gente ia conseguir resolver o conflito. A gente sabia que não, mas também agir à revelia seria muito ruim pra gente porque acabava desmoralizando. Então, a gente judicializava, seguia ali com todos os passos, procedimentos e por fora a gente agregava a participação da sociedade através das associações que eram promovidas. Nós não temos nenhuma área que tenha decaído, desistido de lutar. Até mesmo porque perder, perder mesmo nós não perdemos nenhuma. Quando a gente ia por essa via e dava na parede, não tinha mais saída por aqui, a gente ia por outro viés e dava a volta por lá. Eu considero muito importante isso de buscar saídas junto aos trabalhadores e dizer a verdade para os trabalhadores. Quando começava pela via da judicialização e começava a travar tudo de forma que não tinha jeito mesmo a gente discutia e dizia e agora a gente vai fazer o quê? Um propunha um coisa, outros propunha outra agente ia juntava. Então, o nosso caminho agora é esse daqui. Vamos seguir por aqui que a gente ganha. Então, pela via judicial ou pela via administrativa a gente achou saída pra todos os conflitos. Agora, eu vejo que a luta pela terra é muito forte e muito intensa e depois a luta pelas políticas públicas, por exemplo, ela não é tão intensa assim. E a gente não consegue. A gente não conseguiu desmantelar, desconstruir na cabeça de muitos trabalhadores aquela ideia de que o governo dar. Sem reavivar as lutas de classes a gente não vai muito longe (Entrevistada 2 2015).
Por essa exposição, os propósitos da AATR ultrapassam a entidade em si, quando também procura colaborar na organização e atuação dos grupos e movimentos campesinos no Estado da Bahia. Para isso, além de organizar e fortalecer um campo formado por advogados e advogadas populares, presta assessoria jurídica aos movimentos sociais do campo, com investimentos na formação dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e com a formação de opinião sobre as questões agrárias, as instituições do Estado, dentre essas, o Poder Judiciário.
O olhar sobre a história e os fazeres da AATR enquanto assessoria jurídica popular proporciona elementos para refletir sobre o papel que desempenham o direito e aqueles e aquelas que fazem dele sua profissão. Nesse sentido, conceber a AATR como uma janela privilegiada para discussão sobre a luta por direitos pelos subalternizados nos permite dialogar com o campo das teorias críticas do Direito a partir de uma ideia de assessoria jurídica popular em movimento, o que requer uma abordagem teórica que seja capaz de alcançar essa dinamicidade.
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2. O CAMPO DAS TEORIAS CRÍTICAS DO DIREITO E A ASSESSORIA JURÍDICA POPULAR
A partir da perspectiva teórica assumida por esta pesquisa, e, de regra, pelos sujeitos que fazem a realidade da AATR e a assessoria jurídica popular como um todo, os fatos, processos e relações estudados correlacionam-se com as diversas discussões teóricas que tentam compreender o lugar do direito no Marxismo e, a partir deste, os caminhos, sentidos e potenciais da luta por direitos dos subalternizados dentro das arenas jurídicas. Afinal, não há como separar a práxis jurídica da concepção de direito dos advogados (Campilongo 1991: 52).
Por isso, a partir da experiência da AATR, resgatamos a produção teórica que permeia as práticas jurídicas e políticas da advocacia popular, na posição dos intelectuais e operadores críticos que a desenvolvem, a fim de estabelecer um diálogo com as principais teorias críticas do Direito no Brasil, buscando desvelar as suas contribuições e limites na luta por direitos encampados pelas assessorias populares.
Apresentaremos as concepções de Direito propostas, e qual o sentido que conferem à relação entre o Direito e Marxismo. Para isto, nos voltamos em especial para as duas tendências que integram a chamada “Crítica Jurídica de Perspectiva Dialética”7 – o Direito Achado na Rua e o Direito Insurgente. A partir de seus pressupostos, entendemos que seria possível demarcar melhor nossa proposta de análise, especialmente no que diz respeito às concepções sobre a relação entre as lutas sociais, o direito e o Estado.
2.1. O direito achado na rua e a construção do direito na arena da sociedade civil
O Direito Achado na Rua não está circunscrito a uma teoria, mas a um projeto de distintas dimensões, que reúne tanto produção e reflexão teórica sobre uma determinada concepção de direito, quanto práticas extensionistas e de assessoria e educação jurídica popular universitária.
Essa corrente crítica do Direito ganha os seus primeiros delineamentos mais sistemáticos, no início da década de 1980, contexto político no qual podem ser percebidos os primeiros prenúncios da abertura democrática do país. É nesse período que são lançadas ao público, as bases político-epistemológicas da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), corrente do direito crítico que segundo o seu fundador Roberto Lyra Filho, v isava:
7 Na conhecida classificação das “tendências da crítica jurídica” proposta por Wolkmer (2002).
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Reexaminar o Direito, não como ordem estagnada, mas como a positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social, em movimento. O Direito, então, há de ser visto como processo histórico. O que deste resulta, a cada momento, é o vetor extraído da dialética social, numa pluralidade de ordenamentos antitéticos, dentro da qual as classes e grupos ascendentes afirmam as novas quotas de liberdade, no eterno combate contra a espoliação e a opressão do homem pelo homem. Nossa meta é a justiça militante, não meta - física, nem idealista, nem abstrata, mas conscientizada em toda etapa, na práxis vanguardeira, em oposição às resistências imobilista e retrógradas (Lyra Filho 1982: 12).
Os principais expoentes dessa tendência foram e são vinculados à Universidade de Brasília (UNB), com destaque para o professor e jurista brasileiro Roberto Lyra Filho, que foi fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR) com o objetivo de contrapor-se ao dogmatismo jurídico predominante. Atualmente, o principal expoente dessa tendência é o professor José Geraldo de Sousa Júnior, que tem uma produção teórica significativa, com destaque para seu trabalho de tese "Direito como Liberdade: O Direito Achado na Rua Experiências Emancipatórias de criação do Direito", que é uma obra de síntese sobre a tendência que estamos tratando8 .
A partir desses propósitos, é possível inferir atributos que dão pistas para a conceituação da compreensão do Direito. Fica evidente que não há a pretensão de expor um conceito fechado. Para a Nova Escola Jurídica Brasileira, o Direito não é; ele se faz, nesse processo histórico de libertação [...]. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos. (Lyra Filho 1986: 312). É um direito que se constrói nutrido pelos processos de transformação social, resultante de lutas concretas em uma determinada realidade social.
Essa visão histórica e processual do Direito proposta pela Nova Escola Jurídica tem como corolário uma forte crítica ao positivismo jurídico, que tende a reduzir o direito à norma estatal, desprezando os seus lastros legitimadores. Essa crítica tem o propósito, sobretudo, de ampliar o reconhecimento das fontes de produção de juridicidade, negando, portanto, o papel do Estado como único produtor do Direito. Lyra Filho (1982), ao tratar da norma jurídica, esclarece que essa é apenas uma expressão do Direito, uma embalagem, na qual o Direito é o conteúdo, visto que o Direito se forma antes de ser acondicionado na norma jurídica, e nem tudo que nela é posto será Direito legítimo (Lyra Filho 1982: 49). Como assinala o autor, o Direito nasce na Rua, e se realiza fora, acima e até contra o conjunto de leis, sendo produto de lutas sociais e cuja eficácia se mede na práxis. (Lyra Filho 1986).
Essa proposta de desenlace entre norma jurídica e Direito põe em cheque a associação entre legalidade e legitimidade e leva à construção de uma visão plural do Direito em oposição ao monismo jurídico, que delega o monopólio da legitimidade do direito ao Estado. Em vista disso, o
8 A título de registro, é possível encontrar uma variedade de produções desta tendência no blog “Direito Achado na
Rua: Grupos de Estudos Diálogos Lyrianos”. Disponível em:
<http://odireitoachadonarua.blogspot.com.br/p/publicacoes.html> Acesso em 03 de set. 2016.
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Direito Achado na Rua parte do pressuposto de que o direito não se encontra apenas na sua expressão “oficial”, mas advém também do espaço público, a partir das experiências dos grupos oprimidos (Sousa Jr. 2008). É a partir dessa premissa, que a Nova Escola Jurídica Brasileira defende que a dogmatização do Direito serve para reforçar posicionamentos conservadores, que em última instância tendem a ser acionados pelas classes dominantes para frear processos de mudanças sociais (Lyra Filho 1980).
Assim, além de desmitificar o positivismo jurídico, essa corrente jurídica propunha a associação entre a prática e a teoria, nutrida pelo percurso das lutas sociais, portanto assume uma postura militante e constrói uma forte crítica aos ditames epistemológicos de neutralidade científica proposto pelo positivismo jurídico, que buscavam, em última instância, servir como cortina de fumaça das tensões sociais. É nesse sentido a advertência de Roberto Lyra Filho (1986: 271) ao dizer que toda pretensa neutralidade é uma adesão aos status quo pois a abstenção é evidentemente conservadora, mesmo quando cultiva a epistemologia esquizofrênica da (ilusória) separação entre o ser, fazer e saber .
Portanto, para instrumentalizar essa proposta de entrelaçamento entre a teoria e a prática, era preciso também um repertório que legitimasse o alargamento das fontes do direito para além da norma jurídica. Desse modo, José Geraldo Sousa Júnior (2011), visando contribuir com a legitimação dos movimentos sociais, enquanto criadores de novos direitos, propôs uma nova categoria jurídica: o sujeito coletivo de direito, concebido como aquele capaz de elaborar um projeto político de transformação social.
Esse sujeito coletivo de direito surge da politização das necessidade cotidianas e se afasta do sujeito abstrato idealizado pelo positivismo, titular de direitos civis individuais, portanto, segundo o autor, o sujeito coletivo de direito
[...] deixa de ser uma abstração descolada da realidade humana da qual se projeta para concretizar-se, historicamente, determinando-se a partir de uma forma peculiar do social e da política, de uma certa organização do simbólico e de um peculiar imaginário social (Sousa Júnior 2011: 98).
A necessidade de demarcação de um campo jurídico crítico leva a Nova Escola Jurídica Brasileira a produzir um repertório, buscando a legitimação das lutas sociais e a instrumentalização no campo do Direito. Nesse contexto, no início da década de 1980, é lançado o boletim Direito e Avesso, visando a difusão dos pressupostos dessa vertente crítica. Essa publicação, conforme se pode se ler na introdução da primeira edição, tensionava demarcar uma posição dentro do campo jurídico brasileiro, através da desmitificação das ideologias jurídicas dominantes e da anunciação de um pensamento jurídico brasileiro de vanguarda, cabendo-lhe também servir como instrumento para
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os núcleos estudantis, que adotavam o posicionamento da NAIR, como ponto das suas reflexões e iniciativas (Sousa Júnior 1982).
Embora não se possa calcular o alcance, em termos qualitativos ou quantitativos do Direito Achado na Rua, enquanto concepção teórica, essa corrente ganhou uma grande repercussão no âmbito acadêmico, se transformado inclusive em uma Linha de Pesquisa no âmbito da Pós - Graduação de Direito da UNB, contribuindo com a formação de diversos associados da AATR. A influência entre os operadores do direito, embora não tenha sido quantificada, é notaria, sendo esse repertório acionado inclusive por magistrados que gravitam em torno do campo crítico do Direito. Partindo da crença da possibilidade de êxitos efetivos na atuação do advogado popular na concretização dos direitos dos espoliados e oprimidos, Sousa Júnior (2008) sintetiza a agenda dessa corrente teórica, enfatizando seus objetivos centrais, que são:
[...] 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas (Sousa Jr. 2008: 5).
Para alicerçar essa agenda, o Direito Achado na Rua vai estabelecer um diálogo com a teoria marxiana9, buscando superar o dogmatismo para oferecer uma leitura dialética sobre o Direito. Nesse sentido, na obra “Karl, meu amigo: diálogo com Marx sobre o direito”, Lyra Filho sugere que o próprio Marx não teria reconhecido a maneira dialética como o direitos burguês e dos espoliados interagem (Lyra Filho 1983). A nosso ver, o pensamento de Lyra Filho avança para uma concepção do Direito a partir do marxismo, procurando superar a leitura instrumental, que tende a associá-lo a um mero instrumento da burguesia. Por outro lado, a visão muito positiva sobre a produção normativa pelo conjunto da sociedade e não somente nas malhas da institucionalidade, se mostra insuficiente para apreensão do lugar do Estado nessa relação. Embora reivindique a dialética e a interação dos distintos interesses na produção do direito, estabelece uma marcada dicotomia na concepção do Estado e de seu direito, ao afirmar, por exemplo, que:
[…] para uma concepção dialética do Direito, teremos de rever, antes de tudo, a concepção dialética da sociedade, onde o Estado e o direito estatal são, a bem dizer, um elemento não desprezível, mas secundário (Lyra Filho 1982: 29- 30).
Essa separação entre a produção do direito pelo Estado e as normatividades extra-estatais é central na tendência que estamos tratando, como sugere seu próprio nome – como não se reduz à
9 Para uma leitura mais aprofundada sobre a relação da Escola Nair com a teoria marxiana, ver o volume 3 do Boletim Direito e Avesso, editado em homenagem a Karl Marx, na ocasião do centenário de sua morte.
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lei, negando o monismo jurídico, o direito pode ser achado na rua, que é uma metáfora para referir - se ao espaço público, às lutas sociais dos sujeitos coletivos de direito. Assim, parte do entendimento de que:
Uma vez que a coesão ideológica duma sociedade classista é sobreposta a inconciliáveis conflitos de classe, constantemente gerados pelas relações de produção, as classes dominadas – ou grupos específicos dentro delas – tendem a desenvolver subculturas 'legais', que, em certas circunstâncias, podem associar-se a uma práxis institucional relativamente autônoma, como 'legal' e este direito como direito paralelo (isto é, caracterizar a situação como pluralismo 'legal') e adotar um ponto de vista teórico, julgando este direito como não inferior ao direito estatal – envolve uma opção científica e política: isto é, pressupõe a negação do 'monopólio radical' de produção e circulação do direito pelo Estado moderno (Santos 1977: 5-126 apud Kopittke 2011: 30).
Por certo que a produção e usos do direito não se restringem à burocracia estatal, mas isso não nos faz crer na existência de um direito paralelo – o direito autêntico das ruas e do espaço público – e um direito estatal, pois, se encaramos o Estado, o direito e a lei nas suas contradições é porque não delimitamos as fronteiras entre um suposto direito das classes dominantes e o das classes dominadas, nem para fins didáticos, nem para fins políticos e jurídicos.
Essa concepção secundariza o fato de que o Estado detém o monopólio da violência física legítima (Poulantzas 2000) na garantia do direito que produz frente a outras normatividades e regramentos não-oficiais. Com isso, de alguma forma, menosprezam o exercício combinado da coerção e do consenso que, para ser bem apreendido, implica em conceber o próprio Estado de uma maneira ampliada, isto é, não coincidi-lo com o “oficial”. Não discordamos do fato de que o Estado no seu sentido restrito detém uma pretensão de monopólio, e não exatamente o domínio exclusivo na produção e garantia do direito, mas, ao mesmo tempo, parece ser uma tarefa inócua tentar delimitar o que se origina da institucionalidade e o que atua contra essa institucionalidade quando o próprio Estado não age sob a orientação da legalidade que produz.
Para avançar nessa perspectiva, parece profícuo aproximar-se da concepção gramsciana que associa o direito à função educativa e formativa do Estado, que se relaciona à própria elaboração de tipos novos de humanidade. Em vista disso, Gramsci coloca o problema da relação entre o indivíduo singular e o homem coletivo como uma Questão do “direito”,
[...] cujo conceito deverá ser ampliado, nele incluindo aquelas atividades que hoje são compreendidas na fórmula “indiferente jurídico” e que são de domínio da sociedade civil, que atua sem “sanções” e sem “obrigações” taxativas, mas que nem por isso deixa de exercer uma pressão coletiva e de obter resultados objetivos de elaboração nos costumes, nos modos de pensar e de atuar, na moralidade, etc. (Gramsci 2002: 23- 24).
Na perspectiva gramsciana, seria relevante aprofundar mais a própria interação sugerida entre o direito burguês e o das classes dominadas, que passa, necessariamente, por uma
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compreensão de Estado e de direito no seu sentido ampliado, sem a delimitação de fronteiras meramente institucionais, mas que no plano prático e do exercício são imprecisas.
Embora o Direito Achado na Rua reivindique a perspectiva dialética para se referir ao direito e ao papel das assessorias jurídicas populares, em certos momentos, parece transparecer uma concepção dicotômica do Estado e da lei. Uma primeira manifestação dessa dicotomia pode ser identificada nos seus esforços em estabelecer uma distinção entre lei e direito, em que a primeira é associada ao Estado burguês, portanto, aos interesses das classes dominantes; enquanto o segundo pode ser mais do que isso na medida em que também incorpora os interesses das classes dominada s. Por essa compreensão, de alguma maneira, imprime certos juízos de valor sobre o que denominam “monismo estatal” e “direito paralelo”, que é fruto de concepções ainda reféns de um marxismo estruturalista sobre o que se processa no interior da Sociedade Civil e da Sociedade Política – para usar termos gramscianos – quando a primeira é concebida de forma idílica10 e a segunda tão somente do ponto de vista da coerção ou da propagação de um tipo de visão de mundo que, facilmente, é associado à visão das classes dominantes.
Por essa leitura teórica, sem secundarizar o legado do Direito Achado na Rua, como instrumentalização para atuação dos operadores de direito e acadêmicos do campo do direito crítico, em função da própria natureza acadêmica, é possível apontar seu limite para refletir e instrumentalizar em torno da atuação direta/prática na advocacia popular. Esse distanciamento da prática judiciária pode ter levado o Direito Achado na Rua a superestimar o papel do Direito, enquanto instrumento de transformação social, enquanto, secundariza o papel do Estado nas sociabilidades que se produzem em torno do direito e do próprio acionamento da repressão quando os grupos não consentem.
2.2. O direito insurgente no resgate da Teoria Marxista sobre o direito
Aqui dialogamos com as proposições de autores mais recentes, particularmente, Pazello (2014/2015), Soares (2009), Ribas (2015), Almeida (2015). O grupo dá seguimento ao pensamento dos precursores do Direito Insurgente, especialmente os advogados populares Thomaz Miguel Pressburguer, Miguel Lanzellotti Baldez, Jacques Távora Alfonsin, que atuaram na construção do
10 Como enfatiza Mendonça: Pelo contrário, marcada pelos conflitos de classe, a sociedade civil nada tem de 'idílica' ou ilusória, uma vez que é em seu seio que se elaboram e se confrontam projetos distintos e até mesmo antagônicos, ficando claro, no pensamento gramsciano, que ela é a arena da luta de classes e da afirmação de projetos em disputa, derivados de aparelhos de hegemonia distintos, ainda que, em muitos casos, pertençam a uma mesma classe ou fração dela (Mendonça 2014: 36).
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Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP), fundado em 1987, no Rio de Janeiro, que tinha por objetivo assessorar os trabalhadores e suas organizações populares. A exposição das ideias desses autores é importante para identificarmos as distintas abordagens e diálogos com as teorias marxistas. Como observa Almeida (2015): "Particularmente no caso de Pressburger, havia uma notável interlocução com as ideias de Pachukanis, embora com contradições importantes, como por exemplo, a persistência de uma compreensão instrumentalista do direito e também a inadmissão da tese da extinção da forma jurídica" (Almeida 2015: 140).
O Direito Insurgente parte do reconhecimento de que o trabalho da assessoria jurídica popular no assessoramento da classe trabalhadora pode representar uma prática insurgente, mas entende que o uso político do direito é um instrumento tático e não estratégico, uma vez que o segundo uso tem como condição seu próprio desuso. Nesse sentido, embora seja reconhecida a inafastabilidade da mediação jurídica no modelo capitalista, não deixa de considerar a indefensibilidade das formas jurídicas e, como horizonte, a sua extinguibilidade (Pazello; Ribas 2015: 5-7, grifos dos autores ).
Ao destacar que o direito é um instrumento tático e não estratégico, os autores dessa tendência demarcam uma distinção em relação ao Direito Alternativo11 e ao Pluralismo Jurídico12 , no sentido de reconhecer a impossibilidade dos “usos emancipatórios” do direito que não é senão
11 Sob forte influência do movimento do Direito Alternativo italiano, no final da década de 1980, no contexto da Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988) esse movimento inicia aqui, no Brasil, a partir da organização de magistrados gaúchos, que comungavam da concepção de que o Judiciário deveria se apresentar como uma arena democrática na luta dos cidadãos para garantia de direitos, recusando a neutralidade do direito e da justiça e assumindo o compromisso em favor dos grupos menos favorecidos como forma de reduzir as desigualdades (Guanabara 1996: 406). Esse movimento se expandiu e passou a contar com a participação de outros juristas, professores de direito e estudantes para consolidação de um saber/atuação a serviço da emancipação popular, seja através dos “usos alternativos do direito”, seja pelo “direito alternativo”, pois compartilham da concepção de uma necessária radicalização da democracia e da luta por um direito novo para construção do socialismo (Arruda Jr. 1992: 8). Alguns integrantes desse movimento dialogam com as ideias gramscianas, a exemplo de Edmundo Lima de Arruda Jr. quando diz: Com efeito, o “uso alternativo do direito” não é manifestação individual de juízes, nem tampouco fenômeno restrito à magistratura. Trata-se de um inusitado movimento social. A reação passional, leviana, teoricamente débil e politicamente reacionária dos juristas do status quo é um sinal positivo da desestruturação dos graus de mediações – via instância judiciária – que aqueles intelectuais orgânicos do bloco histórico dominante costuravam e ainda hoje tentam manter escoimados num empedernido positivismo (Arruda Jr. 1992: 72-73). Esta interlocução com Gramsci ainda requer uma investigação no sentido de compreender a relação e as decorrências dessa opção teórica no instrumental teórico e prático do Direito Alternativo .
12 O Pluralismo Jurídico não constitui exatamente uma tendência ou um movimento, e sim uma definição sobre o direito, que permeia uma diversidade de tendências e concepções, a exemplo do Direito Achado na Rua, do Direito Alternativo, que mencionamos anteriormente. A ideia central do pluralismo jurídico se alicerça no entendimento de que a normatividade estatal procura excluir do seu arcabouço a dinâmica histórica e social e não incorpora nas suas fontes formais o direito espontâneo, informal, extra-estatal (Wolkmer 1992: 31). Em vista disso, ao referir-se sobre o potencial do direito alternativo, Wolkmer enfatiza que: A discussão e a articulação de um projeto alternativo que conduz a um 'novo Direito' passa, hoje, necessariamente, pela redefinição de uma racionalidade emancipatória, pelo questionamento dos valores e pela fundamentação de uma ética política de 'práxis comunitária', pela redescoberta de um 'novo sujeito histórico' e, finalmente, pelo reconhecimento dos movimentos e práticas sociais como fontes geradoras do pluralismo jurídico (Wolkmer 1992: 31).
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uma forma social própria do capitalismo (Soares; Pazello 2014: 484). Para os teóricos do Direito Insurgente, resguardadas suas distinções, tanto os alternativistas, quanto os pluralistas situam-se no limitado horizonte burguês ao abandonarem a necessidade de uma crítica estrutural ao fenômeno jurídico e comungarem de um fascínio pelos constitucionalismos (ibidem: 480 e 485). Em resposta a esse campo crítico sob “escombros” - expressão cunhada por esta tendência -, propõem a reapreensão do marxismo a partir das ideias – que consideram ainda não superadas - dos juristas russos Pachukanis e Stutchuka, considerados os principais expoentes do debate soviético sobre o direito. Nesse diálogo, destacam que:
Apesar de existir diferenças importantes entre o pensamento dos dois juristas soviéticos, que não serão aqui ressaltadas, há, em comum, uma articulação entre a metódica de Marx na construção teórica da especificidade da forma jurídica como relação social do capital e uma estratégia de luta política anti-jurídica, visando o progressivo definhamento desta mediação social alienada (ibidem: 485- 486).
Nesta exposição, destaca-se as questões centrais do pensamento de Pachukanis, quais sejam a ideia de extinguibilidade da mediação jurídica e a metódica de Marx e, acrescentaríamos, o antinormativismo, que parte de uma compreensão de que a norma não é uma abstração derivada do Estado, pois “o momento normativo, em sentido oposto, emerge de forma extra-estatal representado por uma relação jurídica contratual” (ibidem: 492). Assim, por um lado, essa constatação rebate toda uma herança liberal que destitui o direito do processo histórico para situá-lo ao lado do natural e do universal; por outro, afirmar que o momento “normativo”, no sentido posto, seja extra-estatal é insuficiente para compreender essa relação e o lugar determinante do Estado, indicando numa visão dicotômica que se expressa pela [...] separação da sociedade civil e do Estado reduzida a um mecanismo ideológico localizado no âmago das relações mercantis, à fetichização-reificação do Estado a partir do famoso fetichismo da mercadoria (Poulantzas 2000: 48).
A compreensão sobre o “momento normativo” como uma relação jurídica contratual tem centralidade na obra de Pachukanis (1988), que elaborou uma teoria geral do direito no capitalismo a partir das próprias categorias marxistas. Assim, na sua obra “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, ao aplicar por analogia o método utilizado por Marx na “Introdução à Crítica da Economia Política”, concluiu que existe um profundo vínculo entre a forma mercadoria e forma jurídica13 .
13 Como observa Cunha, essa aplicação do método marxista por analogia tem uma implicação de ordem metodológica, pois, ao concluir que existe um profundo vínculo interno entre a forma mercadoria e a forma jurídica, Pachukanis, inadvertidamente, toma a mercadoria como o ponto de partida do método marxista e não “a produção dos indivíduos socialmente determinada”. Com isso, confunde dois momentos distintos no método, que são a investigação e a exposição (Cunha 2014: 148-155). Isso resulta num problema de paralelismo, isto é, numa análise tendente a reconstruir o direito como totalidade concreta; o mesmo que Marx, do ponto de vista econômico, buscou fazer com o
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Por essa abordagem, se explica a emergência da igualdade e liberdade “formais” e “abstratas” entre sujeitos de direito que se igualam na lei para estabelecerem relações de troca, sendo o próprio sujeito essa mercadoria e, nesse sentido, a constatação pachukaniana é de que o fetichismo da mercadoria se completa com o fetichismo jurídico (Soares 2009: 10). Nesse passo, sendo o direito uma forma social essencialmente capitalista, o horizonte deve ser a sua extinguibilidade, que não coincide necessariamente com extinção do Estado na concepção pachukaniana. Com essas premissas, a proposta do Direito Insurgente implica:
[...] a) o pressuposto de que, inevitavelmente, a forma jurídica são relações de troca de mercadorias equivalentes entre sujeitos de direito iguais; b) o reconhecimento da ingenuidade das teorias críticas do direito de tipo pluralista e alternativista, bem como da teoria do poder constituinte, que não percebem a essência da forma jurídica e, portanto, não fazem adequada mediação com seus usos políticos; c) a afirmação da positividade dos movimentos populares na reivindicação de direitos e na contestação do direito; d) o reconhecimento, para a construção das mediações da teoria antinormativista, que é importante criticar o fato de que o assim chamado “socialismo real”, em especial o soviético pós-Lênin, manteve a forma jurídica e acabou por abafar a contribuição das mais avançadas teses marxistas sobre o direito, como as de Pachukanis (Pazello; Ribas 2015: 23).
Por este raciocínio, nosso esforço é dialogar com as concepções do Direito Insurgente no que diz respeito à relação entre as lutas sociais e o Estado, especialmente sobre a especificidade da mediação jurídica com o intuito de problematizar e complexificar a atuação da AATR no assessoramento dos trabalhadores/as rurais nos conflitos agrários baianos, buscando ainda influências recíprocas. De antemão, importa destacar nosso ponto de partida, que não vai exatamente da constatação sobre os usos possíveis do direito, emancipatórios ou não, mas da sua inserção “no conjunto do campo das lutas” – parafraseando Nico Poulantzas (2000)14 .
Isso implica na compreensão de que o direito não se encerra numa essen cialidade mercantil/econômica, mas, nas suas especificidades, se estabelece enquanto múltiplas relações de luta e poder, portanto, como relações de classes. Nesse ponto, sem adentrar nos desdobramentos que a leitura do Direito Insurgente sugere, consideramos que ela é insuficiente para entender o caráter contraditório e complexo do Estado e do direito, ao afirmar, por exemplo, que:
A pedra basilar na sociedade capitalista é a criação do (direito) pela classe burguesa, com o intuito de satisfazer seus interesses, mas com o refino de comandos que complexifiquem a relação a ponto de se chegar à ficção da igualdade formal. O estado existe para garantir as relações que o capital produz e, de algum modo, desloca a luta de classes para o tabuleiro
capitalismo, com vistas a explicitar toda a sua dinâmica interna e todas as suas contradições imanentes (Kashiura Júnior 2009: 42-3 apud Cunha 2014: 165).
14 Ao tratar sobre o papel constitutivo do Estado nas relações de produção e nos poderes que elas exercem, Poulantzas supera certas concepções, tal qual a weberiana, que associa as origens e as constituições das relações de poder à institucionalidade, e conclui que o campo primeiro das relações de poder são as lutas – econômicas, políticas e ideológicas – que detêm a primazia sobre o Estado (Poulantzas 2000: 43).
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do jurídico. Os trabalhadores passam a exercitar seus direitos, como o de greve, mesmo que impliquem limitações incomensuráveis. Aqui está o direito insurgente, caracterizado pela dialética necessidade-capacidade, mas premido pelas relações de produção. Por isso, tal direito insurgente se constitui como o desdobramento da ação coletiva irresignada, insubordinada e crítica, conforme seus critérios (Pazello; Ribas 2015: 5).
Obviamente que o Estado atua de modo a assegurar a dominação de classe, mas não se apresenta como um simples instrumento da classe dominante15. Como evidencia Mendonça, referindo-se ao conceito gramsciano, o Estado […] não deve ser pensado como organismo próprio da classe dominante. Ele deve representar uma expressão universal, de toda a sociedade, incorporando até mesmo as demandas e interesses dos grupos subalternos, mesmo que deles extirpando sua lógica própria (Mendonça 2014: 34). Essa observação é pertinente para pensar o lugar do direito na luta de classes. Nesse passo, nunca é demais lembrar que:
A lei capitalista surge como a forma necessária de um Estado que deve ter uma autonomia relativa em relação à essa ou àquela fração do bloco no poder para que se possa organizar sua unidade sob a hegemonia de uma classe ou de uma fração de classe. Isto está ligado à separação relativa do Estado e das relações de produção. Os agentes da classe economicamente dominantes não podem confundir-se com os agentes do Estado (Poulantzas 2000: 89).
Essa observação, a nosso ver, complexifica a funcionalidade da lei e, nesse caso, as próprias lutas populares de reivindicação e contestação do direito, uma vez que, ao invés de se apresentar como expressão dos interesses da classe dominante, está inserida no jogo de equilíbrios instáveis na mediação dos interesses divergentes no seio do Estado.
Isso não torna o processo de disputas em torno da lei mais ou menos favorável às classes dominadas – a exemplo das possibilidades do papel desempenhado pelas assessorias jurídicas – , mas indica dinamicidade e ambiguidade, pois, mesmo as conquistas mutiladas pela dominação de classe inscrevem as marcas das lutas e das resistências populares na materialidade do Estado (Poulantzas 2000: 71). Como aponta Poulantzas,
As classes dominadas encontram na lei uma barreira de exclusão e igualmente a designação do lugar que devem ocupar. Lugar que é também lugar de inserção na rede político- social, criadora de deveres-obrigações e também de direitos, lugar cuja posse imaginária tem conseqüências reais sobre os agentes (ibidem: 82).
Assim, não é somente contraditória a normatividade estatal como podem ser também as conquistas jurídicas dos grupos subalternos assessorados pela advocacia popular, dentre outros,
15 No artigo “Estado Ampliado como ferramenta metodológica”, Mendonça chama atenção para a riqueza da abordagem gramsciana de Estado Ampliado quando colabora para superação de certas simplificações em torno de sua apreensão, tal como as abordagens vinculadas a uma concepção de Estado Sujeito, isto é, que paira imparcial e acima das relações de interesses; e, inversamente, mas não menos insuficiente, a concepção de Estado Objeto, oriunda da leitura marx iana e reproduzida pelo marximo mecanicista, que o concebe como um “comitê” da burguesia, em outras palavras, um instrumento da classe dominante. (Mendonça 2014: 28- 38).
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porque os “usos possíveis” do direito não são uma mera relação de exterioridade. Dito isto, a análise que propomos sobre a atuação da AATR nos conflitos agrários envolvendo comunidades tradicionais, parte do pressuposto de que a lei é uma arena comum às diferentes classes e seus embates, assim como o próprio Estado, que não é uma simples representação dos interesses das classes dominantes, tampouco está afastado dos interesses conflitantes, mas se apresenta enquanto relação – não é Coisa, nem Sujeito. Especificamente, procuramos entender de que maneira a atuação dessa entidade colabora para complexificar os possíveis reflexos das lutas em torno da lei ao colaborar também para produção de noções de legalidade, legitimidade e justiça, que não coincidem, tampouco se afastam de todo da legalidade institucional.
3. A ATUAÇÃO DA AATR E AS DISPUTAS DE SENTIDO SOBRE O DIREITO
A existência da AATR, por si só, denuncia que a lei, a justiça e o direito são tendencialmente funcionais aos interesses dos pretensos proprietários de terra e projetos desenvolvimentistas, mas também revela, por outro lado, as contradições que se dão no seio do próprio Estado que, na mediação dos interesses divergentes a partir de um equilíbrio instável, em certos momentos, deve impor restrições à própria dominação, como bem explicitou Thompson (1997).
Nesse sentido, a AATR incide nos conflitos agrários envolvendo trabalhadores rurais para assegurar a permanência desses grupos na posse de suas terras, ao tempo em que disputa concepções sobre formas de uso (individual e coletivo) e de relação com a terra que conflita com a (naturalizada) noção liberal e hegemônica de propriedade privada que reduz a terra a uma mercadoria, passível à especulação e expropriação. Em outras palavras, disputa o próprio sentido sobre a história - na expressão de Holston (1993) - para que a historicidade de formas de propriedade distintas da propriedade mercantil se afirme no presente.
A nosso ver, isso perpassa por concepções de legalidade, legitimidade e justiça16, que são disputadas no processo de lutas com resultados imprevisíveis, tendo em vista que não se restringe a um simples jogo de causas ganhas e perdidas, mas da elaboração e redefinição de uma visão de
16 Por sua especificidade essas disputas não destoam dos termos legais definidores da propriedade privada, a exemplo das ações que se voltam para o grande nó das terras devolutas no Estado da Bahia, com vistas a reconhecer a ilegalidade, a ilegitimidade e a violência da grilagem de terras. Isso se dá a partir da conceituação que serviu à consolidação da propriedade privada no Brasil com a edição da Lei Imperial nº 601/1850, mais conhecida como Lei de Terras de 1850, que define as terras devolutas pelo critério da exclusão, isto é, como sendo aquelas glebas ou porções de terras não incorporadas ao patrimônio do particular e que não se encontram destinadas a um uso específico pelo poder público (Almeida 2003: 313).
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mundo, visto que, como lembra Poulantzas, a luta em torno da lei se situa num lugar cuja posse imaginária tem conseqüências reais sobre os agentes (Poulantzas 2000: 82).
Se concebemos ser a AATR uma advocacia popular em movimento, a chave de acesso ao seu projeto e à sua atuação deve dar conta dessa dinamicidade, de modo que a perspectiva teórica assumida seja o fio condutor, não exatamente para dizer, em termos definitivos, o que seja essa experiência, mas, em outro direção, para inseri-la no processo histórico, no perpétuo tecer e destecer de equilíbrios, alianças e enfrentamentos coletivos (Thompson 1979: 09), a qual o direito e suas diferentes expressões - conservadoras e rebeldes - não passam ilesos ainda que uma concepção positivista sobre a forma jurídica insista em esvaziar a sua própria historicidade. Como parte das nossas reflexões, nos somamos à
[...] tarefa, ainda em aberto, de recompor as bases para uma relação mais profícua e producente entre a ação/reflexão/ação (práxis) dos juristas junto aos movimentos sociais está ligada, portanto, à formulação de novas sínteses, que nem hipostasiem nem reduzam a uma única concepção o papel do direito na sociedade a partir de uma lógica binária – emancipação/dominação de classe – quando se trata de um campo teórico-prático de disputas, com dominantes e dominados (Ribeiro; Morais; et al 2018: 39).
Nessa perspectiva, com implicação profissional e militante, nos colocamos à tarefa de enveredar pelo campo de práticas e concepções teóricas da advocacia popular a partir de uma experiência em particular a fim de estabelecer um diálogo com as reflexões sugeridas pelo campo das teorias críticas do Direito.
Ao traduzir as reivindicações dos trabalhadores e trabalhadoras rurais para gramática dos direitos, os advogados e advogadas populares da AATR contribuem para exposição pública das contradições do próprio sistema de justiça. A convicção sobre os seus limites não desfaz o potencial da reivindicação e pode, em outro sentido, fortalecer o sentimento de injustiça quanto às decisões e interpretações que destoam dos padrões esperados de legalidade e legitimidade, ou como diria o historiador Thompson “os padrões de universalidade e igualdade” que conferem legitimidade ao domínio da lei (1997). Dito isto, recuperando a afirmação inicial de que a AATR se apresenta como um mediador político, por excelência, é válido dizer que nessa mediação, os advogados populares da AATR colaboram com a
[...] criação de narrativas, na fertilização de sentimentos de injustiça e na sua tradução em termos legais. Eles podem tanto explorar mecanismos legais e estimular sua implementação, como ajudar a “inventar” novas possibilidades que podem ser transformadas em lei, por pressão dos próprios movimentos (Medeiros 2018: 2).
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Nessa perspectiva, mais do que reconhecer o que a atuação da AATR pode produzir em termos de formulação e legitimação de direitos no âmbito do sistema de justiça, é saber qual é o potencial do seu projeto nas disputas de sentido sobre a história (Holston, 1993).
CONSIDERAÇÕES FINAIS :
Neste trabalho, a partir de algumas reflexões sobre a atuação da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais na Bahia, discorremos sobre a importância da advocacia popular nas lutas sociais do campo para além de possíveis conquistas e derrotas jurídicas resultantes de sua atuação, com o entendimento de que esse campo teórico e prático modifica e/ou acrescenta algo ao direito, mas não sem tensionamentos e contradições.
Não sendo o Direito um dado legislativo, produzido pelos grupos de poder, imergimos na experiência da AATR tanto pelas suas singularidades quanto por aquilo que ela é capaz de informar a respeito de outras experiências de advocacia popular no Brasil. Com esse recorte, nos voltamos para produção teórica que permeia as práticas jurídicas e políticas da advocacia popular. Com isso, estabelecemos um diálogo com as principais tendências do campo das teorias críticas do direito no Brasil - Direito Insurgente e Direito Achado na Rua -, ressaltando pontos de aproximação e divergência, especialmente nas abordagens sobre a relação do Estado, o direito e lutas sociais, no sentido de demarcar melhor a nossa proposição, as escolhas teóricas implicadas e seus desdobramentos para o objetivo de desvelar as contribuições e limites na luta por direitos encampados pelas assessorias jurídicas populares.
Sem negar as funcionalidades da lei e do direito na dominação de classes (Tho mpson 1998), partimos do entendimento de que os interesses divergentes no seio do Estado implicam-se de uma maneira desigual e contraditória, de modo que a atuação das assessorias jurídicas populares não se circunscreve nas extremidades entre os interesses das classes dominantes e dominadas, mas nos seus tensionamentos. Nas brechas e contradições da lei emergem os usos contra- hegemônicos do direito - lugar para onde convergem as distintas experiências de advocacia popular, que é a representação de uma multiplicidade de práticas na definição de uma categoria jurídica e política em movimento .
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AUTORA:
Maria José Andrade de Souza
Professora substituta da Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS. Doutora e mestra em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF.
E-mail: mariaandrasouza@gmail.com
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