CONFLUÊNCIAS

revista interdisciplinar desociologia e direito

VOLUME 21, N° 2

Niterói: Editora PPGSD-UFF, agosto de 2019

www.confluencias.uff.br

Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito – UFF

ISSN 1678-7145 || EISSN 2318- 4558

Rua Tiradentes, 17 (Térreo) – Ingá – Niterói, - RJ - CEP: 24.210- 510 (Faculdade de Direito – Campus II)

Telefone: (+55 21) 3674- 7477

E-mails: eduardobarbuto@yahoo.com.br e napoleaomiranda@id.uff.br

EDITORES: Napoleão Miranda e Maria Alice Nunes Costa

Coordenador Editorial: Eduardo Barbuto Bicalho

Corpo Técnico Editorial :

Ágatha Brito da Silva Izidro Luiza Alves Chaves Mylena Devezas Souza Thiago Opolski

Editora de Normas: Mara Magda Soares

CAPA: Desenho e composição gráfica de Sara Baptista | @Saizbel

Todos os direitos reservados. Os artigos publicados são a expressão exclusiva das posições intelectuais de seus respectivos autores e não do conselho editorial ou da revista.

Os artigos publicados poderão ser livremente reproduzidos em qualquer meio, desde que sejam feitas as devidas referências aos autores e à revista .



CONSELHO EDITORIAL

Adalberto Cardoso (UERJ)

Baudouin Dupret (CNRS, França)

Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra (CES/UC), Portugal)

Carmem Lucia Tavares Felgueiras (UFF)

Delton Meirelles (UFF)

Eliane Junqueira (PUC- RJ)

Elísio Estanque (Universidade de Coimbra (CES/UC, Portugal) Henri Acserald (UFRJ)

Joaquim Leonel de Rezende Alvim (UFF) Juliana Neuenschwander Magalhães (UFRJ) Luiz Augusto Fernandes Rodrigues (UFF) Luís Antônio Cunha Ribeiro (UFF) Marcelo da Costa Pinto Neves (IDP) Marcelo Pereira de Mello (UFF) Margarida Camargo Lacombe (UFRJ) Maria Alice Costa (UFF)

Maria Geralda de Miranda (UNISUAM)

Maria Paula Meneses (Centro de Estudos Sociais, CES/UC, Portugal) Mónica María B. Rúa (Universidad de Medellín, Colômbia) Napoleão Miranda (UFF)

Sam Moyo (African Institute for Agrarian Studies – Zimbábue) Samuel Rodrigues Barbosa (USP)

Sophie Olfield (University of Cape Town, África do Sul ) Wilson Madeira Filho (UFF)



Dossiê Especial

POR UNA SOCIOLOGÍA DESDE ABAJO


EDITORA CONVIDADA

Ana Maria Motta Ribeiro (UFF/PPGSD )

ORGANIZADORES

Flávia Almeida Pita (UEFS/ UFF) Hugo Belarmino de Morais (UFPB/ UFF) Maria José Andrade de Souza (UEFS) Naiara Coelho (UFF)

Pablo Rodrigo Fica Piras (UEFS)



SUMÁRIO

Apresentação: “Por una sociología desde abajo” - Ana Maria Motta Ribeiro, Flávia Almeida Pita, Hugo Belarmino de Morais, Maria José Andrade de Souza e Naiara Coelho

6

Prefácio Brasil: O Trabalho Coletivo do OBFF: Por uma sociologia “desde abajo ” - Ana Maria Motta Ribeiro

9

Prefácio México: El Trabajo Colectivo del Seminario Permanente “ Entramados Comunitários y Formas de lo Político” para el Dossier “Por una sociología desde

abajo” - Raquel Gutiérrez, Lucia Linsalata e Mina Lorena Navarro

32

ARTIGOS:

Por e para Mulheres: Uma Análise sobre a Atuação das Parlamentares da ALERJ, de 2015 a 2018 Naiara Coelho

37

O Direito que se Produz em Comum: As “Regras de Convivência” nas Experiências do Projeto Cantinas Solidária da Incubadora de Iniciativas da

Economia Popular e Solidária da UEFS Flávia Almeida Pita

54

A Atuação da Associação dos Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais da Bahia: Uma reflexão no Campo das Teorias Críticas do Direito – Maria José

Andrade de Souza

78

O “Primeiro Júri Popular Indígena” em Raposa da Terra do Sol: Poder Judiciário Roraimense e Possíveis Apontamentos Jusdiversos Thaís Maria

Lupterback Saporetti Az evedo

100

Uma Análise dos Debates Legislativos da Lei 12.850/13 e a Criminalização do MST Vanessa Ferreira Lopes

123

Segurança Hídrica para o Capital e Despojo Múltiple em Contextos de Escassez: Análise Crítica sobre o Novo Caminho das Águas do Estado da Paraíba, Brasil -

Hugo Belarmino de Morais

135

A Reserva Legal e as Legalidades Reservadas para a Reforma Agrária no Estado do Rio de Janeiro - Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa

157

A Devolutiva como Prática Dialógica/Dialética da Sociologia Viva do Observatório Fundiário Fluminense: O Caso da Luta pela Terra na Fazenda

Cabaceiras - Emmanuel Oguri Freitas

179

Racismo e Violência Contra Quilombos no Brasil - Eduardo F. de Araújo e Givânia Maria da Silva

196



La Dinámica Extractiva del Capital Como Amenaza para la Reproducción de la Vida. Algunas Reflexiones desde la Ecología Política y el Marxismo en Torno A l a

Noción de “Proyectos De Muerte” - Francisco Javier Hernández Hernández

209

Co-Producir Común Desde La Investigación Social: Reflexiones A Partir de lo Aprendido en una Experiencia de Mapeo Participativo con Comités de Agua del

Municipio de Cuetzalan del Progreso, México - Lucia Linsalata, Sandra Rátiva, Juliana Gómez e Kevin Hernández

226

Producción de Mandatos Populares y Política de Parte: Estrategias d e Transformación no Centradas en el Estado, Reflexiones a partir de l a

Experiencia Uruguaya - Diego Castro Vilaboa

243

Pensar el Territorio y Sus Reconfiguraciones en Contextos de Luchas Contra el Extractivismo Minero; El Caso del Valle de Oaxaca, México - Úrsula Hortensia

Hernández Rodríguez

260

¡Con Nosotras No!: La Organización Autónoma de Mujeres Indígenas De Tierras Bajas Un Prisma Para Entender El Presente En Bolivia - Claudia Cuellar

273

Tariquía: La Lucha De Las Mujeres Por Lo Común Que Reta Al Ré gimen Extractivista Boliviano - Claudia López Pardo

288

Producir lo Común para Sostener y Transformar la Vida: Algunas Reflexiones desde la Clave de la Interdependência - Raquel Gutiérrez Aguilar e Mina Lorena

Navarro Truji llo

298



APRESENTAÇÃO

Dossiê Especial: “Por una sociología desde abajo”

É com imenso carinho e satisfação que apresentamos este Dossiê Especial, intitulado “Por una sociología desde abajo” para o volume 21, n. 2, de 2019, da Confluências - Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito, vinculada ao Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD- UFF).

Ele é resultado de um diálogo internacional entre Brasil e México, produto coletivo, crí tico e interdisciplinar, que chega em boa hora às mãos – ou mais propriamente às telas dos computadores – do público brasileiro e latinoamericano interessado em reflexões e abordagens inovadoras no campo das ciências sociais e do direito.

Para esta publicação ocorreram ao menos três agradáveis confluências: de pessoas, de ideias/perspectivas teóricas e dos resultados das pesquisas.

Primeiramente, o Dossiê é resultado do intercâmbio institucional – e também cultural e afetivo – de dois pesquisadores brasileiros em terras mexicanas. Entre setembro de 2018 e fevereiro de 2019, o doutorando do PPGSD, Hugo Belarmino de Morais, realizou parte de sua pesquisa na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla (BUAP), viabilizado através do Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior da CAPES (PDSE-CAPES), sob a tutoria da Professora Raquel Gutiérrez.

Logo depois, entre outubro de 2018 e fevereiro de 2019 foi a vez da Professora Dra. Ana Maria Motta Ribeiro, socióloga e coordenadora do grupo de pesquisa e extensão Observa tório Fundiário Fluminense (OBFF), também chegar à cidade de Puebla para realizar seu intercâmbio institucional como Professora Visitante da Pós-graduação em Sociologia da BUAP.

Ambos, orientando e orientadora, participaram de diversas atividades de ensino, pesquisa e extensão do Seminário Permanente “Entramados comunitários y formas de lo Político” coordenado pelas professoras Raquel Gutiérrez, Lucia Linsalata e Mina Navarro, professoras do mais alto nível acadêmico, carinhosamente chamadas de “as entramadas”, não somente pela sintonia e criticidade das investigações que desenvolvem sobre as tramas comunitárias para reprodução material e simbólica da vida, mas também pela forma como entrelaçam afetividade e seriedade com seus orientandos e pela maneira tão carinhosa e respeitosa com que nos receberam na BUAP.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 6-8 6



Deste rico ambiente acadêmico caracterizado pela diversidade e pela inquietude para construção de caminhos diferentes e plurais para a transformação social, seguiu-se a confluência de ideias e perspectivas teórico-metodológicas. Ainda que guardando diferenças – decorrentes do processo de formação dos respectivos grupos de pesquisa e suas influências – identificamos um conjunto de temas e questões que dialogavam fortemente, motivo pelo qual foi idealizado um evento para troca de experiências entre pesquisadoras e pesquisadores que articulassem as teorias críticas com pesquisas empíricas, em especial àquelas que apontavam para situações de conflito a partir das experiências e lutas concretas dos povos, grupos e classes sociais, perspectiva que temos chamado, no âmbito do Observatório Fundiário, de Sociologia Viva .

Assim, entre os dias 06 e 07 de fevereiro de 2019 realizou-se na cidade de Puebla o “Conversatorio Internacional Brasil-México (UFF-BUAP) - Por una sociología desde abajo: el papel de la metodología de campo en la investigación sobre formas no capitalistas de reproducción de la vida”, que contou com a participação dos orientandos de pesquisa do Brasil e do México vinculados aos dois grupos de pesquisa para compartilhar experiências, alguns presencialmente e outros virtualmente através de apresentações por Skype.

No curso do evento também foi realizado o lançamento internacional do Relatório “Racismo e violência contra quilombos no Brasil”, realizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), a Terra de Direitos, a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia e Coletivo Joãozinho do Mangal – Assessoria Jurídica Popular.

Cabe destacar que seguindo as confluências de pessoas e afetos, aos dois pesquisadores se juntaram presencialmente, no mês de Janeiro de 2019, Naiara Coelho e Flávia Almeida Pita, também pesquisadoras do PPGSD, que além de apresentarem suas pesquisas ligadas às outras linhas de pesquisa do PPGSD ajudaram a organizar e pensar coletivamente a proposta do evento. Neste processo de organização e editoração do Dossiê se somou a pesquisadora Maria José Andrade de Souza e o Prof. Pablo Rodrigo Fica Piras (UEFS), que gentilmente trabalhou na revisão das versões finais dos textos em espanhol.

Desta forma chegou-se à terceira confluência, desta vez entre os produtos das apresentações transformados em artigos científicos sistematizados neste Dossiê Especial. A riqueza teórica e metodológica do evento nos convenceu da necessidade de disseminação dessas diversas experiências de investigação, quer seja na compreensão e denúncia dos múltiplos processos de expropriação em curso, quer seja na afirmação e sistematização das também múltiplas e concr etas

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 6-8 7



formas de reprodução da vida alternativas ao capital, que hoje pulsam e resistem por toda a América Latina.

E outras confluências já vêm caminhando juntamente com as anteriores. A formação de uma agenda de pesquisa e trabalho interinstitucional está em curso através da criação da Red Temática “Luchas en defensa del agua, para la reproducción de la vida digna y la construcción de autonomía energética” que agrega diversos grupos de pesquisa, coletivos e instituições. Por outro lado, está em processo de formalização um convênio institucional entre BUAP e UFF para continuidade das trocas e intercâmbios entre os dois programas de pós- graduação.

Dada a extensão e natureza do trabalho, além deste editorial temos dois prefácios, um escrito pela Professora Ana Maria Motta Ribeiro, que sistematiza e discute os (9) nove textos brasileiros, e outro prefácio, assinado pelas três professoras do Seminário de Investigação Mexicano, Raquel Gutiérrez, Lucia Linsalata e Mina Navarro, que apresentam os (7) sete textos produzidos pelos participantes do México. Cabe ressaltar que o caráter bilíngue e internacional do Dossiê se fortaleceu ainda mais em virtude da presença de duas pesquisadoras da Bolívia e um do Uruguai - também doutorandos da BUAP - que colaboram para a reflexão crítica dos desafios atuais naqueles países.

Por fim, apostamos que este Dossiê possa servir para outras duas essenciais confluências . A confluência das lutas e da solidariedade internacional. Como os textos irão comprovar para as e os leitores, é importante buscar os pontos de contato e de entrelaçamento das lutas desde abajo , principalmente num momento de tamanhos retrocessos dentro e fora das Universidades brasileiras. Momento em que urge pensarmos criativamente para além (e contra) o pensamento hegemônico e dominante.

Por este motivo, a solidariedade expressada pelas companheiras e companheiros de investigação no México, que tanto alentou as pesquisadoras e pesquisadores no momento difícil que vivenciamos, demonstra que é preciso continuar juntos e seguir juntos, buscando fluir, con-fluir e com-partilhar os desejos para um outro mundo possível.

Uma boa leitura a todas e todos!

Ana Maria Motta Ribeiro Flávia Almeida Pita

Hugo Belarmino de Morais Maria José Andrade de Souza Naiara Coelho

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 6-8 8



PREFÁCIO BRASIL

O TRABALHO COLETIVO DO OBFF: POR UMA SOCIOLOGIA “DESDE ABAJO”

Ana Maria Motta Ribeiro Entre outubro de 2018 e fevereiro de 2019 estive na Benemérita Universidad Autónoma de

Puebla - BUAP, como Professora Visitante, junto ao Entramados Comunitarios y Formas de do Político, seminário permanente do seu Programa de Pós-Graduação em Sociologia, que se constituiu como um grupo de pesquisa e ensino coordenado pelas Professoras Raquel Gutierrez, Mina Navarro e Lucia Linsalata. Vivenciando um vivo intercâmbio cultural, realizei um substantivo diálogo com suas sensíveis formas de reflexão a partir das novas epistemologias descolonizadas e, sobretudo, feministas críticas, por elas descritas como uma teoria crítica do “paradigma do C.P.C.” (Colonialismo – Patriarcalismo – Capitalismo).

A experiência mexicana tornou possível amadurecer o balanço do meu próprio caminho de atuação intelectual coletiva produzida no Observatório Fundiário Fluminense – OBFF, núcleo vinculado ao Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito1 da Universidade Federal Fluminense-UFF, coordenado por mim desde 2000, dedicado à formação de pesquisadores em trabalho de campo, assessoria a movimentos sociais rurais e orientação para titulação acadêmica com base empírica e estruturada na Teoria Crítica.

Ao lado de meus orientandos e de outros(as) pesquisadores(as) do PPGSD-UFF, busquei uma conversa mais funda com as pesquisadoras e as pesquisas da BUAP, no sentido de tent ar cotejar as diferentes experiências desenvolvidas tanto aqui como lá, para conseguir fazer uma conexão teórico-metodológica, fora do sentido costumeiro da situação enraizada das sociologias praticadas entre nós, e uma articulação do pensamento estratégico que pudesse situar de fato o

1 Já estamos na sexta ou sétima geração de pesquisadores titulados que orientei em cada um desses níveis a partir do

OBFF. Todos eles continuam envolvidos com os investimentos conduzidos pelo OBFF e representam, sempre que necessário, a nossa articulação, colocando-se em permanente disponibilidade para trocas, apoios, leituras e comentário de trabalhos acadêmicos, discussão de encaminhamentos de assessoria popular, mantendo a tendência de produzir textos com autoria coletiva para publicação ou discussão em eventos científicos. Temos também uma rede de comunicação onde partilhamos pensamentos, informações, histórias pessoais e abraços.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 9



Brasil dentro da América Latina, coisa em geral pouco considerada. Foi este o sentido de criar um espaço de debate entre os dois núcleos, através das investigações desenvolvidas por nossos orientandos, que podem mostrar mais claramente a nossa reflexão atuante de uma Sociologia desde abajo. Ele se materializou de forma sensível com o “Conversatorio Internacional Brasil- México (UFF-BUAP) - Por uma sociología desde abajo: el papel de la metodología de campo en la investigación sobre formas no capitalistas de reproducción de la vida”, realizado em 06 e 07 de fevereiro de 2019, em Puebla, contando com participação de pesquisadoras e pesquisadores do Brasil e do México para compartilhar experiências entre o Entramados Comunitários y Formas de lo Político, da BUAP, o OBFF e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.

O Dossiê que com alegria lhes apresento retrata, assim, os preciosos e intensos momentos que lá compartilhamos. Como foi possível vivenciar nos debates ocorridos em nosso Conversatório , agora será possível checar a maestria da atuação acadêmico-militante através dos artigos que formam este Dossiê, com destaque para o nível e a sintonia de pesquisa dentro da Teoria Crítica. Começo lembrando que o Entramados Comunitarios y Formas de lo Político, em especial

através do potente pensamento de suas coordenadoras, procura focar o olhar sobre o COMUM na América Latina, através da pesquisa empírica, mapeando formas não capitalistas de reprodução da vida material e imaterial, sobretudo de comunidades tradicionais, subalternizadas pela dominação hegemônica e que se colocam, via de regra, na condição de mobilizadas em defesa de territórios e das águas que constituem seus espaços de reprodução identitária. Estes mesmos espaços vêm sofrendo verdadeiro esbulho e “despojo” pelo capital em seu movimento cada vez mais agressivo e desesperado de devastação do ambiente natural e de comunidades tradicionais e originárias, cujo modo de vida sempre se constituiu como ativo e protecionista.

As pesquisas que desenvolvem têm revelado em que medida, em seu acontecer, esses grupos se fazem enquanto identidade social e política na territorialidade que geram e, simultaneamente, como modo de preservação ativo da natureza, assim construindo uma forma social, política, simbólica e econômica de reprodução da vida material e imaterial, suficiente e substantiva para além dos interesses privados do lucro.

Sabe-se a contento – como verificado historicamente – que, na transição do feudalismo para o capitalismo, novas formas emergiam ainda sem a posição dominante que iriam assumir após o processo revolucionário, futuras formas burguesas de produção da vida que já aconteciam simultaneamente e estavam em gestação. Então, porque não podemos conceber que formas atuais

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 10



de autonomia e de reprodução anticapitalistas da vida não podem estar em processo agora mesmo e ter esse mesmo potencial?

Na sua intensa produção acadêmica, Raquel Gutierrez, Mina Navarro e Lucia Linsalata têm elencado elementos de reflexão extremamente instigantes que merecem toda a nossa consideração. Elas têm encontrado em seus empreendimentos investigativos, realizados pessoalmente ou junto de seus pares/orientandos, diversas manifestações sociológicas que estão em curso, só visíveis em razão das escolhas teórico-metodológicas que promovem, uma vez que se apresentam apenas ao olhar “a contrapelo”. Mesmo que subsumidas pelas relações de dominação patriarcais, colonialistas e racistas, sempre invasivas e reducionistas quanto a seus sentidos, elas ainda assim resistem e encontram sentido, sobretudo quando esses grupos humanos usam outras narrativas e linguagens, vindas de alguma tradição popular antiga ou recente, todas dentro do aqui indicado como o COMUM .

Do mesmo modo, essas formas de autonomia também podem sair e se mostrar através dos desdobramentos de processos de conflito quando se revelam desde a construção de suas pautas: em defesa da água, do território e, de pertencimento ao território ainda que recente em novas temporalidades provenientes de processos de ocupação organizada, pelo que eu incluiria, a conquista da “terra de trabalho”2 através de lutas como no caso dos sem-terra do Brasil. Aparecem aos olhos e ao conhecimento científico crítico, então, essas novas formas de reprodução material e imaterial da vida que esses segmentos sociais do mundo popular costumam expressar e praticar diuturnamente: saberes e visões de “um outro mundo possível”.

Assim situei o trabalho do Observatório Fundiário Fluminense - OBFF a partir dessas provocações que elas me trouxeram. O contraste observado entre essas dimensões e camadas problematizadas quando se constroem “desde cima” ou a partir de processos de acontecimento “desde baixo”, reveladas à contrapelo, ao longo de situações de conflito no meio rural, tem permitido olhares e descobertas empíricas novas, inclusive algumas vezes negadas até entre as produções da academia de esquerda.

Agora, defino com mais segurança em que medida os conflitos rurais, tomados como sujeitos da ação histórica, têm se situado como dimensões contraditórias da expressiva devastação provocada por agentes transnacionais que, em geral, apresentam sua intervenção com suporte dos Estados nacionais e/ou das elites locais na América Latina, através do discurso desenvolvimentista. Também aprendi com elas – disso me permitindo a liberdade de me apropriar, atravessando seus argumentos com minha bagagem acumulada de observação – que essa

2 Trabalho aqui no constructo de “terra de trabalho” está pensado no sentido LIBERTÁRIO .

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 11



intervenção hegemônica neoliberal tem provocado diferentes graus e formas de reação entre os agentes da classe atingida e fazem aparecer desde a condição subsumida, produzindo, às vezes ao mesmo tempo, tanto acomodação, em suas respostas tensionadas dentro da situação, até a emergência e a explosão de experiências concretas de resistência e enfrentamento, para além do capitalismo como modo de vida.

Mas existe uma recorrência essencial a ser posta em cena: o lugar das mulheres nesses conflitos e nos cotidianos. No cenário resultante dos desastres provocados pelo neoextra tivismo capitalista e nas lutas de reação, as mulheres são as que primeiro se levantam e se colocam à frente, se arriscando de modo radical, sempre quando se trata de esbulho da natureza – e certamente por sua condição de útero da humanidade e da Patcha Mama. Mas, depois de deflagrado e visibilizado o conflito, elas, em geral, são deslocadas e acabam sucumbindo às ingerências patriarcais de seus próprios companheiros comunais que secundarizam sua ação e seu lugar nessa luta, e emergem claros mecanismos de opressão dentro desse terreno dos subalternizados, que não podem mais ser omitidos ou secundarizados! Ou tratados como uma questão burocratizada de colocação estatística de mulheres em posições na diretoria, onde raramente dirigem de verdade, quando as entidades são mistas.

No final, concordo totalmente com Raquel Gutierrez quando, em uma de suas palestras, afirmou que um mundo pelo feminino vai ser melhor não apenas para mulheres, mas talvez, principalmente, para os homens, que poderão se libertar – desde que queiram – dos grilhões do patriarcalismo que muitas vezes restam internalizados em suas consciências e almas mesmo quando querem afirmar que não concordam com ele.

Na minha opinião, esse trabalho interdisciplinar da Sociologia latino-americana forma um a Escola de pensamento no México, trazendo perguntas e questionamentos importantes principalmente para a produção da Sociologia desenvolvida até hoje pelas nossas esquerdas. Esse grupo tem conseguido avançar em relação a muitas formulações que se tornaram tradição institucionalmente reconhecida, quando guiam seu olhar para mais além das formas de dominação e libertação determinadas pela proletarização efetivadas nos séculos XIX e XX.

Essa postura acomodada tem resultado numa espécie de insensibilidade mecânica, por ainda fornecer na análise estratégica – e em pleno desemprego estrutural do capital financeiro, que promove a ampliação do trabalho abstrato genérico – um lugar exclusivo e privilegiado à classe operária, sobretudo urbana, como chave da direção da rebeldia principal, não assumindo que a classe de contraste emerge sempre quando está em processo de luta tática ou estratégica contra toda

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 12



e qualquer forma de opressão. É o que aponta hoje o protagonismo das lutas de mulheres e de indígenas na cena principal contra o fascismo no Brasil, por exemplo.

A direção orgânica da ação de classe, portanto, deve ser buscada e explicada sem preconceitos, dado que a agência de classe pode aparecer a partir de diversos e até inimagináveis lugares de partida e de fala e em permanente movimento fluido e líquido – se querem – intercambiáveis ou inesperados, e até, algumas vezes, tradicionais, reapresentando na cena entidades de mediação que vem sendo desestruturadas pelo sistema, como os sindicatos e associações ou até alguns movimentos sociais organizados, para não mencionar os partidos políticos. Fica a pergunta chave: e se o próprio conceito de classe, embora estratégico nas formas de luta mais diretas, estiver sendo ressignificado, quando se trata de entender essas novas formas de reprodução não capitalísticas da vida?

Mais uma questão apareceu em foco para nosso regozijo e contentamento, provocada por esse grupo de mulheres interessantes e que pretendemos incluir em nossa análise doravante: a necessidade de problematização (e desnaturalização, outra vez) do Estado burguês, datado, que tende a ser assumido como instância imutável e inerente à experiência social, se tomado como um “bloqueio epistêmico” ao pensamento sociológico, porque somente assim se pode chegar a ver e conhecer, de fato, as variadas, inusitadas, reproduzidas ou ressignificadas formas do político que são geradas, muitas vezes com possibilidades reais de se apresentarem como alternativas de organização, regramento da vida ou gestão, fora dos padrões do sistema capitalista.

Foi igualmente surpreendente conhecer essa nova e aberta reflexão que provoca o pensamento, trazendo à cena perguntas mais básicas, contemporâneas e intrínsecas, tais como: em que medida o colonialismo e o patriarcalismo e, em nosso caso o racismo, se constituem como formas inerentes da dominação, que precisam ser desnaturalizadas com ênfase para a percepção da realidade no movimento do capitalismo atual? De novo, será então a partir dessa forma de construção teórica que novos grupos sociais podem conseguir aparecer para poderem ser reconhecidos como ação fundamental dentro da luta maior dos subalternizados. No Brasil, pode- se ver inclusive o fato de que comunidades indígenas têm reagido coletivamente ao esbulho da natureza, saindo de seu lugar dentro das florestas, voltando a “pintar a cara”, para agirem mais uma vez, como o fazem desde o século XVI, como “guerreiros”, e a seu modo.

A novidade é que esse segmento social, do mesmo modo que tem sido afetado pela violência genocida, tem reagido formando alianças com outros grupos de oprimidos em luta. Veja - se a mobilização de mulheres indígenas em Brasília, recentemente, entre os dias 09 e 13 deste agosto de 2019. Terminaram no ultimo dia todas juntas na caminhada da tradicional Marcha das

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 13



Margaridas organizada pelo sindicalismo rural há mais de dez anos: mulheres indígenas ao lado das trabalhadoras rurais.

Na verdade, os indígenas, atualmente, têm se colocado com um padrão de visibilidade coletiva e de participação, até de certa forma inédita, entrando em lugares onde antes não apareciam. Como, por exemplo, no Congresso Nacional; definindo e construindo articulações e parcerias entre iguais no exterior, dentro da pauta ambiental do planeta – o que traz alianças com países e personalidades políticas fortes da cena internacional –; politizando (eu diria, sociologicamente) ao encontrar apoio externo e garantindo sua centralidade como os “guardiães de florestas” na ação preservacionista global e, ainda, assumido uma atuação que muitas vezes apare ce como diretiva, ocupando lugares de direção do processo de contradição da agência social, antes ocupado por outros e diversos segmentos da classe, ocupando a capital Brasília dentro de uma forma movimento atualizada pelo MST, embora com suas marcas simbólicas, trazendo seu vestuário, plumas, tacapes, cocar, bordunas, arcos e flechas, e as pinturas de guerra, naturalmente. Vale trazer aqui a reflexão provocada por Luiz Henrique Eloy Amado, índio Terena, meu orientando no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminese-PPGSD-UFF (ao qual ingressou beneficiando-se da elogiável política de cotas do programa). Ele nos relata que, durante sua participação em um evento na Universidade de São Paulo-USP, teve que acentuar enfaticamente o seu “lugar de fala” junto a antropólogos quando lhe questionaram quanto à irregularidade de definição de um grupo étnico como classe. Luiz Eloy sinalizou a todos nós, durante nossas conversas de orientação coletiva, que reconhece essa condição como real desde que a redução (ou significação) de indígenas na condição de classe foi pautada pela ação de violência e genocídio das elites agrárias e pelo avanço do capital neoextrativista em curso, cuja resposta teria aproximado as lutas indígenas atualmente levadas à frente nesses marcos estratégicos.

A violência letal em ascenso contra esses grupos e a ação de esbulho da natureza que atinge seus territórios identitários é que podem estar levando a uma conformação social nova até para eles. O capital proletariza hoje tanto natureza como as comunidades tradicionais. Então é este movimento – deles e, eu acrescentaira, dos quilombolas, ribeirinhos, caiçaras etc... – que os transforma em “Classe”, que os obriga a se verem como atingidos em comum e a ter que reagir de modo inteligente e claro junto a seus iguais desde baixo, promovendo dentro dessa nova condição política uma forma de defesa que envolve cada vez mais alianças e troca de aprendizados de luta contra o capital.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 14



Assim, então, percebemos ligações importantes entre os grupos que estudamos aqui e no México, olhando as escolhas reprodutivas, ainda que minoritárias, também expressas como escolhas enquanto modos de vida razoáveis para a humanidade, contra o capital. Seria possível até especular sobre um desenho significativo da crise da forma capital em si mesma e sua falsa e vulnerável eficácia até mesmo para os próprios capitalistas, que atualmente empreendem seu processo de acumulação em uma rota desesperada, envolvida com a destruição letal do planeta e da própria burguesia terceiro mundista, quando escolhem a ganância engendrada pela produção de alimentos envenenados que ela própria consome sem cuidados.

Enfim, esse seria o caminho do pensamento articulado que emergiu desse Conversatório que trazemos para a UFF – ao PPGSD e ao Departamento de Sociologia – enquanto novas formas de construção teórica e empírica, por uma sociologia desde abajo .

Cabe a mim, agora, apresentar, neste Dossiê, a produção dos autores e autoras brasileiros, vinculados ao OBFF e ao PPGSD- UFF.

Entre os objetivos do OBFF destaca-se a formação de pesquisadores da empiria, em nível interdisciplinar, nas diferentes escalas da graduação até a pós-graduação, a partir da Teoria Crítica, mais especificamente, do Materialismo Histórico Dialético, recortado pelo trabalho investigativo dos Historiadores Marxistas Britânicos (HMB), entre eles Eric Hobsbawn, E. P. Thompson, Cristopher Hill e Raymond Williams, os quais dialogam frequentemente com Walter Benjamin, o mais jovem herdeiro da Escola de Frankfurt. Soma-se a esse legado, uma escolha teórico - metodológica cada vez mais integrada à leitura e re-leitura dos pensadores latinos pelo viés das epistemologias descolonizadoras, abolicionistas e feministas críticas (Aníbal Quijano, Florestan Fernandes, Rui Mauro Marini, Paulo Freire, Carlos Brandão Leonilde Sérvolo de Medeiros, Carlos Walter Porto-Gonçalves, Mirian Cardoso Limoeiro3 e outros críticos essenciais de nossa produção latina).

Esse diálogo levou à construção de uma referência epistemológica que permite uma integração de saberes, a partir dos quais o Entramados Comunitarios y Formas de do Político da BUAP nos ofereceu ideias fundamentais, como se verá neste Dossiê, no sentido de um mapeamento crítico estratégico de formas de acontecimento do Comum.

No Brasil, as experiências populares do que pode ser reconhecido como o Comum serão aqui apresentados através dos estudos que foram desenvolvidos por seus autores em teses e dissertações, os quais levamos até Puebla. Serão mostrados e analisados nos artigos situações diversas de resistência e conflitos encaminhados por segmentos subalternizados do campo,

3 De quem destaco, em especial, O mito do método (1976), basilar na nossa concepção metodológica.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 15



revelando em que medida o Brasil sente, do mesmo modo que os demais países deste nosso continente, um processo de dores e sacrifícios oriundos de desastres e de formas de extermínio de classe e de mercantilização da natureza.

A cada tese ou dissertação temos acumulado reflexões que partem do foco na ação, na agência das classes em disputa, especialmente em situações de conflito no meio rural. Esse o lhar tem nos permitido a compreensão da ação imperativa e manipulativa do capital em confronto com estratégias tentadas, inventadas, reinventadas e às vezes descobertas na ambiguidade mesma, pelos subalternizados como agência de contradição histórica, e que tem se acumulado através de investigações de cada candidato à titulação, que se alimentam de debates estimulados entre si neste Núcleo e com os próprios segmentos estudados.

Os textos dos membros do OBFF irão mostrar essa démarche desde a eleição dos temas e problemáticas, que envolvem em geral o lugar da Lei e do Direito, e a partir de cada unidade de observação escolhida. Aparecerão expostas lutas grandes e miúdas que se desenvolvem firmando tentativas, alternativas de caminhos, símbolos, narrativas, e as quais precisam ser valoradas e problematizadas em seu potencial e em contraste criticamente construído pela teoria, em contradição com o outro lado, que se reproduz pela equação estruturante do capital com patriarcalismo e colonialismo.

A leitura desses textos poderá talvez ajudar na elucidação dos movimentos atuais do sentido da dominação no país, os quais, apesar da sua condição hegemônica – mantida inclusive dentro dos governos recentes do Partido dos Trabalhadores através de uma política de alianças com o agronegócio, e pela pressão de interesses internacionais das grandes potências no sentido de abrir as riquezas naturais, sobretudo depois da descoberta das reservas pretolíferas do Pré-sal – precisaram convocar e respaldar os interesses estrangeiros antinacionalistas dentro de uma volta ideológica mais conservadora, em um leque que agora se aproxima até mesmo do fascismo.

Para nós é importante estudar tanto os de baixo como os de cima da sociedade, para entender a própria expressão da dominação. Devemos levar em conta que não é primeira vez que essas elites rurais estariam optando por uma posição antinacional ou antiregional, como a bibliografia clássica e histórico-política do Brasil aponta (Oliveira, 2008), o que dá a esses grupos uma certa tranquilidade cínica na posição autocentrada e privada (Duarte, 1966), além de se apresentarem como se fossem naturais “donas do poder no Brasil” (Faoro, 2000).

A perfeita compreensão dos conflitos analisados nos textos do dossiê exige destacar que a novidade no cenário atual, promovido com suporte das elites agrárias, é a chegada aos modos mais severos de fascismo e das fórmulas de dominação impacientes e abusivas relativamente ao “jogo

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 16



democrático”, a negação mais radical e inconsequente da decisão conquistada pelos Whigs x Tories, que levou ao Pacto Burguês e definiu o lugar da Lei e da Justiça no mundo moderno da própria burguesia. Assim se pode entender como hoje estão sendo reproduzidos no Brasil o law fare e decisões teatrais na cena do poder de Estado.

Acontecimentos se acumulam nessa condição, como a formação de um golpe de estado, a produção de discursos justificadores e ações políticas arbitrárias sem justificativa em modo de discurso democrático mínimo, ausência quase total de discrição ou respeito de uma aparência de estatuto legal ou legítima, abertura sem critério da riqueza nacional à exploração predatória do capital estrangeiro, construção de argumentações através de mentiras políticas com falsas afirmações. Para, então, chegar-se à desnacionalização e ao rebaixamento da economia nacional e, fatalmente, à destruição de direitos básicos do trabalho e dos trabalhadores em escala monumental. Esse rumo ao fascismo, ao mesmo tempo que uma imposição, seria também um movimento revelador de algum padrão de vulnerabilidade crescente de nossas elites, (compostas por uma amálgama de oportunidades até intercambiáveis entre os representantes das bancadas ruralista, ideológico religiosa – envolvendo evangélicos pentecostais e neopentecostais ou católicos carismáticos – e da bala) para uma entrada nesse padrão de selvageria de classe?

Neste Dossiê estamos tentando demonstrar em que medida estudar empiricamente – embora problematizando o objeto de conhecimento dentro do Materialismo Histórico Dialético atualizado pelos HMB, mas definitivamente sem expectativas pré-definidas por doutrinas sobre os subalternizados do campo e seus conflitos – pode representar um real aprendizado dos acontecimentos em curso, em especial relativamente às formas que tem assumido o movimento do “fazer da classe” em luta.

Acredito, de fato, que assim mostraríamos a contribuição do OBFF como intelectual coletivo e a partir de uma reflexão que possa tornar possível olhar as aproximações vivas que estão acontecendo neste momento em nosso continente, tomando-as como fatos concretos a serem costurados para a compreensão da experiência de luta desde abajo na Latino América. Dessa forma fazem-se orgânicos em sua condição, seja ela qual for, e quando se reproduzem econômica, social e culturalmente no coletivo em uma imensa diversidade de situações vivenciadas que conectam ancestralidade, noções de pertencimento e saberes de difícil classificação quantitativa, como a descoberta de caminhos de produção à contrapelo que possam ser mapeados por uma nova Sociologia Crítica.

Essa forma de estudo e pesquisa “sem algum julgamento de compreensão prévio”, que amarre as explicações e interpretações, aparecerá em todos os artigos, dando à empiria histórica um

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 17



assento importante e reconhecido. Isso nos parece importante por apontar que os limites das concepções tradicionais do próprio marxismo, embora sejam referenciais, portam o risco de chegar a apagar o que se pode encontrar acontecendo, de fato, como a essência e a síntese das determinações não aparentes do real, se não balizadas e questionadas. É o que acontece, em geral, quando algumas fórmulas do que foi enfrentado por Marx e pelos marxismos do século XIX e XX se fossilizam e chegam a ganhar valor pelo simples fato de terem sido descobertos naqueles momentos por pesquisadores clássicos e notáveis. Essa atitude, a meu ver, pode ossificar como “verdade” fórmulas que não sejam permeáveis ao reconhecimento da legitimidade da ação na práxis – ainda quando se apresentam como ambíguas. Com os textos reunidos no Dossiê pretendemos demonstrar em que medida seus autores optaram por uma sensibilidade aberta a toda e qualquer expressão de resistência, antiga e tradicional, formas de ação, algumas vezes impensadas, que emergem quando o enfoque busca outras determinações presentes de opressão em variados níveis, camadas e dimensões.

Também será possível observar como se pode chegar ao reconhecimento de novas formas de resistência na prática da luta de enfrentamento ou na narrativa a contrapelo entre os agentes em contradição sob as mais diferentes linguagens possíveis. Como demonstram os artigos, eles não serão tomados de modo absolutizante a ponto de se chegar a desconsiderar a importância de uma leitura dos fatos pelas determinações mais enraizadas no marxismo, mas levando ess as considerações em conta e debatendo com elas permanentemente até se conseguir ou a sua incorporação ou seu abandono, sem qualquer culpa. O destaque está no fato de que insistimos que não se pode prescindir de um diálogo profícuo com intelectuais comprometidos com uma academia militante que praticam o pensamento dialético. Mas debater não pode representar se submeter.

A nossa primeira perspectiva de trabalho nasce e se atualiza, assumindo o olhar sobre o mundo através da própria Sociologia Crítica como escolha de conhecimento, porque traz o foco para a ação humana sensível a partir da qual o mundo real deve ser considerado, ao contrário do fetiche que transforma a mercadoria em ponto de partida de todo acontecimento. E esse é o movimento a contrapelo primordial que nos orienta. A segunda é a tomada de posição para ver a experiência humana no mundo “desde abajo” ou, a partir da visão da experiência que se constitui na ação que acontece e se movimenta desde baixo até chegar em cima. O que seria uma tentativa d e tradução aproximada do que os HMB chamam de ação “from bottom up”, querendo afirmar que a determinação principal da produção do mundo está na luta de classes .

Temos percebido em que medida atuações técnicas de nossos ofícios, ao lado de um conjunto cada vez maior e crescente de ferramentas que vamos descobrindo e socializando no

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 18



OBFF, têm permitido chegar a produzir emergências de informação entre nossos “falantes”4. E em que medida podem também permitir verdadeiras revelações sobre suas próprias experiências, para eles e para nós pesquisadores.

Constatamos, em cada caso, como precisamos ser criativos na busca de ferramentas de observação e de trabalho empírico interdisciplinar, fato que está mais relacionado à sensibilidade sobre o momento e a uma atitude ética do pesquisador, do que às recomendações de manuais padronizados de pesquisa. Resulta que essa prática requer um acúmulo significativo em relação ao conhecimento das ferramentas tradicionais de pesquisa a ponto de se poder prescindir delas e descobrir outras. Revela-se, assim, a importância de juntar esforços e fazer uma investigação coletiva – justificando, inclusive, o meu esforço pessoal de me fazer presente no campo de observação de cada um dos meus orientandos: para partilhar, balizar e socializar experiência acumulada e poder chegar mais longe e mais fundo.

Realizamos uma variedade de Pesquisas Qualitativas Participativas, sempre realçando a relevância do trabalho de assessoria jurídica popular ou educacional nas Ciências Sociais, que trazem acúmulo de reconhecimento, mas que também necessitam ser desnaturalizados e estranhados para que se possa pensar o mundo dominante a partir das dialéticas.

Entre as ferramentas muito usadas por nós se destacam a cartografia social, oficinas de memória, fotografia como documentação crítica de registro do social (no modelo das oficinas de João Roberto Ripper5), organização de processos de mobilização, apoio a assembleias comunitárias, acompanhamentos de processos de judicialização, audiências públicas organizadas “desde baixo” pelos atingidos por desastres ambientais ou pelo cercamento/privatização das águas como território, enfim, de uma sequência de formas de resistência em confronto que permitam ver e compreender a ação das contradições e tensões de interesses em movimento – todas como chaves de observação pertinentes, que terminam por resultar na produção de um trabalho de academia militante dentro dos parâmetros da pesquisa-ação, pesquisa participante ou pesquisa luta, totalmente antipositivistas (o que não exclui, muitas vezes, a necessidade de utilização de métodos quantitativos para oferecer um parâmetro em termos gerais e em escala maior e generalizante). Muitas vezes, ainda, o empírico também se traduz em formas expressão por documentos e então os métodos de investigação da História e de análise de conteúdo e de discurso aparecem como necessários.

4 Categoria lacaniana que substitui com vantagem a categoria de informantes em nossas inserções nas unidades de observação, como propõe Tereza da Costa, em tese defendida no PPGSD-UFF, sob orientação do Professor Delton Meirelles. A investigação tratou do acesso de psicóticos à Justiça e foi defendida em 17 de junho de 2019, perante banca da qual fiz parte.

5 Fotógrafo consagrado de imagens-denúncia e de registro identitário de acontecimentos junto aos movimentos sociais organizados do campo, em sua maioria. Ver em seu sítio: <https://imagenshumanas.photoshelter.com/ >.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 19



Na verdade, muitas vezes, concluímos que a própria pesquisa de campo pode ser considerada uma ferramenta, dada a condição de imersão na realidade e seu caráter de intervenção que coloca em oposição os diferentes saberes e experiências que constituem os dois lugares de fala, o dos que vivem a experiência e o de quem estuda essa vivência e que para tanto precisa estranhá- la ou, até certo ponto, negá- la.

Do mesmo modo, a Sociologia em si – considerando seu ofício e acúmulo teórico crítico, se crítico – em geral também acaba resultando numa ação que promove tanto a autorreflexão do pesquisador, quanto pode gerar mecanismos de autorreflexão entre os grupos estudados, pelo aporte de novos paradigmas que começam a produzir “explicações”, às vezes inéditas, sobre a realidade de rotina, vivida sem muito questionamento ou acomodada sobre normas de explicação em modo de fetiches.

Essa produção tem procurado colocar em debate pesquisadores da academia e protagonistas das lutas (o pensar e o sentir) para chegar ao resultado do trabalho investigativo. Uma ação de pesquisa onde se necessita demonstrar em que medida o trabalho intelectual é conduzido por pesquisadores titulados e reconhecidos, os quais não podem sucumbir ao populismo demagógico e têm que defender com brio sua arma teórica bem formada, e que precisam, enfim, ser extremamente atentos às regras da pesquisa científica, sobretudo, porque em sua escolha – por entender a realidade a partir da práxis e do concreto – os pesquisadores da academia têm que desenvolver um diálogo “entre iguais”, num modo em que uns tem o domínio da teoria e os outros o domínio – respeitado e reconhecido – da experiência vivida.

Justo por isso, esse diálogo cognitivo aparece tencionado, sobretudo, com os protagonistas da ação de classe sob estudo, uma vez que a pesquisa deve respeitar quem se estuda e em que medida os agentes da experiência tem primazia sobre sua própria história, o que também não exclui a necessidade do pesquisador elaborar e construir seu objeto de modo consistente. Neste sentido, é o embate em si mesmo, o processo que pode construir pelo confronto e pelo debate – weberianamente falando – o próprio conhecimento.

Isso tem permitido a geração de resultados investigativos, como se verá nos trabalhos aqui apresentados, que oferecem uma espécie de balanço de formas de opressão e dos desastres provocados como última forma de reprodução do capital e que destacam em que medida a luta de resistência aparece como parte real dessas formas capitalísticas de acontecimento em curso. Então, a decadência formal do capital – ainda que hegemônico – acaba sendo delimitada em sua condição vulnerável temporal quando é possível denunciar sua ação predatória e suas “manobras” ideologicamente justificadoras, como atos e falas disfarçadas de um sucesso cada vez mais

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 20



improvável para todos e para si mesmo. Neste sentido, mesmo considerando a dinâmica atual do mundo trasnacionalizado, a posição hierárquica da acumulação que separa países ricos e gestores mundiais, dos países de menor posição gerencial da acumulação, é que vale a pena então, voltar à pergunta já feita anteriormente: irão os próprios burgueses manter e sustentar seu lugar como receptores que irão se alimentar do veneno que compram para ampliar quimicamente a produção agrícola, o que os situa em modo de subordinação radical, mesmo considerando que ao se submeterem ao império logístico da reprodução industrial como forma única de geração de lucr o pelo monopólio artificial da vida se estabelecem nesse lugar como dependentes crônicos de remédios?

O conjunto de elementos presentes nos textos da parte do Brasil do Conversatório deste Dossiê irão permitir traçar uma linha síntese acumulativa de meu trabalho de socióloga e pesquisadora há mais de quarenta anos. Todo o trabalho investigativo, de orientação acadêmica para bacharelado ou licenciatura na graduação, de mestrado ou doutorado, na pós-gradução, ou de formação em trabalho de campo em todos esses estágios, toma hoje o corpo de uma proposta que chamo de SOCIOLOGIA VIVA e que resume, seguramente, a minha própria trajetória de socióloga a partir da UFF ao longo de mais de 40 anos.

O que chamo de SOCIOLOGIA VIVA pode ser aqui resumido dentro de algum as características essenciais, boa parte delas já enunciadas ao longo da caracterização do trabalho acadêmico militante do OBFF, que segue acontecendo.

Desde essa SOCIOLOGIA VIVA, o OBFF deve ser considerado um ente ativo e um intelectual coletivo, uma vez que cada pesquisa, não importa o nível, deve ser partilhada e discutida e, portanto, se configura como essa produção. Uma produção que tem de saída a configuração acadêmica de uma atuação militante em situações de conflito, em locais eleitos para observa ção, mas também em oportunidades que apareçam e em que ele seja demandado como apoio de assessoria.

As bases da pesquisa investigativa aparecem como desenvolvidas pelo uso consciente dos cinco sentidos na relação entre observador e observado: visão, olfato, audição, paladar e contato direto e sensível.

O trabalho de campo deve ser precedido em geral de um processo de reflexão intenso que leve à construção do Objeto Teórico pela leitura e estudo focado da literatura, buscando uma formação teórica forte, no geral. Isso deve incluir uma revisão, às vezes releituras, de textos clássicos da Teoria Crítica, o que inclui a releitura de textos clássicos da análise marxista consagrada (muitas vezes resgatando-se os esquecidos, outras lançando mão dos muito repetidos ,

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 21



mas pouco lidos de fato, que merecem nova consideração). Ou de textos marxistas nacionais ou latino-americanos que devem ser datados e repensados em sua potencialidade explicativa. Mas deve-se também incluir a leitura de produções teóricas em outras linhas para permitir uma capacidade de discussão inteligente com autores e ideias fora do nosso main stream crítico.

Depois, um acurado e exaustivo estudo em busca de metodologias experimentadas e técnicas de coleta de dados em outras pesquisas dentro do mesmo tema, o que em geral ajuda muito. Finalmente, e atualmente na ordem do dia, uma leitura que permita a formação de um pensamento e uma atitude decolonial, antipatriarcal e abolicionista, o que em geral encaminha novamente à busca de autores latino-americanos, nacionais, regionais e locais na intenção de dar sentido abstrato e empírico dentro desses marcos.

Vale destacar também, e absorver, as ideias que aponta Ginsburg (2006) para superar o fato de que os segmentos populares dispõem de pequenas e raras formas de registro, quando a criatividade deve se impor e todas as linguagens possíveis do plano simbólico devem ser buscadas e planejadas para utilização, tais como cartas pessoais, músicas, lendas, mitos, imagens, desenhos, documentos, notícias desde o movimento social ou da própria mídia oficial (hoje valeria incluir as redes sociais que facilitam inclusive a comunicação entre os de menor instrução, que têm a seu favor as mensagens de voz), novelas e programas de TV e rádio (sobretudo dos chamados programas “populares” e mesmo das mídias religiosas) e até fofocas, enfim. Todo planejamento prévio da pesquisa, no entanto, não exclui a possibilidade da emergência de informação em momentos relacionais nada típicos, como, por exemplo, uma possível descarga moti vacional, reveladora, que pode acontecer inesperadamente durante uma audiência pública, por exemplo. Depois, no plano específico temático, ainda no momento de estudo e preparação, faz

sentido procurar ler e estudar dentro de variadas disciplinas com professores, da UFF e de fora dela – pesquisadores notáveis e respeitados na Teoria Crítica e/ou normativa e no tema. Ler e estudar para compreender o lugar e os acontecimentos que serão reconhecidos em um recorte arbitrário e legítimo que o pesquisador terá que fazer para poder chegar a um problema de conhecimento específico: buscando uma reconstrução crítica da história e do processo histórico gerador com os historiadores locais, com a literatura, música ou imagens regionais; diferentes levantamentos, a exemplo de clipping de jornais e notícias; procurando localizar e definir os argumentos a favor e contra a situação pela qual desenvolvemos empatia para poder construir formas de estranhamento que permitam sair do círculo da ideologia e da contra-ideologia domina ntes.

A chegada no campo deve ser planejada em toda a logística possível e de modo estratégico para que não se comprometa cada contato (transporte, alimentação, estadia, apoio, cartas de

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 22



referência, contatos agendados, endereços e datas, articulações e suportes, uso de referências institucionais ou políticas, definição das condições do campo e separação das instâncias), lembrando que o modo como se “entra” no campo determina muita coisa e deve ser em si mesmo problematizado, depois de qualificado na escrita final. E, dentro dele, não se pode prescindir de um caderno de campo onde tudo que se coletar e tudo que se sentir deverá ser anotado e registrado, até contatos ou desdobramentos que deverão ser checados e buscados depois.

O campo deve ser concebido em si mesmo como um lugar do previsto e do imprevisto, na mesma medida, e como o momento onde tudo pode acontecer, mudar e até virar de cabeça para baixo as pretensões desenhadas no gabinete. Onde fatos novos podem emergir e revelar novos caminhos a alargar o campo, ou acabar por impor novo retorno à área. Sempre que possível, será bem-vindo o uso de instrumentos de apoio com mapas ou relatos e contatos prévios e incluindo recursos tecnológicos (tipo GPS, por exemplo), considerando que no campo deve-se procurar captar tudo que seja possível, mesmo que pareça maior do que nossa unidade empírica e nosso problema. Depois, no gabinete, poderemos fazer recortes e uma seleção na hora da escrita, mas nunca antes, porque mesmo que não sejam utilizados muitos dos dados levantados, eles podem servir como parâmetros, ou mostrarem coisas e situações que não vimos na observação dentro do campo e que poderão vir a nossa cabeça na hora de analisar, sistematizar, classificar, interpretar e escrever. Sempre que possível vale à pena discutir com nossos contatos de referência o que fazer

com a geração de dados, relativamente à disponibilização dos dados para os movimentos sociais. Sempre irão aparecer formas e modos de demanda de ajuda mais imediatos que valem à pena serem cumpridos para que a proximidade resulte em uma clareza de posições e de assessoria real.

O anonimato dos nossos falantes deve sempre ser ponderado, dado o nível de violência contra os segmentos e comunidades organizados em situações de conflito. Uma certa crítica entre os subalternizados quanto à direção política do movimento deve ser observada e valorada – não se trata de “obedecer” direções políticas, mesmo que com elas concordemos em nosso ambiente de cidadania, mas antes de entender o que está de fato acontecendo, uma vez que é para isso que nossa expertise ganha mérito e é chamada. E mesmo que tenhamos que afirmar algo com o qual discordamos, é preciso saber que não vale ganhar ideologicamente, mas vale apresentar a realidade de fato e passível de ser avaliada por qualquer outro pesquisador de nossa linha ou fora dela, afirmando a relevância do pensamento científico que, se honestamente exposto, poderá ser verificado e ao final dará crédito ao que descobrimos.

Esse sentido universal do conhecimento científico, contrariamente à produção baseada e reduzida ao particular e privado do senso comum é o que diferencia nosso trabalho, muito mais

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 23



ainda quando ele se pretende crítico. Torna-se aqui uma questão de honra revelar nossos métodos e técnicas e permitir nosso julgamento por nossos pares.

Dentro do campo, ao longo do contato mais aproximado, físico e afetivo, destaco duas estratégias. A primeira, já mencionada diz respeito a importância do uso dos cinco sentidos, os quais devem gerir e nos dominar desde a abertura, da preparação planejada e devidamente negociada com os agentes locais, incluindo contatos estratégicos com os representantes relacionados, sejam os de cima – elites e aparelhos de Estado e Sistema Judicial em suas nuances – sejam os de baixo, nas diferentes escalas da agência social. Deve-se considerar possibilidades reais de divergências entre agentes da luta e questões sutis, como de gênero, raça e faixa etária.

A segunda, é a primeira chave da ética da pesquisa neste contexto, determinada pela importância do respeito e reconhecimento qualificado a ser oferecido pelos pesquisadores ao chamado “lugar de fala” de cada agente social investigado e de cada falante ouvido e registrado. E o afeto, consequente e comprometido, vai aparecer então como necessário e parte do empreendimento de conhecer o mundo do outro pela ciência a que nos propomos, e por isso não poderá ser visto como uma escolha eventual quando se pretende entrar de modo tão radical e sem cerimônia na vida de grupos sociais, em sua história, em seus sentimentos, suas dores e derrotas e, enfim, em sua energia para não desistir de lutar.

A ética do retorno – a devolutiva da pesquisa – é o principal ato de fé que se pode oferecer para equilíbrio de posições, e deve ser assumido desde o primeiro momento do contato, considerando que nosso objeto de pesquisa é, ao mesmo tempo, sujeito que merece consideração, e o reconhecimento político e científico nessa equação do conhecer. Portanto, para que esse segmento social não se torne um “laboratório de ervilhas e ratos” dos quais o cientista se sente dono, torna- se essencial a devolução ao grupo estudado dos resultados da pesquisa e das indagações formuladas durante a investigação, sabendo que muitas vezes esse retorno pode acabar como mais uma ferramenta de observação, trazendo mais e novas questões, e assim por diante...

Esse rumo tem me permitido, no plano do afeto, vivências emotivas profundas para além da razão, onde me deparo com imagens de uma crença enorme que são depositadas em cada um de nós e na intimidade que nos oferecem com total generosidade, mesmo quando consigo enxergar como são duras as vidas que são compartilhadas conosco, e como é covarde a violência que enfrentam.

Mesmo após as vivências ao longo das pesquisas, somos muitas vezes procurados, quando precisam de nós ou mesmo quando não somos realmente necessários (como quando simplesmente lembram da nossa data de aniversário). Procuram-nos para relatar fatos novos (revelando que de

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 24



algum modo conseguimos incutir neles uma preocupação com os dados), pelo simples fato de que “confiam em nós” e por isso retornar essa confiança acaba se traduzindo num acordo tácito dentro de uma honra entre comuns que nos põem dentro deste círculo, onde conhecer se acumula com também confiar e respeitar.

Mais uma chave deve ser apontada: merece chamar atenção nesse roteiro (que jamais poderia ser esgotado dada a condição de singularidade de cada encontro entre pesquisador e seu objeto humano de estudo) que as conjunturas e acontecimentos gerais da região, do país ou do mundo podem atingir de tal modo a empiria que a possibilidade de mudança de foco e de recorte torna-se mais do que possível. E ainda: deve-se manter em mente, a todo momento que, no final se pretende ter transformado tanto o lugar de estudo (em termos do encaminhamento do conflito em si mesmo, o que nunca tem data de validade final, garantindo a importância do compromisso do pesquisador com seu objeto) quanto se espera que a experiência da pesquisa em si tenha transformado a cabeça do pesquisador, a ponto de se chegar a uma condição razoável de construção de um novo desenho de raciocínio ao qual se poderá nominar como o produto acadêmico militante ou a tese a ser defendida.

Por último, a compreensão precisa ser estimulada pela ideia de que tudo é ao mesmo tempo o seu contrário. Diria que este é o mantra focal da sensibilidade cognitiva da pesquisa da SOCIOLOGIA VIVA, que admite que muitas vezes alguma coisa que aparece como boa deve ser percebida também (buscando-se situações típicas) como terrível, e vice versa, dependendo do momento ou lugar de referência6. Esta é forma de mirada crítica central para a produção do olhar desconfiado do observador, que quer de fato conhecer e da melhor maneira possível, mesmo que tenha que enfrentar divergências no próprio campo (que deve buscar resolver o máximo possível por lá). Neste sentido, a ambiguidade deve ser tomada como uma possibilidade inerente à realidade sempre quando se pretende atuar na leitura do mundo social como movimento vivo, em construção, nunca pronto e repetitivo.

A SOCIOLOGIA VIVA, no final, é aquilo que resultou de muitas e variadas idas a campo ao lado de meus orientandos e suas questões, com as quais consegui crescer minha visão, levando

6 Isso poderá ser observado em alguns dos textos e eu destacaria, no texto de Hugo Belarmino, o significado da luta levada pela esquerda a favor da retificação do rio São Francisco, num momento, contra a transposição e, logo depois, ressignificada quando no universo político “as águas chegaram ao Nordeste e à Paraíba”, em 2015, pelas mãos da administração política do PT, em pleno processo de desgaste encaminhado pela direita. Então começa a ser cada vez mais improvável “voltar à bandeira da defesa da saúde do rio” neste contexto em que as águas chegaram de fato e com elas “o fim da seca, pelas mãos de Lula” que aparece em um comício. É, assim, reforçado um novo discurso do mesmo , mas desta vez dentro de um acordo que passa a fazer parte da bandeira do PT e de entidades de trabalhadores, disputando um lugar político no cenário nacional com um tema mais do solidificado nas consciências populares atra vés de longa força discursiva das elites por manipulação (indústria da seca) mas ainda assim pretendendo e conseguindo reaparecer como novidade “popular”.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 25



comigo perguntas que não elaborei mas em que acreditei, num exercício conjunto de investigação levado em todas as suas consequências e motivações.

Esse acúmulo se produz depois de muitas leituras discutidas, audiência a seminários de várias vozes e debates, assim como das muitas e variadas inversões e imersões de pesquisa de campo realizadas no Brasil junto a diferentes comunidades tradicionais ou recentes, contatos e assessorias ao lado de lideranças orgânicas em momentos de tensão real e em diferentes regiões do país.

Experimentando essa SOCIOLOGIA VIVA, continuamos acumulando e construindo essa experiência como um acervo de conhecimento de povos comuns cujo registro é negado, apagado ou deformado pelas elites proprietárias dos meios de comunicação e documentação na América Latina. É essa produção em movimento constante que, na verdade, o que mais me encanta em meu trabalho.

Assim expostas as bases que unem os autores e autoras dos textos que apresento, dirijo- me então a cada um deles mais especificamente.

Começarei pelo texto Naiara Coelho, mestranda do PPGSD-UFF que apresenta o tema de gênero com excelência e cujo enfoque justifica sua aproximação com nosso projeto, não obstante não esteja sob minha orientação acadêmica (sendo orientada em seu processo de pesquisa pela Profa. Maria Alice Costa). Trabalhando o tema da representação política institucional, ela busca demonstrar por meio de dados empíricos a atuação parlamentar no Estado do Rio de Janeiro de mulheres empossadas que constroem estratégias possíveis de atuação pró-direitos das mulheres, em um contexto de alta presença de forças repressivas de milícia e de alto grau de feminicídios, usando com grande propriedade a teoria crítica feminista.

A seguir temos o texto de Flávia Almeida Pita, doutoranda do PPGSD-UFF sob orientação da Profa. Carla Appollinário de Castro e minha co-orientação. A investigação que desenvolve, no entanto, é também fruto de seu trajeto, desde 2010, junto à Incubadora de Iniciativas da Economia Popular e Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana (Estado da Bahia), onde também é professora do Curso de Direito (onde participou da concretização de uma turma de Direito integrada por beneficiários e beneficiárias da reforma agrária7). Trata-se de uma experiência mais do que interessante de pesquisa participante em diálogo com dois grupos de mulheres que

7 Destaco esta significativa experiência, no âmbito do curso de Direito da UEFS, da Turma Especial para beneficiários da Reforma Agrária, através de um convênio firmado com o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA. A Turma Elizabeth Teixeira – que assim homenageia a trabalhadora rural e integrante das Ligas Camponesas na Paraíba, símbolo da luta pela reforma agrária no Brasil – formou, em 2018, advogados e advogadas comprometidos com as lutas camponesas no Brasil. Foi a terceira experiência deste tipo no Brasil voltada para o ensino do Direito, (a primeira deu-se na Universidade Federal de Goiás), representando uma vitória significativa considerando o caráter elitista desta área de conhecimento.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 26



investem e constituem uma ação conjunta, onde todas e todos, incluindo os professores envolvidos no Projeto, ainda aprendem diariamente, na rotina complexa da ação coletiva, como conviver e como estabelecer regramentos de sociabilidade na experiência praticada em duas cantinas de alimentação que atendem a Universidade. A Autora faz da experiência oportunidade para pensar a possibilidade de um direito do comum, a partir da construção coletiva das regras produzidas pelas trabalhadoras em sua convivência. Emergem peculiaridades e histórias dos grupos, um deles originário de uma comunidade quilombola, e do processo do fazer acontecer novas possibilidades de atuação autogestionária do trabalho coletivo, contribuindo-se para a ampliação do sentido do trabalho solidário e popular em contradição com a exploração opressiva do capital, que despersonaliza o exercício de horizontes de sentido de fazer-se uma vida entre iguais.

Maria José Andrade de Souza, doutora pelo PPGSD-UFF (onde foi orientada pelo Prof. Valter Lucio de Oliveira e co-orientada por mim), membro da assessoria jurídica popular da AATR e também professora do curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana (e também da Turma Elizabeth Teixeira). Ela traz um trabalho, de grande valor teórico e político, ao reconstituir e problematizar a memória da primeira atuação brasileira de advocacia popular em nível associado (a Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais do Estado da Bahia – AATR), e que gerou uma atuação profissional cuja reprodução traduz o lugar da atuação acadêmico-militante do Direito como instrumento de emancipação social e, simultaneamente, as histórias de conflitos violentos para acesso à terra de segmentos subalternizados em um país e em uma região em particular com uma estrutura fundiária fortemente concentrada. Destaque-se que essa pesquisa produziu um balanço inestimável – um balanço em movimento, sem fecho definitivo – das correntes teóricas críticas do Direito, abrigadas pelas experiências provenientes da prática desenvolvida pela advocacia popular no país e, com ela, a ação das classes trabalhadoras na produção do justo .

Thais Maria Lutterback Saporetti Azevedo, doutora pelo PPGSD-UFF sob orientação do Prof. Wilson Madeira Filho e minha co-orientação, apresenta um texto a partir de sua tese de doutorado, que recebeu Menção Honrosa do Prêmio Capes de Tese 2018. A Autora apresenta uma análise do Primeiro Júri Popular Indígena, acontecido no Estado de Roraima, com uma discussão instigante sobre a produção de um conceito que acolhe a diversidade no Direito – o de “jusdiversidade” –, para pensar a ideia de justiça em suas manifestações plurais e que questiona, portanto, o Direito Positivo e, finalmente, apresenta uma noção de Direito definido segundo uma concepção comunal.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 27



Ela defende a construção cognitiva do regramento social também para além da abordagem formalista quando demonstra empiricamente a existência de outras formas de Direito em curso, que atualizam os sentidos da vida para os indígenas, os quais passaram a avaliar e a ponderar desde baixo, a diferente e até certo ponto desarticulada e pouco educada atuação do Direito dos “brancos”. Interessante saber que um segundo julgamento do mesmo caso, com efetivo protagonismo indígena, chegou a um resultado diferente. Thais Lutterback assumiu ativamente no Júri, a convite, o papel de advogada de defesa, exercendo plenamente a condição de observação participante, tendo recebido do grupo indígena em razão de sua atuação como advogada de defesa, a denominação de caucuxi , ou seja, a onça.

O texto de Vanessa Ferreira Lopes, minha orientanda no mestrado PPGSD-UFF, trata do processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, reforçado pela Lei n. 12.850/13, proposta durante o governo petista de Lula (2012) e promulgada no governo de Dilma Roussef (2013). Uma Lei que, paradoxalmente, serviu de opressão ao movimento social mais articulado ao partido no poder – e que acabou ironicamente por ser útil, mais tarde, ao Golpe de Estado contra a própria Presidenta e o PT.

Definindo o enquadramento como “formação de quadrilha”, essa Lei transformou em criminosos, legitimando seu encarceramento a partir de ações penais, lideranças do MST que articulavam desde sempre processos de ocupação de terra para trabalhadores, numa tentativa de democratização de um estrutura fundiária excessivamente concentrada no Brasil, um país onde as elites agrárias nunca permitiram a realização de uma reforma agrária sequer nos moldes conservadores. A pesquisa de Vanessa juntou dados e tenta trazer elementos para uma análise dos significados dessa criminalização de trabalhadores organizados, para formar uma melhor compreensão do processo político brasileiro desde dentro do foco central da reprodução do poder através do agronegócio e formas de lawfare.

Doutorando do PPGSD-UFF e professor da Universidade Federal da Paraíba, Hugo Belarmino, também meu orientando atual, oferece no seu texto uma abordagem instigante para ser aproveitada por outros pesquisadores, quando faz uma leitura original da água como território, a partir da experiência das comunidades paraibanas atingidas pela obra hídrica Canal Acauã- Araçagi, lida através da categoria do cercamento das águas. Na sua investigação também se tem um belo exemplo da Sociologia Viva exercitada pelo OBFF, na medida em que apresenta o seu trabalho de campo, desenvolvido na forma do que chamou de “novo caminho das águas”, quando experimentou o percurso que partiu Barragem de Acauã até o canteiro de obras do Canal Acauã-Ara çagi,

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 28



vivenciando, junto aos atingidos e atingidas, os reflexos da obra, dentro de um contexto de “produção de escassez” hídrica no Nordeste brasileiro.

Neste campo, em que estive presente, sobressaiu para mim e de modo expressivo para essa argumentação um fato que merece destaque. Quando um falante da pesquisa que foi atingido pela Barragem do Acauã – atualmente um pouco afastado das atividades do Movimento –, em determinado momento sentou no chão com um carvão e começou a desenhar o que ele chamou do mapa do caminho das águas, onde ele procurou demonstrar aos pesquisadores “para onde estão seguindo as águas controladas pelo canal”, em direção ao agronegócio e a terras sem escassez de água. Pode-se dizer, neste sentido, que o objeto de estudo se autoreflete e constrói então para os pesquisadores uma das hipóteses mais vigorosas da pesquisa.

Rodolfo Bezerra de Menezes Lobato da Costa, cientista social e doutor pelo PPGSD - UFF, atualmente professor da Universidade Federal do Paraná, apresenta um artigo a partir da tese que defendeu recentemente, sob minha orientação, onde aponta elementos novos e instigantes sobre as formas de definição de modelos de planejamento e reordenamento territorial. No texto o Autor ilumina as experiências e modelos produzidos por uma comunidade de agricultura familiar, sempre negadas pelo Estado que lhes impõe, sem dar ouvidos às suas próprias vivências, soluções inadequadas e absolutamente fora de qualquer possibilidade de aceitação. Esse grupo tenta se estabelecer como assentado há cerca de 22 anos, processo que tem sido acompanhado pela UFF, através do OBFF, seja em razão de nosso objetivo de pesquisa, seja por demanda direta da própria comunidade.

Este acompanhamento de larga duração, através do qual vários trabalhos acadêmicos foram desenvolvidos, acabou sendo perseguido como forma de aprendizado. Iniciamos em 2000 como um agente convidado pelo Governo/Estado, chamado a oferecer uma assessoria no sentido de equilibrar um conflito entre o Ministério do Meio Ambiente e o Ministério da Questão Agrária, que se contrapunham quanto ao direito de permanência de beneficiários da reforma agrária em uma área próxima de uma Unidade de Conservação Integral (i.e., que não admite presença humana dentro de um conceito ultrapassado, mas ainda existente) e que tomava como ícone o Mico Leão Dourado, animal da fauna brasileira em extinção. Um Laudo Multidisciplinar foi realizado por nós envolvendo laboratórios e núcleos de pesquisa em parceria com o OBFF, articulando ofícios diversos de Engenharia Agrícola, Biologia, Geografia, Direito e Sociologia. Chegamos a um acordo entre as partes pela assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta – TAC, o qual nunca foi cumprido pelo Estado como deveria. Dezesseis anos depois, a comunidade, acossada por decisões estranhas do governo, volta a procurar os professores da UFF, mas dessa vez nos solicitando apoio

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 29



direto, quando então passamos a nos posicionar como assessores diretos da Comunidade em lugar de consultores do Estado e assim mudamos nossa posição dentro da realidade e nosso olhar sobre os fatos em curso.

O texto de Emmanuel Oguri Freitas – hoje doutor pelo PPGSD-UFF e professor do curso de Direito da Universidade Estadual de Feira de Santana – apresenta a melhor versão metodológica do fazer pesquisa do OBFF, qualificando nossa rotina e uma experiência de investigação dentro da prática da produção de um momento determinado – a devolutiva. Na sua pesquisa de doutoramento, sob minha orientação, procurou estruturar o pensamento a partir de W. Benjamim, entendendo a luta de classes como a narrativa do sujeito no movimento da história e voltando sua empiria para o problema do trabalho escravo, a partir de um caso emblemático do Estado do Pará.

Emmanuel mostra em que medida o momento da devolutiva é não apenas essencial em termos de retorno como também produtor de um grande potencial de levantamento de novas questões, uma vez que os falantes da pesquisa se sentem também na posição de explicadores e concluintes das indagações levantadas. Isso sem mencionar a emotividade que apareceu na forma de compreensão por parte dos moradores no momento atualizado desse encontro quando a maior parte dos acontecimentos estudados já havia acontecido e sido superada. Nessa hora o protagonismo dos falantes demonstrou - em que pese muitas das demandas terem sido perdidas ou negadas pelo Estado ou pelo sistema de Justiça - um sentido e uma sensação de vitória e conquista entre eles que mesmo nós não conseguíamos ainda enxergar. Isso nos colocou dentro de condições reais e bem vindas de humildade acima da prepotência acadêmica que em geral tende a ser superdimensionada. Fecha a produção brasileira o texto de Eduardo Araújo e Givânia Maria da Silva, que

resulta do relatório Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, produzido conjuntamente pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Terra de Direitos, a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia e Coletivo Joãozinho do Mangal – Assessoria Jurídica Popular. Ele tem lugar neste Dossiê não apenas porque o lançamento do Relatório integrou a programação do “Conversatorio Internacional Brasil-México (UFF - BUAP)”, mas pela importância do trabalho para as lutas desde abajo no Brasil, somando-se ao viés de denúncia a sua contribuição para compreensão das formas de (re)existências através das mobilizações políticas e jurídicas por direitos.

Isto posto, agora aqui saúdo os leitores dessa empreitada, agradeço a atenção e destaco que tudo que aqui está dito tem valor na medida em que é produto de diálogo, debate e de uma inteligência, na minha opinião de melhor e maior qualidade, porque partilha e quer partilhar saberes num universo solidário.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 30



A SOCIOLOGIA VIVA então é isso. Uma forma de conhecer e de reconhecer e, desta forma, partilhar um mundo que vemos e não gostamos, para transformá-lo em um outro possível e melhor, mais solidário e justo.

Boca do Mato, Cachoeiras de Macacu, RJ, Brasil, 21 de agosto de 2019 . REFERÊNCIAS :

CARDOSO, Miriam Limoeiro. 1976. O mito do método. Boletim Carioca de Geografia, Rio de Janeiro, ano 25, p. 61- 100.

DUARTE, Nestor. 1966. A Ordem Privada e a Organização Política Nacional – Contribuição à Sociologia Política Brasileira. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional .

FAORO, Raymundo. 2000. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 2 v. São Paulo: Publifolha.

GINZBURG, Carlo. 2006. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras.

OLIVEIRA, Francisco de. 2008. Elegia para uma re(li)gião: Sudene, Nordeste. Planejamento e conflito de classes. São Paulo: Boitempo.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 9-31 31



PREFÁCIO MÉXICO

EL TRABAJO COLECTIVO DEL SEMINARIO PERMANENTE “ENTRAMADOS COMUNITÁRIOS Y FORMAS DE LO POLÍTICO” PARA EL DOSSIER “POR UNA SOCIOLOGÍA DESDE ABAJO”

Raquel Gutiérrez, Lucia Linsalata y Mina Lorena Navarro

En febrero de 2019 en la ciudad de Puebla, llevamos a cabo el “ Conversatorio Internacional Brasil-México:
 Por una sociología desde abajo: el papel de la metodología de campo en la investigación sobre formas no capitalistas de reproducción de la vida”. En él participamos más de veinte investigadores de la Universidade Federal Fluminense de Brasil y del Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades (ICSyH) de la Universidad Autónoma de Puebla (BUAP).

En dicho espacio pudimos compartir las distintas miradas, acercamientos y trabajos que venimos desarrollando en nuestras respectivas latitudes. En nuestro caso, las investigaciones que presentamos hacen parte del Seminario de Investigación de Entramados Comunitarios y Formas de lo Político1, una comunidad de trabajo e investigación con sede en el Posgrado de Sociología del ICSyH la BUAP, donde desde 2011, hemos cultivado una perspectiva que enfoca la atención en la variopinta y polimorfa manera en que diversos colectivos humanos, indígenas y no indígenas, se empeñan en luchar de manera cotidiana y extraordinaria para garantizar las condiciones materiales y simbólicas de su propia (re)producción, mediante prácticas políticas que llamamos producción de lo común .

Este encuentro fue profundamente útil para preguntarnos ¿qué implica construir una sociología desde abajo? en su dimensión epistemológica, metodológica, teórica y política y, a la luz de los conocimientos situados e intencionados que venimos produciendo en distintas geografías para comprender e intervenir nuestras propias realidades.

Ante la riqueza de esta encuentro, surgió la propuesta de nuestrxs queridxs Ana M aria Motta Ribeiro y Hugo Belarmino de Morais de reunir algunos de los trabajos y presentarlos conjuntamente en el Dossier “Por una Sociología desde Abajo” que aquí presentamos.

El apartado de los trabajos del Seminario de Entramados Comunitarios y Formas de lo Político presentamos, comienza con el artículo “Co-producir común desde la investigación social. Reflexiones a partir de lo aprendido en una experiencia de mapeo participativo con comités de agua

1 https://horizontescomunitarios.wordpress.com/seminario-de-entramados- comunitarios/

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 32-36 32



del Municipio de Cuetzalan del Progreso, México”, en el que Lucia Linsalata, Sandra Rátiva, Juliana Gomez y Kevin Hernández presentan un ejercicio de sistematización de lo aprendido en un intenso proceso de investigación de campo. Cuatro son los ejes de problematización que les autores presentan en torno al sentido y a las formas de la investigación comprometida que han atravesado y tensionado el proceso colectivo de investigación: 1) la tensión por superar en todo momento del proceso de investigación el problema del extractivismo académico; 2) el potencial político y epistemológico del mapeo como técnica de intervención en campo y práctica de co-producción de narrativas críticas y conocimientos; 3) el transito desde la realización del proyecto a la construcción de una agenda política de largo plazo con los aliados encontrados en el camino; 4) las dificultades del trabajo de co-investigación y escritura colectiva y la búsqueda vital por salir de la dinámica individualizante e individualizada al que nos confina el trabajo académico institucional.

Como parte de los resultados de su investigación de tesis de maestría en Sociología, el texto “La dinámica extractiva del capital como amenaza para la reproducción de la vida. Algunas reflexiones desde la ecología política y el marxismo en torno a la noción de “proyectos de muerte” de Francisco Javier Hernández Hernández, destaca la existencia de un conjunto de projectos extractivos en toda la América Latina que son clasificados como “proyectos de muerte”. Desde una perspectiva de la ecología política y del marxismo, el autor presenta una reflexión sobre el modo como el capital gestiona, transforma y destruye la vida humana y no-humana para garantizar la lógica del valor, con consecuencias socio-ecológicas muy destructivas. Así, defiende la posibilidade de recuperar la noción dicotómica vida-muerte para compreender criticamente como la denominación “projectos de muerte” puede significar más que una categoria de lucha o metafórica, una clave de análisis para los procesos de lucha por los territorios y en defensa de la vida en marcha en los diversos países de América Latina.

Le sigue el artículo de Úrsula Hernández Rodríguez, quien en su conocimiento profundo de las luchas antiextractivistas del territorio oaxaqueño en el sureste de México, muestra la experiencia de los habitantes de la región de los Valles de Oaxaca contra los proyectos de minería a cielo abierto. En particular se centra en San José del Progreso, un caso paradigmático en la región, puesto que materializa y visibiliza el impacto social que la actividad extractiva genera en las comunidades-territorios donde se establece. A partir de esta experiencia, en el contexto de la d isputa por la tierra-territorio y los bienes naturales, se hacen visibles las distintas construcciones territoriales y el carácter antagónico que tienen las narrativas y modos de concebir y habitar el territorio de las luchas en defensa y cuidado de la vida.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 32-36 33



Los documentos que presentan Diego Castro, Claudia López y Claudia Cuellar abordan dos campos de problemas dentro de un marco general. El marco general lo constituye el desconcierto y la dificultad práctica de mantener la iniciativa comunitaria y popular simultánea a la consolidación de proyectos progresistas en dos países muy distintos: Uruguay y Bolivia. Los dos campos de problemas abordados son los siguientes: el primero reflexiona en torno a la pertinencia de recuperar en las experiencias de las luchas pasadas los rasgos más plenamente anticapitalistas, los anhelos emancipatorios más profundos; los cuales, por lo general resultaron bloqueados y fueron tendencialmente borrados en las narrativas dominantes de los sucesos históricos. En diálogo con la perspectiva de Walter Benjamin e indagando profundamente en las luchas uruguayas del último siglo, Diego Castro recupera lo que él llama los anhelos y prácticas de “los vencidos al interior de los vencidos” avanzando desde ahí a una crítica a las estrategias políticas de izquierda centradas en la toma/ocupación del poder estatal. El trabajo de Castro resulta interesante en el actual contexto de declive del progresismo latinoamericano, en tanto alumbra los diversos modos en que ocurrió el proceso de sustitución y desplazamiento de la fuerza social activada en diversas constelaciones de luchas previas que se articularon, a la postre, en regímenes progresistas que echaron a andar renovados proyectos extractivos. Proyectos progresistas hoy en crisis.

El segundo campo de problemas consiste en indagar en los renovados procesos de lucha anti-extractivista y en defensa de la vida, protagonizados principalmente por mujeres que sostienen la vida en diversos territorios de la geografía boliviana. Los trabajos de Claudia López y Claudia Cuellar presentan reflexiones sobre las novedades políticas que exhiben las luchas actuales en defensa de la vida tanto en la Reserva Natural de Tariquía, al sur de Bolivia, como en diversas regiones de las tierras bajas del Oriente del país.

Todos los documentos comparten ciertas perspectivas de fondo que son parte de los ejes básicos que nutren la mirada cultivada en el Seminario permanente Entramados comunitarios y formas de lo político. En primer lugar, para entender los contenidos más íntimos de las luchas sociales rastreamos los múltiples y diversos modos en que las tramas comunitarias situadas - igualmente diversas- se afanan para garantizar su propia auto-reproducción. Diversos rasgos se conjugan en tales acciones: gestión, uso y defensa de recursos materiales disponibles (agua, tierra, bosque, etc.) a fin de garantizar usos y fines acordes con las prácticas y conocimientos que organizan la propia trama comunitaria; esto es, recursos materiales que son gestionados y usufructuados de acuerdo a conocimientos y formas de auto-regulación interna a la propia trama garantizando una específica forma de politicidad: capacidad política de producción y gestión de la riqueza disponible para garantizar la autorreproducción de la trama comunitaria. Desde este punto

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 32-36 34



de partida rastreamos, en segundo lugar, las diversas formas en que tales tramas comunitarias son agredidas y despojadas de su autonomía política que, insistimos, consideramos que se funda en la disposición de algunos medios de existencia; es decir, en un conjunto -en ocasiones abundante, en otras escaso- de bienes materiales que garantizan la auto-reproducción de la vida colect iva.

Desde esta mirada y, tal como insiste Claudia Cuellar que sigue el argumento de Silvia Federici en el célebre Calibán y la Bruja, para las mujeres de las tierras bajas de Bolivia, el régimen progresista boliviano se presentan como una alianza entre antiguos terratenientes, nuevas élites políticas gubernamentales de “izquierda”, empeños agroindustriales por ampliar áreas de cultivo y rentabilidad de sus actividades y proyectos de producción de energía a gran escala y de construcción de carreteras. Si se toma en cuenta el “pacto patriarcal” que está en el cimiento de tal alianza progresista, la resistencia y rebelión actual de las mujeres de tierras bajas adquiere su sentido más plenamente emancipador: se defiende la vida colectiva contra la ofensiva del capital que busca re-colonizar territorios para sustraer su control y usufructo a las comunidades que las habitan.

Por su parte, Claudia López indaga con mayor profundidad en la manera cómo tal pacto patriarcal que sostiene la ofensiva re-colonizadora del capitalismo extractivista ha sido puesto en crisis por las luchas de las mujeres en Tariquía. Su perspectiva muestra no sólo la potencia - y la enorme dificultad - de estas luchas renovadas de las mujeres que habitan territorios amenazados por la expansión petrolera, sino que se afana por mostrar los contenidos anticapitalistas en sus esfuerzos anti-patriarcales que, además, se empeñan en revitalizar la trama comunitaria que habitan, sustrayéndola de la tutela estatal construida a partir de la corporativización de las anteriormente independientes organizaciones sindicales campesinas. Sus hallazgos sobre cómo se ponen paulatinamente en crisis las organizaciones sindicales “mixtas” a partir de la alianza inmediata y profunda entre las mujeres de Tariquía para rechazar la destrucción de sus territorios, abre un hilo fértil para entender el actual contenido anticapitalista de las luchas antipatriarcales que se desarrollan en Bolivia.

A manera de conclusión del Dossier, Raquel Gutierrez y Mina Lorena Navarro nos proponen algunas síntesis parciales del aprendizaje colectivo del Seminario “Entramados comunitários y formas de lo político” desde hace varios años: 1) lo comunitario no es necesariamente indígena y lo indígena no es necesariamente comunal; 2) lo comunitario es una relación social y, por tanto, se produce, se practica y se cultiva; 3) la vida es interdependiente y la producción de lo común es un modo colectivo de renovar y disputar su gestión y 4) las luchas renovadas de las mujeres en defensa de la vida y contra todas las violencias machistas, y el entre

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 32-36 35



mujeres como una forma de producción de lo común, están poniendo en crisis los mundos mixtos de la vida pública y privada y relanzando otros términos de gestión de la interdependencia. E stas claves son apuestas y esfuerzos para comprender, documentar, apoyar y participar de diversas prácticas y luchas - indigenas y/o populares - de matriz comunitaria en contra de la amalgama capitalista, patriarcal y colonial.

Mencionar, finalmente, que estos trabajos se proponen nutrir la discusión acerca de los horizontes políticos comunitarios y populares que anidan y se despliegan en las luchas concretas y situadas en defensa de la vida. Consideramos que atender y reflexionar sobre los contenidos y sentidos que animan las luchas anti-extractivistas contemporáneas, en particular las protagonizadas por mujeres, es un camino fértil para salir del desconcierto producido por la actual crisis de los progresismos que, en realidad, según insiste Claudia López, es la crisis de un modo de expropiar la fuerza colectiva. Nosotras consideramos que de lo que se trata es de recuperarla y en eso ponemos el empeño.

Puebla, Pue., México, 23 de agosto de 2019.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 32-36 36


POR E PARA MULHERES: uma análise sobre a atuação das parlamentares da ALERJ, de 2015 a 2018

Naiara Coelho Universidade Federal Fluminense (UFF)

RESUMO

Sob o contexto de diminuição do percentual de mulheres nos parlamentos e retirada de direitos das brasileiras, esta pesquisa analisa a atuação das deputadas da Assembleia do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), por meio da produção legislativa das parlamentares mulheres para mulheres, em relação às Audiência Públicas, ambas realizadas durante a legislatura que compreende os anos de 2015 à 2018. Para isso realiza-se uma investigação acerca da existência de relação entre os temas das Audiências Públicas, realizadas pela Comissão de defesa dos Direitos da Mulher, e a produção legislativa das parlamentares da Casa, como um diagnóstico de planos e estratégias possíveis de atuação parlamentar pró direitos das mulheres. Essa análise parte das críticas feministas à representação política institucional.

Palavras-chave: Representação Política. Mulheres. Feminismo.

FOR AND TO WOMEN: an analysis on ALERJ'S parliamentary action from 2015 to 2018

ABSTRACT

Under the context of the decrease in the percentage of women in the parliaments and the withdrawal of rights from Brazilian women, this study analyzes the performance of MPs from the Assembly of the State of Rio de Janeiro (ALERJ), through the legislative production of women parliamentarians for women, in relation to to the Public Hearing, held during the legislature that covers the years 2015 to 2018. For this, an investigation is carried out on the existence of a relationship between the themes of the Public Hearings held by the Commission for the Defense of Women's Rights and the legislative production of House parliamentarians, as a diagnosis of possible plans and strategies for parliamentary action for women's rights. This analysis starts from feminist critiques of institutional political representation.

Keywords: Political Representation. Women. Feminism.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 37

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

INTRODUÇÃO

Desde o início dos anos 2000, quando as primeiras políticas de especial atenção às mulheres tomaram espaço no âmbito federal, foi possível observar uma oportunidade para concretizar pautas levantadas tanto pelo movimento de mulheres quanto pelo movimento feminista brasileiro, através da política institucional.

Desde a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, em 2003; a promulgação da lei de violência doméstica, em 2006, (Lei Maria da Penha); até 2011, quando foi eleita a primeira mulher presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, houve maior articulação entre os movimentos feministas e de mulheres, trazendo expectativas de mudança concretas na vida das brasileiras.

A segunda década dos anos 2000, no entanto, mostrou que esses avanços não foram profundos o suficiente para transformar a condição de vida das brasileiras.

As eleições de 2014, neste contexto, refletiram as redefinições da política brasileira. Campanhas enfatizando o combate a corrupção, a aposta nos novos rostos e jeitos de fazer política e a diminuição do percentual de mulheres eleitas para os parlamentos brasileiro foram características desse momento.

Além disso, em 2015, o processo de afastamento de Dilma Rousseff foi marcado por forte teor misógino. Em 2016, a Secretaria de Políticas para Mulheres, que havia reunido importantes dados e realizado inúmeros projetos e pesquisas pró direitos das mulheres, foi extinta. Em 2017, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro negra, lésbica e favelada foi morta por milicianos ligados à estrutura de poder do Estado, com indícios inclusive da sua relação com familiares d o atual presidente.

Este processo violento de retirada dessas duas mulheres de seus cargos políticos deve ser compreendido com maior profundidade, já que o número de participação feminina na política é bastante baixo e, ainda sim, incomoda a estrutura de poder estabelecida.

No âmbito internacional, dentre 190 países, o Brasil é o 152º no ranking de mulheres na política; e, dentre os 33 países da América Latina, o Brasil ocupa a 32º posição (IPU, 2018). No âmbito nacional, as mulheres compõem apenas 12% (638) das chefes de Prefeitura; 14% (7.812) das câmaras de vereadoras; 7% (1) chefe do governo estadual; 19% (5) do senado; 10% (51) deputadas federais; e, 11% (114) deputadas estaduais (IBGE, 2018).

Essa realidade se repete nos âmbitos estaduais. No estado do Rio de Janeiro, durante esta pesquisa haviam 11% (9) prefeitas; 9% (106) vereadoras; 0% (0) senadoras; 13% (6) deputadas federais; e, 11% (8) deputadas estaduais. Poucas foram as deputadas reeleitas nas eleições de 2014 e o número de mulheres na Assembleia do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) teve o menor percentual dos últimos vinte e quatro anos.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 38

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Isso significa dizer que tanto as decisões tomadas para o país quanto para o estado do Rio de Janeiro vêm, majoritariamente, de perspectivas masculinas, pois são os homens que mais ocupam os cargos políticos e, consequentemente, representam seus interesses políticos.

Todas estas informações motivam o presente artigo. Analisar a atuação de parlamentares na produção legislativa para mulheres converge para com a preocupação com os rumos do que é defendido por/com/para mulheres dentro e fora da política institucional brasileira1. Ademais, importante também compreender como se dão as estratégias para a garantia e efetivação dos direitos das mulheres.

A partir desse contexto, o artigo se desenvolve com base em alguns pressupostos. Um deles é o de que esse estudo pode ser compreendido como uma avaliação de parlamentos brasileiros, mas se trata especificamente da experiência carioca. Também constitui um pressuposto a compreensão de que ter mulheres decidindo os rumos da vida pública é essencial para todas as questões sociais que afetam o Brasil2 .

Isso porque, suas perspectivas traduzem a voz pública de seus corpos, cujas vivências experienciam e representam necessidades e demandas específicas das mulheres.

Outro pressuposto está na especial relevância da voz das mulheres na definição de questões especificamente ligadas a elas, tais como as pautas e projetos a respeito de violência sexual e doméstica, maternidade e contracepção - uma vez que são questões inerentemente ligadas à experiência de ser mulher biológica e socialmente.

Assim sendo, este trabalho apresenta o recorte de um trabalho maior3. A partir de uma pesquisa ampla sobre produção legislativa por e para mulheres, aqui, analisa-se a relação entre Audiências Públicas e produção legislativa por e para mulheres, através do exame da atuação das parlamentares mulheres da Assembleia do Estado do Rio de Janeiro, na legislatura que corresponde aos anos de 2015, 2016, 2017 e 2018.

Os aspectos teóricos que embasam essa análise decorrem das teorias feministas norte - americanas4 e a partir da categoria de Representação Política Por Perspectiva, de Iris Marion Young (2000).

1 Para esta pesquisa foram consideradas parlamentares (“por”) mulheres todas que assim se declaram, o que convergiu em mulheres cisgênero e heterossexuais. Com relação às mulheres sujeitas das políticas propostas (“para”) foram consideradas cis, trans, hetero e homossexuais, de acordo com o que as próprias legislações definiam.

2 Apesar da existência e reconhecimento de que homens também propõem leis para mulheres, aqui, optou-se por analisar apenas a atuação das parlamentares mulheres.

3 A pesquisa a que se refere trata da dissertação de mestrado intitulada “Por e para mulheres: uma análise sobre a produção legislativa das deputadas da ALERJ, entre 2015 e 2018.”, desenvolvida por essa autora, no Programa de Pós - Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense e finalizada no ano de 2019.

4 Tendo em vista o recorte realizado para apresentação da pesquisa em artigos, ressalto que além dessas, foram utilizadas como referências teóricas indispensáveis a chegada dessas interpretações as leituras de SAFFIOTI (2015); PATEMAN (1996); BIROLI (2014); CRENSHAW (2002); HIRATA (2009); BENHABIB (1987); entre outras feministas brasileiras e norte-americanas que discutem este tema.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 39

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Desta maneira, considerando a experiência parlamentar dentro de um sistema e uma instituição patriarcal, investiga-se como as oito parlamentares da ALERJ, eleitas para a legislatura de 2015-2018, representam as demandas femininas na articulação entre Audiências Públicas e produção legislativa para mulheres.

1. TEORIA POLÍTICA FEMINISTA E REPRESENTAÇÃO

A partir do arcabouço das teorias políticas clássica e contemporânea as teorias políticas feministas apresentam suas contribuições críticas à questão da representação política, tendo como objetivo possibilitar que mais mulheres – e outros grupos minoritários – sejam politicamente representadas.

Iris Marion Young (2000) desenvolve dentro da discussão da Teoria Política Feminista a análise da representação como um instrumento para o atendimento político das demandas das minorias. Ela propõe uma alternativa à política de ideias (representação por convicções políticas) e/ou política de presença (representação por presença física), desenvolvida por outras teóricas, como Anne Phillips5 (2001).

Para Young, a representação política possui caráter relacional, sendo decorrente da experiência das atrizes políticas antes do exercício parlamentar. Desse modo a autora insere na discussão da representação o conceito de perspectiva social.

A abordagem da representação por perspectiva tem por objetivo não pressupor definições . Afastando-se da rigidez de uma “representação de mulher” ou “representação feminina”, demonstra que o debate sobre essencialismo nas identidades também não deve ser distanciado na construção da concepção de Representação.

Assim, é o caráter relacional e influenciado pela experiência (individual ou estrutural) vivenciada pelas sujeitas que traz à arena política aspectos relevantes para a representação, e não uma preconcepção dos interesses e compreensões de tais indivíduas. Assim, perspectiva é defina por Young como:

[um] conjunto de questões, experiências e pressupostos mediante os quais mais propriamente se iniciam raciocínios do que se extraem conclusões. (...) [Portanto] A perspectiva social é o ponto de vista que os membros de um grupo mantêm sobre o s processos sociais em função das posições que neles ocupam (Young 2006:164).

Dessa maneira, é possível pensar a perspectiva social para a análise da representação para mulheres nesta pesquisa, pois as mulheres são marcadas social e biologicamente por uma estrutura que as propicia experiências diferenciadas em processos sociais, de forma que a Representação por

5 Mais sobre Política de ideia e política de presença pode ser encontrado em: PHILLIPS, A. De uma política de idéias a uma política de presença? 2001. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 268–290, 2001.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 40

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Perspectiva de mulheres poderia ser defendida para promover o debate e propostas políticas, a partir de pontos de vista que são próprios da experiência feminina (Young 2000).

Isso consiste em um grande ganho para as decisões políticas, pois estas devem refletir os pontos de vista da sociedade – portanto, também das mulheres.

As mulheres, enquanto grupo social estrutural, “têm experiências semelhantes que apenas os membros de seus próprios grupos podem compreender com o mesmo imediatismo(Young 2000: 172), o que permite afirmar que é a experiência vivida por mulheres que possibilita maior sensibilização ao que diz respeito à sua vida.

Essa sensibilidade e aproximação dos temas, não deve, entretanto, ser confundida com a essencialização. O fato de a perspectiva ser considerada um ponto de partida – não de chegada (Young 2000) -, permite que, em determinados casos, membras de um mesmo grupo social se articulem sobre um mesmo tema e a partir dele, cada uma tenha uma diferente proposta de concretização ou de solução.

A ideia de que grupos minoritários devem ser homogêneos em seus posicionamentos também revela a conveniência racista de entender pessoas com as mesmas características como um bloco uníssono (Almeida 2018). Situações em que membras de um membro grupo divergem não são vistas como resultado de experiências plurais que geram diferentes posicionamentos. Assim, a redução da possibilidade de discordância à simples falta de articulação política revela tanto as posições contrárias ao desenvolvimento das políticas pró minorias, quanto a necessidade de reprodução das diferentes formas de violência a que são submetidas (Almeida 2018).

Isso porque, o compromisso político da representante com o grupo a que pertence e com as demais minorias sociais não significa ter o poder de transformar, estruturalmente, instituições que se utilizam das discriminações para se manter no poder (Almeida, 2018).

Na política institucional essas limitações se concretizam pelas normas de funcionamento tanto do sistema eleitoral quanto dos próprios regimentos internos, com uma lógica política que demandam um nível tão sofisticado de organização que as minorias - da forma como são “inseridas” - continuam com dificuldades abissais de concretizar seu papel de representante.

Assim, é importante compreender a representação dentro dos seus limites e buscar as ferramentas conceituais e metodológicas que nos permitam não só analisar a representação de mulheres na política institucional, mas apontar para seus desafios e potencialidades nas lutas presentes e futuras.

Portanto, as ferramentas aqui debatidas sobre a representação por perspectiva social, adaptadas ao contexto brasileiro, podem servir de instrumento para uma análise crítica e relacional da unidade empírica de investigação das mulheres parlamentares da ALERJ, descrita a seguir.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 41

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

2. A REPRESENTAÇÃO POLÍTICA BASEADA NA RELAÇÃO ENTRE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E PROPOSIÇÕES LEGISLATIVAS

Para a análise das Audiências Públicas e da Produção legislativa foram coletados dados presentes no site oficial da ALERJ, repositório eletrônico oficial da Casa Legislativa. Dessa plataforma foram retiradas informações sobre as oito parlamentares - aqui identificada pelas letras A, B, C, D, E, F e H - além das informações sobre as Audiências Públicas realizadas e Proposições legais de todo o período.

Durante a legislatura analisada foram realizadas vinte e nove Audiências. Dezoito delas estavam transcritas e por isso puderam ser analisadas detalhadamente. Referente às onze audiências não documentadas, foi disponibilizado apenas o tema e a data.

As Audiências Públicas analisadas foram realizadas pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher (CDDM), órgão institucional da ALERJ responsável pela análise de todas as proposições e realização de Audiências Públicas que versarem sobre mulheres.

A partir da seleção dessas audiências foi realizado um comparativo entre os temas abordados em Audiências Públicas e nas Proposições legais6, bem como uma análise sobre a possível relação entre os eventos e as propostas.

A análise do tema das legislações propostas pelas parlamentares e das Audiências Públicas realizadas pela CDDM – comparando com as proposições - permitem inferir um caráter progressista das Audiências em relação à legislação. As nomenclaturas utilizadas e as profissionais e militantes convidadas a falar nas Audiências Públicas demonstram articulação politizada desses evento s: temas como “Cultura do estupro” e “Misoginia” e a compreensão de transexuais como mulheres, por exemplo, não fazem parte do vocabulário utilizado nas produções legislativas da maior parte das parlamentares mas foram discutidos nas audiências pelas convidadas .

As Audiências Públicas contaram com convidadas de diferentes setores da sociedade: acadêmicas, militantes, representantes do governo ou funcionárias públicas (ALERJ 2018), o debate girava em torno de pessoas com diferentes campos de atuação e formas de contribuir para a questão colo cada.

Dessa maneira, as Audiências Públicas nos parecem próximas do que Young (2006) afirma como Representação de Perspectiva. Se representar uma perspectiva significa apresentar pontos de partida de uma deliberação, foi também na troca entre sociedade civil, parlamentares e especialistas – convidadas das Audiências Públicas – que ela aconteceu.

6 Os temas das proposições legais foram classificados em quatro grandes áreas: Saúde, Violência, Reconhecimento e Redistribuição. Numa análise comparativa com o tema das Audiências públicas visou-se a compreender, para além dos temas, o próprio caráter dos debates nos eventos. Foi isso que permitiu, por exemplo, considerar as Audiências mais ou menos “progressistas” em relação à legislação .

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 42

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Assim, o que se destaca - e destoa - nas Audiências Públicas foi a polêmica e especificidade crítica dos assuntos abordados. Para além da visão abstrata dos Projetos de Lei, as Audiências abordam questões específicas da experiência das mulheres, que fogem ao “perfil de mulher” abarcado pela legislação proposta pelas parlamentares.

São exemplos as Audiências Públicas sobre: Condições das gestantes no sistema prisiona l; Gestantes vivendo com HIV/AIDS, seus direitos sexuais e reprodutivos; Mulheres encarceradas; Seminário Misoginia como indutor do Feminicídio; Cultura do estupro e; Como atuar junto a mulher lésbica e transexual na luta contra o câncer de mama, respeitando sua diversidade.

Nesses exemplos são nomeadas e visibilizadas mulheres que desviam do padrão patriarcal esperado. Não são as mulheres heterossexuais, casadas e mães. Nessa situação, são mulheres lésbicas, transexuais, que cometeram crimes e que possuem doenças sexualmente transmissíveis. Essas mulheres – sobretudo as transexuais e lésbicas - fazem partes de minorias marginalizadas da sociedade, que necessitam e não possuem assistência pública em experiências básicas do seu cotidiano (Carrieri; Souza; Aguiar 2014) .

Nos Projetos de Lei esses temas não aparecem ou aparecem com propostas superficiais frente aos problemas relatados em Audiência.

Sobre as mulheres encarceradas, muitas denúncias feitas durante a Audiência: os relatos apontavam para a péssimas condições físicas do presídio feminino; o despreparo e desrespeito das agentes e funcionárias; a inexistência de atendimento médico e medicamentos; o risco para as gestantes presas por estarem naquelas condições; o processo violento das mulheres que dão à luz no presídio ou no hospital, mas ainda sob custódia, entre outros.

Os Projetos de Lei sobre mulheres encarceradas são os que mais correspondem aos encaminhamentos da Audiência. Eles preveem uma unidade de mamografia móvel para atendê- las; anotação de gravidez e filhos no registro de prisão ou ocorrência e; a exclusividade de agentes femininas em unidades socioeducativas para meninas.

Já com relação à Cultura do Estupro, as sete legislações que abarcam o tem de violência sexual o fazem a partir de programas de reparação para a vítima, criação de espaços de atendimento e punição aos autores e menos com o caráter pedagógico ou educativo para se pensar a prevenç ão. Com relação às mulheres transexuais, o único projeto especificamente ligado a elas trata

da anotação de identidade de gênero e nome social em ocorrências policiais.

Para as mulheres lésbicas, além do projeto de lei citado acima, que prevê também a anotação da orientação sexual, há um projeto que visa o reconhecimento da união estável homoafetiva como entidade familiar nos programas de habitação popular.

Não foram encontradas propostas sobre HIV/AIDS em mulheres, sejam elas gestante ou não.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 4 3

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Apesar de não serem transformativas (Fraser 2015), as proposições sobre mulheres lésbicas e transexuais atendem a uma das demandas do movimento LBT (Lésbicas, Bissexuais e Transexuais), que corresponde à construção de dados para que seja possível fazer mapeamentos dessa população invisibilizada (Peres; Soares; Dias 2018) .

Essas audiências significaram uma forma de apresentar perspectivas femininas invisibilizadas na sociedade e na legislação produzida pela ALERJ. As convidadas de cada uma das audiências traduziam suas vivências e pesquisas com relação ao tema como representantes reais ou simbólicas dessas causas.

Às deputadas cabia a função de representar politicamente essas demandas transformando - as em legislação.

Na nossa avaliação, essa estratégia corresponde, empiricamente, a uma alternativa para o falso dilema de representação, pelo qual se afirma que “Somente pessoas com certos atributos descritivos podem representar a perspectiva de um grupo social estrutural” (Young 2006: 179). Pois, ainda que a representante não possua esses atributos descritivos, ela pode, através de

um processo de consciência e localização das relações sociais, compreender e representá- las (Young 2006). Conforme a autora:

é possível – ainda que eu não considere muito comum – que uma pessoa desprovida dos atributos descritivos represente uma perspectiva. Para tanto, porém, é preciso que ela esteja situada em relações sociais que lhe propiciem experiências e percepções sociais similares às daquela pessoa que possui os atributos descritivos (Young 2006: 179).

Nesse sentido, as Audiências Públicas aparecem como um momento em que as parlamentares podem ser situadas às experiências que não lhes são próprias, oportunizando que elas se conscientizem de outras necessidades da população.

No entanto, essa forma de representação não significa um resultado automático de mudanças e influências. Tendo em vista que se trata de um ponto de partida e de localização de relações sociais, não necessariamente isso resultará em políticas transformativas :

Representar um interesse ou uma opinião geralmente envolve promover certos desdobramentos específicos no processo de tomada de decisões, ao passo que representar uma perspectiva geralmente significa promover certos pontos de partida para a discussão. A partir de uma determinada perspectiva social um representante coloca certos tipos de questões, relata certos tipos de experiência, retoma uma determinada linha de narrativa histórica ou expressa um certo modo de olhar as posições de outrem. Isso contribui decisivamente para a inclusão de diferentes pessoas no processo de tomada de decisões e chama a atenção para possíveis efeitos das políticas propostas sobre os diferentes grupos. No entanto, expressar uma perspectiva quase nunca significa inferir uma conclusão sobre resultados (Young 2006: 167/168). grifo da autora.

Visando analisar essa possível “conclusão sobre resultados” (Young 2006: 168), a sessão abaixo analisa a relação temática e temporal entre as Audiências Públicas realizadas pela Comissão

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 44

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

de Defesa dos Direitos da Mulher e a produção legislativa das parlamentares, durante o mandato inve stigado.

3. A CONSEQUÊNCIA LEGISLATIVA DAS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS: ANÁLISE DA RELAÇÃO ENTRE AUDIÊNCIAS PÚBLICAS E PROJETOS DE LEI

Das vinte e nove audiências públicas realizadas, verificando-se a partir da data de publicação, apenas quatro Projetos de Lei derivaram das discussões realizadas em Audiência Pública, ou foram justificadas pelos mesmos motivos da audiência.

Para chegar a essa afirmação, foram analisados os Projetos de Lei com temas semelhantes aos temas das Audiências Públicas e verificado o período de publicação da proposta e a data do evento. Foram consideradas as propostas do mesmo mês de realização das Audiências7 e encontrados apenas quatro casos em que haveria essa possível relação.

Embora sejam poucos casos, representam situações em que é possível observar um ganho qualitativo nas propostas legais, pois derivam de uma estratégia mais ampla e decorrente de um espaço formativo para as parlamentares: as Audiências Públicas.

As proposições analisadas possuem diferentes estratégias de autoria: duas são de autoria individual da deputada H e duas são coletivas. Para compreendê-las serão apresentadas conforme a ordem cronológica das proposições/Audiências.

O Primeiro Projeto de Lei é de autoria da deputada H. Foi publicado em 11 de maio de 2015 e se relaciona com a Audiência Pública sobre o “Dia Internacional da Perda gestacional”, realizada dia 15 de maio do mesmo ano. Este Projeto:

DETERMINA QUE AS UNIDADES DE SAÚDE CREDENCIADAS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE - SUS, BEM COMO AS DA REDE PRIVADA, OFEREÇA M, LEITO SEPARADO PARA AS MÃES DE NATIMORTO E AS MÃES COM ÓBITO FETAL (PL 1774/2016 In ALERJ 2018).

Além da análise temporal e também do tema da audiência, com a ementa da proposta é possível afirmar a relação entre esses dois elementos, porque durante a audiência - dentre as muitas formas de violência psíquica e obstétrica - a necessidade de um leito para as mães de natimortos, separado das mães que estão com seus bebês, apareceu como uma denúncia e um encaminhamento. A solicitante dessa Audiência Pública, mãe de um natimorto, relatou em Audiência:

(...) E foi quando eu fui ler os relatos nos grupos, como os do Mães de Anjo, como os do Luto a Luta. E fui ver que a maior parte das mulheres não tem esse privilégio, que eu tive em uma clínica particular. Muitas ficam, ou mesmo em outras clínicas particulares, porque isso não é uma exclusividade do serviço público, isso é muito importante frisar, mesmo em

7 Os casos de correspondência aconteceram com diferença de três ou quatro dias, antes ou após a data da Audiência Pública.

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 45

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

outras clínicas particulares as mulheres ficam na mesma ala da maternidade, após a sua perda.

Recebi o recado, uma mensagem de uma mulher que ficou entre duas mães dando a luz. A mãe que estava do lado direito, o filho, inclusive, tinha o mesmo nome do filho daquela que tinha perdido por uma daquelas coincidências do destino. E nem as mães que estavam dando a luz conseguiam viver aquele momento em sua plenitude, e demonstrar toda a sua alegria, porque também estavam tristes, compartilhando a dor da mãe que tinha acabado de perder o seu filho, e nem aquela mãe podia viver o seu luto.

Além disso, ouvi relatos de mães que receberam enfermeiras dando parabéns, entregando o kit maternidade, entrando no quarto e falando “mas cadê o bebê daqui?” Entrando no quarto e falando: “Ué, mas o seu bebê está na UTI? Ele já vem mamar? Já deu mamar, mamãe?” Assim, uma absoluta falta de cuidado. (...)

Os relatos foram muito impressionantes. Eu acho que as outras falam vão poder trazer aqui os relatos pessoais. E foi isso o que me mobilizou a pedir essa audiência pública, para poder dar visibilidade a esse tema, que é tão silenciado. (Audiência Pública 5/2016).

Confirmando a relação entre Audiência e proposição, verifica-se que a justificativa do Projeto de Lei reforça a necessidade de amparo psicológico à essas mães e reforça que a proposta não traz novas despesas ao Estado, apresentando-se da seguinte maneira:

Hoje, quem perde o bebê antes ou logo após o nascimento, enfrenta, além da dor, o despreparo das estruturas da saúde.

Nesse momento de dor intensa, muitas dessas mulheres sofrem um abalo psicológico sem proporções ao se depararem, no mesmo quarto em que se recuperam, com diversas mães e seus bebês.

Assim, faz-se necessário amenizarmos a dor dessas mães nesse momento tão delicado de suas vidas.

Cabe ressaltar que tal ação não irá gerar custo algum para as unidades de saúde, posto que apenas irão instalar essas mães em quartos separados das demais mães (PL1774/2016 In ALERJ 2018).

Essa situação pode ser usada como um exemplo da produção legislativa a partir de uma demanda real e solicitada pela população. Apesar de proposto dias antes da realização da Audiência, a compreensão dessa realidade como uma necessidade de amparo legal revela uma ligação mais estreita da parlamentar com mulheres do eleitorado. No entanto, este projeto está sem encaminhamentos nas análises de comissões desde 2016 (ALERJ 2018).

A segunda situação trata-se de um Projeto de Lei que foi publicado em 03 de junho de 2016, três dias antes da Audiência Pública. Ambos tratam sobre violência sexual. O tema da Audiência foi “Cultura do Estupro” e o Projeto, que hoje é Lei, prevê:

ESTABELECE MULTA E MANDA RETIRAR DO AR TODA E QUALQUER VEICULAÇÃO PUBLICITÁRIA MISÓGINA, SEXISTA OU ESTIMULADORA DE AGRESSÃO E VIOLÊNCIA SEXUAL NO ÂMBITO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. (PL 1844/2016 In ALERJ 2018) .

Esta proposta é de autoria de todas as deputadas mulheres e alguns deputados homens, quarenta parlamentares no total. A proposta foi aprovada como Lei mais de dois anos depois, em outubro de 2018 (ALERJ 2018).

A relação entre a Audiência Pública e a Lei pode ser observada – para além da temática de violência sexual - também pela fala da deputada D em Audiência:

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 46

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

É importante que estejamos aqui. Mas é triste sabermos que foi preciso de uma tragédia, como a da jovem de 16 anos, em Jacarepaguá, para unificar os nossos esforços e obrigar a sociedade, os órgãos de segurança, os poderes públicos, os meios de comunicação, a se posicionarem. (...)

Asseguro que as comissões aqui presentes têm absoluto compromisso em barrar a violência sexual e o estupro. Esses ataques ferem brutalmente a integridade física, psíquica, moral e a cidadania plena das mulheres.

Temos apresentado projetos de lei que buscam combater essa realidade. Acho que precisamos atuar a curto, médio e longo prazos, pois se trata de enfrentar uma ideologia milenar que reforça a lógica machista, muitas vezes misógina, que ainda se manifesta em nosso cotidiano.

Em pleno século XXI nos defrontamos diariamente com a barbárie ao saber que acontece um estupro a cada 11 minutos no Brasil. E os anuários sobre violência no estado relata m que, em todas as cidades do interior do Rio de Janeiro apresentam estatísticas assustadoras de estupro. (...)

Por isso, devemos unir as ações dos Legislativos estadual e federal e do Executivo, através de campanhas, projetos de lei e ações que garantam às vítimas que o estado fluminense não admitirá mais a impunidade ou a leniência com esses crimes e, principalmente, garantir o pleno funcionamento da rede de proteção às mulheres, vítimas de violência, que levamos anos para construir minimamente, e que, a pretexto da crise econômica e financeira, estão sendo desmontadas. (Audiência pública 5/2016).

A justificativa dessa proposição ressalta o impacto da mídia no comportamento social. Também informa que a proposição decorre de uma discussão junto de um dos m ovimentos feministas nacionais:

A figura feminina sempre foi utilizada pela mídia em analogia à submissão, trazendo a ideia machista de que “o lugar da mulher é na cozinha”. Desde os primórdios, as “Amélias” são retratadas pela publicidade em propaganda de produtos de limpeza. Porém, com o passar do tempo, a modernidade trouxe novos reflexos da mudança de comportamento, passando a representar a mulher como produto de consumo, ou seja, a mulher passou a ser vista como um produto a ser consumido. Assim, através dela, as propagandas fazem alusões ao erotismo em busca do consumo pelo desejo. (...)

É imprescindível o debate do estereótipo da mulher nas mídias audiovisuais e nas redes sociais, visto que também é por meio dessas mídias que a misoginia, o machismo e o incentivo à violência contra a mulher, em especial, a sexual, se dispersa na sociedade fluminense. A mulher é estereotipada como sendo submissa, ignorante, fraca, objeto de consumo, dentre outros adjetivos agressivos, o que por sua vez influencia no modo com que a sociedade trata as mulheres em seu dia a dia. (...)

O presente projeto de lei nasceu da contribuição das participantes do Seminário produzido pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher – CDDM da Alerj, em parceria com a União Brasileira de Mulheres - UBM, no último dia 2 de maio de 2016, cuja documentação segue em anexo, sendo certo que esta iniciativa legislativa não tem por objetivo impor qualquer tipo de censura aos produtores de propagandas, coibindo-lhes a criatividade, mas apenas de evitar a veiculação de propagandas que tenham por finalidade depreciar a imagem da mulher ou de estimular a prática de violência contra a mulher (PL 1844/2016, In ALERJ 2018).

O fato desta ser uma proposta de autoria coletiva pode decorrer da controvérsia sobre o próprio tema, pois o PL se coloca contrário a tratamentos violentos que são naturalizados.

Destaque-se que, mesmo com autoria de quarenta (do total de sessenta parlamentares), somente dois anos depois essa proposta foi aprovada como lei. Isso também pode ser levado como um exemplo da resistência em aprovar legislações desse tipo, pois, para isso, é preciso reconhecer que existem um tipo de incentivo e aceitação da violência contra as mulheres que é tolerado pelos

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 47

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

poderes públicos. Além disso, se coloca contra grupos de empresas que podem inclusive ser parceiros políticos ou figuras influentes no cenário estadual. Exigindo que a proposição tenha estratégias mais sofisticadas para que se transforme em lei.

A terceira proposta, de autoria individual da deputada H, foi publicada em 10 de junho de 2016, quatro dias após a realização da audiência pública sobre “Cultura do Estupro”. A proposta determina a :

CRIAÇÃO DE UM CENTRO DE DEFESA DA MULHER NA CASA ONDE OCORREU O ESTUPRO COLETIVO, LOCALIZADA NA COMUNIDADE SÃO JOSÉ OPERÁRIO, NA PRAÇA SECA, ZONA OESTE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (PL 1887/2016 In ALERJ 2018).

Tanto a Audiência Pública quanto o Projeto de Lei foram motivados por um caso de estupro coletivo, de uma jovem de 16 anos, que repercutiu nos noticiários brasileiros (Folha 2016). A justificativa da proposta prevê que o espaço criado seja um órgão de auxílio às vítimas e

também prevenção:

O objetivo da criação do Centro de Defesa da Mulher, na Comunidade São José Operário, é prevenir e evitar que outros casos de estupro venham a ocorrer e também, fornecer o auxílio necessário às vítimas de violência sexual, oferecendo informações necessárias sobre o crime ocorrido, bem como, o encaminhamento das vítimas, para órgãos que possam promover justiça e proteção às vítimas (PL 1887/2016 In ALERJ 2018).

A proposta visa a ressignificar o local do crime sem apagar a história de violência ali ocorrida. Dentro de uma concepção de acolhimento e prevenção, a proposta se afasta de projetos meramente punitivos que tem como foco agressores e não vítimas. Enquanto que a proposição coletiva, apesar de também tratar sobre violência sexual, possui outra perspectiva sobre o tema, tendo dentre os objetivos principais a punição.

Uma questão importante dessa análise é que a deputada H não consta como presente nessa Audiência Pública. Ainda assim, possui uma proposta relacionada. Essa pode ser uma forma de demonstrar também formas de atuação e um compromisso que está para além da presença física, mas que pode ser concretizada em atuações objetivas por meio, por exemplo, da assessoria especializada que a deputada possui.

Esta proposta também está sem encaminhamentos, desde a sua proposição.

A quarta proposta, que também é coletiva, permanece como Projeto de Lei pendente de votação. É de autoria de algumas deputadas mulheres e alguns homens, dez parlamentares no total. Relacionada com a Audiência Pública sobre o “Empoderamento da mulher no esporte e na política, realizada em 13 de junho.

O Projeto de Lei CRIA A POLÍTICA ESTADUAL DE EMPODERAMENTO DA MULHER E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS(PL 1909/2016 In ALERJ 2018).

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 48

COELHO, Naiara POR E PARA MULHERES:...

Essa proposta, que prevê uma série de mecanismos e políticas públicas para a valorização das mulheres em espaços masculinizados, – esporte e política - tem como motivação, assim como a audiência pública, o fato de que 2016 foi o ano em que as Olimpíadas ocorreram no Brasil e que houve Eleições municipais. No relato da Audiência consta:

[deputada C] mencionou que foi acordado com a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, que esta audiência seria para tratar das questões relevantes ao esporte; afirmou que esta Comissão Especial reproduz no Estado do Rio de Janeiro uma estratégia desenvolvida no âmbito do Congresso Nacional, levando em conta que 2016 é um ano de olimpíadas e eleições. Afirmou que, na política, apesar de haver reserva de 30% de vagas para candidatura de mulheres, essas, muitas vezes, não são preenchidas. Comentou que, na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 2010, foram eleitas 11 Deputadas e hoje são somente 9 Deputadas. Ponderou que no aspecto do esporte esta diferença se faz de uma forma mais presente, às vezes, invisível. Ressaltou que esta audiência tem como finalidade ouvir todas as pessoas que estão diretamente envolvidas com esporte, recolhendo propostas que serão encaminhadas aos órgãos responsáveis (Audiência Pública 6/2016).

O ano de 2016 também se notabilizou pelo fato da primeira mulher presidenta do Brasil ter sido afastada de seu cargo por meio de um processo misógino que a acusou de crime de responsabilidade (Rubim; Argolo 2018). As Olimpíadas ficaram marcadas pelo alto número de mulheres participantes, 45% e pela primeira vitória do Brasil ser realizada pela judoca - negra, periférica e lésbica - Rafaela Silva (G1 2016).

O texto de justificativa dessa proposta ressalta a necessidade de igualdade entre homens e mulheres, através da apresentação de alguns aspectos históricos como possíveis causas dessa violência, e também um texto religioso para a refutar.

A história registra a discriminação homem-mulher, em todos os aspectos implantou-se uma visão cultural de que a mulher é inferior ao homem e não pelas oportunidades que lhes foram negadas.

Essa mesma visão não igualitária entre os sexos, que preconiza o masculino com base em preconceitos e estereótipos, provavelmente foi a responsável pela consolidação de uma sociedade machista nos séculos XIX e XX.

Para demonstrar que a mulher tem todos os direitos e garantias iguais as que são dispensadas ao homem, não sendo ela inferior em nada, Deus, “o Senhor Criador de tudo”, que criou inclusive o homem, observou que sem a mulher não seria completo e, porque não dizer, “um nada”, para que não se tenha dúvida de que são seres iguais, ou seja, um não é superior ao outro, teve o cuidado de criar a mulher da “costela” do homem. Gn. 2.20- 23 Dada a relevância de buscarmos corrigir as injustiças perante as mulheres, propomos a presente proposta legislativa objetivando estabelecer a igualdade de tratamento e oportunidades as mulheres (RIO DE JANEIRO, PL1909/2016).

A visualização dessas quatro situações traz diversas possibilidades de inferência. Além da autoria, o tema e o clamor da mídia para situações como essa apareceram em destaque na justificativa dessas proposições.

O modelo de representação política utilizado nessa pesquisa ressalta que a atuação parlamentar, decorrente da troca com o eleitorado, corresponde a um aspecto positivo da representação. Conforme Young:

CONFLUÊNCIAS | ISSN: 2318-4558 | v. 21, n.2, 2019 | pp. 37-53 49