
O “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA” EM RAPOSA SERRA DO SOL: Poder Judiciário roraimense e possíveis apontamentos jusdiversos
Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo Universidade Federal Fluminense (UFF)
RESUMO
Esse artigo trata do estudo de caso denominado “Primeiro Júri Popular Indígena”, ocorrido em Raposa Serra do Sol. A metodologia pretendida na pesquisa envolve a descrição dos fatos ocorridos no julgamento e possíveis contextualizações de alteridade e direito à diferença para delinear a quadro jurídico de análise. Os juristas, sobretudo aqueles que pautam conteúdos decisórios, necessitam de uma maior esfera de compreensão para o entendimento caso a caso das especificidades dos diversos povos que habitam o território nacional em nítida abertura cognitiva, o que não nos permite a perspectiva meramente formalista. Essa decisão judicial advinda do Tribunal de Justiça de Roraima mencionada na pesquisa, em relação ao procedimento do Tribunal do Júri, pode contribuir para a construção desse por vir, como busca de novas posturas a serem alcançadas, em que se permitiria a valorização das especificidades indígenas e seus costumes.
Palavras-chave: Povos Indígenas. Poder Judiciário. Jusdiversidade.
"FIRST INDIGENOUS POPULAR JURY" IN RAPOSA SERRA DO SOL - Roraima Judiciary and possible jusdiverse notes
ABSTRACT
This article deals with the case study named "First Indigenous People's Jury", held in Raposa Serra do Sol. The methodology sought in the research involves the description of the facts occurred in the trial and possible contextualizations of alterity and right to difference to delineate the picture analysis. Jurists, especially those who guide decision-making content, need a greater sphere of understanding for the case-by-case understanding of the specificities of the various peoples who inhabit the national territory in clear cognitive openness, which does not allow the merely formalist perspective. This judicial decision from the Court of Roraima mentioned in the research, in relation to the procedure of the Court of the Jury, can contribute to the construction of this to come, as a search for new positions to be reached, which would allow the valuation of indigenous specificities and their customs.
Keywords: Indigenous Peoples. Judicial power. Jusdiversidade.
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DAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS :
O enfoque no direito à diferença, além do campo teórico, deve partir para busca de decisões judiciais que ultrapassem a ideia envolta no monismo estatal e no positivismo jurídico, esse último, em sentido ampliado, na imbricação do direito com a legislação posta, de modo a que se abra espaço a outras possibilidades de articulação e ao reconhecimento das decisões e das práticas originárias dos povos indígenas, bem como de seus costumes e tradições.
Esse cenário contrasta, de certo modo, com a fundação dita moderna da compreensão do Estado como fonte de produção hegemônica das normas jurídicas que pela retórica da cidadania, da igualdade e da soberania, tratou de forçar homogeneizações culturais – a supervalorização da identidade nacional – ou tornar ilegais (no sentido de desvios), práticas e comportamentos que nã o seguiam a cartilha dos valores instituídos com status de lei.
Como resultado da sociodiversidade e da rearticulação do Direito nos moldes positivados, é possível encontrar no cenário do Judiciário roraimense, de forma particular, um caso jurisprudencial que pode trazer novas luzes sobre a discussão da diversidade e as decisões judiciais penais na temática indígena, apesar das dificuldades no campo jurídico estruturado. Essa pesquisa toca o caso do Primeiro Júri Popular Indígena, processo que tramitou sob o n. 0045.13.000166-7 (numeração única 000166-27.2013.8.23.0045), na Justiça Estadual de Roraima.
1. DOS CONTORNOS FÁTICOS DO “PRIMEIRO JÚRI POPULAR INDÍGENA”
No dia 23 de janeiro de 2013, no período vespertino, os irmãos Elcio da Silva Lopes e Valdemir da Silva Lopes, indígenas da comunidade da Enseada, de etnia Macuxi, encontravam- se no estabelecimento comercial conhecido por “Mercadinho dos Peões”, situado na sede do município de Uiramutã. Era prática comum que os indígenas saíssem de sua comunidade para fazer compras na vila ou resolver questões com o poder público, como ocorrido naquele dia.
No local, também estava Antônio Alvino Pereira, indígena da comunidade do Orenduque, próxima da Guiana Inglesa, de etnia Patamona, que viria ser vítima de um crime praticado pelos réus.
Ocorreu que, após desentendimento entre os presentes, Elcio, munido de faca, desferiu golpe que atingiu a região cervical (pescoço) de Antônio, causando-lhe grave ferimento.
Logo em seguida, não tendo identificado que o ferimento proviera de Elcio, que o atingira por detrás, Antônio dirigiu-se a Valdemir para revidar a lesão que lhe fora provocada, tendo- o acertado com socos. No entanto, Valdemir sacou de um canivete e desferiu golpe que atingiu o braço de Antônio de forma superficia l.
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Em razão da aproximação de populares que contiveram o conflito, não houve mais agressão entre os réus (Elcio e Valdemir) e a vítima (Antônio). Antônio foi encaminhado ao hospital da localidade para receber tratamento médico. Elcio e Valdemir, com a chegada da polícia militar, foram presos em flagrante, apesar de não terem oferecido resistência à prisão.
Com a finalização do inquérito policial, o Ministério Público denunciou ambos, Elcio e Valdemir, por homicídio na modalidade tentada, qualificado pelo motivo torpe e recurso que dificultou a defesa da vítima (teriam agido de surpresa ao se aproximarem pelas costas da vítima e quando essa mantinha diálogo com outro indígena).
A denúncia apontou ainda que:
Restou apurado que a vítima é indígena e de cor negra e que os denunciados que também são indígenas agrediram a vítima sob a alegação que de que era um “kanaimé”, que na linguagem indígena significaria um “matador de gente”, e por suspeitarem que a vítima teria matado uma criança indígena, assim, praticaram as agressões contra a vítima motivados por vingança (autos do processo, fls. 03).
Houve a audiência de instrução e julgamento, realizada no dia 30/07/2014, em que foram ouvidos a vítima e os réus, bem como as testemunhas arroladas pelo Ministério Público, Marlon Pereira (filho da vítima), Francisco de Assis (dono do mercado), Mozarildo Padrinho (primo dos réus) e pela defesa, Valderir da Silva Lopes (irmão dos réus) e Agnaldo Freitas (motorista que havia levado aos indígenas até Uiramutã). Após toda a instrução processual, os réus foram, então, pronunciados, nos termos da denúncia, pela tentativa de homicídio qualificado nos termos anteriormente expostos.
Nesse contexto, além dos réus e da vítima, todas as testemunhas acima estavam presentes quando do acontecimento dos fatos. O primo dos réus, Mozarildo, inclusive teria participado de toda a discussão com a vítima, que teria se originado supostamente em virtude do fato de Antônio dizer conhecê-lo e sua comunidade, mesmo que a recíproca não fosse verdadeira. No entanto, os diferentes relatos não permitem precisar quem teria proferido propriamente ameaças mais incisivas durante o conflito, em tom de ameaça à vida do outro.
Segundo Elcio, o fato é que Antônio estava discutindo com Mozarildo e também o teria ameaçado, além de dizer que conhecia esse último e a sua comunidade, bem como que “teria deixado um garrote lá amarrado”. Valdemir confirmou a oitiva desse enunciado, que teria motivado a (in)compreensão dos réus sobre a figura do kanaimé em relação à vítim a.
Na sentença de pronúncia, interessante perceber que o juiz da causa solicitou a intervenção do Ministério Público Federal no feito, ao entendimento de que apesar de não se tratar de causa atinente aos “direitos indígenas”, o que atrairia a competência da Justiça Federal, cuida-se de peculiar feito meritório e procedimental, haja vista a principal alegação da defesa centrar-se em tradição indígena - “kanaimé” -, e o pretenso ilícito criminal ter ocorrido em terra indígena, e terem
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indígenas como réus e vítima, o que reclamaria a realização da sessão do Júri em terra indígena, com jurados indígenas ao fito de dar legitimidade ao ato, uma vez que serão julgados “verdadeiramente” por seus próprios pares (autos do processo, fls. 159).
Nessa mesma decisão, foi determinada a realização de um laudo antropológico, o que a meu ver se justifica para o adequado entendimento da demanda em relação aos aspectos cognitivos suscitados, notadamente o significado do “kanaimé” para esses povos indígenas. Oliveira indaga sobre as insuficiências do julgamento de uma pessoa, membro de outra sociedade, guiada sobre os valores próprios de sua cultura, tendo o antropólogo a função de dar sentido ao fato moral, compreendê-lo de modo a esclarecer minimamente seus contornos, seja para si próprio ou para seus leitores. Não cabe a ele o papel de julgar, como tarefa do juiz e do moralista, bem como, do homem comum que na imersão de seu cotidiano é impelido a essa tarefa na condição de orientar seu próprio comportamento (Oliveira 2017: s/p ).
O laudo foi confeccionado pelo antropólogo Ronaldo Lobão, que de início assinala que a “expertise” antropológica não deve ser incorporada ao processo judicial como uma “verdade sobre os fatos”, e sim, como interpretação factível, informada pelos olhares da Antropologia e do Direito (autos do processo, fls. 169).
O documento assinala que o significado do kanaimé pode assumir diferentes dimensões entre os grupos indígenas roraimenses, dentro de cada etnia e nos diferentes contextos em que é acionado. Todavia, importante para o presente caso, seria a interpretação mais recente sobre o kanaimé para os Macuxi, etnia a qual pertencem os réus, da comunidade da Enseada. É o que se destaca:
(...) o kanaimé é necessariamente um Outro, com o qual não se tem, teve ou se pretende ter alguma relação. Sua descrição ou representação é construída por sinais diacríticos: selvagem, sujos, estrangeiros, moradores de lugares distantes nas serras. O epíteto Kanaimé representa uma categoria de acusação lançada ao Outro com o qual não se pode ter relação, mediação ou contato. Outro forma de nomear p kanaimé é “rabudo”, uma aproximação da cosmologia nativa com a cosmologia cristã.
Representações contemporâneas sobre o kanaimé atualizam seu poder de se tornar invisível e o classificam como assassino, atemorizador, “bandido, guianense, perseguidor, rabudo, entre outras”. Às vezes não age mais nas sombras, procura conversar, se apresenta pessoalmente para lutar. (Autos do processo, fls. 173).
Na literatura, também há narrativas acerca da figura do kanaimé:
Entre os Makischí e Taulipáng, há muitos kanaimé, diz Manduca, entre os Majonggóng, é claro não existe nenhum único.
O conceito de kanaimé desempenha um papel muito importante na vida desses índios. Designa, de certo modo o princípio mau, tudo que é sinistro e prejudica o homem e de que ele mal consegue se proteger. O vingador da morte, que persegue o inimigo anos a fio até mata-lo traiçoeiramente, esse “faz kanaimé”. Quase toda morte é atribuída ao kanaimé. Tribos inteiras têm a má fama de ser kanaimé. Kanaimé, porém, é sempre o inimigo oculto, algo inexplicável, algo sinistro. “Kanaimé não é um homem” diz um índio. Ele anda por aí, à noite e mata gente, não raro, com a maça curta e pesada, com a que se leva ao ombro durante a dança. Com ela, parte “em dois todos os ossos” da pessoa que ele encontra; só
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que a pessoa não morre imediatamente, mas “vai para casa”. À noite, vai para casa, porém fica com febre, e depois de quatro ou cinco dias, morre”.
Quem experimentou no próprio corpo as agudas febres da Guiana, especialmente a malária com os seus sintomas, entende essa crença dos índios.
“Matar um kanaimé é uma boa ação, e não acontece nada com o homem” (Koch- grümberg 2006: 70).
A partir dos elementos apresentados para identificar a vítima como kanaimé, o laudo antropológico considera justificável a associação feita por Elcio, Valdemir e Mozarildo. Porém, há a clara e precisa ressalva que não se afirma, em hipótese alguma, que Antônio seja um kanaimé ou que tenha agido ou praticado atos que o qualifiquem como tal. O que se sugere é a possibilidade de, no contexto evidenciado, no acontecimento ocorrido no Mercadinho do Peão, ser compreensível tal abordagem. Reproduzimos a seguir os elementos suscitados no laudo antropológico.
Como primeiro aspecto, teriam ocorrido mortes na comunidade da Enseada significadas como provocadas por kanaimé, tanto do avô como de um sobrinho dos réus. A comunidade estava amedrontada diante do ocorrido.
O segundo aspecto é que circulava boato, em Uiramutã, de haver um kanaimé andando pela região. Antonio circulava pela região vendendo facões e comprando carne e frango, bem como corresponde a uma boa mimese de kanaimé por suas características pessoais.
O terceiro aspecto é que a vítima afirmava conhecer a comunidade da Enseada, mas, os outros, que sempre lá habitaram, não o conheciam. O kanaimé é que teria a faculdade de ter estado invisível na comunidade.
Além disso, como quarto e último aspecto apresentado no laudo, as palavras “amarrar o garrote” (condizente com a representação do kanaimé) e outras ameaças apontadas pelos réus, teriam determinado a reação em relação à vítima.
Ressalvadas as elucidações do laudo antropológico, no dia 23 de abril de 2015, foi realizada a sessão de julgamento pelo Tribunal do Júri.
2. DA SESSÃO DE JULGAMENTO
Após tratativas entre o Judiciário roraimense e as lideranças indígenas de Raposa Serra do Sol, decidiu-se pela realização do julgamento no Centro Comunitário Maturuca, o que determinou a presença de muitas pessoas interessadas em assistir o plenário do Júri. Essa é a imagem do dia do julgamento:
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Imagem 15: Sessão de julgamento do Primeiro Júri Popular Indígena

Fonte: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/04/juri-indigena-em-rr-absolve-um-reu-e-condena-outro-mp-diz - que-vai-recorrer.html. Acesso em 07/11/2016.
Participei diretamente da defesa nesse julgamento como advogada de defesa. Com certa antecedência da data marcada para a sessão, dirigi-me a Roraima e comecei a levantar informações sobre a ocorrência do crime, as representações envolvidas e o comportamento pretérito dos réus. Estive na comunidade da Enseada e, por questões de logística (nível do rio e dificuldades de transposição), não pude ir até a comunidade do Orenduque, mas recolhi relatos sobre os seus costumes e a situação da vítima. Confirmei a informação com o relato de indígenas de que havia um kanaimé rondando a região, inclusive, com mortes atribuídas à entidade.
Fiquei responsável pela defesa do réu Élcio, o que efetivamente desferiu o golpe que ocasionou o corte no pescoço da vítima. Na sustentação oral, segui um roteiro de defesa que perpassava cinco pontos principais: i. explicar o Tribunal do Júri; ii. tratar do inquérito policial; iii. e do processo judicial, particularmente, com um maior espaço de fala para as teses defensivas; iv. focar na vítima e no restabelecimento das relações comunitárias e por último, e não menos importante, v. discutir o tema da interculturalidade. De antemão, esclareço que parti da compreensão desse processo como documento-discurso que sintetiza o ponto de vista de agentes oriundos de diferentes contextos socioculturais e trajetórias de vida que se reuniram do espaço - tempo judicial para representar concepções sobre fatos, valor e normas pela ótica da diversidade de significação e da relação de poder instituídos pelo saber jurídico, mas que, de todo modo, pelo modelo adotado, seguindo as noções formais do Tribunal do Júri disciplinado no Código de Processo Penal, haveriam de convergir na garantia na legitimação das promessas da modernidade
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jurídica ocidental: pacificação da lide, segurança jurídica e proteção dos direitos (Oliveira 2012: 45).
Então, na sustentação da defesa, como primeiro ponto, realizei explicação sobre o próprio rito do Tribunal do Júri, com foco determinado pelas noções de sua origem, sentido, importância e significação específica articulada para a realização do que se denominou “1º Júri Popular Indígena”. O Poder Judiciário de Roraima, representado pelo juiz do caso, realizou reuniões com os líderes indígenas da região e assembleia datada no último desses encontros (dezembro de 2014), em que pelo menos 270 lideranças foram favoráveis à realização da sessão de julgamento na TI Raposa Serra do Sol.
Em sua concepção inicial, o Tribunal do Júri configura a participação popular direta nos julgamentos proferidos pelo Poder Judiciário, de modo a assegurar que o réu seja julgado por seus semelhantes. Por isso, o Conselho de Sentença composto por indígenas atenderia a ideia do julgamento pelos próprios “pares”, não se afastando da lógica idealizada para o julgamento. Incumbe ao Júri o julgamento de delitos considerados de elevada gravidade, envolvendo os crimes dolosos contra a vida, como no caso do homicídio, infanticídio, participação em suicídio e crimes conexos. No caso em análise especificamente, como antes visto, tratou-se de processo penal por tentativa de homicídio.
Para a configuração da lista de jurados, observou-se o rito estruturado no Código de Processo Penal, com o acompanhamento do procedimento tanto pela defesa quanto pela acusação. Não houve qualquer impugnação ao ato, baseado na configuração social da região e no sentido pensado para o julgamento, revestindo-se de legitimidade.
Quanto à importância do feito, não deve ser considerado como um evento solto, mas sim atento aos conceitos de jusdiversidade necessários ao contexto do Judiciário roraimense, tal como estabelecido em outros processos judiciais – o primeiro deles é chamado caso Basílio, que tramitou na Justiça Federal de Roraima, sob o n. 92.0001334-1; ii. o segundo é o caso Denilson, que tramitou na Justiça Estadual de Roraima, sob o n. 0090.10.000302-0 (numeração única 0000302 - 88.2010.8.23.0090) que, somados ao caso em apreço, fornecem fecundo material de análise para a pesquisa jurisprudencial com contornos do direito à diferença em perspectiva intercultural.
No caso do “Primeiro Júri Popular Indígena”, além disso, há um nítido caráter de aproximação com as comunidades indígenas, com a possibilidade de se articular uma dimensão de aprendizado, a partir do entendimento de como se dá o funcionamento do Tribunal e de como o Poder Judiciário julga os casos penais. No entanto, como se demonstrará adiante, esse objetivo não foi plenamente alcançado.
No segundo ponto, ao se tratar do inquérito policial, o que se buscou apontar não foi somente os apontamentos estatais na condução do procedimento, mas sim o intuito foi exatamente
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demonstrar uma narrativa factível dos fatos, a partir da compreensão do réu diante do contexto de cometimento do delito.
Nesse cenário, na explicação do caso, antes mesmo do fato em si, a defesa articulou a situação vivenciada pela comunidade da Enseada diante de duas mortes ocorridas anteriormente e atribuídas à ação do kanaimé – um senhor, de nome Damasceno, avó dos réus, que havia sido tuxaua da comunidade e gozava de boa saúde até o óbito, bem como de um menino de nome Virlane, de aproximadamente 8 anos de idade, primo dos réus, que foi encontrado morto e amarrado com um cabresto no curral da comunidade. Essas duas mortes haviam atemorizado os indígenas da região, com a possibilidade de que um kanaimé estivesse rondando a área.
Por outro lado, ao tratar de temas ligados ao “sobrenatural” partilhado pelos indígenas, busquei ter o cuidado de enfrentar o assunto de forma séria e comprometida, não diminuindo ou sublevando as crenças e costumes. Assim, foi um difícil trabalho de buscar em meu próprio universo linguístico, representações adequadas que dessem conta de traduzir a figura do “kanaimé” que transita entre as dimensões do real e do sobrenatural. Logicamente, não que os indígenas necessitassem dessa compreensão (o que impactaria na decisão do Conselho de Sentença), mas, as partes componentes desse processo judicial, em minha visão, detinham a tarefa de construir pontes para a análise por parte de indígenas e não indígenas, com base na ideia de traçar um horizonte de respeito em relação às culturas indígenas.
Por isso, baseei a figura do kanaimé como uma crença (no sentido de acreditar na sua existência, no ato de dar fé) e não como uma lenda ou mito. Nas diversas sociedades, há muitas representações do sobrenatural enquanto entidades que impactam diretamente na configuração do mundo natural e esses planos se imbricam, o que exige dos interlocutores que se debruçam sobre esses fenômenos noções de alteridade (além do mero ato de tolerar) e respeito.
Essa ordem de representação estava presente desde as descrições nos termos de declarações (depoimentos e interrogatórios) no inquérito policial, por parte dos réus, da vítima e das testemunhas. Inclusive, o próprio Antônio afirmou que um dia antes de ir para Uiramutã, onde viria a ser vítima do crime, sua tia Lucy foi a sua residência e comentou que estava havendo uma “fofoca” na cidade que ele seria um kanaimé. Antônio declarou que, por não ter envolvimento nesse “tipo de coisa”, mesmo assim foi até a vila, porque precisava fazer compras.
Por conta dessas especificidades, não se pode entender o fato que deu origem ao transcorrer do inquérito policial de forma dessincronizada em relação a essa visão de mundo mais ampliada. Além disso, durante o período do inquérito policial, os réus ficaram recolhidos na penitenciária agrícola de Monte Cristo por um breve período de tempo (pouco mais de uma semana), com a homologação da prisão em flagrante, e depois, foram liberados com a concessão de liberdade provisória sem fiança – com as condições de i. não afastamento da comarca por prazo superior a 15
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(quinze) dias, salvo autorização judicial; ii. comparecimento a todos os atos sempre que intimados ; iii. comparecimento bimestral à sede do juízo para informar suas atividades regulares; iv. proibição de frequentar bares e boates após 22:00h e v. proibição de portar armas ou fazer uso de bebidas alcoólicas, sob pena de perdimento da liberdade. A defesa destacou que as condições foram integralmente cumpridas pelos réus, sem nenhum incidente.
Em relação ao processo penal, como terceiro ponto da sustentação oral, antes de se adentrar nas teses defensivas, foram traçados alguns aspectos para destaque em ple nário.
Primeiramente, foi necessário desenvolver argumentação sobre a função do Ministério Público na ação penal, ressaltando seu papel social na titularidade do processo. O objetivo foi reverter a tentativa dos promotores de atribuir à defesa como pactuante de discurso negativo a priori contra a atuação do órgão ou uma fala direcionada ao MP como “colecionador de condenações” . Contudo, em um cenário no qual a atuação do MP, como acusador no Júri, traz à tribuna o
mapa da violência no Brasil, em nítido fomento à lógica do medo que impulsiona a ampliação do direito penal positivo, bem como à carcerização como resposta ao cometimento do delito, contrapus a lógica defensiva para um sentindo diametralmente oposto.
A condenação penal tem um significado altamente estigmatizante para as pessoas que cometem crimes e, notadamente, a função ressocializadora da execução penal não tem sido atendida a contento. Em especial, no contexto indígena das penitenciárias roraimenses, é sobrelevado o preconceito em relação aos detentos/reclusos indígenas. Portanto, pautei como importante pensar no significado da condenação no processo em curso.
Além disso, nesse sopesamento, a conduta social e a personalidade dos réus também devem ser levadas em consideração. Élcio é casado, pai de dois filhos, trabalhador na roça, nunca havia sofrido condenação criminal ou respondido a qualquer processo penal. Valdemir é casado, pai de cinco filhos, trabalhador na roça e vaqueiro na comunidade, nunca havia sofrido condenação criminal ou respondido a qualquer processo penal. O próprio dono do mercado, Seu Francisco de Assis, que separou o confronto entre a vítima e réus, sinalizou que eram pessoas de “boa paz” e que não era de seu conhecimento que houvessem se envolvido em transtornos anteriores. Por outro lado, segundo relato dessa testemunha, o comportamento dos irmãos estava visivelmente alterado pelo consumo de bebida alcóolica no bar.
Outro ponto discutido em plenário, disse respeito à atuação de Mozarildo no crime. As falas tanto da vítima, como dos réus e das testemunhas convergem para narrar que a animosidade e o conflito que se instaurou foram originados do diálogo entre Mozarildo (primo dos réus e figurou no processo judicial na condição de testemunha) e Antônio (vítima), partindo daí a suposição de que Antônio seria um kanaimé. Em sua inquirição, o promotor Carlos Paixão questionou sobre o papel central que Mozarildo teria para o cometimento do delito, suspendendo a ordem de perguntas com
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as respostas evasivas da testemunha, e ainda, ao argumento de que deveria ter figurado na condição de autor do crime, como réu no processo penal em curso e que teria sido orientado a mentir. Como advogada de defesa, não havia feito qualquer orientação anterior à testemunha sobre o seu depoimento em plenário, além disso, o MP teve a oportunidade de oferecer denúncia também contra ele, mas não o fez. Prometeu fazê-lo em data futura, o que não ocorreu.
3. DAS TESES DEFENSIVAS
Sedimentados alguns apontamentos sobre a explicação do Júri, inquérito policial e ação penal, passei propriamente para as teses defensivas, ponto chave na sustentação oral. A defesa do Élcio, bem como a de Valdemir, foi toda baseada na confissão dos acusados, que reconheceram o cometimento do delito e se mostraram proativos na elucidação do processo. Destaquei, assim, que havia sinceridade em elucidar o crime, partindo do entendimento de que, naquele contexto específico, foi real a possibilidade de os réus considerassem que a vítima seria um kanaimé.
Em decorrência do fato de o Conselho de Sentença ser composto por pessoas do povo, que não se atêm aos rigores dos institutos jurídicos utilizados no processo penal, as teses defensivas foram trabalhadas de modo mais ampliado e pouco ortodoxo, permitindo-se certa flexibilização nas categorias. Além do que, antes de utilizar a terminologia propriamente jurídica, muitas vezes, dotada de incompreensão para aqueles que não transitam no campo jurídico, realizei toda a explicação do conteúdo daquilo que queria ver reconhecido, para depois dar a nomencl atura adequada que constaria na quesitação elaborada pelo juiz. Seguem as teses defensivas:
i. Legítima defesa
Em decorrência dos óbitos anteriores ocorridos na comunidade da Enseada e acreditando que estava diante do kanaimé, o réu reagiu em sua legítima defesa e de seus parentes (no sentido indígena). Os requisitos da injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem, devem ser relativizados a partir do entendimento de que as mortes causadas caracterizavam a injusta agressão ou mesmo a possibilidade de que viesse a ser vítima naquele momento; eram atuais porque ocorridas recentemente na comunidade e os ânimos dos indígenas estavam sobressaltados diante desses fatos ou iminentes porque o ocorrido poderia se repetir, além do que ao se caracteri zar direito seu ou de outrem, tanto pode ser visualizado o direito dos próprios réus que compreenderam estar diante um kanaimé ou da comunidade que vinha sofrendo com a atuação daquela entidade. Segundo relato dos indígenas, ao se deparar com um kanaimé, só há dois enquadramentos possíveis: a morte da pessoa por um kanaimé ou a morte do kanaimé pela pessoa.
ii. Inexigibilidade de conduta diversa
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Se não há possibilidade de sobreviver ao kanaimé, a não ser matando-o, tem-se, então, que o réu (Élcio) não poderia agir de outro modo, como tentou fazer. Trata-se, por essa via, de um dever moral partilhado na crença Macuki: matar o kanaimé. Ao tomar essa atitude, não há possibilidade de punição, pois, é encarada como um honra para esse povo indígena.
iii. Causa supralegal de exclusão da ilicitude
Se entendermos que ambos os parâmetros elencados anteriormente (legítima defesa e causa supralegal de exclusão da ilicitude) não se encaixaram propriamente nos parâmetros legais, nos rigores do ordenamento jurídico, podemos entender que a reação dos réus, diante de um suposto kanaimé, é compreendida como uma causa que escapa à legislação. Não está na lei, mas, está na ordem das crenças partilhadas pelos indígenas, compreensível nesse universo cognitivo. Assim, há uma causa supralegal de exclusão da ilicitude.
iv. Desclassificação
Como tese bastante subsidiária, pois, o foco maior deu-se nas três primeiras, sustentei que o delito praticado por Élcio fosse desclassificado para lesão corporal, a partir da argumentação de que a posição do ferimento, no contexto em que se deu, não seria capaz de lhe causar a morte. Além do que se teria ineficácia absoluto do meio - com o uso de uma “faca de descascar laranja”, instrumento descrito em diversas passagens no inquérito policial.
v. Homicídio privilegiado
Como último apontamento, destaquei a possibilidade de se entender que se tratou realmente de tentativa de homicídio, mas, com causa de diminuição da pena ao argumento de que o réu estava sob violenta emoção.
O fato de o crime ter sido baseado na crença do kanaimé já ocorreu em outras passagens no Judiciário roraimense. Particularmente, tomei conhecimento de caso envolvendo também dois irmãos da etnia Macuxi, Rosildo da Silva Miguel e Osmário Felisberto Miguel, que no dia 25/11/1996, ao pé da Serra da Mala, próximo à Maloca do Bismarck, município de Normandia, mataram um índio chamado Mistalhin Costantino, acreditando tratar-se de indivíduo possesso pelo espírito kanaimé. Os réus admitiram que mataram a vítima, mas alegaram legítima defesa. O indígena Rosildo foi absolvido pelos jurados, mas numa flagrante injustiça, seu irmão Osmário foi condenado por quatro votos a três (Pereira 2009: 05- 08).
Para fins da sustentação oral, citei o caso como acima exposto, no entanto, para fins deste artigo, é importante destacar que antes desse resultado final, houve julgamento pela Justiça Federal, em que os jurados negaram a tese defensiva (ao quesito “o acusado, no momento do ocorrido, supôs estar sendo agredido por um ser espiritual, conhecido na cultura indígena como kanaimé?”) e condenaram os réus. Dessa decisão, ambos recorreram para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região que reconheceu por unanimidade ser caso de incompetência da Justiça Federal, não
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adetrando no mérito da causa e anulando o julgamento, com a determinação de que o processo fosse julgado na Justiça Estadual.
Assim, o processo passou a tramitar na 1ª Vara Criminal de Boa Vista e, novamente, submetidos ao Tribunal do Júri, um dos irmãos foi absolvido e o outro foi condenado. O prom otor que atuou no Júri recorreu acerca do réu absolvido, para anular o julgamento e os defensores públicos recorreram para anular o Júri do acusado condenado, mas em ambos os casos o Tribunal de Justiça de Roraima manteve o julgamento e as decisões dos jur ados.
Pereira (2009) destaca que não há congressos, seminários ou grupos de estudos interdisciplinares que discutam a aplicação do direito penal aos indígenas roraimenses, sendo que pouco se escreve sobre o tema e, na seara jurídica, a bibliografia é ainda mais escassa, apesar da grande ocorrência de casos criminais envolvendo indígenas nos mais diversos delitos (Pereira 2009: 09).
Por isso, o julgamento em apreço teria inserção nesse cenário mais explanado, com a necessidade de se voltar os olhos para as tradições e costumes indígenas, além do fato de revelar a sobrelevância das peculiaridades e vicissitudes das questões indígenas envolvidas no procedimento, que não foram apagadas.
E, na estrutura defensiva, além da preocupação com o réu, como último aspecto discorrido, foi tratado o panorama da interculturalidade presente na causa, mas, de maneira alargada, envolvendo as relações comunitárias afetadas pelo delito.
Nesse ponto, inicialmente, demonstrei a preocupação com a vítima, com primado pela sua vida. Antônio, de origem da etnia Patamona, não era um kanaimé e nem a comunidade do Orenduque era uma comunidade de kanaimés. O que houve foi um engano, o qual poderia ser compreendido naquele contexto específico que se instalou o fato. Além disso, a vítima já t inha recuperado suas condições de trabalho, após período que ficou impossibilitado de exercer suas atividades. Os réus deveriam ressarci-lo pelo ocorrido, o que, inclusive, era de sua própria vontade, manifestando o interesse que fosse feita uma recomposição dos danos sofridos. Assim, resolvido o processo penal, as comunidades poderiam voltar a dialogar e restabelecer o convívio harmonioso entre os indígenas.
Após encerrada a sustentação oral defensiva não houve réplica por parte do Ministério Público. Em seguida, o juiz procedeu à votação dos quesitos, sendo lidas e explicadas à significação legal aos jurados. Em relação ao réu Elcio, os jurados reconheceram a autoria e a materialidade do delito, bem como sua intenção de matar a vítima, que não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade. No entanto, o quarto quesito, com a cláusula geral, se o jurado absolve o acusado, o Conselho de Sentença respondeu afirmativamente pela absolvição. Em relação ao réu Valdemir, os jurados reconheceram a autoria e a materialidade do delito, mas, no terceiro quesito, responderam
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negativamente quanto à intenção de matar a vítima, tendo sido o delito desclassificado para lesão corporal. Na dosimetria da pena aplicada pelo juiz, foi fixada a pena base em três meses de re clusão - em regime aberto e devendo recorrer em liberdade.
3.1. Do Recurso De Apelação
O Ministério Público recorreu da sentença, nos termos dos arts. 593, inciso III e 600, § 4º do CPP. Em suas razões, apresentadas mais de sete meses depois da sessão de julgamento, a argumentação ministerial pautou-se pela mácula ao princípio do juiz natural no caso, na medida em que teria havido a formação de um Conselho de Sentença parcial e ainda pela constituição de um “Tribunal de Exceção” no julgamento pela escolha dos jurados indígenas.
Apresentei as contrarrazões para o réu Elcio e a Defensoria Pública o fez para o réu Valdemir. Os argumentos foram convergentes, iniciando-se pela intempestividade das razões do Ministério Público em afronta ao princípio da duração razoável do processo - o direito à liberdade não pode ficar ao alvedrio de processos longos e cujo trâmite ofende os prazos legalmente previstos. Todavia, essa preliminar não foi reconhecida pela Tribunal de Justiça, afirmando-se haver mera irregularidad e.
No enfrentamento do mérito, a defesa pautou-se pela observância do devido processo legal no rito do Tribunal do Júri, como a seguir demonstrado.
Em relação ao sorteio dos jurados, a sua origem refletiu especificamente o arranjo geográfico da área, não se traduzindo em qualquer pecha de nulidade. Logicamente, o Tribunal do Júri traduz a base territorial em comento. O que se vislumbrou foi a clara impropriedade na argumentação ministerial ao tratar as comunidades indígenas em tom massificado e como se estivessem organizados em patamares hierarquizados (“subordinadas a liderança indígena estabelecida no centro indígena Maturuca”). O Ministério Público demonstrou claro desconhecimento das estruturas organizacionais desses povos indígenas e utilizou categori as analíticas infundadas para justificar seu embasamento, como o conceito de “bloco indígena”.
Aliás, sendo a idealização do Tribunal do Júri justamente o julgamento entre pares, isso é o que se visualizou no caso. O município de Uiramutã, seja pelo Censo Indígena do IBGE ou pelo Censo Universal deste mesmo órgão, é um dos municípios com maior percentual de população indígena no país, ocorrendo o mesmo com o município de Normandia, que também se conforma com a Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Veja-se os dados do Censo de 2010 para a composição populacional do município de Uiramutã e Normandia:
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Tabela 6: Dados do Censo de 2010 para o município de Uiramutã
População 2010
8.375
Área da unidade territorial (km²) 8.065,564
Densidade demográfica (hab/km²) 1 ,04
Código do Município 1400704
Gentílico uiramutansense
Prefeito ELIESIO CAVALCANTE DE LIMA
Fonte: http://cidades.ib ge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=140070&search=roraima|uiramuta
Tabela 7: Dados do Censo de 2010 para o município de Normandia
População 2010
8.940
Área da unidade territorial (km²) 6.966,811
Densidade demográfica (hab/km²) 1,28
Código do Município 1400407
Gentílico Normandiense
Prefeito JAIRO DE AMILCAR ARAÚJO
Fonte: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/per fil.php?lang=&codmun=140040&search=roraima|normandia
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Agora, em termos percentuais dos indígenas localizados nos Municípios roraimenses:
TABELA 8: Municípios com as maiores proporções de população indígena do País, por situação do dom icílio
Roraima – 2010
Total Urbano Rural
Código Município % Código Município % Código Município %
1 1400704 Uiramutã 88,1 1400704 Uiramutã 56,9 1400704 Uiramutã 93,0
2 1400407 Normandia 56,9 1400407 Normandia 18,1 1400456 Pacaraima 91,7
3 1400456 Pacaraima 55,4 1400159 Bonfim 9,3 1400407 Normandia 70,5
4 1400027 Amajari 53,8 1400027 Amajari 8,7 1400050 Alto Alegre 63,9
5 1400050 Alto Alegre 45,9 1400456 Pacaraima 7,9 1400027 Amajari 60,5
6 1400159 Bonfim 42,5 1400100 Boa Vista 2,2 1400159 Bonfim 5 9,5
7 1400282 Iracema 18,0 1400050 Alto Alegre 1,8 1400100 Boa Vista 38,0
8 1400175 Cantá 12,4 1400175 Cantá 1,1 1400282 Iracema 33,5
9 1400233 Caroebe 5,6 1400233 Caroebe 0,5 1400175 Cantá 14,6
10 1400506 São João da Baliza 4,3 1400282 Iracema 0,5 1400506 São João da Baliza 13,7
Fonte: http://indigenas.ibge.gov.br/graficos-e-tabelas- 2.html
Em 2010, eram 8.940 habitantes no município de Normandia, somados com os 8.375 habitantes de Uiramutã, o resultado ainda é inferior ao número de indígenas da TI Raposa Serra do Sol:
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Tabela 9: Pessoas residentes em terras indígenas, por condição de indígena, segundo as Unidades da Federação e as terras indígenas - Brasil – 2010
Pessoas residentes em terras indígenas
Unidades da Federação e terras indígenas
Total (1)
Condição de indígena
Declararam- se indígenas
Não se declararam, mas se consideravam indígenas
Não se declararam e nem se consideravam indígenas
Roraima 50 406 40 220 6 285 314
Ananás 14 X X X
Anaro 39 X X X
Aningal 208 208 - -
Anta 115 - 99 14
Araçá 1 080 615 428 31
Barata Livramento 669 329 336 3
Bom Jesus 107 46 51 8
Boqueirão 460 441 18 1
Cajueiro 113 67 45 -
Canauanim 834 59 773 1
Jabuti 307 282 25 -
Jacamim 1 518 1 511 7 -
Malacacheta 776 736 38 2
Mangueira 80 51 29 -
Manoa / Pium 2 009 1 722 277 8
Moskow 559 488 71 -
Muriru 155 153 1 1
Ouro 180 146 33 -
Pium 312 223 82 7
Ponta da Serra 175 - 168 -
Raimundão 363 38 313 12
Raposa Serra do Sol 17 750 14 640 2 462 114
Santa Inez 163 126 31 4
São Marcos 7 948 4 493 452 7
Serra da Moça 479 352 125 2
Sucuba 213 88 124 -
Tabalascada 553 503 43 5
Trombetas / Mapuera (2) 427 411 14 1
Truaru 354 342 12 -
Waimiri-Atroari (2) 446 438 3 -
Waiwái 300 261 28 11
Yanomami (2) 11 700 11 410 188 79
Fonte: http://bibl ioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/95/cd_2010_indigenas_universo.pdf
Ou seja, não há nenhuma incoerência que os jurados desse julgamento pelo Tribunal do Júri tivesse um corpo de jurados formado por indígenas. O magistrado, na sentença de pronúnci a,
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afirmou tratar-se “peculiar feito meritório e procedimental, haja vista a principal alegação de a defesa centrar-se em tradição indígena e o pretenso ato ilícito criminal ter ocorrido em terra indígena, e terem indígenas como réus e vítima, o que reclama a realização da sessão de Júri em Terra Indígena, como jurados indígenas com o fito de dar legitimidade ao ato, uma vez que serão julgados ‘verdadeiramente’ por seus próprios pares”.
O Judiciário brasileiro tem, assim, o desafio de lidar com as demandas advindas dos povos indígenas, o que evoca um olhar revestido de especificidades a fim de criar horizontes epistemológicos que auxiliem em uma justa compreensão jurídica. Essa teria sido a proposta da CRFB/88 ao garantir o reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, crenças e tradições, entre outros (arts. 231 e 232, 215 e 216 da CRFB/88). Nesse contexto, o conceito de jusdiversidade opera como catalisador de uma nova lógica de afirmação de direitos e políticas identitárias. A Convenção 169 da OIT da traz ainda os seguintes dispositivos:
Artigo 5º Ao se aplicar as disposições da presente Convenção:
a) deverão ser reconhecidos e protegidos os valores e práticas sociais, culturais religiosos e espirituais próprios dos povos mencionados e dever-se-á levar na devida consideração a natureza dos problemas que lhes sejam apresentados, tanto coletiva como individualmente; b) deverá ser respeitada a integridade dos valores, práticas e instituições desses povos; Artigo 9o
1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Com todas as dificuldades apresentadas para fazer valer esses dispositivos e consagrar a jusdiversidade, temos decisões que se somam a essa em comento para evidenciar a afirmação do respeito aos indígenas brasileiros. Assim, o “Primeiro Júri Popular Indígena” não trata de um julgamento solto e isolado, mas da estruturação de novos contornos jurisprudenciais em relação aos direitos indígenas.
Há, logicamente, como salienta Duarte e Baptista, o risco da observância de comportamentos externos segundo códigos internos, o que compromete a capacidade de compreensão do outro e se pauta em julgamento segundo nossos próprios juízos de moralidade, o que pode levar a um comportamento etnocêntrico e na intervenção valorativa de atos de terceiros - intolerância com a diferença. Em contrapartida, por outro lado, encara-se a possibilidade de construção de pontes que levam ao reconhecimento das diferenças e das sensibilidades jurídicas locais e, ao mesmo tempo, privilegiam a interação dialogada entre elas - dilemas a serem enfrentados na busca de uma adesão legítima ao Estado, ao Direito e às suas instituições (Duarte; Baptista 2014: 69- 70).
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Esse caso específico evidencia a não ocorrência de um Tribunal de Exceção, baseado em esforço argumentativo distorcido, e sim o primeiro julgamento de um Tribunal do Júri popular indígena, ocorrido em caráter itinerante, no Centro Comunitário Maturuca, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com severas dificuldades de realização e desafios permanentes.
A realização do júri em Maturuca foi aprovada e apoiada pelo Tribunal de Justiça. O Ministério Público Estadual concordou com a realização do júri naquela localidade. Dois promotores estiveram em ação, bem como um defensor público. O presidente do Tribunal de Justiça de Roraima, na ocasião, acompanhou pessoalmente os trabalhos, bem como um procurador de justiça do Estado de Roraima. A Imprensa registrou, antes, durante e depois do julgamento. Assim, cabe indagar, todas essas autoridades e público testemunharam/participaram de um "tribunal de exceção"?
Ultrapassada a sessão em plenário, os envolvidos no processo (réus e vítima) e suas comunidades voltaram a dialogar para alcançar a recomposição do conflito e o restabelecimento das relações comunitárias, ultrapassando a visão do Direito Penal meramente repressiva. Além disso, houve o processo de avaliação do ritual do Tribunal do Júri - considerado como violento e desrespeitoso - e o consequente ritual indígena, que buscou a pacificação da vida social entre as 119 comunidades que mantêm vínculo com o Centro Comunitário Maturuca, entre elas a comunidade da Enseada, dos réus e a Comunidade de Orinduque, da vítima.
Em evento posterior, os réus e a vítima estiveram presentes no Centro Comunitário Maturuca, sinalizando que o processo judicial híbrido - parte do Estado e parte dos indígenas, apesar dos percalços na aproximação dessas sensibilidades jurídicas, conseguiu efetivamente religar os laços de sociabilidade entre ofensores e ofendidos, tanto na esfera individual quanto na coletiva. No julgamento da apelação criminal, de relatoria do Desembargador Ricardo Oliveira, no
início do mês de setembro de 2016, foi rejeitada a preliminar de intempestividade do recurso e negado provimento ao recurso, por unanimidade. No voto do relator, reconheceu-se que todas as fases para a formação do Conselho de Sentença teriam sido cumpridas pelo juízo fielmente, sem irresignação anterior por parte do Ministério Público e sem prejuízo para a acusação.
3.2. Dos Deslindes do Caso
Após o transito em julgado do acórdão, no final do mês de setembro de 2016, Julio Macuxi, vice coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena do Leste, filho de seu Jacir (tuxaua do Centro Comunitário Maturuca), esteve na Universidade Federal Fluminense para participação de debates e oficinas sobre o primeiro “Tribunal do Júri Indígena” em Raposa Serra do Sol.
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Nessa ocasião, tive a oportunidade de dialogar mais detidamente sobre as consequências desse julgamento. A narrativa dessa liderança indígena lançou novas luzes sobre o evento, com o detalhamento da reunião ocorrida no dia seguinte após o júri para avaliar o ocorrido em plenário e estabelecer os deslindes do caso. Os réus foram penalizados pelas comunidades indígenas, bem como a vítima e a testemunha Mozarildo - com o estabelecimento de penalidades para cada um deles, desde à prestação de serviços coletivos e trabalhos comunitários, desterro para outra comunidade indígena, entrega de cabeças de gado, participar das celebrações religiosas, proibição de ir à sede do município de Uiramutã e não consumir bebida alcóolica durante a penalidade. Nesse panorama, todos teriam tido participação para a ocorrência do crime que teria por principal motivação o desentendimento oriundo do consumo de bebidas alcoólicas. A ingestão de bebidas alcoólicas é apontada como um grave problema social para essas comunidades indígenas, sobretudo, quando relacionadas àquelas introduzidas por comportamentos externos que não guarda conexão com os costumes locais e com as práticas de produção comunitária (no caso, “caxiri” e “pajuaru”). O estabelecimento de penalidades tenta acompanhar, muitas vezes, a quantidade do consumo e a intensidade do álcool presente na bebida (das mais fracas às mais fortes), sendo mais brando, por exemplo, no caso da cerveja e mais acentuado em se tratando de cachaça. Inclusive, ainda na década de 1970, diversas lideranças indígenas uniram-se na Maturuca para pactuar a proibição de bebidas alcoólicas na localidade, atribuindo a esse comportamento como determinante para uma desfragmentação social e como elemento de manipulação/deterioração dos indígenas a partir do fornecimento por garimpeiros e fazendeiros. No crime específico em apreço, a alteração comportamental pelo consumo de álcool teria ocasionado o derramamento de sangue, apontado como um crime gravíssimo que deve ser penalizado com rigor.
Julio Macuxi enfatizou também que, na visão dos indígenas, a realização do Tribunal do Júri no malocão da homologação da terra indígena, com o objetivo dos indígenas de entenderem o funcionamento e o julgamento dos delitos por parte do Poder Judiciário, foi prejudicada por conta do tom desrespeitoso e acalorado traduzido em plenário na atuação da Defensoria Pública e do Ministério Público. Nesse sentido, a lógica do contraditório não se apresentou com argumentativa, mas sim enfática em desqualificar o discurso do outro, como comumente ocorre nos tribunais brasileiros. O juiz do caso, Aluízio Vieira, relata que, logo depois da sessão de julgamento, Seu Jacir, uma das maiores lideranças de Raposa Serra do Sol e tuxaua do Centro Comunitário Maturuca, disse-lhe que “não imaginava que o julgamento dos brancos ocorria dessa maneira e que, a partir de então, ainda mais, iriam resolver todos os problemas da comunidade entre eles” (Vieira 2016: 81). Do mesmo modo, em declaração para a imprensa que acompanhou o julgamento, o coordenador regional da região das serras, Zedoeli Alexandre, avaliou o julgamento dos 'brancos' como brutal e muito diferente da forma deles (indígenas do Centro Comunitário Maturuca), mais
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respeitosa e educativa de julgar, bem como, de acordo com ele, a ação mudou a forma como os indígenas lidarão com os conflitos a partir da realização do júri (Portal g1 – Globo 2016: s/p). Esse relato é corroborado na dissertação de mestrado de Moraes, que precede à realização do julgamento, com o apontamento de que a justiça formal e o formato estatal brasileiro de administração de conflitos em grande parte não atende às demandas dessa comunidade indígena e acaba trazendo outros problemas, o que determina a percepção formulada por vários indígenas que não gostam de “ver nas mãos do Estado” os problemas internos às comunidades indígenas que antes eram resolvidos pelas lideranças locais. A preocupação, nesse sentido, reside em repor o equilíbrio comunitário (Moraes 2015: 106).
Por conta de todas essas indicações, muitas vezes, fica manifesta a necessidade das comunidades indígenas resolverem os problemas internos e não levá-los ao Judiciário, revelando o protagonismo indígena e o fortalecimento dos conselhos comunitários, com a aproximação das ações e iniciativas das lideranças indígenas. Além do que, na esfera penal, o encarceramento em relação aos indígenas não atenderia a qualquer processo de ressocialização (“recuperação dos parentes”), retornando para as comunidades indígenas desagregados de seus aspectos culturais. Nessa lógica, emergiu a diferenciação entre as características próprias da forma de fazer justiça na perspectiva local (orientada pela reconciliação e para a manutenção de uma ordem social geral) e a formalmente partilhada pela “justiça estatal” (orientada por direitos individuais e para a punição de culpados). Simião questiona, em sentido que me é partilhado nesse caso, sobre a postura estatal em conhecer o direito costumeiro e sua legitimidade, a partir das práticas usuais de administração dos conflitos, em contrapartida à visão do Estado em apostar sempre na promessa civilizatória do direito positivado que efetivamente não atende, em muitos casos, a esses grupos de pertencimento (Simiâo 2013: 34-36). É nesse sentido que também articula Dan:
A justicia indígena, ou seja, uma certa concepção de ordem social que determina o modo de aplicação e a função do direito dentro das comunidades indígenas respeitando seus valores não é recente, ela existe e é anterior ao próprio Estado. Porém, nessa nova fase constitucional, a proposta estatal é o ―reconhecimento‖ do que acreditam ser sistemas jurídicos indígenas adaptados e que aqui está sendo lido como uma forma de ajuste ao sistema jurídico monista uma vez que considera aspectos jurisdicionais e condições do Estado e que mantém a hierarquia com base em uma Constituição no topo dessa pirâmide legislativa. Não se pode falar em justiça indígena, mas sempre em vários tipos de justicias indigenas. (Dan 2016: 98)
Por essa via, outra consequência advinda dessas experiências e a visibilidade que se construiu em torno do julgamento em Raposa Serra do Sol, bem como das práticas jusdiversas experimentadas por esses povos indígenas, foi a criação do 1º Pólo de Conciliação Indígena no cenário brasileiro em setembro de 2015. O Presidente do STF, ministro Ricardo Lewandowski, esteve no centro comunitário Maturuca para inaugurar o funcionamento desse polo. A imagem a seguir mostra esse momento:
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Imagem 16: Inauguração do 1º Pólo de Conciliação Indígena

Fonte: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/09/lewandowski-inaugura-em-rr-1-polo-de-conciliacao-indigena - do-brasil.html. Acesso em 10 de setembro de 2016.
O que se vislumbra é o reconhecimento do Estado por meio de uma instância oficial de Justiça para as reuniões e a aplicação dos costumes no modo de resolver conflitos ou punir aqueles indígenas que cometeram desvios em suas condutas dentro da TI Raposa Serra do Sol. O órgão foi denominado de Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do Brasil, com funcionamento contínuo e vinculação à comarca de Pacaraima, município encravado dentro da TI. Muitas vezes, no embate com o Estado há imposição da forma (e do conteúdo) em conflito
com a prevalência da cultura, entretanto, no caso do Cejusc, o que visualizo é certa sobrelevância desse último aspecto em tom de valorização dos costumes indígenas. Além do que, sem abandonar o caráter formalista, o CNJ conferiu certificados de conciliadores e mediadores de conflitos aos indígenas que participam desse contexto de atuação jurídica. A entrega desses documentos não refletiu qualquer “curso de formação”, como divulgada pela própria assessoria de imprensa do STF, ao afirmar que os indígenas teriam sido “treinados” para a função (PORTAL STF 2016, s/p), e sim conferiu a certificação para aquelas lideranças indígenas que já desempenhavam, de forma tradicional, esse papel de atuação para resolver os conflitos existentes, mas também esse quadro evidencia a falácia do monismo jurídico quando confrontado com a realidade de fato e obriga que o Judiciário enfrente essa temática com a perspectiva da resistência praticada pelos povos indígenas em contrapartida à dominação colonializante.
Em meu ponto de vista, não vislumbro contradição, e sim uma falsa antinomia na estruturação desse pólo na TI Raposa Serra do Sol, que uma análise cuidadosa pode resolver. Assim é que se pode adotar como estratégia (Bourdieu 2003: 55) se servir do Estado na tentativa de se liberar de suas influências para lutar contra as pressões exercidas pelo Estado, o que também ocorre
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na figura do Poder Judiciário. Assim é que se tira partido das possíveis garantias de independência que o poder estatal lhe confere para afirmar características de autonomia em relação ao Estado por parte dos povos indígenas, mesmo com todas as dificuldades envolvidas nessa postura emancipatória.
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS :
Os juristas, sobretudo aqueles que pautam conteúdos decisórios, necessitam de uma maior esfera de compreensão para o entendimento caso a caso das especificidades dos diversos povos que habitam o território nacional em nítida abertura cognitiva, o que não nos permite a tábua rasa do direito positivo brasileiro. As decisões judiciais advindas do Tribunal de Justiça de Roraima, em relação ao procedimento do Tribunal do Júri, podem contribuir para a construção desse por vir, como alcance de novas posturas a serem alcançadas, em que se permitiria a valorização das especificidades indígenas e seus costumes.
Esses contornos diferenciativos e plurais obrigam o Poder Judiciário a se posicionar e construir uma nova concepção de justiça, que passa pelo exercício simultâneo de reconhecimento de identidades e redistribuição nos sentidos da igualdade (Cittadino 2005: 121).
O reconhecimento das especificidades indígenas (e das populações tradicionais em senti ndo ampliado) envolve, deste modo, noções peculiares que não se amoldam nas configurações jurídicas formais e demandam o direito à diferença, o que representa uma grande dificuldade no campo jurídico estruturado. Há possibilidade de se vislumbrar uma alternativa jurídica frente ao monopólio da jurisdição? É preciso pensar o direito além das deficiências do monismo estatal.
Em síntese, o que verdadeiramente espero com essa pesquisa é que tenha auxiliado em entender um pouco melhor os processos de significação dos direitos indígenas frente ao Judiciário brasileiro. E, desse modo, evidenciar os limites e as dificuldades em se lidar com o direito à diferença, apresentando experiências inovadoras e uma perspectiva que desconstrua a retórica do formalismo jurídico, do caráter privatista do Direito e indicar a possibilidade de novas experiências que se estruturam aos poucos, como nas decisões do Judiciário de Roraima. Reforço, então, a necessidade de construir horizontes epistemológicos no Direito que partam da valorização da multiplicidade cultural.
REFERÊNCIAS:
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AZEVEDO, Thaís Maria Lutterback Saporetti
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AUTORA:
Thaís Maria Lutterback Saporetti Azevedo
Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense – PPGSD/UFF
E-mail: thaislutterback@gmail.com
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UMA ANÁLISE DOS DEBATES LEGISLATIVOS DA LEI 12.850/13 E A CRIMINALIZAÇÃO DO MST
Vanessa Ferreira Lopes Universidade Federal Fluminense (UFF)
RESUMO
O presente trabalho busca apresentar, de forma preliminar, os resultados da pesquisa de mestrado, em que se analisa o processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem- Terra (MST) na Lei de Organizações Criminosas (Lei 12.850/13), ocorrido em Goiás. Para tanto, utiliza - se do método indiciário proposto por Ginzburg (1989). A pesquisa debruça-se primeiro sobre a gestação da legislação (Lei 12.850/13). Em segundo momento, analisa-se o processo judicial. Utiliza-se do conceito de Estado Penal (Wacquant 2001) para compreender o tratamento político - jurídico despendido pelo Estado brasileiro ao MST, baseado no paradigma punitivo.
Palavras-chave: Lei 12.850/13. Criminalização dos Movimentos Sociais. Debates Legislativos.
ANALYSIS OF LAW 12.850 / 13 LEGISLATIVE DISCUSSIONS AND CRIMINALIZATION OF THE MST
ABSTRACT
This article aims to analyze preliminary results of MST criminalization process in Organized Crime Act (Law 12.850/2013), due to a lawsuit in Brazilian State of Goiás. Therefore, the data was analyzed following evidential paradigm, according to Ginzburg (1989). The legislative elaboration of normative and the MST criminalization lawsuit were the collected data. Wacquant Penal State concept was used to explain the legal-political treatment applied by Brazilian State to MST, based in punitive paradigm.
Keywords: Law 12.850/2013. Social Movements Criminalization. Legislative Debates.
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LOPES, Vanessa Ferreira
UMA ANÁLISE DOS DEBATES LEGISLATIVOS DA LEI 12.850/13 E A CRIMINALIZAÇÃO DO MST
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca apresentar, de forma preliminar, os resultados de pesquisa de mestrado em que se analisa o processo de criminalização do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) ocorrido em Goiás, em que quatro integrantes são tipificados a partir da Lei 12.850/13. Eles tiveram ordens de prisão decretadas e foram efetivamente presos sob a acusação de pertencerem a uma organização criminosa. Este processo judicial corre no Tribunal de Justiça de Goiás (TJ- GO).
Para tal análise, a metodologia adotada é o método indiciário proposto por Carlo Ginzburg (1989). Compreendendo a criminalização perpetuada como um processo complexo, a pesquisa debruça-se primeiro sobre a gestação da legislação que introduz o conceito de organização criminosa. Foca-se, primeiramente, na análise dos debates legislativos, a partir das notas taquigráficas, reuniões de comissões, as justificativas de emendas e a norma jurídica produzida. Em um segundo momento, analisa-se o processo judicial que deu ensejo à tipificação do MST.
Para tanto, utiliza-se o conceito de Estado Penal (Wacquant 2001) para compreender o tratamento político-jurídico despendido pelo Estado ao MST, baseado no paradigma punitivo. Embora o processo de criminalização dos movimentos sociais e, em sentido mais amplo, da pobreza, não se constitua um fator novo nas formas de controle social exercidas pelo Estado, considera-se que o caso em questão pode ser considerado emblemático do quadro de adesão subjetiva à barbárie (Batista 2012) que se caracteriza pelo clamor punitivo da sociedade no contexto neoliberal.
Torna-se bastante ilustrativo o editorial do jornal O Estado de São Paulo que ressaltava a utilização da lei de organizações criminosas como inovação jurídica necessária e essencial ao combate do MST.
Durante décadas, as decisões dos tribunais relativas às invasões do MST foram baseadas no velho Código Penal editado em 1940, especialmente no dispositivo que tipifica o crime de formação de quadrilha. Dado o anacronismo desse texto legal, os advogados do MST habilmente conseguiram explorar suas brechas e obter decisões favoráveis na segunda instância dos tribunais. Isso explica o pequeno número de militantes punidos pela Justiça, em comparação com o elevado número de invasões. No caso em questão, porém, o Ministério Público não baseou suas denúncias no Código Penal, mas na Lei 12.850/13, que trata das organizações criminosas e entrou em vigor em 2013. Foi a primeira vez que membros do MST foram acusados criminalmente com base nesse texto legal. Entre outras inovações, a lei prevê que os inquéritos criminais possam correr em sigilo. Também autoriza a delação premiada e permite infiltração de agentes, quebra de sigilo fiscal, bancário e telefônico. E, diferentemente do enquadramento das invasões pelo crime de formação de quadrilha, a Lei 12.850/13 pressupõe a teoria do domínio dos fatos, com base na qual qualquer militante de uma organização criminosa pode ser acusado em qualquer inquérito. (Opinião 2016)
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Nesse sentido, compreender o processo específico de criminalização por que passa o MST e que aponta para um movimento mais geral de criminalização e repressão à ação política organizada, perpassa pela análise do processo de produção da norma, ou seja, pelos discursos e embates que tiveram lugar no âmbito legislativo, e das transformações que causa no próprio direito penal. Logo, nesse artigo realizamos uma análise do processo legislativo que resultou na Lei 12.850/2013, procurando entender quais discursos e conceitos são mobilizados em torno desse marco normativo. Qual a tônica dos discursos que justificaram a necessidade da criação da norma? Quais foram os argumentos (e obviamente suas premissas ideológicas) suscitados ou silenciados em relação ao P.L 150/2006? Qual a demanda por pena que ensejou a tipificação de organizações criminosas e aumentou as possibilidades de meios de prova no processo penal, no contexto brasileiro?
1. ASPECTOS METODOLÓGICOS E TEÓRICOS
Adotou-se o método indiciário de Carlo Ginzburg, compreendendo a importância dos dados tidos como marginais, que têm o condão de revelar aspectos antes escondidos ou encobertos. Tendo em vista que a pesquisa contou com material empírico em que as fontes são majoritariamente documentos oficiais ou de instituições estatais, tais como os processos judiciais, o material de tramitação do PL 150/06 no Congresso Nacional e ainda publicações da imprensa, verificou-se a importância de uma metodologia que fosse capaz de desvelar, para além do discurso técnico o u formal, as construções ideológicas, as opções políticas e sociais ali contidas.
Dessa forma, o método indiciário permite vislumbrar não só aquilo sobre o que está explícito, mas também sobre o que está silenciado.
[o] paradigma indiciário [...] pode se converter num instrumento para dissolver as névoas da ideologia que, cada vez mais, obscurecem uma estrutura social com a do capitalismo maduro. [...] Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la. (Ginzburg 1989: 177)
Para entender o tratamento político-jurídico dispensado ao MST pelo Estado, é necessário compreender a racionalidade punitiva brasileira aviltada pelas permanências coloniais, e ainda o contexto global de expansão dos diplomas penais.
Compreendemos que o contexto global de governança neoliberal é marcado por duas frentes significativas por parte da gestão estatal que são, de um lado, a desintegração das políticas estatais de assistência e dos serviços públicos e, de outro, a desregulação dos direitos trabalhistas e fluidez do capital internacional. Wacquant (2001) aponta que esse duplo movimento gera, como estratégia neoliberal, o encarceramento em massa da pobreza. Com a erosão do modelo de Estado
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de Bem-Estar social, que nem chegou a firmar-se na América Latina, Wacquant alerta que estaríamos vivenciando o Estado penal, tendo em vista a massificação da criminalização da pobreza.
[...] Na medida em que se desfaz a rede de segurança (safety net) do Estado caritativo, vai se tecendo a malha do Estado disciplinar (dragnet) chamado a substituí-lo nas regiões inferiores do espaço social americano. O desdobramento desta política estatal de criminalização das consequências da miséria de Estado opera segundo duas modalidades. A primeira e menos visível, exceto para os interessa dos, consiste em transformar os serviços sociais em instrumento de vigilância e de controle das novas “classes perigosas” (Wacquant 2001:28).
Esse fato pode ser verificado na medida em que o Estado elege certas categorias como “perigosas”, para uma legitimação da política de rigidez máxima e intolerância com os pequenos delitos, contribuindo para um clamor punitivo na sociedade e que se traduz em “maneira de pensar do sistema punitivo” (Pires 2004) no judiciário, em que a única resposta adequada e possível seria a prisão.
Dentro desse contexto, Canotilho (2008:235) observa que o “discurso antigarantista” coloca as garantias processuais penais presentes nas constituições como empecilhos à realização da persecução criminal. Mas que, na verdade, esse discurso é sintoma de uma crescente influência do “direito penal contra o inimigo” sobre as legislações penais, que se manifesta pela “ criminalização antecipada”, e ainda se traduz na “tutela antecipada” dos bens jurídicos, com a crescente aceitação do crime de perigo indireto, atenuação da presunção de inocência e radicalização da pena prisão. Zaffaroni (2007) analisa como o Estado gesta essa imagem de inimigo a ser combatido,
que desumaniza o outro, legitimando assim a sua eliminação. Nomear o MST como “organização criminosa” não é pouco simbólico nesse contexto. Por isso, a utilização da Lei de Organizações Criminosas torna-se tão paradigmática.
2. A LEI 12.850/13
Nesse contexto, insere-se a Lei de Organizações Criminosas, a Lei 12.850/13. O PL 150/2006 foi apresentado como proposta individual em 23/05/2006. O projeto passa a tramitar como PL 6.578/09 na Câmara Federal e é aprovado como Lei Ordinária 12.850/13.
A lei possibilita a delação premiada, aumenta as hipóteses de quebra de sigilo bancário e fiscal e ainda permite as interceptações telefônicas, ambientais e de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos.
A justificativa da autora do projeto, a senadora Serys Slhessarenko já traz elementos muito importantes para análise:
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Ora, não nos parece que as idéias participantes do vocábulo “associar” sejam suficientemente explícitas para a compreensão mais abrangente do fenômeno delitivo que mereça o nomen iuris de “crime organizado” (não obviamente “organização criminosa”, que possui um sentido mais sociológico que jurídico-penal) (Senadora Serys Slhessarenko, justificativa do PL150/06)
A indicação que essa lei pretende ter um caráter “mais abrangente do fenômeno delitivo” é muito importante, pois o processo penal é regido pelo princípio da taxatividade, significando que os tipos penais têm que ser objetivos e bem delimitados sob pena de abarcar uma generalidade que impede a defesa qualificada do acusado e rompe suas garantias conquistadas desde o Iluminismo frente ao Estado.
Outro ponto que merece destaque na justificativa apresentada pela senadora é quanto à descrição do sujeito que seria o acusado no seu PL.
Qualquer um pode, em tese, atuar no crime organizado, e não apenas pessoalmente, mas também através de interposta pessoa. Nada impede, portanto, que alguém possa agir às ocultas, colocando-se por detrás do operar criminoso. (Senadora Serys Slhessarenko, justificativa do PL150/06)
Outra vez a inexatidão dos termos nos remete à utilização possível e sugerida pela própria autora da teoria do domínio dos fatos, ou seja, que se utilize dessa tese de forma errônea, para descortinar quem estaria por “detrás do operar criminoso”. A emenda n. 15, por exemplo, propunha alargar ainda mais a abrangência do tipo penal para incluir as organizações ainda que informais.
Justificativa da Emenda 15: Conforme sugestão do Senador Jéferson Perez, acrescenta-se a expressão “ainda que informalmente” para assegurar-se que a organização criminosa possa ser considerada como tal ainda que apresente estrutura informalmente estabelecida.
A emenda n. 1, apresentada pelo Senador Antônio Carlos Valadares, que inclui o terrorismo no PL 150/06, sem ao menos defini-lo, merece destaque, pois apesar da justificativa apresentada, foi aprovada sem nenhuma discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.
Com efeito, fica evidente que a faceta de uma organização criminosa terrorista não se limita (somente) ao ato de terror “per si”, mas abarca a captação de recursos financeiros capazes de subsidiar e viabilizar o ato de terror. 2 Ademais, geralmente são constituídas 2 ou 3 organizações criminosas com a finalidade do terrorismo, sendo que enquanto uma delas é a responsável pela captação dos recursos necessários para a prática criminosa, a outra organização é responsável pelo planejamento e organização de toda o sistema, enquanto uma terceira organização é a entidade que pratica o ato de terror finalístico. Lógico que, em seu conjunto, tais organizações formam uma só e única entidade criminosa, daí serem chamadas de células criminosas; mas a esperteza e o conhecimento específico dessas entidades perfazem uma divisão que, muitas vezes, uma organização não conhece a outra organização, evitando que a captura policial de uma delas não gere a captura policial de toda a organização. A presente emenda busca evitar tal situação. (Justificativa emenda n.1)
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Canotilho (2008) já alertava para o impacto do 11 de setembro americano nas legislações processuais penais e, em especial, nas garantias paulatinamente sacrificadas em nome de um pretenso alcance para se combater o inimigo, que não poderia se dar ao luxo de obedecer e manter as garantias já positivadas nas Constituições nacionais.
O “Direito penal contra o inimigo” que hoje, exerce profunda influência sobre alguns sistemas penais, designadamente, o norte-americano e o europeu, tem testado o acerto das suas propostas constitucionais e penais em três setores das políticas e legislações criminais – a legislação anti-terrorista, a criminalidade organizada e a delinquência sexual [...]. Um traço comum da legislação inspirada no “direito penal contra o inimigo” é aquele que na doutrina germânica se designa por “criminalização antecipada” (Vorfeldkriminalisierung), fundamentalmente reconduzível a (1) tutela marcada, e intencionalmente antecipada, de bens jurídicos (segurança, ordem, bens materiais e pessoais); (2) centralidade do paradigma do crime de perigo indirecto, de forma a possibilitar a incriminação de condutas que, em abstracto, se revelam inidóneas e desadequadas para criar aquelas situações de perigosidade legitimadoras de antecipação de intervenção penal; (3) formulação estrutural dos pressupostos (Tatbestände) incriminatórios com especial subvalorização dos pressupostos objetivos essenciais do direito penal caracterizadores do Täter (Gesinnung)strafrecht; (4) inversão dos onus probandi, atenuando a presunção de inocência do arguido; (5) radicalização da pena de prisão nos seus limites máximos e mínimos, e intensificação do rigor repressivo as várias modalidades de execução de penas, acompanhadas de bloqueio e políticas criminais alternativas; (Canotilho 2008: 236)
Cabe destacar que o PL 150/06 é paradigmático quanto a essa problematização levantada por Canotilho, pois permite várias hipóteses destacadas por ele. Possibilita, por exemplo, pela emenda apresentada pelo senador Demostenes Torres, a infiltração policial com os seguintes fundamentos:
Neste momento que o Congresso Nacional busca dar ao Brasil uma moderna lei de repressão ao crime organizado, tal mecanismo de investigação não poderia desaparecer do nosso ordenamento jurídico. (Justificativa emenda n. 4 Senador Demostenes Torres)
Ainda sobre o impacto no imaginário que se estabeleceu, considerando as garantias constitucionais como empecilhos a persecução criminal, Canotilho (2008) observa que há uma inversão. Antes eram consideradas essenciais pois protegiam os indivíduos contra o arbítrio estatal agora, apenas impedem uma suposta persecução ao inimigo mais eficiente e moderna.
A própria natureza e caracterização dos dois direitos como “direitos fragmentários”, um porque (o direito constitucional) se deve conceber como “ordem quadro fundamental”, e outro (o direito penal) porque se autolimita com ultima ratio como proteção dos bens jurídicos criminais nos quadros do “inimigo”. A pressão recai sobre as Constituições, obrigando-as reverter os respectivos textos, sobretudo no âmbito das liberdades e das garantias transformando as regras em exceções e as exceções em regras (exemplos: quanto as hipóteses de violação do domicílio, quanto a interceptação das comunicações, quanto a vigilância da privacidade, quando a extradição de nacionais). [...] O direito penal abre-se a novos tipos de ilícito e acolhe conceitos de eficácia que põem em dúvida sua radical autolimitação de direito de ultima ratio em instrumento de polícia e de cruzada contra os “inimigos”. Com as mutações naturais da sua historicidade, em direito penal de permanência evolui para um direito penal de emergência. (Canotilho 2008:237)
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Percebe-se pela construção discursiva presente nas justificativas das emendas um tratamento excepcional empreendido em relações às garantias constitucionais, tendo em vista uma suposta gravidade do tipo penal a ser combatido. Recorre-se ainda ao discurso de combate à corrupção para obter o consenso entre os atores políticos. Quando se levanta a necessidade de punição para os crimes financeiros e ainda mais em relação a corrupção, justifica-se o recrudescimento das penas e diminuição das garantias.
Sabe-se, ainda, que crime organizado, para que possa atingir seu escopo, emprega determinados modos de execução. Há um espectro muito amplo de modus operandi. Frequentemente, vale-se da manobra fraudulenta, do tráfico de influência ou mesmo de atos de corrupção. Infelizmente, não há como negar a estreita ligação entre o crime organizado e a corrupção. (Justificativa emenda 16)
Diante das garantias processuais penais solapadas somente na análise preliminar do PL 150/06, é possível apontar para um indicativo de seletividade e construção da imagem de um inimigo, para o qual se elimina as garantias e direitos.
O discurso punitivista é de tal forma capilar, que se observa um certo consenso em relação à necessidade de mais tipos penais que estabeleçam mais formas de criminalização e s eu recrudescimento ao largo da tramitação desse PL. Os espectros políticos mais diversos convergem quanto às legislações criminalizantes, o que parece apontar para o que Batista (2012) descreve como adesão subjetiva à barbárie.
3. O PROCESSO JUDICIAL
O processo de criminalização da Ação Penal (201601141208 TJ-GO) é uma forma de agir promovida pelo Estado e carrega toda uma estrutura ideológica que o sustenta. A concepção dos operadores do Direito sobre o papel social do MST na ocupação de terras permitiu que eles os enquadrassem em uma tipificação penal que se refere a organizações criminosas.
Esse simples ato, ou seja, a denúncia, nos aponta para uma hipótese relacionada ao sentir, em relação ao próprio movimento social desse operador. Permite-nos ainda especular sobre a raiz autoritária de sua formação e do exercício da profissão. Pois elegeu uma legislação com uma série de possibilidades de produção de provas consideradas por alguns inconstitucionais para etiquetar e acusar trabalhadores rurais sem-terra que reivindicavam a democratização do acesso à terra no país. Nos termos da denúncia:
Trata-se de um ajuntamento de aproximadamente mil pessoas, que atendem ordens informais dos líderes do movimento, e que têm se valido da prática dos diversos crimes ora narrados, para obterem vantagem indiretamente. Isso porque pretendem forçar o governo a criar para eles, no local invadido, um assentamento rural, sem o preenchimento dos
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requisitos legais pertinentes. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS. Vara Criminal da Comarca de Santa Helena de Goiás.201601141208.)
Esse processo tem como característica principal a coerção, primeiro no processo criminal e ainda em alguns casos na aplicação da pena de prisão. Esse processo guarda em si a demonstração do monopólio da força pelo Estado e ainda a violência simbólica muito evidenciada.
Se a estrutura política (luta de classes) de uma dada formação social é chave no entendimento do discurso político, o inconsciente (que Freud chama de sistema do inconsciente) é crucial para a compreensão dos sentimentos, afetos, emoções que dizem respeito ao conteúdo do próprio discurso e a ele estão irremediavelmente presos, embora latentes. Uma teoria da ideologia deve, por conseguinte, desdobrar-se na explicação da relação pensar/agir (estrutura ideológica x sistema de inconsciente). Ela deve sugerir como o discurso se relaciona com o sentir e o agir, evidenciando as contradições, os antagonismos, e mostrando como a prática política resolve, na prática, tais contradições. Assim, devemos interrogar-nos não apenas sobre o não-dito no discurso, mas também, e principalmente, sobre aquilo que é interdito, proibido de ser dito, porque foi reprimido. (Cerqueira Filho 1982 :34)
No que esse processo tem de expressão da ideologia dominante podemos destacar o etiquetamento penal, em outras palavras a nomeação. Bourdieu (2004), ao estudar a formação do Estado moderno, coloca como sua característica fundamental justamente a possibilidade de nomeação – poderíamos, assim, fazer um paralelo com a nomeação do movimento social como organização criminosa, ou seja, para muito além da responsabilização individual da conduta de agentes, significa estender a amplitude dos efeitos de preconceito e estigma a toda a organização social do MST, em sua amplitude nacional, não só local.
Tendo em vista tal preocupação, a pesquisa voltou-se à análise da produção legislativa da referida lei, por entender que permitiria vislumbrar os termos colocados na sua elaboração, o que os representantes legislativos procuravam atingir, quais termos reproduziam em termos de ideologia e qual a sua concepção em relação às garantias processuais penais. Quais demandas por pena os representantes estavam respondendo? Aferimos preliminarmente através da tramitação no Senado Federal da PL 150/06, que deu origem à lei, que muitos senadores com formação jurídica tiveram destaque nessa produção legislativa (a senadora que propôs o PL 150/2006, o relator na Comissão de Constituição e Justiça e ainda os dois senadores que apresentaram emendas em relação ao texto inicial, todos eles tinham graduação em Direito) e que, não obstante, não sustentaram posições garantistas sobre a temática da segurança pública.
Diante do quadro de “adesão subjetiva à barbárie” (Batista 2012), que se caracteriza pelo clamor punitivo da sociedade no contexto neoliberal, é necessário atentar-se ao agigantamento do Estado Penal, principalmente quando esse se manifesta através da criminalização dos movimentos que aspiram novas sociabilidades, novos espaços coletivos democráticos.
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Até agora o material analisado das primeiras emendas ao PL original e debates nas comissões do Senado Federal demonstram uma legislação muito autoritária suprimindo garantias. Por exemplo, houve a regulamentação de diversos tipos de produção de prova que são considerados controversos por diminuírem ou anularem a possibilidade do contraditório real do réu, entre eles a delação, a intercepção telefônica, de contas, dados, ambiental e ainda bancário e fiscal, além da figura dantesca do agente infiltrado – enfim uma ofensiva autoritária nas garantias constitucionais. Negando a aparente neutralidade e igualdade supostamente alcançada na lei, como esse elemento capaz de colocar as regras do jogo e garantir um mínimo de previsibilidade, e, nesse caso o processo penal, que desde o iluminismo e a virada do castigo corporal para a pena de reclusão de liberdade, é visto como garantia aos acusados frente ao estado, nesse momento essa legislação representa sérias agressões às garantias civis dos indivíduos frente ao estado e as figuras de delação e infiltração adicionam elementos imprevisíveis ao próprio processo de acusação já tão autoritário e de raízes inquisitoriais (Prado 2005) entre nós.
Isso também provoca a reflexão sobre os efeitos da etiquetação ou nomeação do MST como organização criminosa, para além dos efeitos imediatos e concretos que significou a prisão provisória de dois militantes por vários meses.
Ao pensarmos na sua função ideológica, como representação da classe dominante nas suas relações com as suas condições materiais, podemos como hipótese levantar que uma função possível é de que tal processo busca romper a solidariedade, aspecto essencial para a classe dominada e suas lutas (anulando-a ou diminuindo as chances de que ela ocorra). Em outras palavras, o agir político pretendendo também atingir as relações subjetivas (afeto) da classe dominada. O MST enquanto movimento social, no ano de 2016, tinha realizado maciças ocupações em Goiás. Assim podemos, a partir da reflexão sobre ideologia, investigar a hipótese de que foi importante essa nomeação "organização criminosa" para além dos seus efeitos de coerção, também uma tentativa de rompimento dos laços de afeto entre a classe dominada, os camponeses potenciais que poderiam se juntar às ocupações e/ou a elas prestar ajuda ou apoio e a disputa em torno da legitimidade da ocupação de terras e do questionamento do latifúndio.
Impede-se, assim, que se veja como legítimas, pela própria classe subalterna, as ações de ocupação, visto que essa questiona os pressupostos do latifúndio, da propriedade privada, e em última instância da ordem jurídica. Tanto que, nos termos da denúncia, citada acima no texto, a acusação de vantagem ilegal se refere a “forçar” o governo a realização da reforma agrária! – que é uma política constitucionalmente positivada. O texto, não por acaso, falseia quem realmente exerce a violência, colocando aqueles que reivindicam uma política pública como violentos, enquanto é o
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próprio Estado que, através do processo criminal e ainda da desocupação do terreno está exercendo a violência (nesse caso, o “uso legítimo da força”), impondo a manutenção da propriedade privada. Zaffaroni (2000), já atento às funções da mídia no processo criminal, inclui entre as agências do sistema penal as “agências de comunicação social”, que, por sua vez, exercem o que Batista (2012) denominou executivização no processo de criminalização. Para esse último autor, isso significa que:
Desgarrando-se de suas bases estruturais econômicas, o credo criminológico da mídia constitui-se como um discurso que impregnou completamente o jornalismo. Esse discurso aspira a uma hegemonia, principalmente sobre o discurso acadêmico, na direção da legitimação do dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos sociais. Este discurso habilita as agências de comunicação social a pautar agências executivas do sistema penal, e mesmo a operar como elas (executivização), disputando com vantagem, a seletividade com tais agências. A natureza real desse contubérnio é uma espécie de privatização parcial do poder punitivo, deslanchado com muito maior temibilidade, por uma manchete que por uma portaria instauradora de inquérito policial. (Batista 2012:19)
A pesquisa nos provocou acerca da relevância do etiquetamento penal do MST como "organização criminosa" e suas implicações contextualizadas na luta de classes. Nesses dois casos, o afeto é político e significa se atentar às imbricações entre sentir/pensar e agir (Cerqueira Filho 1982) e as implicações disso na análise do material empíri co.
Esses aspectos, sem prejuízo da conexão de classe, permitem colocar como hipótese durante todo o trabalho que o afeto é político e que provoca consequências (agir) no mundo, para além do individual. Não é possível, dessa forma, desconsiderar o substrato de formação jurídica e das permanências do caráter da formação da sociedade brasileira, pois estas exercem implicações muito concretas, como procuramos cotejar neste trabalho, no processo de criminalização do MST.
CONSIDERAÇÕES FINAIS :
Cabe destacar que, no Brasil, a visão autoritária sobre às classes populares, principalmente quando essas ousam se organizar, não é nova, mas remete às raízes de nossa formação histórica.
A visão de mundo tomista, espraiada na Península pela prática política e ideológica dos jesuítas, sustentava uma concepção de sociedade rigidamente hierarquizada, produzindo efeitos de longa duração, com fortes desdobramentos para os afetos e as emoções de formações históricas. (Neder 1996:132)
Vera Batista, no seu livro “O medo na cidade do Rio de Janeiro” (2003), realizou a pesquisa em dois tempos – respectivamente em relação a revolta dos Malês, na Bahia e a sensibilidade punitiva no Rio de Janeiro, da década de 1990 – fazendo uma reflexão potente em que
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recupera as raízes do medo e da inflamação do discurso perigosista advindos do período escravocrata.
A autora trabalha com o conceito de permanências culturais de longa duração, ou seja, que perpassam contextos históricos e se atualizam. O medo gerado por uma revolta negra no Império brasileiro, ainda que contido rapidamente, gerará a adoção de políticas de segurança e restrição à reunião da população negra por muito tempo tanto na Bahia, mas também com reflexos na cidade do Rio de Janeiro:
A polícia se inquietava então com o sentido religioso, a organização “em pleno superior ao que deveríamos esperar de sua brutalidade e ignorância”, a capacidade de ler e escrever e o mistério dos papéis que os livrariam da morte. [...] A importância da rebelião malê na Bahia se inscreve, assim, não só pela sua configuração política e militar, mas pelas inquietudes que passam a circular no nível do imaginário das elites da época (Batista 2003:228)
A autora, ainda recuperando o trabalho do historiador Sidney Chalhoub, mostra que, com a ruína do sistema escravocrata, a legislação a ser debatida na Câmara é a criminalização da ociosidade.
Chalhoub, ao estudar, as “operações policiais” travadas para eliminação das habitações coletivas e das epidemias na corte imperial da segunda metade do século XIX, afirma que é nessa época que pontifica o conceito de classes perigosas. Perigosas porque pobres, por desafiarem as políticas de controle social no meio urbano e também por serem consideradas propagadoras de doenças.
[...]Calorosamente aclamado pela imprensa, a destruição do “valhacouto de desordeiros” é um dos marcos iniciais de uma concepção que se fundava para a gestão das diferenças sociais na cidade; construía-se a noção de que as classes pobres eram perigosas, e de que a
cidade poderia ser gerida “tecnicamente” ou “cientificamente”. Para Chalhoub, estas duas crenças têm contribuído historicamente para a inibição de exercício da cidadania e até para fundamentar políticas genocidas de controle social (Batista 2003:37)
Daí é possível estabelecer relações para constatar de que forma as classes pobres, negras ou subalternizadas construíram e seguem construindo sua cidadania no Brasil, desde a abolição da escravatura até nossos dias, tendo que resistir a marcos e soluções repressivas e autoritárias. Fica evidente a semelhança da adoção de políticas criminalizantes para responder a organização social, seja ela na luta por quaisquer direitos, mas principalmente aos ligados à democratização do acesso à terra como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem- Terra.
R EFERÊNCIAS:
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AUTORA:
Vanessa Ferreira Lopes
Mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (PPGSD- UFF), E-mail: vanessa_lopes@id.uff.br
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SEGURANÇA HÍDRICA PARA O CAPITAL E DESPOJO MÚLTIPLE EM CONTEXTOS DE ESCASSEZ: ANÁLISE CRÍTICA SOBRE O NO VO CAMINHO DAS ÁGUAS NO ESTADO DA PARAÍBA, BRASIL
Hugo Belarmino de Morais Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Universidade Federal Fluminense (UFF)
RESUMO
Neste artigo analisa-se novos processos de (re)territorialização ligados à construção de obras hídricas no Nordeste do Brasil, chamado “Canal Acauã-Araçagi”, situado no Estado da Paraíba (Região Nordeste). Para tal reflexão, busca-se apresentar o território estudado e seu novo contexto, caracterizado por um novo momento de intervenções estatais justificadas pela necessidade de resolver problemas históricos de escassez naquela região e as modificações que a própria pesquisa sofreu neste processo dinâmico de investigar a realidade social. Em segundo lugar apresentamos alguns pressupostos da investigação ancorados na teoria crítica e na ecologia política e o conceito de despojo multiple, para depois discutir criticamente alguns dados coletados nas atividades de campo realizadas no mês de Julho de 2018 na Paraíba, que chamamos de “novo caminho das águas”. Ao final, recorremos ao termo “segurança hídrica para o capital” para caracterizar os objetivos da obra, que contradiz o discurso oficial sobre sua necessidade/importância para o abastecimento humano em uma região com problemas de acesso e uso da água, apontando para um cenário de ampliação de conflitos territoriais naquela região.
Palavras-chave: Conflitos socioambientais. Despojo. Cercamentos; Água.
WATER SECURITY FOR CAPITALAND DESPOJO MÚLTIPLE IN CONTEXTS OF SHOTAGE: ACRITICAL ANALYSIS ON THE NEWWATER PATH IN THE STATE OF PARAÍBA, BRAZIL
ABSTRACT
This article analyzes the new processes of (re)territorialization caused by the construction of water enterprises in the Northeast of Brazil, called "Canal Acauã-Araçagi", in the State of Paraíba (Northeast Region). For this work, it is sought to present the studied territory and its new context, characterized by a new moment of state interventions related with the need to “solve” historical problems of water shortage in that region and the changes that the research suffered in this dynamic process of social investigation. Second, we present some research points based in the critical theory and political ecology and the concept of despojo multiple, to discuss some of the data collected in the research activities in July 2018 in Paraíba, which we call the "new waters ways". In the end, we used the term "water security for capital" to characterize the objectives of the enterprise, which contradicts the official discourse about its necessity/importance, highlighting the current scenario of expansion of territorial conflicts in that region.
Keywords: Socioenviromental conflicts. Dispossession. Enclosures. Water.
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INTRODUÇÃO
Neste artigo pretendemos apresentar algumas das reflexões que estamos desenvolvendo na tese de doutoramento em curso no Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da UFF, que discute processos de territorialização e conflitos socioambientais decorrentes da construção de grandes obras hídricas no Estado da Paraíba, Nordeste Brasileiro, tendo como experiência empírica a Barragem de Acauã e o Canal Acauã- Araçagi.
Buscaremos apresentar, primeiramente, alguns aspectos gerais sobre o território estudado e que sofreu alterações e ampliações significativas tanto do ponto de vista teórico quanto empírico. Partimos de alguns aspectos iniciais ligados à nossa atividade na assessoria jurídica popular no caso da Barragem de Acauã para construir o projeto de pesquisa do doutorado, no entanto a própria realidade como “um todo caótico” e com “múltiplas determinações” foi exigindo do pesquisador alterações, sobretudo buscando “antecipar” elementos de uma espécie de (re)territorialização do agrohidronegócio no caso estudado como decorrência da construção do Canal Acauã- Araçagi.
Nesta perspectiva assumimos a importância do diálogo crítico do materialismo histórico - dialético com o pensamento crítico latino-americano e os desafios da pesquisa empírica, a fim de formular novos aportes sociojurídicos provocadores de novos horizontes de sentido e de conheciment o.
Busca-se, então, apontar os aspectos centrais desta “pesquisa em movimento” e conectá- los a algumas categorias críticas da ecologia política e dos clássicos do marxismo, mas sempre evitando perspectivas formalistas e/ou estruturalistas de construção deste conhecimento sociojurídico.
Para isso, iremos apresentar elementos da pesquisa de campo realizada em meados de julho e agosto de 2018, partindo da Barragem de Acauã até o canteiro de obras do Canal Acauã- Araçagi, que intitulamos de “novo caminho das águas”, no qual foi possível dimensionar, junto às populações locais – atingidos e atingidas – alguns aspectos relevantes sobre o andamento da obra, seus objetivos e impactos, dentro de um contexto de “produção de escassez” hídrica.
Por fim, apontamos algumas das sínteses parciais desenvolvidas até aqui, muito mais como resultado da instigação da pesquisa empírica, que nos permitem apontar um cenário preliminar de “segurança hídrica para o capital” como resultado conflituoso deste “novo caminho das águas” na Paraíba.
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1. ÁGUAS E PESQUISA EM MOVIMENTO: ALGUNS ASPECTOS TEÓRICO - METODOLÓGICOS1 DA INVESTIGAÇÃO
Do ponto de vista empírico esta pesquisa se propõe a analisar - em especial diálogo entre os campos da sociologia, do direito e da geografia - os novos processos e conflitos hidríco - territoriais decorrentes da “integração” de três grandes obras na Paraíba: o Eixo Leste da Transposição do São Francisco, a Barragem de Acauã e o Canal Acauã- Araçagi.
Na investigação, partimos da Barragem de Acauã, pois esta obra além de ser cronologicamente anterior – a construção da Barragem foi realizada no final dos anos 1990 até meados de 2002 – foi responsável por três fatos marcantes que definiram a construção inicial do projeto de pesquisa.
Em primeiro lugar, a Barragem de Acauã foi responsável pela remoção forçada de cerca de 900 famílias que viviam às margens do Rio Paraíba e que com este Rio2 (re)produziam suas condições de existência, como moradores rurais, ribeirinhos e campesinos3. A construção desta Barragem já foi objeto de diversos conflitos e denúncias e continua até hoje como um caso emblemático de violações de direitos humanos em matéria de barragens no Brasil, conforme Relatório oficial produzido pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana em 2010 (BRASIL 2010), inclusive com o alagamento de dois cemitérios das comunidades4 .
Por fim, cabe ressaltar que este processo de violação de direitos e desterritorialização fez emergir a própria presença do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) na Paraíba, que até hoje luta por reparações e melhoria nas condições de vida das populações atingidas, reafirmando uma questão para nós muito importante sobre o “duplo movimento”: resultado de diversas conjunturas e nem sempre de forma orgânica ao longo do tempo, cada processo de
1 Estas discussões aqui apresentadas – com diversas modificações e acréscimos - fizeram parte do texto-projeto de qualificação para o doutorado do pesquisador, apresentado no PPGSD-UFF, intitulado “A NARRATIVA DOS PÁSSAROS E OS NOVOS CERCAMENTOS: um estudo de caso sobre os caminhos das águas e os conflitos territoriais a partir da Barragem de Acauã na Paraíba”.
2 Afirmamos com este Rio desde uma abordagem a partir da ecologia política, em virtude da nossa compreensão de que os processos humanos e não humanos estão correlacionados e interdependentes para definir as condições de reprodução da vida.
3 A partir das inquietações trazidas pelo Seminário Entramados Comunitários y formas de lo político – o que tivemos a oportunidade de integrar no processo de doutorado sanduíche na BUAP em Puebla, no México – decidimos acompanhar a reflexão ali presente e não mais utilizar o termo meios de produção, mas ampliar este temos para meios ou c ondições de existência, pois, de fato, é disto que se trata quando pensamos os processos sociais na atual fase de “novos cercamentos” no neoliberalismo. Para mais, ver Mina Navarro Trujillo (2019).
4 Afirmamos a questão do alagamento dos cemitérios porque no momento da construção de nosso projeto de doutorado, em meados de 2015, estes cemitérios reapareceram após um contexto de seis anos de seca e baixa pluviosidade na região da Barragem. Este reaparecimento no mesmo momento em que as obras do Canal Acauã-Araçagi estavam sendo iniciadas, comemoradas e desenvolvidas representou um ponto significativo na escolha dos conflitos de Acauã para a tese, partindo da figura ao mesmo tempo de pesquisador-militante e assessor jurídico popular.
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cercamento/expropriação também acaba por engendrar processos de luta e organização contra os cercamentos.
Conforme afirma Vainer, o principal efeito não desejado dos Estudos de Impacto Ambiental (EIA’s) em grandes empreendimentos como as barragens é a “ocorrência” de resistências e lutas, pois “a impactologia ad hoc dos experts continua sendo incapaz de prever as lutas, a resistência, a organização das populações” (VAINER 2004:1). Desta forma, foram os conflitos decorrentes da construção da Barragem de Acauã em seus contextos atuais que moveram, inicialmente, os interesses desta pesquisa.
Sobre o Eixo Leste da Transposição do São Francisco existe uma vasta literatura5 que apontava – e ainda aponta – um conjunto múltiplo de conflitos e narrativas distintas sobre a viabilidade e necessidade da obra. O que necessitamos apontar, para os fins deste artigo, é que no curso desta pesquisa de doutorado as obras do Eixo Leste foram “concluídas”6 e no dia 19 de março de 2017 ocorreu na cidade de Monteiro-PB a chamada “inauguração popular” do Eixo Leste da Transposição do Rio São Francisco. Esta atividade serviu para celebrar a chegada daquelas águas na Paraíba - após percorrer cerca de 270 quilômetros de extensão pelos Estados da Bahia e Pernambuco - com um grande ato político que contou com a presença do ex-Presidente Lula e a Presidenta Dilma Rousseff.
Ressalte-se que tal inauguração se deu dentro do contexto de disputas políticas após o golpe de Estado que depôs a Presidenta. O tom de toda a atividade foi de que a “paternidade” da obra não poderia ser remetida à outra pessoa que não ao ex-Presidente Lula e que a “maternidade” da obra seria da Presidenta Dilma, numa estratégia discursiva voltada à produção do consenso sobre a importância/necessidade/legitimidade da Transposição para resolver definitivamente os problemas hídricos da Paraíba. Segundo os organizadores, o ato contou com a presença de 50 mil pessoas.
5 Consultar, por todos, o livro de Juliana Neves Barros intitulado O desencantamento das águas no sertão. Crenças, descrenças e mobilização social no Projeto de Transposição do Rio São Francisco. Este trabalho representa um esforço recente na sistematização do referencial bibliográfico sobre o caso da Transposição do Rio São Francisco e os conflitos decorrentes da realização daquela obra. Ver bibliografia.
6 Há uma dificuldade atual de definir a “conclusão” das obras do Eixo Leste da Transposição: por um lado, pelo conjunto amplo de obras complementares que eram previstas e não estão sendo realizadas e, por outro, pela nossa compreensão de que uma grande obra hídrica, do ponto de vista sociojurídico e ambiental, nunca termina. O que pode terminar são as obras de engenharia e infraestrutura – com seus impactos correlatos – mas partindo de uma compreensão sociológica mais ampliada essas obras só começam, nunca terminam. Podemos citar diversos exemplos desta “incompletude planejada”: a situação das águas do São Francisco continua extremamente alarmante, com relatos da sua perda de vazão no Estado de Pernambuco, Alagoas e Sergipe; a ocorrência de chuvas de forma mais ampliada no ano de 2019 nos “estados receptores” das águas indica, ao menos para este ano, a desnecessidade de deslocamento das águas para fins de abastecimento humano e dessedentação animal; a discussão sobre a privatização do sistema Eletrobrás – incluída aí a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (CHESF) – e, inclusive, a privatização da própria gestão da Transposição, estão em pauta; as obras complementares em cada Estado Nordestino que receberá as águas da Transposição também são elementos de uma continuidade e complexidade sobre o que poderíamos chamar de “obras concluídas”.
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Após esta inauguração e a situação de emergência do município de Campina Grande-PB , as águas foram direcionadas para o Açude Boqueirão – responsável por todo o abastecimento da região metropolitana daquela cidade – e foram comemoradas como o primeiro grande resultado concreto da Transposição do São Francisco na Paraíba.
Assim, percebemos e recebemos as contradições inerentes ao Projeto da Transposição como dados objetivos importantes desta pesquisa, mas não pretendemos retornar a estes conflitos, dadas as novas complexidades inerentes aos “desdobramentos” da Transposição no caso paraibano, elemento “novo” dentro desta conjuntura. Por tudo isso, ressaltamos que em nossa pesquisa partimos da constatação de que o histórico das obras da Transposição e os conflitos socioambientais produzidos devem servir de experiência histórica e horizonte sobre o que poderá ocorrer, ainda que no caso concreto não tenhamos optado por realizar um recorte territorial que englobe as obras da Transposição na Paraíba.
Sobre a terceira obra – o Canal Acauã-Araçagi ou Canal das Vertentes Litorâneas – preferimos discutir seus elementos em capítulo específico sobre o nosso processo de pesquisa de campo ocorrido no ano 2018. Assim, para fechar esta sucinta apresentação sobre o território estudado apresentaremos basicamente a localização destes pontos de interesse. O Mapa a seguir indica a localização geográfica dos pontos de interesse para esta pesquisa:
Figura 1: Mapa da Paraíba e do possível “caminho das águas” desde a Transposição até a Barragem de Acauã.

Fonte: Aesa, 2018. Editada pelo Pesquisador (2018).
No caso do eixo leste da Transposição, as águas entram na Paraíba a partir da cidade de Monteiro-PB (número 1 - seta de cor roxa) e seguem o curso pelo Rio Paraíba até o Açude de Boqueirão (número 2 - seta vermelha), que abastece a cidade de Campina Grande e toda a sua microrregião. O planejamento hídrico do Estado da Paraíba é de que as águas retornem novamente
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para a calha do Rio Paraíba até chegar à Barragem de Acauã (número 3 - seta preta) e, mais especificamente nas proximidades da comunidade de Melancia - outra comunidade atingida pela Barragem de Acauã – existe uma tomada d’água do Canal Acauã-Araçagi, que é o nosso objeto principal neste artigo. Este Canal, chamado de “Transposição da Paraíba” ou “Canal das vertentes litorâneas”, é o principal elemento “novo” desde o início da pesquisa de doutorado e objeto, portanto, de novas inquietações e discussões. Está apontado no mapa dentro do traçado pontilhado de cor vermelha.
Assim, estamos tratando de uma espécie de “novo caminho das águas”, objeto privilegiado da reflexão que se pretende fazer na pesquisa e que já conta com dados iniciais mapeados e cartografados, como veremos nos próximos capítulos.
Chamamos de “novo caminho das águas” pois o território analisado está em processo de transformação decorrente da expectativa – e parcial concretização - da utilização dessas novas águas tanto para abastecimento humano quanto para atividades econômicas, vinculando-se à uma nova fase de desenvolvimento na Paraíba, conforme o discurso oficial.
Esta singularidade é tratada aqui, sociologicamente, como uma novidade empírica com repercussões socioeconômicas, geográficas e jurídicas, sobretudo em virtude da bifurcação realizada pelo Canal supracitado, que segue um caminho distinto – e artificial – em direção ao litoral norte do Estado, microrregião que já tem certa oferta hídrica e reconhecida pela presença forte do agrohidronegócio, sobretudo de cana-de-açúcar. Uma bifurcação, pois, carregada de elementos importantes a partir de uma mirada da ecologia política latinoamericana.
Nos permitimos enxergar, neste contexto, uma espécie de “pesquisa em movimento”, que tenta acompanhar este “caminho das águas” até onde for possível para, a partir daí, construir elementos de síntese e de compreensão.
Assim, queremos apontar com esta caracterização do território e da pesquisa sua essência dialética, encarados como processo e movimento e não como estrutura fixa e dado “morto”7 . Reportamos e refletimos que essa característica não se deve somente ao método utilizado e suas modulações, mas à centralidade da água e seus conflitos territoriais, que exigem esta dimensão ao mesmo tempo conflituosa e dinâmica.
A reflexão, pois, anteriormente centrada na discussão sobre barragens – compreendidas como uma forma singular de “cercamento” de terras e águas – ampliou-se para uma reflexão sobre
7 Ao nos referirmos, aqui, a dado “morto” estamos nos contrapondo a partir de uma visão crítica sobre as pesquisas empíricas, que, em geral, encaram os dados empíricos como dados ou valores em si, em geral produzindo um empirismo acrítico e pouco afeito às discussões marxistas. Por outro lado, isto não significa desvalorização da empiria, como se a realidade pudesse ser analisada e conformada a priorísticamente por um conjunto teórico. É a dupla negação, da realidade em relação à teoria e da teoria em relação à realidade, que vimos trabalhando a partir da chamada sociologia viva. Para mais, ver Ribeiro et al. 2018.
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os conflitos socioambientais ligados ao controle, acesso e uso das águas no contexto nordestino a partir das grandes obras hídricas. Desta forma, portanto, o território objeto desta investigação se ampliou significativamente, demandando a reorientação das atividades de campo a fim de percorrer os atuais caminhos do Canal Acauã-Araçagi, com a finalidade de identificar, cartografar e analisar estes novos caminhos e seus eventuais conflitos, partindo da realidade já experienciada pelos atingidos de Acauã.
Assim como as águas, que fluem e são essencialmente movimento, podemos descrever que nossa pesquisa se caracteriza por este movimento, como se a água estivesse, a todo tempo, reafirmando o seu estado vivo, para além dos estados “tradicionais” da matéria, como nos ensina Porto-Gonçalves: “(…) a água é fluxo, movimento, circulação. Portanto, por ela e com ela flui a vida e, assim, o ser vivo não se relaciona com a água: ele é água. É como se a vida fosse um outro estado da matéria água, além do líquido, do sólido e do gasoso – estado vivo” (2008: 120).
Afinal, assim como a vida e sendo a própria vida, a água acaba por condicionar os movimentos também das pesquisas que se pretendem realizar sobre ela e com ela, como tem ocorrido nesta pesqu isa.
Antes, porém, de apontar alguns dados da pesquisa empírica realizada, acreditamos ser importante contextualizar algumas questões sobre os conflitos envolvendo a água em seu sentido mais amplo a fim de produzir uma análise que relacione teoria e empiria. Neste sentido, no próximo tópico iremos discutir algumas categorias importantes que foram sendo incorporadas à pesquisa, sobretudo a partir de estudos de ecologia política.
Estes estudos foram – e são – importantes para construir um enquadramento teóri co preliminar, sobre os desafios e dificuldades para pensar as lutas por terra e água num contexto de reprodução ampliada do capital, como veremos.
2. O “NOVO CAMINHO DAS ÁGUAS” NA PARAÍBA À LUZ DAECOLOGIA POLÍTICA: PRODUÇÃO DA ESCASSEZ E DESPOJO MÚLTIPLE EM OBRAS HÍDRICAS NO SEMIÁRIDO
No Brasil e na América Latina, multiplicam-se os casos de conflitos envolvendo água. Em geral, estes conflitos não podem ser dissociados das lutas por terra e território, embora assumam, em cada configuração e contexto, diferenças qualitativas importantes.
Estes estudos apontam que está em curso um novo processo de “cercamentos das terras e das águas” em nível global. Isto porque a demanda por “recursos naturais” tem aumentado vertiginosamente sobretudo após a crise capitalista global – que ainda perdura – de 2008. Este
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processo se caracteriza, em sentido geral, por uma nova corrida por terras e águas, que uma literatura recente têm chamado de land e water grabbing. Para buscar liquidez e lastro de segurança diante de flutuações derivadas do processo de financeirização da economia e também da agricultura, acumulam-se relatos de um processo ampliado de compra – ou outros mecanismos de controle sobre posse e uso – de terras e outros bens naturais, em especial nos países do chamado Sul Global e América Latina (BORRAS JR et al. 2012) e no caso brasileiro não é diferente.
Embora não seja possível aprofundar este debate aqui8, é importante nos posicionar - a partir de autores do pensamento crítico latinoamericano - que defendem e retiram consequências práticas da continuidade da acumulação originária .
Este processo global de reprodução ampliada do capital, além de reforçar conflitividades socioambientais, é a demonstração cabal da essência destrutiva, espoliadora e violenta do capitalismo mesmo em suas fases mais avançadas, necessitando sempre lutar contra todas as formas não-capitalistas ou não-plenamente capitalistas de (re)produção social, contra a economia camponesa e contra a economia natural, como já nos afirmava Rosa Luxemburgo – considerada pela literatura a precursora dos debates atuais sobre este processo de acumulação por espoliação – ainda no início do século XX.
O capitalismo sempre associa meios econômicos fundados na exploração capital- trabalho com meios extra-econômicos, avançando sobre fronteiras e formas de produção não- capitalistas para garantir sua reprodução ampliada. Isto porque, como afirma a autora, na realidade, “a violência política é também aqui somente o veículo do processo econômico; ambos os aspectos da acumulação do capital estão organicamente ligados pelas condições de reprodução do capital, apenas juntos fornecem a carreira histórica do Capital” (Luxemburgo 1984:86–87) .
Deste debate teórico-prático sobre os processos de expropriação da natureza humana e não humana e suas consequências, optamos por utilizar um conceito tanto mais ampliado quanto possível, dadas as repercussões para nosso trabalho empírico. Partindo de De Angelis e sua caracterização da separação – compreendida a partir da Crítica da Economia Política de Marx sobre o processo de cisão entre produtores e seus meios de existência, condição essencial para
8 Em outra oportunidade já realizamos uma revisão teórica sobre a questão dos cercamentos das águas (MORAIS 2017), embora estejamos em processo de (re)construção de nossa perspectiva teórica a partir da literatura latinoamericana em virtude das confluências advindas de nosso estágio de doutorado sanduíche (PDSE) no Seminario Permanente “Entramados comunitarios y formas de lo político” na Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, em Puebla, México. Uma boa revisão sobre este debate e sobre as lutas pelo comum que não estão centradas no Estado – que nos influenciou fortemente na reconstrução do objeto da pesquisa – está presente nos livros Luchas por lo común: antagonismo social contra el despojo capitalista de los bienes naturales en México (TRUJILLO 2015), Horizonte comunitario-popular: antagonismo y producción de lo común en América Latina (AGUILAR 2015).
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acumulação de capital – Mina Navarro Trujillo apresenta uma forma inovadora de interpretar esse debate, acrescentando novos parâmetros. Sobre o conceito de separação, afirma a autora que:
1) la separación es una condición necesaria del capital para intervenir el tejido de la vida; 2) la separación debilita el control de las y los productores sobre sus medios de existencia; 3) la separación oculta y deforma la red de relaciones de interconexión e interdependencia entre todas las formas de vida que, en conjunto habitamos el planeta; y; 4) los procesos de lucha contra las separaciones representan una alternativa para recuperar control sobre los medios de existencia, revertir y resarcir parcialmente los efectos y alteraciones que el capital produce sobre el tejido de la vida. (Trujillo 2019:10)
A partir desta síntese, Trujillo formula uma ideia em nossa opinião extremamente fértil e interessante para os propósitos dos trabalhos que discutem conflitos envolvendo água e grandes projetos hídricos, que é o conceito de despojo múltiple. Para caracterizar este processo contemporâneo de “novos cercamentos” desde uma compreensão latinoamericana, defende
que toda separación produce o conlleva a una serie despojos múltiples sobre los ámbitos de vida y medios de existencia. Esto es, en la medida en que el capital produce separaciones, es que cuenta con las condiciones para subsumir el tejido de la vida y por tanto, intervenir y reconfigurar las relaciones entre la vida humana y no humana, transformar la forma y contenido de los metabolismos, despojar medios de vida, pero también capacidades políticas de autodeterminación (Trujillo 2019:10).
Estamos em total acordo com a pensadora mexicana. Isto porque não basta reconhecer que estamos numa fase de maior concentração e financeirização da economia mundial e de profunda crise do capital - que se movimenta em busca de terras e águas - além de outros “recursos” na América Latina. É preciso apontar que os diferentes usos desses bens – de forma especulativa ou não – reconfiguram-se e ampliam-se, inclusive em regiões onde historicamente o processo de acumulação era construído a partir de outros moldes, mais “clássicos”, como a latifundiarização e a super-exploração do trabalho.
Trata-se, outrossim, de compreender que a apropriação, controle e mercantilização das águas ligadas a este contexto neoliberal não somente é um mecanismo indireto de acumulação. Atualmente no Brasil e na América Latina a água é mecanismo direto e indireto de acumulação, como observa Ioris (2010) .
Esses novos componentes ampliam o despojo, tanto da natureza humana e não humana como as capacidades políticas de organização e gestão comunitária dos camponeses, e afetam dramaticamente um conjunto de comunidades, produzindo e reproduzindo novas separações no tecido da vida. Processo que se dá, principalmente, pela prevalência do valor de troca em relação ao valor de uso na própria caracterização da água e dos processos hídricos.
É dentro deste contexto que pensamos a centralidade das obras hídricas no semiárido nordestino (re)produzindo despojos múltiples. Este processo está ligado a pelo menos cinco
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elementos na nossa conjuntura: 1) a relação entre a demanda por água e a produção de commodities agrícolas; 2) a necessária concentração e intensificação de capital interligada à construção de qualquer grande projeto de investimento, como barragens, canais, portos, perímetros irrigados, etc; 3) em nível mundial, o debate sobre a mercantilização e financeirização das águas nos meios urbanos e meios rurais; 4) a discussão sobre a gestão dos recursos hídricos no semiárido reproduzindo uma lógica economicista e gerencialista que em geral despreza a capacidade política e organizativa de campesinos e ribeirinhos sobre os seus meios de existência; 5) os impactos ambientais resultado dessas intervenções sobre os próprios corpos hídricos – rios, lagos, mananciais, fontes minerais, etc. – numa perspectiva “ecocida”, ou seja, que protagoniza “assassinatos da natureza” em nome do desenvolvimento.
À luz da ecologia política, por outro lado, a centralidade da água está conectada, também, com o discurso da escassez. Em sentido geral, podemos afirmar que o discurso da escassez se caracteriza pela produção de um certo consenso que naturaliza a falta d’água em diversos contextos vinculando-os a uma generalização e naturalização das responsabilidades “de todos” para superar tais problemas. Como afirma Porto-Gonçalves (2008), há um reducionismo enorme neste debate, que trata a questão hídrica dissociada de um processo social mais amplo – de uma desordem ecológica global – que precisa ser criticada, pois fornece justificativas políticas para o reforço do paradigma da escassez:
Tudo indica que estamos imersos num complexo processo de desordem ecológica que, mesmo diante de maior quantidade de água doce disponível sob a forma líquida, está produzindo um aumento da área desertificada e do número de localidades submetidas a stress hídrico, inclusive em muitas das grandes cidades do mundo. Enfim, é de urna desordem ecológica global que estamos falando e não simplesmente de escassez de
água, como vem sendo destacado (Porto-Gonçalves 2008:118) (grifos nossos).
Trata-se, portanto, de um discurso que naturaliza o que é produto histórico específico de uma sociedade construída num determinado modo de produzir e de se reproduzir socialmente. Afirma Ioris:
Como instrumento de legitimação junto à opinião pública, as novas políticas fazem referências simbólicas à escassez de água no Nordeste (na verdade, um problema agrário, muito mais que hidrológico), a conflitos no Oriente Médio (decorrentes de racismo, geopolítica e dominação econômica) ou à poluição dos rios (muito mais um problema de urbanização caótica). Essa centralidade da noção de escassez para a introdução do novo marco regulatório de recursos hídricos não é mera coincidência, mas permite que toda uma racionalidade de viés ainda mais explicitamente capitalista seja sobreposta aos procedimentos de uso e conservação. Porém, escassez e abundância não são conceitos absolutos, mas somente fazem sentido em um contexto social e cultural específico, muitas vezes organizado de forma a permitir o funcionamento de mercados (Harvey, 1973). Assim, a proclamada escassez de recursos hídricos no Brasil contemporâneo é o resultado de um
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processo de exploração do meio ambiente a serviço de um desenvolvimento desigual implantado ao longo de sua história socioeconômica (Ioris 2010:236– 237).
Desta forma, o discurso da escassez cumpre um papel ideológico importante nas sociedades capitalistas, que necessitam, por sua própria essência de valorização do valor, de um constante ciclo produtivo – e também reprodutivo – fundado no controle e mercantilização de “bens escassos”. Na medida em que se produz um consenso sobre a escassez da água, portanto, esta passa não só a ser concebida como um bem da natureza ou um bem comum, mas antes de tudo um bem de valor econômico ou mercantil.
Ainda que seja inegável a diferença dos conflitos envolvendo água em regiões com altos índices de pluviosidade em comparação com regiões – como a nossa região nordeste – que historicamente se caracterizam pela menor oferta hídrica “natural”, não podemos esquecer que tais regiões, exatamente pela centralidade da água na própria conformação de territorialidades camponesas, construíram ao largo do tempo um conjunto de experiências culturais, tecnológicas e simbólicas de convivência com o semiárido, compreendido por Pontes e Maciel como:
uma confluência de ideias resultando de anos de debates baseados na experiência concreta dos habitantes locais, com recentes contribuições acadêmicas e implicações políticas ou legais sobre a relação natureza-sociedade no Nordeste (sobretudo no que tange às secas e à semiaridez). Empregado no sentido lato de modelo, padrão ou exemplo a ser seguido, o paradigma da convivência opõe-se aos métodos convencionais do paradigma hidráulico – grandes obras para acumular água – buscando estabelecer novos princípios, normas e práticas orientadoras para uma melhor coexistência das populações com a semiaridez, baseando-se em tecnologias socialmente apropriadas (Maciel e Pontes 2015:15)
No caso do Nordeste Brasileiro e, em especial, do semiárido, o discurso da escassez foi responsável, historicamente, pela justificativa da realização de diversas obras para “solucionar” o problema. A história do Nordeste pode ser contada a partir dos conflitos decorrentes de uma racionalidade tecnocrática ligada às oligarquias regionais demandando mais e mais recursos públicos para construção de diversas obras públicas de infra-estrutura hídrica – como açudes, barragens, canais, adutoras, transposições, poços artesianos, etc.
Tais obras, se por um lado cumpriram algum papel importante na criação de infraestruturas para armazenamento e abastecimento de água, em geral estiveram – e até hoje estão – ligadas a um processo de concentração do binômio terra-água nas mãos de poucos e da burocratização da gestão hídrica nas mãos do Estado. Uma espécie de união hídrico-territorial a favor dos grandes em detrimento dos “de baixo”.
No nosso caso de estudo esta questão se repete, embora com novas conformações mais “modernas”. A construção da barragem no final dos anos 1990 e seus conflitos decorrentes
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continuam vigentes, a luta por reparação aos atingidos da Barragem de Acauã, como afirmamos, é objeto de demandas e lutas por parte do movimento social até hoje.
A esses conflitos já documentados e objeto de reflexões e denúncias, seria possível pensar e cartografar novos conflitos e novas situações de violações de direitos? A construção da Transposição do São Francisco e a “chegada das águas” na Paraíba reconfigura este debate? A construção do Canal Acauã-Araçagi – como obra complementar à Transposição – aponta para novos conflitos, mais uma vez reforçados pelo paradigma da escassez ?
Partindo, pois, dessas inquietações instigadas pela realidade – reconfiguradas pelas análises teóricas e ampliadas pela necessidade de estudar o processo atual em movimento – justificamos e organizamos nosso trabalho de campo, realizado entre os dias 27 e 31 de julho de 2018. Intitulamos este trabalho de “novo caminho das águas”, o qual descreveremos no próximo capítulo.
3. ALGUNS DADOS PRELIMINARES ACERCA DA PESQUISA DE CAMPO (JULHO/2018) E A POSSÍVEL CARACTERIZAÇÃO DE UMA SEGURANÇA HÍDRICA PARAO CAPITAL
Como já vimos detalhando ao longo deste artigo, a investigação sobre os conflitos envolvendo barragens e obras hídricas na Paraíba exigiu do pesquisador a construção de uma estratégia teórico-metodológica para compreender melhor o que está se passando como decorrência das novas obras do Canal Acauã- Araçagi.
Aspecto importante a ser apontado foi o planejamento e a parceria entre o pesquisador e sua orientadora de doutorado na atividade de campo, seguindo o saber-fazer das experiências já consolidadas no âmbito do Observatório Fundiário Fluminense (OBFF) desde sua fundação no início dos anos 20009 .
Complexificando ainda mais esta estratégia metodológica do caminho das águas, decidimos coletivamente que a presença do movimento social organizado – no caso, do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) – durante todos os dias de percurso no campo era imprescindível. Isto porque não somente era importante cartografar, realizar entrevistas e documentar as atividades, mas contar com a experiência social dos próprios movimentos na leitura desta realidade.
9 Importante ressaltar este saber-fazer consolidado sob a orientação da Profa. Dra. Ana Maria Motta Ribeiro, no qual orientand@s e orientadora partem juntos para a pesquisa de campo ao menos uma vez na condução da pesquisa empírica. Este fato pressupõe disponibilidade e compromisso fora do comum dentro da Academia. Por outro lado, tal experiência demanda uma organização e planejamento ainda mais refinados, haja vista a diversidade e intensidade das visões compartilhadas tanto na construção e coleta de dados quanto na sua sistematização. O trabalho coletivo, neste caso, não é somente um artifício retórico do exercício sociológico desenvolvido, mas o resultado vivo de uma experiência acumulada de pesquisa e extensão envolvendo a realidade rural e camponesa.
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Em especial a realidade de atingidos pela Barragem de Acauã que já vivenciaram os impactos e violações daquela obra mas que também não conheciam uma grande parte do novo caminho das águas. Reconhecer e valorizar que o processo de pesquisa se dá no encontro de saberes e de experiências compartilhadas, portanto, foi uma das apostas do caminho das águas. Desta forma, o planejamento das atividades se realizou em conjunto com lideranças do
MAB, que já tinham alguns contatos prévios com pessoas que viviam às margens do Canal Acauã - Araçagi e não eram necessariamente ligadas a nenhum movimento social organizado. A esses contatos iniciais foram somados outros, realizados pelo pesquisador a partir das lideranças de outros movimentos sociais do campo – em especial Comissão Pastoral da Terra e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, CPT e MST, respectivamente.
Esta opção se revelou decisiva no processo da pesquisa empírica, pois todas as discussões e reflexões foram devidamente gravadas, inclusive as conversas realizadas no decorrer do percurso e geraram um acervo importante de materiais que estão em fase de sistematização – degravação e análise – e que, neste artigo, são apresentadas somente em linhas bastante gerais a partir de alguns achados da pesquisa de campo.
Ademais, realizou-se um planejamento para percorrer sempre que possível as margens do Canal até onde as construções estavam prontas, com inspiração nas experiências de cartografia social (ACSELRAD 2008), para documentar, georreferenciar e espacializar com o máximo de informações possíveis as situações vivenciadas por aqueles e aquelas que estavam “às margens” da obra.
Por outro lado, consideramos importante realizar entrevistas e compreender como estavam sendo planejadas as obras por parte dos órgãos de Estado, a fim de identificar discursos que permitissem compreender as problemáticas apontadas pelos “de cima”. Assim, além desse percurso de quatro dias, foram realizadas diversas entrevistas um dia antes da viagem a campo na cidade de João Pessoa, em especial com servidores de Secretarias de Governo responsáveis pela obra, representantes de setores do agronegócio canavieiro (da Associação dos Plantadores de Cana da Paraíba – ASPLAN) e do Ministério Público Federal.
Como outro recurso metodológico utilizamos o aplicativo Locus Map para o georreferenciamento dos pontos visitados e realizamos a gravação do percurso feito de carro nos quatro dias de campo .
Já no primeiro dia de atividades em campo, iniciaram-se as atividades a partir da Barragem de Acauã, momento no qual os pesquisadores se encontraram com alguns dos sujeitos da pesquisa ligados ao MAB e realizaram-se as primeiras entrevistas, percorrendo, depois, um pequeno trecho do Canal logo após a tomada d’água.
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No segundo dia, partiu-se da Barragem de Acauã em direção à cidade de Campina Grande, seguindo pela Rodovia BR-230 até a chegar-se ao “ponto de encontro” das obras do Canal e realizando um percurso inverso pelas margens do Canal até as proximidades do Aqueduto na cidade de Mogeiro, momento no qual foi possível tomar alguns depoimentos e cartografar elementos importantes de análise sobre os impactos das obras tanto em áreas de agricultura familiar quanto de assentamentos da reforma agrária.
No terceiro dia, os objetivos da investigação foram percorrer os caminhos das obras do Canal após a margem direita da Rodovia BR-230, na qual foram novamente articuladas entrevistas com assentados da reforma agrária ligados ao MST e CPT, chegando até o canteiro de obras do Consórcio Acauã-Araçagi na cidade de Mari, a fim de agendar algumas entrevistas.
Já no quarto e último dia, privilegiou-se a realização de entrevistas com os agentes públicos e privados ligados ao empreendimento, no próprio canteiro de obras do Consórcio Acauã - Araçagi, com o posterior regresso para a cidade de João Pessoa.
Em virtude da quantidade de materiais coletados dentre fotos, documentos e entrevistas10 , escolhemos apresentar alguns achados deste material como resultado de uma primeira sistematização, no qual serão discutidas basicamente duas questões importantes: quais os objetivos da obra e a quem pode beneficiar?
Segundo as informações oficiais, trata-se da maior obra de construção civil do Estado. Reconhecida como a “transposição da Paraíba” dada a sua magnitude em termos de investimento – é a maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no Estado da Paraíba e a segunda maior obra hídrica do Nordeste. Está sendo executada por um Consórcio de empresas intitulado Consórcio Acauã-Araçagi, a partir de um projeto da Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia (SEMARHCT), que realiza a sua supervisão técnica.
O Canal Acauã-Araçagi promete “beneficiar 600 mil habitantes e garantir irrigação em 16 mil hectares de terras”, segundo as informações do Governo do Estado. Recentemente foi batizado com o nome do economista paraibano Celso Furtado e suas obras estão em estágio avançado, percorrendo cerca de 112 quilômetros em direção ao litoral norte da Paraíba. Em geral, o Canal foi construído a partir da desapropriação de áreas de 60 metros de cada lado da obra – podendo variar em algumas partes com 80 metros de cada lado – em todo o seu traçado, como se pode observar na imagem a seguir.
10 Pedimos desculpas às leitoras e leitores pela extensão das citações, mas as consideramos muito importantes pelo fornecimento de elementos centrais para a pesquisa, que poderiam ser desdobrados e explicados parte a parte, mas que dadas as condições desta publicação serão apresentados como citações maiores e sem interrupções .
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Figura 2: Foto das obras de construção do Canal Acauã-Araçagi onde se observam as tubulações e a área desapropriada dos dois lados.

Fonte: Imagens feitas pela equipe de pesquisa (2018)
Na coleta de dados foi possível compreender melhor como o Governo do Estado pretende justificar seu anúncio acerca dos beneficiários: 600 mil beneficiários é o total da população de todos os municípios por onde, direta ou indiretamente, passam as obras do Canal Acauã-Araçagi. A partir da entrevista com um servidor da Secretaria de Agricultura e Pesca do Estado da Paraíba (SEDAP), compreendeu-se que a obra se desenvolve em três trechos úteis – dos quais dois trechos estavam em execução – com uma vazão inicial de 10 m³/s.
O entrevistado esclareceu como foram realizados os cálculos para chegar à área de 16 mil hectares de potencial para irrigação: a vazão de 10 m³/s seria dividida entre a previsão de 2 m³/s para abastecimento humano e 8 m³/s para agricultura irrigada, resultando no montante de possíveis 16 mil hectares para irrigação previstos na publicidade oficial. Chama a atenção neste dado informado, por óbvio, a diferença substancial apontada entre o que pretende ser destinado para abastecimento humano (inclusive para cidades que não tem sustentabilidade hídrica) e o que está previsto para ser utilizado na irrigação.
Outro dado importante mapeado na pesquisa de campo se relaciona com a projeção de quem poderá se beneficiar com as águas do Canal. É que, conjunta e paralelamente às obras, está sendo feito um grande levantamento de aptidão agrícola com base nos elementos solo e clima – o chamado ZON (Zoneamento Pedoclimático) – conforme demonstra o mapa a seguir. Este mapa apresenta o canal e a chamada “área de influência” do canal:
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