Leila Maria da Silva Barboza
Universidade Federal Fluminense, Brasil
Maria Paula de Oliveira Bonatto
Museu da Vida Fiocruz / Fundação Oswaldo Cruz, Brasil
Projeto Mosaico do Lugar após 18 anos:
pesquisas e reflexões
Mosaico do Lugar Project after 18 years: Research and Reflections
Proyecto Mosaico do Lugar después de 18 años: investigaciones y
reflexiones
Trabalho submetido: 15/3/2024
Aprovado: 18/4/2024
Este documento é distribuído
nos termos da licença Creative
Commons
Atribuição - Não Comercial 4.0
Internacional (CC-BY-NC)
© 2024 Leila Maria da Silva Bar-
boza, Maria Paula de Oliveira Bo-
natto
RESUMO
Em 2020, durante a pandemia de Covid 19, o projeto Mosaico do Lugar
– uma intervenção de arte pública no espaço urbano, foi revisto após
18 anos em duas pesquisas: uma, sobre o que ficou na memória dos
participantes, a partir de relatos reunidos em vídeo, sistematizados sob
a metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo; outra, sobre a percep-
ção dos novos moradores do bairro sobre essa escadaria de mosaico,
com a distribuição de cartas enquetes. O conceito de enunciado de
Bakhtin orientou as análises dos discursos coletados para construir re-
flexões sobre os valores sociais que emergiram, revelando aspectos da
sociedade atual.
Palavras-chave: arte pública, estética relacional, urbanidade, arte co-
letiva, mosaico
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RESUMEN
En 2020, durante la pandemia de Covid 19, el Proyecto Mosaico do Lugar, una intervención de
arte público en el espacio urbano, fue revisado después de 18 años, en dos encuestas: una, so-
bre lo que quedó en la memoria de los participantes, a partir de informes recopilados en video,
sistematizado bajo la metodología del Discurso del Sujeto Colectivo; otro, sobre la percepción
de los nuevos vecinos del barrio sobre esta escalera de mosaico, con el reparto de cartas de
encuesta. El concepto de enunciación de Bakhtin el análisis de los discursos recopilados para
construir reflexiones sobre los valores sociales que emergieron, revelando aspectos de la so-
ciedad actual.
Palabras clave: arte publico, estética relacional, urbanidad, arte colectivo, mosaico
ABSTRACT
In 2020, during the Covid 19 pandemic, the Mosaico do Lugar Project - a public art inter-
vention in urban space, was reviewed after 18 years in two surveys: one, on what remained
in the memory of the participants, based on reports gathered on video, systematized under
the Discourse of Collective Subject methodology; another, about the perception of new
neighborhood residents about this mosaic staircase, with the distribution of survey letters.
Bakhtin’s concept of utterance guided the analysis of the collected speeches to construct
reflections on the social values that emerged, revealing aspects of current society.
Keywords: public art, relational aesthetics, urbanity, collective art, mosaic
Leila Maria da Silva Barboza (Leila B.) é graduada em Gravura pela UFRJ (1984), especialista em Design de Moda
pelo SENAI-CETIQT (1986) e Arteterapia na Saúde e Educação pela Universidade Cândido Mendes UCAM (1999).
É mestre em Ciências da Arte pela UFF (2009). De 1999 a 2019 foi docente no curso de Design de Moda da Uni-
verso. Como artista, vem desde 1997 desenvolvendo pesquisa os pigmentos naturais, em projetos de cenografia,
figurino, arteterapia e arte coletiva.
https://orcid.org/0000-0001-6568-7243 | leilamdsb@gmail.com
Maria Paula de Oliveira Bonatto é doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca,
Fiocruz (2012), mestre em Filosofia da Educação pela Fundação Getúlio Vargas - RJ (1992) e Bachelor in Life Scien-
ces, pela Southwest Missouri State University, EUA (1981). No Museu da Vida é curadora da exposição de longa
duração Parque da Ciência, onde desenvolve atividades de colaboração entre o museu e movimentos sociais, bem
como escolas públicas da região.
https://orcid.org/0000-0003-4153-1230 | paula.bonatto@fiocruz.br
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Introdução
O presente estudo nasce da intervenção artística Mosaico do
Lugar, que se deu na escadaria da rua Oscar Pereira do bairro de
Charitas, Niterói, Rio de Janeiro. Esse projeto, realizado de 2004 a
2006, foi uma ação artística coletiva, coordenada voluntariamen-
te por Leila B., artista visual e moradora de uma casa/ateliê nessa
rua. Na impossibilidade de consolidação de uma rua de tráfego,
a maioria dos moradores apoiou a construção da escadaria, que
foi realizada de cima para baixo e dividida por platôs com mesas
e bancos, formando três pequenas praças. A arte pública foi uma
contrapartida à urbanização da rua, tendo sido realizada a partir do
ateliê de 100m² da artista, que obteve da Prefeitura os materiais e
instrumentos para a confecção dos mosaicos.
O resultado é uma escadaria com 125 degraus, em que seus espe-
lhos, mesas, bancos e painéis estão cobertos com 35m² de mosai-
cos, representados por 800 trabalhos de 120 participantes. Esse
processo se desdobrou em uma dissertação de Leila B. no
PPGCA-UFF
1
e publicações acadêmicas nos campos da arte, da
arquitetura e da sociologia, bem como publicações em periódicos e
inserções em mídias.
1
Início dos 125 degraus da Escadaria
de Mosaico.
Foto: Leila B. (2006)
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A dissertação investigou o processo de construção dessa esca-
da como um mosaico de mosaicos, suas implicações no plano da
urbanidade e das segregações espaciais e socioeconômicas, as
reflexões sobre as relações entre arte, artista e comunidade. No
viés entre a efemeridade e perenidade, foram produzidas reflexões
sobre a cidade que apaga suas memórias e a necessidade de se
trabalhar com materiais perenes, resistindo no tempo e formando
camadas temporais. Foram investigadas as dimensões da autoria,
e suas interpretações teóricas e práticas, bem como a importância
para o colaborador de ser reconhecido ou não na obra coletiva.
O lugar do artista que coordena um processo coletivo, conside-
rando todas as etapas de elaboração, negociação, socialização e
implantação, foi apreciado como forma ampliada de criação artís-
tica. No plano do urbanismo e da urbanidade, foram apreciadas de
forma crítica as diferenças entre a intervenção coletiva realizada
e as mega intervenções urbanas que se impõem na cidade, onde
nem sempre o cidadão ganha espaços. As oficinas no ateliê foram
relembradas pelo viés da experiência estética resultante da feitura
do mosaico, transformando não só o autor, mas principalmente a
sociabilidade do grupo, caracterizando a obra final como processo
resultante de afetos.
A intervenção gerou desdobramentos ao longo desses dezoito
anos, traduzindo-se em expressões de usuários, memórias e res-
significações. A busca de apreciação dos significados atribuídos a
essa vivência coletiva demarca uma segunda etapa de investigação,
voltada para os relatos e memórias registrados acerca da experiên-
cia, tendo a colaboração da coautora Maria Paula Bonatto, educa-
dora e sanitarista, participante do projeto e também moradora do
bairro. Além dos depoimentos dos participantes do projeto, objeti-
vamos abarcar aspectos da relação de novos moradores dos edifí-
cios de Charitas com a Escadaria do Mosaico, arte pública que em
2019 foi tombada como Patrimônio Cultural Municipal. Verificamos
que o envolvimento social nas oficinas, bem como os resultados e
experiências no espaço público modificado, são demarcados por
processos de importância inimaginável que só podem ser descri-
tos por quem os vivencia. Os relatos acerca dessas vivências são
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parte dessa segunda etapa da pesquisa, que podem ser acessados
no YouTube, no vídeo Mosaico do Lugar – obra de arte coletiva e
aberta.
Dentre os diversos teóricos que iluminaram as reflexões da primeira
etapa, destacamos Jacques Rancière, que no campo da “política da
arte” sintetiza as reflexões organizadas nesse período, referindo-se
à produção da arte pelas interações humanas que produz:
a arte não é política antes de tudo pelas mensagens que ela
transmite nem pela maneira como representa as estruturas
sociais, os conflitos políticos ou as identidades sociais, étni-
cas ou sexuais. Ela é política antes de mais nada pela maneira
como configura um sensorium espaço temporal que determina
maneiras do estar junto, ou separado, fora ou dentro, face a ou
no meio de... Ela é política enquanto recorta um determinado
espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com
os quais ela povoa este espaço ou ritmo que ela confere a esse
tempo determinam uma forma de experiência específica, em
conformidade ou em ruptura com outras: uma forma específi-
ca de visibilidade, uma modificação das relações entre formas
sensíveis e regimes de significação, velocidades específicas,
mas também e antes de mais nada formas de reunião ou de
solidão. (Rancière, 2010, p. 46)
Esse pensamento de Rancière (2010) nos direciona ao objeto da
segunda fase da pesquisa: a escadaria como arte pública, aprofun-
dando os conceitos de experiência estética e relacional no contexto
da urbanidade atual, valorizando intervenções artísticas urbanas
e coletivas em seu potencial de transformar tanto lugares como
pessoas.
Descrevendo a experiência
De 2004 a 2006, foi realizado um total de 80 oficinas no ateliê da
artista, moradora da rua desde 1994. Nesse processo, pessoas de
diferentes idades e classes socioeconômicas, moradores e não
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moradores do bairro, produziram voluntariamente, individual e cole-
tivamente, em torno de 800 trabalhos. As oficinas foram realizadas
semanalmente por dois anos, inicialmente nas tardes de sábado, e
no segundo ano, nas quintas-feiras em dois turnos.
Inicialmente, apesar do convite, não apareceu ninguém da comu-
nidade do entorno e a ação foi inaugurada com amigos e alunos
de Graduação de Educação Artística da Universidade Salgado
de Oliveira, onde a artista era docente na época. O portão ficava
aberto no dia da oficina e qualquer pessoa poderia entrar e partici-
par, com o compromisso de deixar a obra para o espaço público. À
medida que as obras foram ficando prontas, rejuntadas e colocadas
nos espelhos dos degraus, foi despertando interesse da comunida-
de, principalmente das crianças. Como estratégia de aproximação,
foram realizadas três ações de mosaico direto na escadaria, levan-
do para a rua os materiais e instrumentos. Aos poucos, as crianças
foram cedendo a timidez e frequentando o ateliê, trouxeram seus
irmãos e amigos e, por último as mães, tias e avós.
Oficina de mosaico no ateliê da artista Leila B.
Foto: Leila B. 2005
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O mosaico é uma técnica artística que requer paciência na sua exe-
cução; são várias etapas de produção: desenhar no suporte, cortar
as peças no tamanho e na forma que convier, colá-las na talagarça,
realizar o acabamento com massa de rejunte, finalizando com a
aplicação no local definitivo.
A técnica empregada utilizava a talagarça de algodão como supor-
te intermediário, processo mais simplificado que possibilitou que
pessoas sem nenhum conhecimento técnico pudessem realizar o
mosaico desde o início, sem a necessidade de uma capacitação
prévia.
Foram disponibilizados pedaços de talagarça de 15cm x 15cm,
30cm x 15cm e 140cm x 15cm previamente cortados. A altura não
podia ultrapassar os 15cm, para encaixar com folga nos degraus
de 17cm, medida padrão estabelecida pelo projeto urbanístico. A
talagarça também foi recortada em formas de peixes, pássaros e
borboletas e essas figuras compuseram os painéis dos muros.
A oferta de diferentes tamanhos de suporte possibilitava ao par-
ticipante a escolha do que mais convinha à sua criação e a seu
comprometimento com as oficinas. O tamanho menor poderia ser
executado em uma única sessão de oficina. Já os suportes maiores
impunham responsabilidades diferentes, requeriam várias sessões
no mesmo trabalho ou dividir a execução com outros participan-
tes. Na área delimitada pelo suporte, cada participante pôde criar
livremente.
Durante o processo de trabalho, as pessoas se comunicavam para
dividir ferramentas, cortar e fornecer tesselas da cor escolhida, aju-
dar em caso de dúvida, desenhar para o outro, limpar a área em que
haviam trabalhado... A partir da comunicação objetiva do trabalho,
surgiam outros assuntos, novas relações. A cada oficina surgiam
novos participantes, uns realizavam seu trabalho, aprendiam a téc-
nica e não mais apareciam, outros permaneciam por mais tempo e
poucos frequentaram o projeto do início ao fim.
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Durante o projeto, os grupos que participaram das oficinas forma-
ram uma comunidade transitória, tendo como referências fixas o
ateliê como lugar e a intervenção artística como objetivo. Depois
de o projeto ser finalizado em 2006, vários participantes indagavam
por sua continuação, demonstrando que a ação tinha se desdobra-
do naturalmente no desejo de voltar a estar juntos, de fazer mosai-
co ou outra técnica artística.
Urbanidade
Enquanto dentro da oficina era mantida a produção artística para
transformar a escadaria em um local de memórias, uma arte pública
perene, no bairro de Charitas se iniciava uma intensa transforma-
ção, na qual a cada momento se via uma placa de venda pendurada
em uma casa, seguido pela chegada de um trator e o início da de-
molição. Em 2007, dezoito prédios foram erguidos quase simulta-
neamente. Uma nova população se instalou no bairro, sendo notada
sua existência na entrada e na saída dos carros de vidros escuros,
que vedam o reconhecimento do novo morador.
Se urbanismo é a técnica da organização e da racionalização das
aglomerações humanas, que permitem criar condições adequadas
de habitação e de circulação às populações das cidades, a urbani-
dade refere-se à qualidade social do urbano, à dimensão imaterial
da civilidade. Essas dimensões se superpõem e produzem os luga-
res das cidades, suas histórias, monumentos, fluxos e transforma-
ções que se consolidam através da memória.
A memória coletiva é civilizatória, a tradição só é produzida no tem-
po com a acumulação dos saberes, e a perenidade das referências
materiais e imateriais são imprescindíveis para a urbanidade.
A reflexão sobre a arte pública Mosaico do Lugar em sua relação
com a cidade envolve compreender a obra de arte e sua impor-
tância para o lugar e seus habitantes. Mais do que um patrimônio
tombado, a escadaria e suas praças reservadas são lugares de en-
contros de jovens que conversam e jogam, de crianças que brincam
e de transeuntes que fazem a pausa de descanso. Não é só um
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acesso para a parte alta do bairro, é um passeio público com arte.
Em junho de 2015, o vereador Leonardo Giordano entrou com a
proposta de tombamento da Escadaria de Mosaico na Câmara Mu-
nicipal de Niterói e em julho de 2019, foi tombada como Patrimônio
Cultural da cidade através da lei nº 3415/2019. Em dezembro, a
proposta “Mosaico do Lugar – Valorização do Patrimônio municipal
tombado” foi contemplada em edital
2
, sob o compromisso de se
realizar o inventário do patrimônio, levantamento dos participan-
tes, pesquisa sobre a relação dos participantes e moradores com o
projeto e produção de website
3
. Esse website reúne a história do
projeto em uma revista digital, um vídeo, artigos publicados, além
da dissertação de mestrado. A comunicação se dá por meio das
redes sociais Instagram e Facebook e de uma placa no local que
foi implantada em junho de 2022. As visitas guiadas e palestras em
espaços municipais foram inviabilizadas pela pandemia.
Paralela à execução dessa proposta, foi apresentada em 2019 pelo
vereador Leonardo Giordano e votada favoravelmente, uma Emen-
da Parlamentar com os recursos para a obra de restauração da
2 Edital no 07/2019 -
Chamada Pública de Fomento às
Artes da SMC, FAN e SIMFIC.
3 https://www.mosai-
codolugar.com.br/
Início da Escadaria - Placa informativa com QRcode direcionando para o website Mosaico
do Lugar; no chão, orientação magnética e mapa de Charitas, com marcação do local.
Foto: Leila B. (2022)
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escadaria. Ou seja, o patrimônio tombado seria revitalizado através
dos recursos da Emenda Parlamentar ,vinculada à sua valorização
através do recurso do edital para sua pesquisa e divulgação.
O recurso do Edital foi depositado em abril de 2020, em plena pan-
demia da Covid-19. Em agosto, a Secretaria das Culturas de Niterói
nos informou que o recurso da Emenda Parlamentar seria redire-
cionado para as emergências da pandemia. Não havendo o recurso
para a restauração, foi necessário replanejar a execução da pesqui-
sa e sua divulgação, ou parte dela.
Estética relacional
Partindo das experiências relatadas pelos participantes do projeto
nas oficinas de mosaico, das formas de reunião ou de individualiza-
ção que a intervenção na escadaria ofereceu, o início da segunda
etapa da pesquisa (2020-2021) buscou responder às seguintes
perguntas: Quais os valores emergem, a partir do relato da expe-
riência, para uma parcela de seus autores? A partir das teorias
de Bakhtin, o que a sistematização desses valores revela sobre a
sociedade em que vivemos? Qual o interesse/amplitude do conhe-
cimento dos novos moradores do entorno sobre a escadaria e o
que podemos apreender desse aspecto?
Ao investir em conhecer as respostas a essas indagações, busca-
mos promover diálogos entre arte e urbanidade com aspectos sub-
jetivos dos indivíduos e a riqueza de suas percepções. Os aspectos
que destacamos têm como pressuposto a visão de que, ao falar so-
bre sua experiência nessa criação artística, os autores em questão
estão expressando as relações presentes em toda uma sociedade
que os engendra e por eles é engendrada.
O conceito de “estética relacional”, cunhado por Nicolas Bourriaud
(2009), orienta a reflexão sobre a socialidade formada ou ampliada
nas oficinas durante o projeto. No desenvolvimento do projeto,
além das transformações individuais,
aconteciam as interações so-
ciais entre pessoas de idades e classes socioeconômicas diversas, as
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quais deveriam ser apreendidas como de uma qualidade diferenciada.
Bourriaud propõe considerar que alguns artistas a partir da década
de 1990, na realização de suas propostas, têm as relações sociais
como forma estética, como princípio e objetivo de suas obras. Se-
gundo Bourriaud (2009, p. 29), “a forma da obra contemporânea vai
além de sua forma material: ela é um elemento de ligação, um prin-
cípio de aglutinação dinâmica”, referindo-se às implicações sociais
das obras por ele analisadas.
Quando Bourriaud mapeia a produção artística que propõe a estéti-
ca relacional como fio condutor para as ações dentro do campo da
arte, ele a interpreta como uma atitude de uma parcela de artistas
que assume a função de apontar a precariedade das relações so-
ciais, por meio dos eventos artísticos e de sua reflexão sobre eles.
O conceito de “estética relacional” foi importante para valorizar o
eixo da socialidade do projeto, mas não é suficiente para apreender
sua amplitude. O processo de elaboração da escadaria de mosaico,
além dos eventos das oficinas, produziu também objetos instalados
no espaço público, obras referências dos encontros, que hoje for-
mam uma espessura temporal que atravessa gerações, ampliando a
socialidade experimentada no tempo e espaço.
A escadaria pode não só ser a expressão da comunidade tradicional
do bairro, sendo também uma ligação entre o asfalto (onde esta-
vam sendo construídas as novas moradias) com o morro, parte alta
do bairro que é uma mistura de antigas casas e moradias precárias.
Como o projeto não foi fruto de um edital, e sim da conjunção de
interesses da artista, moradores e Prefeitura, o ateliê recebeu os
materiais e instrumentos e todos trabalharam voluntariamente. Por
não haver prazo de execução, nem prestação de contas, o fluxo
natural de participações, respeitando o tempo de feitura, colaborou
para que emergissem as reflexões teóricas que se desdobraram
na dissertação de mestrado de 2009, enquanto o presente estudo
destaca a metodologia e os resultados da segunda etapa.
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Metodologia
O acesso aos participantes das oficinas realizadas há 18 anos se
deu durante a pandemia de Covid 19 e aconteceu pelas redes so-
ciais. A partir dos primeiros contatos, fomos obtendo outros, mas
parte dos participantes não foi encontrada.
Na mensagem enviada por WhatsApp ou Messenger, além das in-
formações e da solicitação de um depoimento, enviamos fotos das
oficinas e da escadaria
4
.
4 Mensagem envia-
da: Estamos aguardando para
iniciar as obras de recuperação
da Escadaria assim que for per-
mitido. Enquanto aguardamos,
estamos realizando um vídeo
de 30 minutos relatando sobre
a realização da Escadaria de
Mosaico de 2004 a 2006. Estou
solicitando dos que participaram
um breve relato em vídeo do
que marcou daquela experiência
de frequentar o ateliê, conviver
com pessoas conhecidas e
desconhecidas, fazer o mosaico,
ver seu mosaico na escadaria, e
tantas outras coisas que podem
ter te marcado. Foram mais de
100 pessoas que passaram por
aqui, certamente cada um tem
uma lembrança que marcou
mais. Precisa ser filmado na hori-
zontal. Enviar o nome completo
autorizando a imagem, qualquer
dúvida, me retorna. Precisamos
entregar o vídeo pronto, mas
antes tem a edição e finaliza-
ção. O quanto antes enviar,
agradeço muito. Se não quiser
aparecer, pode apenas enviar
um áudio, relatando o que mais
marcou naquele momento, não
esquecendo de dizer o nome. Se
puder enviar a foto do trabalho
que fez, será ótimo.
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Abaixo apresentamos os resultados da pesquisa realizada virtual-
mente. Esses depoimentos foram aproveitados no vídeo Mosaico
do Lugar
5
, de 35 minutos, que incorporou na edição mais 4 depoi-
mentos realizados em uma entrevista de 2005.
Analisando o quadro acima, houve um retorno significativo do
grupo a (dos 47, 13 enviaram depoimentos). Do grupo b, crianças e
adolescentes há 18 anos e hoje adultos, foi difícil obter depoimen-
tos. Foi contratado um dos participantes para nos ajudar, atuali-
zando os contatos e convidando a todos para dar os depoimentos.
Desse grupo, conseguimos um depoimento registrado, e algumas
informações em conversas informais sem gravador. Dos grupos c e
d, foram aproveitados depoimentos de 2005 e 2020.
5 https://youtu.
be/h-j-1a6so9E?list=TLGGstl-
M7H0i25UxNTA3MjAyMQ
Quadro do quantitativo de participantes da pesquisa e de registros produzidos, segundo
origem, contatos e envio de depoimentos
Fonte: Dados obtidos com o presente estudo - 2019-2021.
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Com essa primeira etapa de pesquisa em andamento, foi dada con-
tinuidade à segunda etapa da pesquisa, que seria abordar os novos
moradores do bairro. Foram impressas 1500 cartas enquetes (figura
abaixo), distribuídas nos edifícios e nas poucas casas da parte baixa
do bairro. Iniciou-se com uma carta aos síndicos, comunicando a
pesquisa e solicitando permissão para deixar as cartas nas portarias
para serem colocados nos escaninhos dos moradores, que depois
de respondidas, poderiam ser deixadas na portaria que faríamos a
coleta. O retorno dos síndicos foi pequeno, apenas 4 dos 25 síndi-
cos responderam por e-mail ou mensagem de WhatsApp. Mesmo
sem a resposta dos 21 síndicos restantes, foram entregues 1265
cartas nos edifícios e casas (quadro abaixo).
Conteúdo, frente e verso da capa da carta
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Havendo apenas 2 cartas respondidas das 1265 cartas enquetes,
decidimos reconhecer o silêncio como resposta, considerando a
pandemia como causa predominante do não retorno. A pandemia
foi um choque de transformação que mudou todas as relações so-
ciais, novas prioridades foram elencadas e cremos que os contatos,
tanto por mensagens, telefonemas ou cartas, foram colocados em
planos fora das necessidades emergenciais de proteção e de sobre-
vivência. Os depoimentos registrados no filme de 35 min., intitulado
Mosaico do Lugar - obra de arte coletiva e aberta, foram conside-
rados como material a ser analisado.
A forma para organizar e categorizar estes depoimentos foi encon-
trada na metodologia do Discurso do Sujeito Coletivo, desenvolvida
por Lefevre e Lefevre, e a porta de entrada para a interpretação
de seus significados foi encontrada nas teorias de Mikhail Bakhtin
(1895-1975), em especial nos textos relativos ao conceito de enun-
ciado.
Quadro do quantitativo de cartas trocadas entre o Projeto Mosaico do Lugar e moradores
de condomínios e casas de Charitas, englobando as três etapas.
Fonte: Dados obtidos com o presente estudo - 2019-2021.
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Resultados: Produção de discursos dos sujeitos coletivos do Mo-
saico do Lugar
O Discurso do Sujeito Coletivo - DSC é uma técnica de tabulação
e de organização de dados qualitativos, desenvolvido no fim da
década de 1990 pelo casal Fernando e Ana Maria Lefevre, tendo
como fundamento a teoria da Representação Social (Jodelet, 1989).
Essa técnica propõe a construção de discursos-síntese elabora-
dos com partes de discursos de sentido semelhante, por meio de
procedimentos sistemáticos e padronizados. A técnica representa
uma mudança nas pesquisas qualitativas, porque permite que se
conheça os pensamentos, representações, crenças e valores de
uma coletividade, apresentando sua diversidade de visões sobre um
determinado tema ou categoria. Lefevre e Lefevre propõem uma
definição sintética do DSC, como se segue:
O DSC consiste numa forma não matemática nem metalin-
guística de representar (e de produzir), de modo rigoroso, o
pensamento de uma coletividade, o que se faz mediante uma
série de operações sobre os depoimentos que culmina em dis-
cursos-síntese que reúnem respostas de diferentes indivíduos
com conteúdos discursivos de sentido semelhante. (Lefevre &
Lefevre, 2005, p. 25)
Tais depoimentos são redigidos na primeira pessoa do singular com
o objetivo de produzir, no leitor, o efeito de uma opinião coletiva,
expressando-se, diretamente, como fato empírico, pela “boca” de
um único sujeito de discurso, imaginário e representativo da diver-
sidade de ideias sobre temas centrais.
A metodologia pressupõe que, para se obter pensamentos coleti-
vos via pesquisa empírica, é preciso somar pensamentos individuais
equivalentes, equalizando esses pensamentos sob a forma de cate-
gorias que reúnem pensamentos de sentidos comuns, fragmentos
de depoimentos ou ideias que compõem um discurso comum. Esse
conjunto de questões gera uma diversidade de respostas cujas
ideias serão sistematizadas não por suas fontes ou autores, mas por
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distintos DSCs organizados por temas. Lefevre sintetiza a técnica
para a produção de DSCs em quatro etapas:
1. Expressões-Chave (E-ch) – são trechos selecionados do material
verbal de cada depoimento que melhor descrevem seu conteúdo.
2. Ideias centrais (ICs) - são fórmulas sintéticas que descrevem os
sentidos presentes nos depoimentos de cada resposta de diferen-
tes indivíduos, que apresentam sentidos semelhante ou comple-
mentar.]
3. Ancoragens (ACs) – são, como as ICs, fórmulas sintéticas que
descrevem não os sentidos, mas as ideologias, os valores, as cren-
ças presentes no material verbal das respostas individuais ou das
agrupadas, sob a forma de afirmações genéricas destinadas a en-
quadrar situações particulares. Na metodologia do DSC, considera-
-se que existem ACs apenas quando há, no material verbal, marcas
discursivas explícitas dessas afirmações genéricas.
4. Discursos do Sujeito Coletivo (DSCs) – reúne as E-ch presentes
nos depoimentos que têm ICs e/ou ACs de sentido semelhante ou
complementar. (Figueiredo et al., 2013)
Ao optarmos por trabalhar com os 19 depoimentos obtidos de
pessoas envolvidas com o projeto e, diante das limitações para am-
pliarmos esse número devido à pandemia, nos vimos diante da ne-
cessidade de escolher ferramentas de análise mais apropriadas para
dar sentido a esses resultados obtidos. Estes, embora relativamente
poucos – 19 depoimentos em um universo de cerca de 120 parti-
cipantes –, representam dados qualitativos muito significativos.
Dessa forma, partimos para uma análise qualitativa potencializando
as revelações representadas pelos discursos dessas 19 pessoas,
em sua quase totalidade mulheres, exceto pela representação de
3 homens, para descortinar aspectos de uma sociedade que atuou
em um tempo e espaço vivenciados coletivamente na experiência
do Mosaico do Lugar.
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Os depoimentos enviados foram transcritos segundo a fala de cada
participante. Em seguida, organizamos essas falas segundo Expres-
sões-Chave, aproveitando a totalidade qualitativa dessas expres-
sões e desprezando repetições de cunho idêntico. Assim, reunimos,
em 12 DSCs, toda a variedade de expressões transcritas das falas
originais, do vídeo Mosaico do Lugar - obra de arte coletiva e aber-
ta, localizado no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/
watch?v=h-j-1a6so9Es
Os DSCs por nós produzidos não serão apresentados no presente
artigo, sendo nosso foco seus indicadores que apontam respostas
para a primeira questão da pesquisa: Quais os valores emergem, a
partir do relato da experiência, para uma parcela de seus autores?
A partir dos 12 DSCs, reunimos 3 expressões de Ancoragem: A re-
lação com o lugar, as experiências sociais e a perspectiva do indiví-
duo – subjetividades.
Posteriormente, agregamos a essa análise a perspectiva de Mikhail
Bakhtin, a qual se mostrou eficaz para apontar os avessos dos dis-
cursos e desvendar sentidos das falas dos sujeitos da pesquisa. A
perspectiva de Bakhtin será abordada em uma etapa subsequente à
construção e análise do Discurso do Sujeito Coletivo, na Discussão
do presente estudo.
Discussão
Esta pesquisa obteve depoimentos, majoritariamente de mulheres,
que demonstraram interesse e facilidade de produzir uma autor-
reflexão sobre o fazer artístico e suas imbricações com a vida. Por
outro lado, por razões diversas, os jovens não se dispuseram a ofe-
recer depoimentos, exceto um, que recebeu um apoio em dinheiro
do projeto para mobilizar os demais, embora não com sucesso.
O quadro a seguir indica os valores que predominaram nos depoi-
mentos, segundo as ideias centrais dos DSCs.
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Observamos que, para a maioria dos participantes do grupo em
questão (11/19), houve a valorização do trabalho realizado por meio
da consolidação de relações de afeto pelo lugar. Foi destacada por
cerca da metade dos participantes a possibilidade de reconhe-
cimento e de visibilidade do projeto em um contexto social mais
amplo. Essa proporção também se refere à valorização da relação
de prazer e gratidão pela concretização dessa experiência (9/19).
Em uma proporção menor, foi destacado por alguns participantes
o valor terapêutico e a conquista de um grau maior de consciên-
cia sobre si a partir da oportunidade de dedicação a esse trabalho
artístico. No que toca à formação desses sujeitos, foi valorizado
por cerca de um terço dos discursos o aprendizado e a apropriação
da técnica artística. Houve também a percepção de que essa ação
coletiva gerou uma marca significativa como parte de sua história
pessoal,
auxiliou na construção de laços de amizade e, em alguns ca-
sos, de laços com a própria família. Vale ressaltar que apenas 3 entre
os 19 depoentes destacaram aspectos pessoais da criação de suas
obras, o que parece indicar que os sentimentos de participação cole-
tiva, de afeto, da valorização do lugar e dos encontros na construção
das obras predominam sobre a valorização da criação individual.
A discussão desses resultados nos remetem à segunda pergunta da
Quadro de valores que predominaram nos DSC, segundo ideias-centrais
Fonte: Dados obtidos com o presente estudo - 2019-2021.
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pesquisa: a partir das teorias de Bakhtin, o que a sistematização
desses valores revela sobre a sociedade em que vivemos?
Para além das aparências de cortesia entre pares e do prazer ime-
diato que esses depoimentos podem indicar, buscamos um sentido
social para esses discursos. Esse sentido seria relativo à interpre-
tação das falas obtidas considerando seu potencial representativo
de um contexto social do período histórico e espaço geográfico
em que essa obra de arte coletiva foi realizada. Assim, buscamos
compreender, por meio das falas desses participantes, os aspectos
revelados bem como os ocultos que se referem a uma organização
social mais ampla que produz vivências em um dado momento his-
tórico e que fala por meio dos valores expressos pelos participantes
a partir de suas criações artísticas. Resumimos a seguir conceitos e
técnicas desenvolvidas a partir de Bakhtin como ferramentas para
a discussão dos resultados do presente estudo, descortinando os
sentidos e situando-os no contexto de uma linguagem que fala da
vida e com ela dialoga, descrita a seguir.
Bakhtin, em seus estudos no campo da linguística, teceu uma teoria
voltada para a importância dos enunciados nas formas orais e nos
registros escritos e, de forma mais abrangente, a identificação de
enunciados e de seus “avessos”, ou contra discursos, como uma
forma de leitura de mundo.
Para Bakhtin, a amplitude do enunciado e sua correlação com a
história e ideologia vigente confirmam o vínculo existente entre a
língua e a vida. “A língua penetra na vida através dos enunciados
concretos que a realizam, e é também através dos enunciados con-
cretos que a vida penetra na língua” (Bakhin,1997, p. 284).
Os indivíduos defendem em falas e textos uma posição gerada na
sociedade em que vivem. Apesar da fala sair de um indivíduo, ela
representa uma ideologia formada socialmente, o discurso sempre
apresenta, implicitamente ou explicitamente, a arena em que lutam
estes pontos de vista em oposição. O autor reforça que “na realida-
de, o ato de fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação,
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não pode de forma alguma ser considerado como individual no sen-
tido estrito do termo; não pode ser explicado a partir das condições
psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza
social” (Bakhtin, 2006, p. 111). Dessa forma, embora cada enunciado
seja determinado de forma imediata pelas pessoas que produzem
os atos de fala, os estratos mais profundos da sua estrutura são
determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a
que está submetido o locutor.
Nos depoimentos coletados, compreendemos os discursos não
como um ato passivo, mas como uma réplica ativa, um diálogo
permanente e tensionado, mesmo que oculto. Bakhtin inclui toda a
fala em uma cadeia de pensamentos ligados entre si em um contex-
to histórico e social, como que conectada por fios a pensamentos
que a completam ou que a questionam, tensionam ou negam, não
estando nunca isolada.
Ao tomarmos a teoria de Bakhtin como referência, sabemos agora
que podemos pressupor, para além do sentido das expressões pro-
duzidas, os discursos ocultos dessas falas, o avesso do seu conte-
údo que aponta o contexto social em que essas experiências foram
produzidas, situadas em um tempo e espaços definidos. Com base
neste raciocínio, construímos o quadro que se segue.
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Se considerarmos as possibilidades de avessos para esses enuncia-
dos, encontraremos os contrastes que expressam estas contradições.
Quadro dos grupos de enunciados que reúnem atributos das experiências nas oficinas de execução dos mosaicos e
“avessos” dos enunciados, segundo as categorias indivíduo, social e lugar.
Fonte: Dados obtidos com o presente estudo - 2019-2021.
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Se os enunciados do quadro acima apontam valores positivos diver-
sos, encontramos como avesso uma sociedade em que o fazer artís-
tico é carregado de sofrimento, competição, desagregação e frag-
mentação de processos. A valorização da autoria individual focada
apenas para o prestígio pessoal é o contexto predominante da nossa
sociedade, impossibilitando que o processo da criação seja incor-
porado individualmente e coletivamente, valorizado como acrésci-
mo vital. São casos em que o objetivo do fazer artístico é apenas o
resultado final, ou seja, o prestígio alcançado com a autoria da obra.
Essas situações tendem a provocar sentimentos de ansiedade que
se caracterizam por uma ausência de conexão da arte com a vida,
processos que desintegram sujeitos que não se entregam à recons-
trução diária e contínua, gerando impermanência, descontinuidade e
desvalorizando o passado como uma raiz para a construção do pre-
sente.
Ao reunir nas oficinas uma pluralidade de pessoas, no sentido de gê-
nero, condições socioeconômicas, idade, e experiências artísticas
diferentes, abriu-se um espaço de experiência inusitada, pois os en-
contros sociais geralmente separam estas categorias. Grupos fami-
liares que tiveram oportunidades de fazer as oficinas juntos tiveram
trocas diferentes das que ocorrem em casa, e daí emergem possi-
bilidades desconhecidas de interação. Mesmo estando separados,
os diversos grupos interagiam para trocar materiais e outras ações
necessárias nas práticas da oficina.
Essa experiência de socialidade carrega uma riqueza imensurável, é
a ideia do interstício, não está dentro do programado, situações de
encontros não convencionais, de uma temática ou forma nova que
acaba provocando outras formas de sociabilidade e de territorialida-
de, que podemos incluir como uma proposta de estética relacional.
Em uma sociedade na qual pessoas não se apropriam da história
local, há uma tendência à desvalorização do patrimônio material e
imaterial construído. Uma sociedade desagregada produz uma cida-
de inóspita, e vice versa, dividida em espaços visíveis – vendáveis,
turísticos, comerciais e, por isso, conservados –, e espaços invisíveis,
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destratados, onde habita e circula uma grande massa da população,
mas não são considerados desfrutáveis e apresentáveis.
Nos lugares “visíveis” habita uma elite que pode pagar os custos de
morar e circular como beneficiário, enquanto a massa trabalhadora
circula para manter a conservação e o funcionamento desses espa-
ços. Nos espaços invisíveis, reside essa mesma massa trabalhadora.
Fora esses moradores, boa parte da população desconhece os becos
e ruelas da cidade invisível, que não faz parte da cartografia social
dos que moram na cidade formal.
Em cidades como Niterói, considerando mais especificamente o
bairro de Charitas, o visível e o invisível estão muito próximos, muros
e grades, ruelas e ruas bem mantidas dividem estas categorias. A
Escadaria de Mosaico se propõe a ser um caminho de arte pública
para ligar a cidade formal à cidade informal e invisível, abrindo possi-
bilidades de novas relações.
Nos depoimentos coletados, o desejo de reconhecimento do pa-
trimônio, da visibilidade do projeto e da perenidade da arte pública
foram externados como valores significativos diante da notícia da
possibilidade da obra de recuperação da escadaria após seu tomba-
mento como bem cultural.
A Escadaria de Mosaico já existe há 18 anos e ainda não foi restau-
rada e, mesmo sendo um Patrimônio Tombado pelo município, tem
uma atenção insuficiente do poder público no que tange sua con-
servação – varrição, desentupimento de bueiros, poda de árvores,
cuidado com os canteiros e iluminação. Quanto à sua divulgação,
está no website da FAN - Fundação de Arte de Niterói, na aba de
Patrimônio DePac, por estar no rol dos patrimônios tombados ht-
tps://www.culturaniteroi.com.br/blog/depac/5274 e no website da
Neltur - Niterói Empresa de Lazer e Turismo, na aba do que fazer
ao ar livre https://visit.niteroi.br/projeto-mosaico-do-lugar-escada-
ria-de-charitas/ .Quanto às redes sociais institucionais e sinalização
urbana, não há divulgação.
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Ser contemplada no Edital 07/2019 da Secretaria das Culturas e ob-
ter o recurso da Emenda parlamentar para sua recuperação, poderia
ter sido o ponto de partida para uma nova fase de reconhecimento.
Com recurso da Emenda Parlamentar desviado para as justas emer-
gências da saúde pública, a proposta de divulgar uma obra que não
foi recuperada ficou prejudicada. Na ocasião da implantação da Pla-
ca Informativa em 2022, houve a recuperação da metade do guarda-
-corpo da escadaria, sendo abandonada a obra antes da finalização
dos serviços prometidos.
Quanto aos novos moradores do bairro, o não retorno da pesquisa
de campo realizada com as 1225 cartas para os edifícios e casas da
parte baixa e “nobre” do bairro revela que, além da justificativa da
pandemia, há barreiras para a viabilização da ligação entre a cida-
de visível e invisível na forma da Escadaria de Mosaico. Iniciamos a
pesquisa pelos síndicos e apenas 4 dos 25 síndicos contatados re-
tornaram à comunicação, mesmo considerando sua função de porta
voz de um grupo de condôminos. Esse silêncio nos aponta o sintoma
de um vínculo muito precário dos novos moradores com seu local
de moradia e seus arredores invisíveis. O resultado da pesquisa por
meio das cartas corrobora os “avessos” dos depoimentos que cole-
tamos.
Trazendo elementos para situar essa obra no contexto da arte pú-
blica, podemos citar lugares reconhecidos pela mídia, como a Es-
cadaria Selarón, situada no Rio de Janeiro, cidade vizinha, no bairro
da Lapa, obra conhecida por grande parte dos niteroienses. Várias
enquetes espontâneas de admiradores da Escadaria de Charitas fo-
ram realizadas no Facebook, recebendo dezenas de publicações re-
latando desconhecer o local e perguntando se é a escadaria do Rio.
Considerações finais
Nestes 20 anos de projeto (2004-2024), diversas pessoas foram
afetadas, seja participando, seja conhecendo o local presencialmen-
te ou virtualmente, conhecendo a história no website ou nos artigos
publicados, por meio de conversas informais ou comunicações em
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congresso. Na atualidade, mergulhados no frenesi da comunicação
instantânea, corremos o risco de crer que a invisibilidade social é si-
nônimo de inexistência, diminuindo ou apagando o que foi material-
mente erguido ou vivenciado.
A Escadaria de Mosaico não foi plenamente incorporada pelo poder
público, assumindo os cuidados necessários para que o patrimônio
seja valorizado – executando a obra de restauração, programando a
manutenção e divulgando como lugar para ser conhecido, inserin-
do-a nos roteiros turísticos. Esta relação de cuidados com os patri-
mônios materiais e imateriais desvela a forma como o poder público
interage com parte da cultura local. Não se “leva” cultura para uma
sociedade, as manifestações emergem e vingam a partir de diver-
sos fatores e necessitam do fomento através de políticas culturais
contínuas, políticas de Estado que garantam não só o surgimento
de novos projetos, mas, principalmente, a continuidade das ações
individuais e coletivas já implantadas.
Se o investimento na “cidade mercadoria” é uma realidade consen-
tida para Niterói estar inserida no circuito do turismo, em uma dis-
puta assimétrica com o Rio de Janeiro, reconhecido mundialmente,
o investimento paralelo na cultura local trará as nuances genuínas
do lugar. Ao apresentar os arranjos locais e suas singularidades, Ni-
terói sai da relação comparativa com o Rio e pode, culturalmente,
brilhar como cidade vizinha. São essas singularidades que marcam
o visitante e estabelecem com seus moradores relações de identi-
dade, empoderamento e pertencimento à cidade. Recife e Olinda,
em Pernambuco, são cidades com tamanhos desproporcionais, mas
seus pesos simbólicos são parecidos, e esse capital simbólico é con-
quistado na produção cultural do lugar, através de fomento e reco-
nhecimento.
Se o planejamento orçamentário de Niterói considerar o investimen-
to contínuo na produção cultural local como fundamental, princi-
palmente nas artes públicas, estará não só fomentando as possibi-
lidades almejadas de cidade turística ao lado do Rio, mas também
ampliando a relação de pertencimento da população, uma qualidade
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que se desdobra na economia, que sempre é utilizada como aferidor
de sucesso. Ou seja, além de todos os ganhos sociais, artísticos, in-
dividuais e coletivos, o capital simbólico adquirido pela cidade e sua
população tem potencial para revigorar a economia local por meio
do fortalecimento da cultura.
Financiamento
Fonte financiadora da pesquisa: Edital 07/2019 - Chamada Pública
de Fomento às Artes. SMC - Secretaria Municipal das Culturas, FAN
- Fundação de Artes de Niterói e SIMFIC - Superintendência do Sis-
tema Municipal de Financiamento à Cultura. Valor total do recurso:
R$ 23.320,00. Valor investido na pesquisa: R$5.476,00.
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Referências
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