RESUMO
Neste texto, aborda-se a permanência e a destruição de monumen-
tos, no intuito de discutir a participação das obras na construção e na
reinvenção de territorialidades e de identidades. No Brasil, o debate
sobre a permanência e a colonialidade dos monumentos é incipiente,
por vezes, inexistente. Em Salvador, primeira capital do Brasil, as obras
constituem parte da paisagem urbana, mas, na maioria dos casos, não
participam diretamente na vida cotidiana. De forma geral, fica eviden-
te que os monumentos comemorativos não têm os mesmos valores e
significados que tinham no passado, quando não são completamente
esquecidos. Na ausência de cultivo da memória e de um debate sobre
a função social das obras, a relação com os monumentos é frequen-
temente mediada por diversos níveis de apatia, ignorância e auto-
ritarismo do Estado. No artigo busca-se analisar as transformações
da relação com os monumentos em um espaço público em disputa,
destacando-se os deslocamentos de sentido e a (im)permanência dos
monumentos naturais e históricos.
Palavras-chave: monumento, memória, temporalidade, materialidade
(Im)permanências: memória e esquecimento
no espaço público
(Im)Permanence: Memory and Forgetting in the Public Space
(Im)Permanencias: memoria y olvido en el espacio público
Ines Linke
Universidade Federal da Bahia, Brasil
arte: lugar : cidade | volume 1, número 1, maio/out. 2024 | doi: 10.22409/arte.lugar.cidade.v1i1.62466 59
RESUMEN
Este texto aborda la permanencia y destrucción de monumentos, con
el objetivo de discutir la participación de las obras en la construcción
y reinvención de territorialidades e identidades. En Brasil, el debate so-
bre la permanencia y colonialidad de los monumentos es incipiente,
a veces inexistente. En Salvador, la primera capital de Brasil, los mo-
numentos forman parte del paisaje urbano, pero en la mayoría de los
casos no desempeñan un papel directo en la vida cotidiana. En general,
está claro que los monumentos conmemorativos no tienen el mismo
valor y significado que en el pasado, cuando no están completamente
olvidados. A falta de un cultivo de la memoria y de un debate sobre la
función social de las obras, la relación con los monumentos suele estar
mediatizada por diversos niveles de apatía, ignorancia y autoritarismo
por parte del Estado. El artículo pretende analizar las transformaciones
en la relación con los monumentos en un espacio público en dispu-
ta, destacando los cambios de significado y la (im)permanencia de los
monumentos naturales e históricos.
Palabras clave: monumento, memoria, temporalidad, materialidad
ABSTRACT
This text deals with the permanence and destruction of monuments
in order to discuss their role in the construction and reinvention of
territorialities and identities. In Brazil, the debate on the permanence
and coloniality of monuments is incipient, sometimes non-existent. In
Salvador, Brazil’s first capital, monuments are part of the urban landsca-
pe, but in most situations, they don’t play a direct role in everyday life.
In general, it is clear that commemorative monuments do not have the
same values and meanings as they did in the past, when they are not
completely forgotten. In the absence of the cultivation of memory and
of a debate on the social function of the works, the relationship with
the monuments is often mediated by various levels of apathy, ignorance
and authoritarianism on the part of the state. The article seeks to analy-
ze the transformations in the relationship with monuments in a disputed
public space, highlighting the shifts in meaning and the (im)permanence
of natural and historical monuments.
Keywords: monument, memory, temporality, materiality
Ines Linke é artista, pesquisadora e curadora. Graduada em artes pela Universidade de Iowa, mestre e doutora
em Artes pela EBA/UFMG, é Professora Associada da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia.
Integra o thislandyourland e coordena o grupo de pesquisa Urbanidades e o Intervalo - fórum de arte.
https://orcid.org/0000-0001-6913-5294 | ineslinke@yahoo.com
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Atribuição - Não Comercial 4.0 Internacional (CC-BY-NC)
© 2024 Ines Linke
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1. Bendegó
A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tem-
po homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”.
Walter Benjamin, 1940.
Em setembro de 2018, um incêndio de grandes proporções no
Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro, consumiu valiosos
acervos do Brasil e da América Latina. Em seu conjunto de objetos
e documentos constavam, entre outros objetos, uma coleção de
arte egípcia, vestígios materiais de Herculano e Pompéia, além de
inúmeros registros históricos de povos e culturas, destruídos pelo
fogo. Entretanto, a Pedra Bendegó, elemento composto de ferro/
níquel, manteve-se intacta. As imagens veiculadas pela mídia, pós-
-incêndio, focaram no “sobrevivente brasileiro”, estabelecendo uma
estranha ambiguidade entre patrimônio nacional, memória e (im)
permanência que pretendo desenvolver a partir da reflexão sobre
os fluxos e deslocamentos, da temporalidade de materiais e de
objetos, a partir de monumentos naturais e humanos constituídos
de pedra.
Marc Ferrez, 15º de trabalho - Transferência do Meteorito de Bendegó, 1887.
(Fonte: Instituto Moreira Salles)
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As narrativas em torno do sobrevivente enquadraram o meteorito
por meio de ações e de feitos humanos principiados com o desco-
brimento da pedra no sertão baiano em 1784, passando por momen-
tos de esquecimento e por recordações1, assim como por tentativa
fracassada de remoção e, finalmente, com o transporte bem suce-
dido para o Rio de Janeiro em 1888. Todavia, pouco se falou sobre
seu significado sociocultural na Bahia. O que ficou em seu local?
Conforme relatos históricos, em um primeiro momento, no local da
queda e da descoberta do meteoro edificou-se um pequeno obe-
lisco denominado “D. Pedro II”, homenageando a família imperial, o
Ministro da Agricultura Rodrigo Silva, o Visconde de Paranaguá e os
membros da Comissão de Transporte do Bendegó. Em um segundo
instante, um marco memorial aos serviços de engenharia da logística
de transporte também foi erguido na Estação Ferroviária de Jacu-
rici. No translado da rocha até a capital, projetavam-se interesses
políticos e internacionais, como, também, a possibilidade de contri-
buir com o conhecimento científico. Sua remoção contou com uma
solenidade cívica, proveniente de ato do Estado que celebrava os
avanços tecnológicos necessários ao transporte do objeto à capital,
onde a pedra foi cortada2 e recebida em grande estilo.
No interior da Bahia, o meteorito tornou-se uma referência para a
população local, um monumento natural que se inseriu na memória
social enquanto elemento responsável pelo equilíbrio entre os ele-
mentos da natureza. Os obeliscos não compensaram sua ausência
energética, enquanto as reproduções destinadas aos distintos es-
paços institucionais representam-na apenas em suas características
formais, sem, contudo, conferir-lhe ou transferir-lhe poderes atribu-
ídos ao original3.
Nas informações veiculadas em diversos locais e distintos momen-
tos históricos da pedra, pouco se falou em outras temporalidades,
modos de concebê-la fora do contexto nacional ou mesmo de uma
perspectiva estritamente antropocêntrica. Raramente se enfatizou
sua formação geológica, sua criação e viagem por bilhões de anos
no sistema solar, assim como sua entrada na atmosfera, vindo a se
chocar chocou com a Terra. Na perspectiva do sistema solar, suas
1 Estudos pontuais
foram realizados por cientis-
tas e naturalistas, a exemplo
de Aristides Franklin Mornay,
William Hyde Wollaston, Carl
Friedrich Philipp Von Martius e
Johann Baptist Von Spix, que
viajaram pelo Brasil.
2 Um pedaço de
60 kg foi cortado, dividido e
doado a instituições nacionais e
estrangeiras.
.
3 Foram confec-
cionadas quatro réplicas da
pedra. Em 1889, uma réplica,
que se encontra hoje no Palais
de la Découverte, foi exposta
na Exposição Universal de
Paris. As outras três cópias se
encontram na Bahia (no Museu
do Sertão em Monte Santo, no
Museu Geológico da Bahia em
Salvador, e no Museu Antares
de Ciência e Tecnologia, em
Feira de Santana).
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histórias, a terrestre/humana/brasileira, se tornam minúsculas, quiçá
pequenas como os monumentos que formam parcialmente uma es-
pécie de programa compensatório, um frágil projeto de construção
da memória histórica.
2. A memória dos monumentos
Os obeliscos do interior da Bahia se inscrevem em uma longa tradi-
ção de monumentos, estelas, monólitos, obeliscos e colunas que se
tornaram categorias artísticas difundidas por processos econômi-
cas, políticas e culturais, responsáveis pela manutenção, redução e
apagamento de determinados aspectos e significados dos objetos.
No Egito antigo, as grandes formas arquitetônicas, além de apon-
tarem para o céu, se sobressaiam das existentes até então. Eram
monólitos de granito, esculpidos nas pedreiras e transportados por
caminhos fluviais – semelhante ao meteorito brasileiro – e foram
Antonio Beato, Karnak, 18--?. (Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira)
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associados a crenças míticas. Acredita-se que, por sua verticalidade
e materialidade, possuíssem a capacidade de propiciar uma cone-
xão com o divino, estabelecendo no imaginário coletivo a existência
de um campo energético que auxiliava na proteção, na defesa, além
de servirem como instrumentos astronômicos.
Quando, por volta de 30 a.C.4, os romanos tomaram controle do
Egito, se iniciaram as pilhagens e apropriações do patrimônio cultu-
ral e econômico egípcio; no novo sítio, os artefatos saqueadas nas
guerras simbolizaram conquista, prosperidade, estabilidade, poder
e paz. Neste contexto de dominação e de demonstração de poder,
os elementos eram instalados em espaços públicos, formando um
conjunto artístico que visava engrandecer e embelezar a cidade. O
significado das colunas foram simplificados, fazendo com que per-
dessem suas funções astronômicas e protetivas5, antes vinculadas
ao lócus da sua instalação específica e ao posicionamento em pares
nas laterais das portas principais dos templos. Além de deslocarem
inúmeros objetos6, os colonizadores também encomendaram novos
obeliscos que replicavam as características dos antigos monumen-
tos em granitos e mármores extraídos de territórios romanos, subju-
gados, ou com alguma relação econômica com o Império Romano.
Os elementos realocados eram dispostos em contextos espaciais
temporais e políticos outros que, conforme Swetnam-Burland, con-
feriam outra camada de significado ao monumento.
O obelisco que se encontra hoje na Piazza Montecitorio, em
Roma, colocado ali pelo papa Pio VI em 1792, tinha duas “vidas”
anteriores. Extraído em Aswan, Egito, foi derrubado no Nilo e
erigido em Heliópolis por Psametik II (r. 594-589 a.C.). Quase
seiscentos anos depois, foi enviado para Roma e fixado no
Campo de Marte em 10 a.C. por Augusto. (Swentnam-Burland,
2010)
Os obeliscos (re)acomodados constituem sentidos outros a partir
dos diferentes contextos históricos e políticos; eles são ressignifi-
cados desde sua apreensão e deslocamento, e apropriados quando
da sua instalação em outros espaços, tempos e culturas. Quais os
6 Estima-se que
há mais do que o dobro de
obeliscos que foram apreendi-
dos pelo Império Romano do
que aqueles permaneceram no
Egito. Muitos obeliscos foram
desmontados e/ou enviados
para diferentes locais
5 Hipóteses de Pa-
tricia Blackwell Gary e Richard
Talcott.
4 A Mauritânia, um
território no norte do continen-
te africano, tornou-se um “reino
cliente” do Império Romano
e, posteriormente, província,
colocando a região do Egito
sob controle de um governador
imperial.
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critérios utilizados pelos romanos para se apropriarem dos obje-
tos encontrados na África? Em seus novos locais, quais foram as
memórias históricas vinculadas aos objetos? As cópias eram falsos
obeliscos? Qual o valor das réplicas romanas?
No Renascimento europeu, um novo interesse nos símbolos da
antiguidade emergiu. Nele, os obeliscos da energia protetora e da
conquista territorial se tornaram símbolos de uma “Nova Ordem
Mundial”, identificada. por um lado, com o bom gosto do “novo
homem” e a ideia de grandiosidade e eternidade do ideário político
moderno e, por outro, como continuidade de correntes mágicas e
crenças primitivas cultivadas por grupos e sociedades7. Neste perí-
odo, o interesse pela cultura egípcia antiga se tornou mais presen-
te em referências artísticas, edifícios públicos, monumentos e na
arte funerária, a partir da busca por uma nova estética destinada à
República, instaurada pós-Revolução Francesa, e como consequên-
cia da campanha de Napoleão Bonaparte no Egito e na Síria (1798-
1801), que protegia interesses econômicos e políticos, enquanto
estabelecia empreendimentos científicos que fundamentam o
campo da egiptologia.
Os componentes culturais pilhados durante as campanhas militares
se tornaram símbolos de uma suposta origem da cultura ocidental.
Os elementos materiais e formais dos monólitos foram traduzi-
dos para compor monumentos que celebrassem as conquistas da
humanidade, refletindo ideias de feitos de grandeza genéricos por
meio do uso de uma escala monumental de continuidade, a partir
da escolha de materiais e valores estéticos decorrentes de princí-
pios da pureza geométrica e da harmonia do conjunto. A instalação
em áreas externas, especialmente em grandes praças e espaços
públicos, garantia-lhes acessibilidade e visibilidade, tornava eles
públicos, uma arte para o povo, símbolo da democracia. Quando os
franceses foram derrotados pelos ingleses no Egito em 1801, mui-
tas antiguidades provenientes das campanhas militares mudaram
de pátria. Como interpretar os trânsitos desses objetos valorizados
como tesouros nacionais? Os objetos existem fora de sua história
social e política, de seus contextos naturais e culturais?
7 A exemplo da
Maçonaria.
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No mundo ocidental, os obeliscos, como outros monumentos dis-
postos nos espaços públicos, constituem construções temporais,
montagens ficcionais (Le Goff, 1990, p. 535), que fundem a encena-
ção do poder político e se tornam os principais sítios da produção
simbólica de poder conferido ao Estado. Eles fomentam um senso
de realidade coletiva, uma organização emblemática que reinventa
os sentidos do passado e promove os valores do sistema vigente.
Os monumentos no século XIX construíram um patrimônio artístico
vinculado à ideia de memória histórica de uma nação e dissemina-
ram os aspectos simbólicos que dialogam com as reinterpretações
dos obeliscos anteriores. O que se perpetua? Podemos pensar o
Bendegó como monumento histórico?
3. Um monumento colonial
A grande luta entre a vontade do espírito e a necessidade da
natureza, o balanço entre a alma que aspira à elevação e a
gravidade que tende a descer [...].
Georg Simmel, 1907.
Apesar das distâncias geográfica e temporal dos obeliscos do Egito
de Psametik, da Roma de Augusto e da França de Napoleão, os
monumentos erigidos no contexto colonial das Américas carregam
o legado dos significados relacionais extra-artísticos e fatores que
extrapolam a temporalidade do ser humano. Os objetos estão vin-
culados às suas encarnações anteriores, aos projetos políticos colo-
niais e a um poder material e simbólico sobrevivente. Entretanto, as
colunas e formas piramidais, erguidas em países e cidades do Novo
Mundo, constituem também evidências de suas próprias histórias e
que se manifestam em novas constelações, produzindo processos
de transculturação.
Ao longo da história colonial, as cidades brasileiras estabeleceram
diferentes relações com os diversos usos e funções dos monu-
mentos nos espaços públicos, compreendidos como espaços não
edificados, livres e selvagens, de desordem e conflito ou como es-
paços qualificantes e civilizatórios. No Brasil, os monumentos foram
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atores em destaque nos espetáculos da Igreja e nas festividades do
Estado, semelhante ao ocorrido na Europa, e de igual forma assimi-
lada na transmissão das formas saqueadas e incorporadas do con-
tinente africano. Equipamentos/monumentos foram erguidos como
fatores essenciais à experiência e à formação das territorialidades
nas cidades. Mercados, praças e parques constituíam palcos para
as mais diversas atividades sociais, comerciais, religiosas, políticas
e militares. Entre os seus múltiplos usos e funções, os espaços pú-
blicos eram ligados à exibição pública das insígnias do poder, mas,
também, ao espaços de encontro, de trocas e de comunicação,
fatores essenciais à formação de uma memória social.
Na história brasileira, os planos de modernização e de transfor-
mação das cidades se concretizaram de forma mais efetiva com
o surgimento de avenidas amplas, bulevares, jardins e parques, a
exemplo do Jardim Público do Rio de Janeiro, decorado por escul-
turas e monumentos e, entre eles, dois obeliscos de granito com
medalhões em pedra lioz. Esses lugares anteciparam novos hábitos
de acordo com os modelos civilizatórios do Velho Mundo; todavia,
criou-se um espaço controlado, destinado a eventos e comemora-
ções oficiais do Estado.
Franz Joseph Frühbeck, Passeio Público, 1818. (Fonte: Instituto Moreira Salles)
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Em Salvador, em 1815, teve início a construção de um obelisco
feito em pedra de lioz8 portuguesa para comemorar a passagem
do príncipe Dom João VI em Salvador, Bahia no ano 1808, quando
fugia das ameaças francesas e pressões inglesas. Durante sua curta
estadia, assinou a Carta Régia de 28 de janeiro de 1808, que insti-
tuiu a abertura dos portos brasileiros às nações amigas, celebrando
importante marco econômico da internacionalização do mercado
brasileiro, bem como da ruptura com o pacto colonial, que garantia
exclusividade aos comerciantes portugueses nas transações dos
produtos demandados pela colônia, colaborando neste conjunto
com as pressões para a proclamação da independência.
Castro y Ordoñez, O Obelisco no Passeio Público da Bahia, 1862. (Fonte: Biblioteca Digital Luso-Brasileira)
8 O parque foi ins-
pirado no Passeio Público de
Lisboa e na construção dos jar-
dins do Palácio Real de Queluz,
construído entre 1779 e 1783.
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O obelisco, custeado pela Câmara, constituía um gesto de gratidão
ao príncipe. O projeto estético, que dialogou com as tendências
e modelos franceses, não foi questionado, apesar da oposição
política entre França e Portugal. O monumento de 12 metros de
altura, com inscrição comemorativa em letra dourada9, foi desti-
nado ao Passeio Público, um lugar de destaque, um novo espaço
moderno frequentado pela alta sociedade soteropolitana, decorado
com estátuas em mármore, plantas ornamentais, árvores frutífe-
ras – cenário perfeito para a contemplação da banda marcial e para
os passeios dominicais. A topografia cedia visibilidade ao marco
simbólico, que associava um fato local ao estilo neoclássico, tendo
se tornado uma referência para os monumentos comemorativos
e celebrações da nova ordem mundial. O obelisco também nos
relembra o pacto econômico em um mundo globalizado em fluxos
e intercâmbios. O “Obelisco a Dom João” define simbolicamente o
espaço da cidade, demarcando um território de identidade oficial.
Hoje, o monumento localizado na praça da Aclamação, em frente
ao Forte de São Pedro, se encontra em estado de abandono, no
meio de um jardim desolado onde as palmeiras imperiais atestam as
ambições de outras épocas.
A derrota da monarquia constitucional parlamentarista e o bani-
mento da Família Imperial (1889) não significaram o fim dos obelis-
cos. A República brasileira, como sua antecessora, também adotou
os monumentos antigos e ergueu novas formas para delimitar
tanto os acontecimentos históricos como para espacializar ações
e eventos considerados importantes. As ocasiões comemorativas
culminaram em uma proliferação de obeliscos genéricos, agora com
modos construtivos de menor custo e de construção mais célere,
que serviam de suportes a inscrições, consolidando a recepção
generalizada dos obeliscos no Brasil. O que estamos vendo? Como
compreender os fluxos materiais e simbólicos nos diversos contex-
tos? Quais elementos tornam os monumentos artísticos ou públi-
cos? O que acontece quando são esquecidos pelo poder público e
abandonados pela memória social?
9 JOANNI - PRINC.
REG. P. F. P. P. - HUC. PRIMUM.
APPULSO - XI CAL. FEBRUAR
- A.D.M C C C V I I I - Bahia Se-
natus - Monumentum - Pocuit
- M D C C C X V.
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Em Salvador, primeira capital do Brasil, monumentos públicos,
como estátuas e obeliscos, constituem parte da paisagem urbana,
mas, na maioria dos casos, não participam diretamente na vida co-
tidiana. De forma geral, fica evidente que a simbologia das homena-
gens não tem valor e/ou significado para a população. Na ausência
de cultivo da memória e de um debate sobre a função politica das
obras, a relação com os monumentos é frequentemente mediada
por diversos níveis de apatia, de ignorância e de autoritarismo do
Estado. Embora o poder público tenha empreendido uma política
sistemática de criação e reabilitação de parques e jardins públicos
em áreas centrais, a requalificação e manutenção de debates sobre
o legado dos monumentos ainda são incipientes. Enquanto deter-
minados espaços chegam a desempenhar a função de identificação
e de destaque no contexto urbano, outros são simplesmente es-
quecidos, iniciando um processo (des)territorialização do patrimô-
nio artístico cultural, que pode conduzir esses espaços à destruição
e à ruína.
4. Monumentos em trânsito
Eu vos saúdo ruínas solitárias, túmulos santos, paredes silen-
ciosas. Eu vos invoco! [...] Quantas lições úteis, reflexões fortes
ou tocantes, ofereceis ao espírito que sabe vos consultar!
Constantin François C. Volney, 1792.
Ao discutir a tradição do monumento, Giulio Argan destaca o
aspecto alegórico que materializa o discurso demonstrativo de va-
lores históricos e ideológicos, uma retórica da persuasão que passa
pela figuração ou pela forma. Assim, monumentos e obras de arte
que expressam valores históricos, denominados “públicos”, são indi-
visíveis da esfera político-econômica. Eles destinam-se a produzir o
real a partir da produção e da reprodução dos valores dos sistemas
vigentes, sendo as imagens implantadas no espaço público cons-
truções no “núcleo de máximo prestígio no tecido urbano”, perpe-
tuando a tradição clássica do monumento.
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No Brasil Colonial, a materialização dos monumentos é oriunda
de uma memória histórica intencionalmente construída. Sua fun-
ção, independentemente da dimensão, conduz à perpetuação de
narrativas coloniais, imperiais e republicanas, a partir da seleção
de acontecimentos projetados para serem lembrados no futuro.
Sua “existência” no Novo Mundo decorre de reencarnações líticas
monumentais, reencenando esculturas, bem como empregando
elementos que se inscrevem e se sobrepõe no espaço e no tempo.
Mas, como lidar com a memória do passado? Quais são os limites
das narrativas da tradição clássica? Qual o destino dos monumen-
tos em uma sociedade que anseia por um futuro melhor, sem culti-
var memórias (boas e/ou ruins) ou objetos do passado?
Atualmente, de forma geral, os monumentos e objetos perderam
a função de sítio principal da produção simbólica. As práticas da
sociedade de massa, da cultura urbana, da informação e das novas
mídias de comunicação apontam para a reordenação dos vínculos
com objetos, materiais e ambientes. Vivemos em um mundo de
informações visuais relativamente pobres, com visualidades ins-
tantâneas que influenciam nossa relação com objetos e imagens,
especialmente seu cultivo e sua interpretação como constituintes
do nosso ambiente e da nossa história. Nesse sentido, será melhor
esquecer, guardar ou destruir as coisas do passado? Podemos des-
tacar os objetos existentes e substituí-los por outros que achamos
mais interessantes?
Em 2004, o artista mexicano Damián Ortega realizou um trabalho
artístico retomando a discussão sobre monumentos, memória e
permanência por meio de um obelisco transportável, réplica de
um obelisco genérico, feito em fibra de vidro. À primeira vista,
uma grande agulha preta, apoiada em uma base metálica redonda
com rodas cobertas por grama, inserido em distintos contextos
espaço-temporais. A mobilidade do objeto, facilitada pela leveza
do material e pelas rodas, denuncia a suposta estabilidade e sua
permanência nos locais de produção e de instalação. O gramado ar-
tificial, assentado na base móvel do obelisco, representa a cobertu-
ra vegetal típica dos parques, praças e jardins; todavia, devido a seu
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formato, o trabalho fomentou opiniões expressas sobre o abandono
de obeliscos existentes e o descaso com os espaços públicos. A
partir da inserção do trabalho, pelo artista, em meio urbanos cen-
trais e localizações vinculadas ao campo das artes, o espectador
nota algumas transformações, com o deslocamento centros por
causas distintas (econômica, política etc.), assim como os trânsitos
e fluxos dos patrimônios culturais em um mundo globalizado.
A movimentação e a realocação do “obelisco móvel” em espaços
outros (des)(ter)ritorializa as circunstâncias, ao questionar pro-
priedades imanentes e a autonomia dos objetos. Desmonta a ideia
de monumentos estáticos, transmissores de valores eternos e
narrativas que assinalam identidades. A cor do monumento e a falta
de uma inscrição ou de menção a um fato comemorável produzem
uma alusão de ser o obelisco igualmente participante das políticas
de esquecimento, das estratégias de invisibilidade e de ocultamen-
to. Confecciona-se um objeto capaz de subverter nosso sentido de
realidade, assim como o de transformar nossa experiência. É possí-
vel imaginar uma cidade sem a visibilidade dos símbolos de poder?
Em distintos tempos e espaços, os deslocamentos de símbolos (re)
organizam territórios e espaços ao reivindicar singularidades de
significados relacionais. Sem relações sociais, eles (como as insti-
tuições e museus) tornam-se invisíveis, lugares sem memória que
se inscrevem em uma política do esquecimento que os transforma
em ruínas, escombros e cinzas.
5. Considerações sobre monumentos, lugares e pedras
Em sua forma primitiva e em ambientes naturais, as pedras e monó-
litos são reverenciados por diversas culturas. Em sua composição
geológica, são testemunhas silenciosas das histórias do mundo e
da vida humana. As pedras, em sua temporalidade e destino, parti-
cipam da construção da história das cidades, formando um palimp-
sesto geológico-politico que salvaguarda, em diversos sentidos, as
memórias.
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Os monumentos brasileiros pertencem a uma memória histórica,
situada em determinado contexto e atualizada continuamente por
relações políticas, econômicas e pelos aspetos relacionais que
fundamentam a memória social. Devido às descontinuidades e às
transformações, esses monumentos não possuem sentido estático,
não são marcadores permanentes de sentidos, pois, são reinventa-
dos a cada “agora”. Desse modo, a história dos monumentos passa
a ser um discurso não linear, constituído por fragmentos extraí-
dos de um discurso cronológico e causal, evidenciando distintos
processo históricos em que surgem imagens arcaicas, latentes e
ambíguas que esboçam as tentativas do ser humano em produzir/
criar/conceber formas significativas a partir da apropriação e da
reinvenção de formas provisórias de certezas temporárias (individu-
ais e coletivas).
O monumento, enquanto sujeito, tenta ocultar toda dimensão
de ambiguidade tendenciosa a escamotear sinais de violência e
de brutalidade. É possível tornar os preços materiais e humanos
visíveis a partir de um caminho ao contrário? Sugerimos um proce-
dimento capaz de reverter os processos da história, um caminho
que conceba uma arqueologia de seus elementos e que revele os
processos constitutivos em níveis e dimensões distintas. Ao remon-
tar os processos, partindo desde a localização, extração, desloca-
mento e transformação, ou seja, na contramão dos monumentos,
encontramos passivos ambientais, feridas que revelam aspectos da
ação criadora e destruidora humana. Caminhos estes capazes de
nos conduzir às minas produtoras de matérias primas para construir
os monumentos e as cidades, desde a antiguidade até o tempo
presente. Serão eles os monumentos de nossos tempos?
É possível que, no processo de sua decomposição, os escombros
dos monumentos se tornem sedimentos que formarão um pa-
limpsesto geológico carregado de memórias, uma composição
fragmentar, uma fusão de diversos elementos até então distantes
geograficamente, uma pedra silenciosa capaz de estabelecer uma
interação com espaços, culturas, tempos e os meteoritos.
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