RESUMO
O objetivo deste texto é refletir sobre as práticas conceitualistas, cen-
trando o foco na produção do artista pernambucano Paulo Bruscky
(1949), produzida entre os anos 1970, período dos temidos “Anos de
Chumbo”, e a década seguinte, quando os estertores do poder passa-
ram por afrouxamento. Com convicção e contumácia, o artista desen-
volveu um processo criativo experimental e transgressor, de forte viés
político, com o objetivo de desafiar e ironizar o regime militar. Bruscky
produziu uma arte de resistência, numa época em que muito poucos
mostraram tal ousadia; atuou como um “artivista”, em uma época em
que esse termo era praticamente desconhecido e a expressão “concei-
tualismos do Sul”, ainda não havia adquirido o significado atual. Entre-
tanto, apenas nas duas últimas décadas a produção do artista angariou
reconhecimento e visibilidade no circuito internacional.
Palavras-chave: Paulo Bruscky, arte experimental, arte e política, con-
ceitualismo, ativismo
O corpo do artista leva a arte à rua: as
performances e o ativismo político de Paulo
Bruscky em tempos de ditadura militar
The Artist’s Body Takes Art to the Street: Paulo Bruscky’s
Performances and Political Activism in Times of
Military Dictatorship
El cuerpo del artista lleva el arte a la calle: las performances de
Paulo Bruscky y el activismo político en tiempos de
dictadura mílitar
Almerinda da Silva Lopes
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
arte: lugar : cidade | volume 1, número 1, maio/out. 2024 | doi: 10.22409/arte.lugar.cidade.v1i1.62622 37
RESUMEN
El objetivo de este texto es reflexionar sobre las prácticas conceptu-
alistas, centrándose en la obra del artista pernambucano Paulo Brus-
cky (1949), producida entre la década de 1970, período de los temidos
“Años de Plomo”, y la década siguiente, cuando el control del poder se
aflojaba. Con convicción y contumacia, el artista desarrolló un proce-
so creativo experimental y transgresor, de fuerte sesgo político, con
el objetivo de desafiar e ironizar al régimen militar. Bruscky produjo
un arte de resistencia en una época en la que muy pocos mostraban
tal osadía; actuó como “artivista” en un momento en el que este tér-
mino era prácticamente desconocido y la expresión “conceptualismo
sureño” aún no había adquirido su significado actual. Sin embargo, sólo
en las dos últimas décadas la obra del artista ha ganado reconocimien-
to y visibilidad en el circuito internacional.
Palabras clave: Paulo Bruscky, arte experimental, arte y política, con-
ceptualismo, activismo
ABSTRACT
The objective of this text is to reflect on conceptualist practices, focu-
sing on the production of the Pernambuco artist Paulo Bruscky (1949),
produced between the 1970s, the period of the feared “Years of Lead”,
and the following decade, when the death throes of power have under-
gone relaxation. With conviction and determination, the artist develo-
ped an experimental and transgressive creative process, with a strong
political bias, with the aim of challenging and ironizing the military
regime. Bruscky produced an art of resistance, at a time when very few
showed such daring; He acted as an “artivist”, at a time when this term
was practically unknown and the expression “Southern conceptualism”
had not yet acquired its current meaning. However, only in the last two
decades has the artist’s production gained recognition and visibility on
the international circuit.
Keywords: Paulo Bruscky, experimental art, art and politics, conceptualism,
activism
Almerinda da Silva Lopes é Professora Titular da Universidade Federal do Espírito Santo, com atuação nos
cursos de Pós-Graduação em Artes (PPGA) e em História (PPGHIS). É Mestre em História da Arte pela Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (1989), Doutora em Comunicação e Semiótica na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1997), com bolsa-sanduíche na Universidade de Paris I. Realizou
pós-doutorado na Universiddade de Paris I (2002). É pesquisadora de Produtividade do CNPq (Nível 1B).
https://orcid.org/0000-0001-5075-7843 | almerindalopes579@gmail.com
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© 2024 Almerinda Lopes
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Introdução
O clima tenso gerado pelo sombrio regime antidemocrático em
vigor no Brasil, e na maioria dos países da América do Sul, não
impediu que a geração de jovens artistas que então emergia criasse
uma arte engajada, enquanto resistência e meio de contestação aos
imperativos da ditadura, o que gerou ameaça, perseguição, prisão
e destruição de obras. Recorrendo a ações inusitadas e a mate-
riais precários, esses jovens artistas desenvolveram propostas que
subverteram os preceitos e as linguagens convencionais, pondo fim
ao longo e persistente período de duração da abstração concretista
e a outras práticas vanguardistas, respaldadas no regime da visibili-
dade.
Na impossibilidade de discorrer, neste texto, sobre um número
mais expressivo de artistas e obras produzidas durante esse longo
período de exceção, a reflexão se concentra na produção do artista
pernambucano Paulo Bruscky (1949), que parece ter sido, senão o
primeiro, um dos pioneiros artivistas brasileiros, a produzir desde o
final dos anos de 1960, e ao longo da década de 1970, obras “con-
ceitualistas” de teor político.
A expressão “conceitualismos latino-americanos” foi cunhada pelo
historiador espanhol Simón Marchán Fiz na primeira edição da obra
que se tonaria uma dos mais emblemáticas reflexões ao apontar,
com muita propriedade, as especificidades e singularidades das
práticas conceituais dos países periféricos, distinguindo-as das
produções congêneres dos centros hegemônicos. Em sua obra Del
arte objetual al arte del concepto (1972), Marchán Fiz observa que,
por atuarem em países sob constante ameaça e pressão política
– nos tempos que alguns teóricos nomearam de “anos difíceis” ou
“anos perdidos” –, produziram um gênero de obras que se diferencia
das práticas desenvolvidas nos Estados Unidos e na Europa Central.
Entretanto, deve-se considerar que essa publicação é praticamente
contemporânea de Seis anos: a desmaterialização do objeto artís-
tico (1966-1972), coletânea de textos selecionados e apresentados
cronologicamente pela autora, a crítica de arte estadunidense Lucy
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R. Lippard (1997). Embora o foco principal da reflexão da crítica se
concentre na produção dos artistas que circularam nas exposições
que ela organizou em instituições daquele país, ela percebia forte
tendência à substituição do objeto físico e do produto final por
conceitos, ideias, descrições, textos, esboços, projetos para atu-
ação em grande escala. Segundo Lippard, isso tanto desvelava as
fronteiras que separam a arte das vanguardas da arte contemporâ-
nea, em que as obras de natureza sintático-formal davam lugar a
propostas de natureza semântica, como mostrava que a ditadura da
estética greenberguiana chegava ao fim. A crítica percebia também
na produção de algumas artistas mulheres estadunidenses, algo de
feminino ou político, tema que apenas mais tarde ganharia desta-
que nas discussões sobre a arte da contemporaneidade, bem como
o significado da produção das congêneres sul-americanas1.
Embora se revelasse atenta ao que ocorria no âmbito artístico
internacional, a destemida geração de jovens do “Cone Sul” criou
uma heterogeneidade de proposições experimentais, individuais e
coletivas, que mais que simples imitações ou adaptações daquilo
que lhes chegava dos centros hegemônicos, o supracitado historia-
dor espanhol relacionou com a realidade sócio-política dos países
em que os artistas latino-americanos atuavam, o que significa que
estes buscavam aproximar a arte da vida. Para fazer circular ou
veicular essas propostas – a maioria dotada de forte conotação po-
lítica, no sentido de que ironizavam e denunciavam os desmandos
do poder militar e a realidade social do país –, os artistas prescindi-
ram dos museus, chamados por eles de instâncias elitistas, seletivas
e controladas pelos órgãos de repressão militar. Tais propostas
circularam, assim, de maneira marginal e desafiadora, tendo como
suporte o próprio corpo do artista ou o Correio, o órgão oficial de
comunicações, o que era por si só uma grande ironia. O Correio era
tido pelos usuários como um meio rápido, seguro, relativamente ba-
rato, e um serviço democrático, ao qual todos tinham acesso, desde
que seguissem as normas para efetuar as respectivas postagens e
pagassem as taxas decorrentes dos serviços prestados. No Brasil,
havia suspeitas da existência de provel controle daquilo que era
postado, embora não fossem confirmados casos de violação de
1 Entretanto, em um
dos textos dessa obra, a crítica
faz uma ressalva em que deixa
patente seu desconhecimento
da arte conceitualista sul-ame-
ricana. Afirma que foi na viagem
que realizou na companhia
do crítico francês Jean Clay à
Argentina, ao visitar a cidade de
Rosário, sentiu-se impactada
com o trabalho desenvolvido em
Tucumán Arde (1968). Tanto é,
que no texto Escape Attempts
(1972, p. XX), referiu-se a uma
ação de caráter político, desen-
volvida por Graciela Carnevale
(artista que havia integrado as
ações de Tucumán Arde).
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correspondência. A grande quantidade de envelopes postados e
endereçados a receptores de inúmeras partes do planeta, contendo
imagens, mensagens ou textos denunciando a repressão e a tortu-
ra imposta pela ditadura política, constituiu uma enorme rede de
comunicação subterrânea. Essa rede, além assegurar a entrega sem
que os trabalhos fossem apreendidos pela censura, o que dificil-
mente ocorreria se tivessem sido expostos em instituições cultu-
rais: museus, galerias, escolas... Exemplo disso foi o fechamento
da II Exposição Internacional de Arte Correio, organizada por Paulo
Bruscky e Ypiranga Filho, na sede dos Correios em Recife (1976),
que também patrocinou a mostra, pouco depois da inauguração,
além da apreensão e destruição das obras pelos órgãos de repres-
são militar.
Inspirando-se no gesto ousado e irônico de Marcel Duchamp, que
retirou o objeto da esfera particular da arte e o inseriu no âmbito
irrestrito da vida, a geração de jovens que então emergia propunha
a essas propostas experimentais e vivenciais, fundir arte e ativis-
mo político. Embora muitos jovens artistas produzissem, na época,
ações performáticas e outros gêneros de propostas conceituais e
experimentais, daremos destaque neste texto apenas a algumas
proposições dessa natureza, idealizadas pelo pernambucano Paulo
Bruscky.
O jovem artista autodidata, mesmo vivendo e atuando distante
de polo cultural hegemônico do país, se mostrava bem informado
sobre as experimentações e os novos fenômenos artísticos gerados
em diferentes lugares do mundo, desenvolvidas a partir do início do
século XX. Essas informações lhe chegavam através do trânsito que
empreendia frequentemente por diferentes localidades, em visita
a bienais e outros eventos culturais. A leitura de revistas e outras
publicações nacionais e internacionais talvez tenha sido a fonte que
mais contribuiu para que o artista tomasse ciência da diversificada
gama de transformações artísticas em processo naquele momento:
das experiências teatrais às propostas antiestéticas, das atitudes
anárquicas e ações insólitas instauradas pelos signatários do dada-
ísmo e do futurismo;
da praxe libertária articulada por Jack
son Pollock
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na Action Painting à irreverência do pensamento e das ações pro-
postas pelos signatários dos grupos Fluxus e Gutai.
Assim, ao iniciar sua trajetória no final dos anos de 1960 como de-
senhista, por cujas obras recebeu importantes prêmios em salões,
na década seguinte se tornaria mais conhecido pelas proposições
experimentais dotadas de ironia. Por refutar as instituições cultu-
rais, consideradas por Bruscky instâncias judicativas, seletivas e de
musealização dos objetos estéticos destinados ao mercado bur-
guês, iria realizar ações performáticas e intervenções urbanas em
espaços alternativos e ativos.
Mostrava-se, portanto, em perfeita sintonia com as tendências ar-
tísticas processuais e vivenciais que se expandiam e se diversifica-
vam naquele momento no mundo, quando a arte se desmaterializa-
va e esgarçava as fronteiras entre os processos, meios e linguagens.
Recorrendo a uma produção híbrida, heteróclita e polissêmica,
Bruscky punha em xeque a chamada “arte pura”, o produto “bem
acabado” e duradouro, realizando trabalhos e ações de caráter volá-
til ou efêmero.
A ideia, a ação e a experiência propostas pelo artista visavam a inte-
ração do público ativo, e substituíam os tradicionais meios, supor-
tes, materiais e até o objeto artístico resultante de um fazer técnico
específico. Subvertiam, portanto, o tradicional conceito de espec-
tador, demovendo-o da posição contemplativa ou passiva para
tornar-se agente interativo e participativo, e sem o qual a obra não
se completa ou se concretiza plenamente. O artista passaria tam-
bém a se apropriar de um espectro inesgotável de materiais: dos
mais elementares e orgânicos, aos mais inusitados e às sofisticadas
tecnologias de ponta então disponíveis. Esses elementos, incoeren-
tes ou díspares, angariavam novo sentido nas ações performáticas,
intervenções urbanas e em outras práticas experimentais, revelado-
ras da aproximação entre arte e vida, como resultado do trânsito e
do olhar que o artista lançava sobre a própria realidade.
Se as novas formulações e configurações artísticas se distanciavam
das práticas utópicas e dos valores transcendentais precedentes,
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centravam agora forças na irreverência político/crítica, ao voltar-
-se prioritariamente para a realidade e para as mazelas dos novos
tempos, foco da obra tanto de Bruscky como de muitos outros
artistas latino americanos, objeto de interesse da investigação que
desenvolvemos. Isso também explica a razão pela qual a maioria das
proposições criativas e vivenciais por eles realizadas terem deixado
a esfera fechada e restrita do ateliê para ocorrer no espaço público.
Essas práticas confirmavam a vontade de estabelecer novas rela-
ções espaço-temporais, em um período em que tais prerrogativas
eram negadas ou rigidamente controladas, transformando-se em
estratégias dos artistas para criticar, protestar e tentar reverter a
falta de liberdade para agir, expressar e comunicar.
O corpo do artista tornava-se o suporte e a caixa de ressonância
dessas ações vivenciais efêmeras, realizadas em ruas e praças, ou
seja, à margem da zona de conforto do museu ou do “cubo branco”,
para atingir um público mais amplo e ativo, democratizando-se. Tal
processo transformava a ideia de ausência em presença, ou seja,
deslocava a prática tradicional centrada nos processos de repre-
sentação ilusionista do corpo humano para voltar-se para a encena-
ção do corpo vivo, interacional, com a participação ativa do público.
No caso específico do Brasil, as proposições que conectavam arte
e vida foram deflagradas pelos Parangolés (1965), pela Tropicália
(1967) e por Apocalipopótese (1968), de autoria de Hélio Oiticica;
pelas “experiências sensoriais” iniciadas com A Casa é o Corpo
(1968), de Lygia Clark, e por Roda dos Prazeres (1968), de Lygia
Pape. Para se transformarem plenamente em obras vivas, as capas
coloridas dos chamados Parangolés, elaboradas com pedaços de
tecido, papel, plástico, formando uma espécie de patchwork, “pre-
cisam ser vestidas, evoluir no espaço”. Essas indumentárias precá-
rias ou mal-ajambradas necessitam de um corpo físico vivo que lhes
sirva de suporte, que as vivencie, experimente, movimente, coloque
em ação e faça reverberar no espaço real suas camadas/superfícies
de cor, gerando, assim, um processo de passagem da subjetivação
do objeto ao devir do corpo performático, que atribui à capa o “es-
plendor de sentido do acontecimento como puro acontecimento
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do nascimento de sentido” (Gil, 2004, p. 200). Essa convocação do
corpo do participante ativo para vivência ou experiência espontâ-
nea “que une arte, teatro, música e dança” (Canongia, 2005, p. 59)
assume, também, posição central nas experimentações das duas
artistas acima citadas, sendo que a plenitude vivencial e sinestésica
não acontece sem a participação ativa do público.
A referida proposta de Oiticica e as das artistas citadas seriam res-
significadas e desdobradas nas ações e experimentações de outros
artistas brasileiros, como Antônio Manuel, Wesley Duke Lee, Nelson
Leirner e Paulo Bruscky. Esses e outros artistas transformaram e
atribuíram nova dimensão ou uma nova potência à presença física
e psíquica do corpo na arte: a de corpo vivo. Demoviam, assim, a
dimensão ficcional do corpo humano que se perpetuou por longo
tempo ao ser representado e configurado visualmente de diferen-
tes maneiras, mas sempre imóvel sobre um suporte. Bruscky e gran-
de parte dos jovens artistas de geração se mostrariam conscien-
tes de que, ao refutarem as instituições culturais e pela natureza
efêmera das ações experimentais que propunham, essa produção
que logo cairia no esquecimento, não chegaria a formular vínculos
na memória e, consequentemente, a se inserir na história. Por essas
e por outras razões, passaram a registrar as propostas performáti-
cas e intervenções públicas por processos fotográficos, vídeos e
filmes Super-8. As imagens, frases, mensagens e textos registrados
eram depois multiplicados, por processos eficientes e relativamen-
te baratos, recorrendo ao aparato tecnológico disponível naquele
momento (máquinas eletrostáticas, offset, entre outros).
Esses processos de reprodução permitiam aos respectivos autores
reutilizarem a documentação gerada em outros processos artísticos
experimentais, por eles formulados ou pelos quais alguns também
incursionaram. De modo especial na América Latina, inúmeras
imagens, mensagens e ideias assim geradas circularam de maneira
underground, enviadas a artistas e outros interlocutores de diferen-
tes partes do mundo, alimentando o fluxo da rede de arte correio
sem levantar qualquer suspeita da censura. Essa documentação
iria contribuir também para a ampliação, diversificação, hibridi-
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zação das linguagens e para a formulação de um amplo espectro
de imagens híbridas. Mas esse acúmulo de documentos acabaria
gerando alguns dos mais importantes e disputados arquivos de arte
da contemporaneidade.
A realidade política brasileira como desafio à instauração de no-
vos empreendimentos artísticos
Após a publicação do Ato Institucional no 5 (dezembro de 1968),
quando ocorre o acirramento da repressão, muitos artistas brasi-
leiros encontraram nas ações performáticas, happenings, interven-
ções urbanas e na rede de arte postal, entre outras proposições
conceituais e experimentais, maneiras inusitadas de criticar e assu-
mir uma posição de confronto à própria realidade.
O corpo adquiria, então, outra visibilidade e significação, ao ser
repensado em toda a sua objetividade e complexidade física, fragi-
lidade, desamparo, contingência e instabilidade. Contribuiu para a
reconfiguração e ressignificação radical da noção e percepção do
corpo físico e mental, a evolução dos estudos do comportamento
e as pesquisas da psicanálise, entre outros domínios da ciência. O
corpo deixava de ser visto como carne e individuação para trans-
formar-se em suporte, matéria, linguagem, sistema significante de
alegorização, ritualização, teatralização e possibilidade de reinven-
tar e reavaliar a vida através da arte. E se essa não deixava de ser
uma maneira ambivalente ou obsessiva de superar a contingência e
a corporeidade, também sinalizava o desejo do corpo de se mostrar
e de ser visto como meio expressivo, objeto artístico e potência
criativa (Miranda, 2011, pp. 157-158).
Entre o final dos anos 1960 e ao longo da década de 1970, um
número excepcional de artistas faria das performances e de outras
práticas processuais instrumentos potentes e singulares de expres-
são. Todavia, a crítica brasileira, salvo raras exceções, não revelaria
grande apreço por elas: uns certamente para não se comprome-
terem ou por temerem sofrer sanções políticas, dado o alto teor
irônico ao regime militar em que se balizava a maioria dessas novas
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proposições experimentais; outros por terem sido pegos de surpre-
sa e não se sentirem devidamente preparados para discorrer sobre
essas novas ações conceituais. A falta de um instrumental teórico
que servisse de embasamento ou de respaldo ao discurso crítico
contribuiu, de alguma maneira, para tal indiferença às novas lingua-
gens que tomavam impulso no eixo Rio de Janeiro/São Paulo.
A mesma dificuldade de recepção da arte contemporânea também
seria constatada por alguns teóricos internacionais, a exemplo de
Nicolas Bourriaud, que assim se posicionou sobre a questão:
Críticos e filósofos, em sua imensa maioria, não gostam de
abordar as práticas contemporâneas: assim, elas se mantêm es-
sencialmente ilegíveis, pois não é possível perceber a sua origi-
nalidade e sua importância analisando-as a partir de problemas
resolvidos ou deixados em suspenso pelas gerações anteriores.
(Bourriaud, 2009, p. 9)
No contexto brasileiro não se pode deixar de ressaltar, porém, a
contribuição daqueles que promoveram e estimularam as produ-
ções experimentais, entre os quais os críticos, curadores e historia-
dores Walter Zanini e Frederico Morais. O primeiro transformou o
Museu de Arte Contemporânea da USP – durante sua longa gestão
como diretor da instituição entre o final dos anos 1960 e ao longo
da década de 1970 – e as curadorias que realizou na Bienal de São
Paulo nos principais polos acolhedores das novas proposições,
acabando por contribuir, ainda, para a institucionalização da arte
experimental e processual. Frederico Morais, por sua vez, além de
ter sido um dos criadores da Sala Experimental do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro – polo estimulador dessas novas propo-
sições –, participou como artista de algumas ações experimentais
e se tornou o mentor intelectual e o organizador, desde 1968, de
importantes eventos públicos dessa mesma natureza. Estes últimos
contariam com a presença de artistas de diferentes experiências e
trajetórias, atuantes em diferentes estados, assumindo, portanto,
um cunho descentralizador. Entre eles vale citar: Do Corpo à terra
(1970), realizado no Parque Municipal e na Serra do Curral, em Belo
Horizonte (Minas Gerais); Arte no Aterro (1970) e Domingos da
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Criação (1970), ambos na área externa do Museu de Arte Moderna,
no Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro, nos quais o ato criativo se
sobrepunha ao resultado ou à geração de um produto final. Partici-
param desses eventos, entre outros artistas, Antonio Manuel, Artur
Barrio, Cildo Meireles, Décio Noviello, Dilton Araújo, Hélio Oiticica,
Luiz Alphonsus. No primeiro evento citado, Cildo Meireles causou
grande celeuma com a apresentação de Tiradentes: totem-monu-
mento ao preso político, ateando fogo em galinhas vivas, amaradas
a um mastro de madeira, como forma de protesto à violência e à
tortura militar, no chamado “pau-de-arara”2. Artur Barrio espalhou
em diferentes locais do centro do Rio de Janeiro e lançou nas
águas do Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte – conhecido local de
desova, pela polícia, dos cadáveres torturados até à morte – inusi-
tados objetos que simulavam corpos, confeccionados com detritos,
tecido, ossos e sangue, as Trouxas ensanguentadas.
Embora na época da realização desses eventos, Paulo Bruscky esti-
vesse entre os mais profícuos criadores de trabalhos experimentais
e conceituais, não foi convidado a participar, sendo preterido por
viver e atuar em Recife (Pernambuco), distante do principal eixo
cultural brasileiro.
Entre as propostas elaboradas por artista estava a publicação de
anúncios irônicos e bem humorados, referentes a exposições, apa-
relhos e outros inventos ficcionais ou imaginárias, nos classificados
dos jornais de grande circulação, como o Diário de Pernambuco,
o Jornal do Brasil Revista e a revista Classificada, criada por ele
em associação com Daniel Santiago (1977). O exemplo a seguir dá
ideia do teor do anúncio de uma das invenções utópicas do artista:
“Vende-se o projeto de uma máquina de filmar sonhos com filmes
(preto e branco ou colorido), sonorizada, marca Bruscky. Assista a
seus sonhos tomando o café da manhã” (Bruscky, 1977, p. C-21).
O objetivo do artista com esse gênero de publicação era instigar
a reflexão e provocar a reação imediata do leitor. Nesse sentido,
chegou a afirmar surpreender-se algumas vezes com o número de
respostas recebidas dos interlocutores, que variavam entre o elogio
2 Era chamado de
pau-de-arara o instrumento de
tortura aplicado aos presos po-
líticos, que consistia em amarrar
as pessoas em uma estrutura de
madeira, em pé ou de cabeça
para baixo, submetendo-as a
práticas de crueldade como
queimar o corpo com cigarros,
espetar instrumentos pontiagu-
dos sobre as unhas ou submeter
o corpo a choques, para fazê-las
confessar culpas ou responsabi-
lidades por fatos que elas muitas
vezes não haviam cometido.
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e o riso, a indignação e o insulto. Mas, segundo ele, as diferentes
reações eram positivas e equivalentes, pois revelavam diferentes
maneiras do receptor se posicionar e opinar sobre algo que o pro-
vocou e mobilizou de alguma maneira.
Foi também um dos primeiros artistas brasileiros a recorrer a dife-
rentes mídias e a realizar ações reveladoras do engajamento polí-
tico/crítico do autor. Algumas dessas ações foram reprimidas pela
censura e o artista condenado em três diferentes vezes à prisão.
Outras, ao serem submetidas pelo artista a salões e mostras institu-
cionais, acabariam recusadas.
As intervenções urbanas, ações performáticas e outras práticas
processuais, idealizadas por esse ativista pernambucano tiveram
alguma dificuldade de serem apresentadas, dado o estranhamento
que geravam e a ironia à realidade social e política do país. Mas a
rejeição também atestava a relação conflituosa que se estabeleceu
entre a censura política e a ousadia artística.
Se, como citado, o emblemático Grupo Fluxus e o grupo japonês
Gutai foram referências importantes para as proposições criativas
formuladas por Paulo Bruscky, o brasileiro acabaria transitando por
ambas as agremiações, mediante a troca de correspondência com
seus respectivos signatários e promovendo exposições e palestras,
entre outras formas de divulgação das ideias e do trabalho desses
grupos internacionais no Brasil. Se isso permitiu a outros artistas
tomarem ciência das ações e proposições irreverentes dos mes-
mos, a comunicação em rede estabelecida pelo pernambucano
com esses e outros artistas de todas as partes do mundo acabou
gerando um grandioso arquivo de correspondências e obras que
o artista preserva em seu ateliê. Segundo o artista, esse arquivo
documental ultrapassa os “70 mil itens de arte contemporânea, algo
que nenhum museu tem”, o que faz com que esse legado seja, na
atualidade, disputado por instituições e colecionadores de diferen-
tes partes do mundo.
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Do caráter experimental à aproximação entre arte e vida
Para o artista brasileiro, pesquisador perspicaz e convicto, apro-
priar-se de maneira peculiar e bem humorada de referências ex-
traídas da alta e da baixa cultura, erudita ou popular; explorar a
possibilidade de sobrepor diferentes mídias, suportes, processos
artesanais ou tecnológicos e materiais naturais, orgânicos e indus-
triais, nunca foi problema ou obstáculo para produzir uma ampla
gama de imagens, textos, poemas visuais, arte correio, projetos,
esboços, entre outros gêneros de proposições criativas.
Para o artista brasileiro, pesquisador perspicaz e convicto, apro-
priar-se de maneira peculiar e bem humorada de referências ex-
traídas da alta e da baixa cultura, erudita ou popular; explorar a
possibilidade de sobrepor diferentes mídias, suportes, processos
artesanais ou tecnológicos e materiais naturais, orgânicos e indus-
triais, nunca foi problema ou obstáculo para produzir uma ampla
gama de imagens, textos, poemas visuais, arte correio, projetos,
esboços, entre outros gêneros de proposições criativas.
De maneira similar ao que preconizaram outros artistas conceitu-
alistas, Bruscky valorizou sempre muito mais o processo ou a ideia
do que o produto final ou o objeto físico, até porque foi sempre
um crítico da produção de trabalhos artísticos de impacto estéti-
co e de fácil consumo e mercantilização. Nesse sentido, mais que
de se preocupar em expor objetos artísticos, buscaria por meio de
uma ampla gama de ações poéticas, realizadas em locais públicos,
problematizar e potencializar a observação e a reflexão crítica dos
transeuntes, criando uma espécie de digressão e estranhamento
no fluxo cotidiano ou habitual desses espaços. Chegaria mesmo
ao extremo de submeter seu próprio “corpo político” a experiên-
cias médicas, como em Meu Cérebro Desenha Assim (1979). Para
a realização dessa proposição, o artista contou com o apoio de
especialistas do Hospital Público Agamenon Magalhães, na cidade
de Recife, onde ele trabalhou. Além da devida assessoria técnica e
científica, a instituição cedeu ao artista os equipamentos necessá-
rios à concretização do experimento.
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Essa ação performática, gravada em vídeo em tempo real, mostra o
artista deitado em uma maca hospitalar, com vários eletrodos co-
nectados à cabeça, sendo submetido a um eletroencefalograma. A
sequência de sinais emitidos pelo aparelho em forma de códigos ou
gráficos, impressos sobre uma superfície de papel como tracejados
que oscilam em maior ou menor extensão para cima ou para baixo,
quebrando a horizontalidade das linhas, foram nomeados pelo artis-
ta de “desenhos de meu cérebro” e deram origem a livros de artista
e uma série de imagens3, que em nada se distinguiam de imagens
geradas durante exames similares realizados por qualquer indivíduo,
o que desmontava a ideia de artista como gênio e a pragmática da
obra de arte.
Em Arte Cemiterial (1971), outra ação poética, irônica e bem humo-
rada, o artista idealizou e encenou metaforicamente o seu próprio
enterro. A ação teve início na sede da Empetur (Empresa Pernam-
bucana de Turismo), com a distribuição do convite dos familiares
para as exéquias: “A família Bruscky convida para o enterro da
exposição de seu querido filho, primo, irmão, neto e amigo Paulo
Bruscky”, e segundo o próprio autor, simbolizava a morte da arte
convencional (Freire, 2006, p. 93).
Os dizeres do convite foram impressos no verso de uma estampa
popular que representa Cristo meditando no Horto das Oliveiras,
pouco antes de sua morte. Além de ser usada como convite para a
instalação, a imagem com o texto impresso foi distribuída àqueles
que compareceram e participassem da performance/instalação, em
que o artista foi fotografado deitado em um ataúde, rodeado por
coroas de flores de plástico. Se a escolha de uma imagem com tais
características é também um convite à reflexão sobre a morte e o
caráter religioso que a envolve, os adereços inseridos na instalação,
juntamente com o carro fúnebre, ironizavam o aparato empregado
na ritualização e espetacularização da morte pelas sociedades oci-
dentais, e visavam promover uma reflexão sobre as fronteiras entre
vida e morte.
3 Uma das edições do
vídeo dessa ação performática
foi adquirida pelo MoMA de
Nova York.
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O caixão foi lacrado e transferido para um carro fúnebre, preto,
enfeitado com rosas vermelhas de plástico, sendo que, paradoxal
e ironicamente, o artista acompanharia o cortejo pelas ruas cen-
trais de Recife, posicionado ao lado do motorista. O carro acabaria
sendo interceptado pela polícia e impedido de continuar circulando
pelas vias públicas de Recife, enquanto a exposição acabou sendo
fechada no mesmo dia em que foi inaugurada.
Em razão do caráter provocativo, é possível que a abordagem e a
interdição tivessem sido previstas pelo artista. Nesse caso, o em-
bate com a polícia reveste-se de sentido dúbio: traduz a repressão
política e a interferência da censura na arte, mas aponta também
para a dificuldade de aceitação e de inserção da arte experimental
tanto nos espaços alternativos quanto no sistema artístico oficial.
Por outro lado, pode-se concluir, pela interrupção do enterro, que a
proposta não chegou a se concretizar na íntegra, pois certamente o
autor teria preconizado um desfecho diferente para a mesma4.
Como uma espécie de desdobramento ou continuidade daquela
ação inacabada, o artista convocava o público, já no ano seguinte,
a participar de Enterro Aquático I. Desta feita, um caixão lacrado
tendo a palavra Arte impressa no tampo, em letras garrafais, seria
conduzido cerimoniosamente pelos participantes até uma das cen-
tenárias pontes que cortam a cidade, de onde assistiria o lançamen-
to do caixão nas águas do Rio Capibaribe. Se o artista afirma tratar
nesse happening da morte simbólica da arte, subliminarmente se
referia, também, ao trágico fim dado ao corpo dos presos políticos,
torturados até à morte nas prisões durante a ditadura.
No ano seguinte (1973), o artista pernambucano realizava nova-
mente uma “ação fúnebre, Enterro Aquático II”, tendo atirado desta
feita às águas do rio “um caixão infantil, alegorizando a morte do
olhar ingênuo ou infantil sobre a arte”. Por esse viés, e salvaguarda-
das as devidas especificidades, talvez se possa buscar uma possível
relação entre Enterro Aquático I, idealizado por Paulo Bruscky, e a
supracitada proposição, encenada pouco tempo antes
, no Rio de
Janeiro e em Belo Horizonte por Artur Barrio, Trouxas ensanguentadas.
4 Com algumas modifi-
cações introduzidas pelo artista,
a performance-instalação foi
reeditada mais recentemente
em exposições realizadas em
diferentes instituições culturais,
entre elas a Fundação Tomie
Ohtake (2013).
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Se por meio dessas e de outras proposições, o artista tanto fazia a
exaltação da vida como questionava a ideia de morte, como decor-
rência das atrocidades e da tortura impostas pelo regime ditatorial,
em outras ações públicas desafiava e confrontava as determina-
ções e a falta de liberdade impostas pelo poder, interrompendo
ilegalmente o fluxo, através do questionamento, de instigação e do
suspense.
Em uma dessas intervenções, realizada no mesmo ano de 1973,
Bruscky apropriava-se outra vez da antiga ponte da Boa Vista,
em Recife – construída pelos holandeses no século XVII –, trans-
formando-a em espaço cênico e palco de Arte/Pare, ação que se
resumiu em amarrar nas grades da cabeceira da ponte, interditan-
do todas as pistas e a faixa de pedestres, com uma simples fita
nas cores verde e amarelo, para testar se o obstáculo conseguiria
interromper ou desacelerar o trânsito. Sem se identificar, o artista
permaneceu nas imediações, observando e filmando a reação e a
iniciativa daqueles que transitam diariamente pela ponte, a pé ou
de automóvel, sem se darem conta do significado e da história da
Paulo Bruscky, Arte/Pare, 1973. Super 8, ponte da Boa Vista, Recife, PE. Fonte: Freire,
2006, p. 88.
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mesma. Se diante do obstáculo os carros paravam, formando rapi-
damente uma fila, a reação imediata dos transeuntes era a mesma:
parar, olhar para todos os lados na tentativa de buscar entender o
motivo da interrupção, mas logo depois vinha o impulso de vencer
o obstáculo, saltando ou passando por baixo da fita, com o cuidado
de não arrebentá-la. A afirmação do artista de que, em velocidade,
nosso cérebro não consegue fixar grande parte do que está à nossa
volta, parecia se confirmar, pois se a reação imediata dos motoris-
tas foi parar o veículo e esperar, o bloqueio logo gerou diferentes
reações. Com a fila de carros se avolumando nas ruas próximas à
entrada da ponte, e sem que os motoristas percebessem qualquer
motivo plausível para a interrupção do tráfego, alguns passaram a
protestar, outros acionaram a buzina, até que, decorridos cerca de
quinze ou vinte minutos, um motorista, irritado com a demora e o
descaso, desceu do carro, cortou a fita e o trânsito voltou a fluir
normalmente.
Um das mais polêmicas intervenções realizadas por Bruscky consis-
tiu em escrever nas paredes externas do Museu de Arte do Estado,
nos momentos que antecederam a abertura do Museu de Arte de
Pernambuco, a frase: “A Arte não pode ser presa”. Tinha o propósito
de criticar o conservadorismo artístico e o aparato publicitário e po-
lítico que continuava a envolver os eventos institucionais tradicio-
nais. Mas o ato era também uma forma de protesto pelo fato de ele
próprio ser perseguido e preso várias vezes, como tentativa de im-
pedir a realização de uma arte engajada, que destoava daquela que
participaria do evento prestes a ser inaugurado, com grande pompa
e com a presença de destacadas autoridades civis e militares.
Temendo que o episódio causasse constrangimento ao governador
do estado, nomeado pelos militares, e outras personalidades que
marcariam presença na abertura, os funcionários do Museu trata-
ram logo de apagar a frase. Entretanto, o esforço se revelava inútil,
pois quanto mais imprimiam força à mão, mais as palavras da frase
ganhavam consistência e legibilidade, gravadas e impregnadas no
reboco da parede.
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O episódio iria desencadear outras ações performáticas realizadas
pelo artista naquele mesmo ano. Em uma delas, instigava o público
a refletir sobre o significado da arte, perambulando por ruas, cafés e
outros espaços de grande afluência com um cartaz preso ao pesco-
ço contendo a indagação: “O que é Arte, e para que serve?”
Paulo Bruscky, O que é Arte? Para que serve?, 1978. Fonte: Freire, 2006, p. 42.
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Em outra proposição não menos irônica, Limpos e desinfetados
(1984), Paulo Bruscky e o amigo Daniel Santiago desfilaram lado a
lado pelas mesmas ruas da capital pernambucana, portando faixas
de papel apropriadas de um hotel. As tiras de papel, com tal ex-
pressão impressa e usualmente inserida nas louças sanitárias após
a higienização, acabariam transformadas pelos artistas em uma
espécie de faixa com que se costuma condecorar as vencedoras
dos concursos de beleza, mas também é o principal atributo dos
retratos presidenciais, inseridos nas repartições públicas, logo após
tomarem posse no cargo. A ação performática Limpos e Desinfeta-
dos metaforizava, assim, o discurso dos repressores, que para justi-
ficarem as sessões de tortura impostas aos presos políticos diziam
fazê-lo para “limpar” o país da ação dos “inimigos da nação”, pecha
atribuída pelos militares às vozes dissidentes.
Paulo Bruscky, Limpos e desinfetados, 1984. Fonte: Freire, 2006, p. 43.
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Em outra proposição, Paulo Bruscky apresentou-se “embrulhado,
lacrado e selado”, como qualquer remessa postada no correio, es-
perando que alguém abrisse o pacote e desvelasse o conteúdo. O
ato de participar, desembrulhando o pacote, surpreendia o inter-
locutor ao se deparar com o artista com a boca amordaçada, que
assim se referiu ao significado da ação: “A minha mensagem é a de
que todos percebessem toda a repressão que sofri, inclusive sendo
preso por diversas vezes, por realizar a minha Arte-Correio” (Brus-
cky, como citado em D´Oliveira, 1981, s/p.).
Considerações finais
Se a rebeldia e a transgressão fazem parte da natureza da arte, em
plena ditadura militar a ideia de subversão assumiu um significado
ainda mais contundente e provocativo no Brasil e em outros países
da América Latina. O brasileiro Paulo Bruscky tornava-se, então, em
um dos mais renitentes instrumentos de oposição e de crítica ao
controle que a censura ditatorial exercia sobre o processo criativo e
as instituições culturais, fazendo valer a “insubordinação às regras,
às leis e ao que é aceito como norma por um determinado grupo do
sistema” (Milliet, 2004, s/p.).
A perseguição cerrada e a condenação à prisão não demoveram o
artista de continuar a realizar com frequência ações performáticas
e outros trabalhos processuais ou experimentais, dotados de altas
doses de ironia, em espaços alternativos como ruas, praças e até
vitrines de lojas. Se essa produção artística não lhe assegurou a
sobrevivência, o artista não cedeu nem afrouxou o teor crítico de
suas proposições, viveu sempre do salário que ganhava no exercício
do cargo de funcionário público em um hospital de Recife. O fato
de atuar de maneira clandestina nos espaços públicos permitiu-lhe
veicular ideias e mensagens que conflitavam com as determinações
das instâncias de repressão. Depois de uma lacuna de cerca de
trinta anos, sua produção angariou o devido respeito e reconheci-
mento institucional por seu ineditismo criativo, além de importan-
tes prêmios e valoração de mercado. O interesse tardio pela obra
do artista coincidia com a abertura política na segunda metade da
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década de 1980, quando ele se tornou referência da arte conceitual
e experimental no Brasil e no exterior. Sua obra passaria a integrar
importantes acervos e a ser exposta em renomadas instituições
culturais nacionais e internacionais, além de participar de diferentes
edições da Bienal de São Paulo e de eventos congêneres em dife-
rentes partes do mundo. Na última década, tornou-se também ob-
jeto de investigação acadêmica e foco de destacadas publicações.
Mas talvez o maior tributo angariado pelo artista, até então, no seu
país de origem, tenha sido a reconstrução e espetacularização de
seu ateliê e arquivo na Sala Especial com que foi homenageado na
XXVI Bienal Internacional de São Paulo (2004), pelo curador alemão
Alfons Hug.
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