DOSSIÊ

A COMUNICAÇÃO COMO TRABALHO NO CAPITALISMO DE PLATAFORMA: O caso das mudanças no jornalismo

 

Roseli Figaro

Universidade de São Paulo (USP)São Paulo, São Paulo, Brasil.

E-mail: figaro@uol.com.br. ORCID: 0000-0002-9710-904X.

Ana Flávia Marques da Silva

Universidade de São Paulo (USP)São Paulo, São Paulo, Brasil.

E-mail: anaflaviamarx@usp.br. ORCID: 0000-0002-3447-3506.

 

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar as mudanças no mundo do trabalho do jornalista no cenário do crescimento do trabalho digital e capitalismo de plataforma. Ainda sob os efeitos da crise de 2007, o processo de reestruturação do sistema de produção capitalista tem provocado mudanças na base sociotécnica que indica transformações estruturais na sociedade. O binômio comunicação e trabalho é a abordagem teórico-metodológica para compreender essas inovações na geração de valor do capital, o qual não pode prescindir de processos comunicacionais para a própria existência das plataformas e, consequentemente, na cadeia global de valor.

Palavras-chave

Trabalho de plataforma; Capitalismo de plataforma; Comunicação e trabalho; Redação virtual; Jornalismo.

Abstract

The purpose of this paper is to analyze the changes in the journalist's world of work in the scenario of digital work growth and platform capitalism. Still under the effects of the 2007 crisis, the restructuring process of the capitalist production system has caused changes in the socio-technical base that indicate structural changes in society. The binomial communication and work is the theoretical-methodological approach to understand these innovations in the value creation of capital, which cannot do without communication processes for the very existence of platforms and, consequently, in the global value chain and platform work.

Keywords

Platform capitalism; Communication and work; Virtual newsroom; Journalism.

Introdução

A mudança na base sociotécnica dos meios de produção traz desafios para a compreensão dos caminhos que a sociedade está tomando.

A perspectiva teórica do binômio comunicação e trabalho pode contribuir para compreendermos o papel destacado que tem a comunicação no reordenamento do trabalho e da produção. Nesse sentido, pretende-se argumentar, nesse artigo, sobre a relevância de a comunicação ser reconhecida nos processos de trabalho e também ser entendida ela mesma como trabalho.

Essa relevância se dá porque a comunicação é parte de toda a atividade humana de trabalho, seja nos relacionamentos para que o trabalho se realize na produção de normas e sua transmissão, seja nos processos do trabalho real, nos quais a renormalização depende da comunicação efetiva nos ambientes de trabalho. Também porque o sistema do capital necessita cada vez mais da fluidez da circulação das informações, sobretudo, comandadas por empresas de plataformas que operam com dados privados dos cidadãos e produzem formas de organização, vigilância e controle das riquezas da sociedade.

Trataremos do assunto em três tópicos: primeiro, os meios de comunicação como meios de produção, reportando-nos a Raymond Williams (2011) e a outros autores que têm estudado as formas de produção de valor nas empresas de plataforma. Segundo, as mudanças no mundo do trabalho de jornalistas e terceiro, o trabalho digital no jornalismo, aspectos que vêm apontados nos resultados das pesquisas do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da USP (LIMA, 2015), (FIGARO, 2018; (SILVA, 2019).

Os meios de comunicação como meios de produção

Jenkins (2008) tratou das inovações tecnológicas, chamando nossa atenção para a convergência de meios, narrativas e culturas. Mas, não problematizou os caminhos dessa convergência em termos das implicações para a concentração econômica, organizacional e política.

Parece-nos que as metáforas sociedade em rede (CASTELLS,1999), sociedade do conhecimento ou da informação não são suficientes para explicar os acontecimentos e estão se mostrando como face do aprofundamento da concentração econômica e do controle social. O certo é que as mudanças se dão no âmago da organização da base estrutural e simbólica da sociedade.

Assim, quando Raymond Williams (2011, p.69) trata os meios de comunicação “eles mesmos como meios de produção (...) uma vez que a comunicação e os seus meios materiais são intrínsecos a todas as formas distintamente humanas de trabalho e de organização social (...)”, significa que o autor compreende os processos comunicacionais como intrínsecos ao trabalho e ao funcionamento do sistema econômico.

O mesmo ocorre com os meios de comunicação digitais. Esses meios na atualidade são a forma pela qual se organizam as atividades de trabalho nos mais diferentes ramos de produção: no setor da comunicação, dos transportes, da venda de mercadorias às indústrias de todo tipo de produtos, nas quais as lógicas da informação e da comunicação estão presentes. Esses meios estão para a valorização do capital assim como os meios de transporte foram lembrados por Marx (2011) para tratar dos processos de circulação da mercadoria em menor tempo como aspecto relevante na realização do mais valor.

Assim como a máquina a vapor introduziu mudanças fundamentais nas sociedades do século XIX, transformando definitivamente a vida nas cidades, as relações de trabalho e a forma de valorização do capital, este início de século XXI depara-se com a mais profunda transformação dos meios de produção, devido à lógica informacional pela qual as relações de produção estão sendo organizadas. A internet e a digitalização de todos os dados possíveis de serem captados, tratados, reorganizados, transferidos, circulados para gerar valor ganharam velocidade de desenvolvimento nunca antes conseguido por quaisquer meios de produção. A conexão e a circulação potencializaram redes de produção de valor. Aquilo que representou a internet nos princípios dos anos de 1990 em seu aspecto libertário e autônomo, socializado e colaborativo está desaparecendo. Em seu lugar crescem o controle e a privatização da rede pelo amplo desenvolvimento tecnológico e de conhecimento não aberto (privado, secreto) de empresas como Google, Facebook, Amazon, Apple, Microsoft entre outras.

As plataformas são empresas de tecnologia digital que operam em rede, por lógicas algorítmicas e monetizam dados coletados por meio da oferta de algum serviço, sendo eles, a gestão de conexão, a mediação entre fornecedor e usuário, a oferta de software, de conteúdo etc. Comercializam riqueza inesgotável: os dados dos seres humanos. Exploram[1] o trabalho de uma massa de indivíduos, denominados de colaboradores, empreendedores de si próprios, trabalhadores do clique, terceirizados. Sua lógica de produção conta com os investimentos do mercado financeiro, numa escalada permanente de aportes milionários. Se assim não fosse, como explicar que a UBER ainda não registre lucro[2], embora esteja presente em todos os continentes, explorando a mão de obra de motoristas e os dados das pessoas e das cidades?

A ligação entre os conglomerados de plataformas e o mercado financeiro é o modelo que completa o que denominamos de capitalismo de plataforma. Os investidores mais poderosos e ricos do planeta estão vinculados a essas empresas. Vejamos o caso do investidor George Soros.[3] Ele tem investimentos no Twitter, na Amazon, no Google, no Facebook etc. Simultaneamente investe milhões em sua Fundação Open Society para a expansão do uso do digital no mundo, sobretudo, em regiões da América Latina e Ásia.

Esse modus operandi entre conglomerados de Internet e mercado financeiro não obscurece, no entanto, toda a cadeia produtiva que faz parte dessa existência. A infraestrutura de cabos, metais, areias especiais, minérios, empresas de produção e montagem de equipamentos, material de construção, energia limpa ou fóssil. Tudo isso e os respectivos trabalhadores fazem parte da necessária cadeia de produção para a existência dos conglomerados de plataforma. O que eles têm de diferente das empresas tradicionais é o uso de tecnologia de ponta, frequentemente renovada, e se apresentam como mediadores, que oferecem suporte para ligar interessados a interesses; como se fossem janelas sem vidraça para não interferir nas relações.

Nick Srnicek, em Capitalismo de Plataforma (2018), categoriza os conglomerados em: a) Plataformas publicitárias: Google e Facebook; b) Plataformas de Nuvens: Amazon, Microsoft e IBM; c) Plataformas de produtos: Spotify, Rolls Royce, Pandora, Zipcar; d) Plataformas austeras: Uber, Airbnb. Cada uma delas apropria-se dos dados de usuários, parceiros, clientes, fornecedores para operar seu negócio e montar estratégias de lucratividade. Como já destacamos, todas elas dependem de infraestrutura material instalada de redes de cabos e produtos em conexão. As lógicas da comunicação são como processos racionalizados e instituem a possibilidade de funcionamento e existência do negócio.

É o trabalho de milhões de pessoas, envolvidas na produção de conteúdo, na produção de softwares, de equipamentos, dispositivos, cabos e infraestrutura – desde os mineiros até os chamados ‘analistas de rede’ ou trabalhadores do clique, que garante a forma de existência renovada do capital no mundo contemporâneo. Assim, o trabalho digital (Fuchs, 2014; Huws, 2017 ), ou seja, aquele mediado por plataformas e realizado em rede, a exemplo, do que faz o Uber, o Airbnb, a Amazon e, nos meios de comunicação, Youtube, Twitter, Telegram, Instagran etc., como trabalho profissional ou trabalho do usuário, é apropriado por esses conglomerados, possibilitando ao capitalismo - como colonialismo de dados para Nick Couldry, (2019) ou capitalismo de plataforma para Nick Srnicek (2018) - se remodelar e aprofundar a exploração, exigindo rearticulação das instituições e dos Estados nacionais.

Tim Wu, em Impérios da comunicação (2012), perguntou:

Será que a Internet prenunciaria um reinado de abertura industrial sem fim, abolindo de vez o Ciclo [de estabilização e monopolização]? Ou será que, apesar de seu projeto radicalmente descentralizado, se tornaria, com o tempo, o próximo alvo lógico das insuperáveis forças do império da informação, objeto da mais pomposa das centralizações realizadas?  (WU, 2012, p. 19)

A resposta parece estar bem avançada: os seis maiores conglomerados de mídias tradicionais (National, Disney, TimeWarner, ConCast; News Corporation, Sony) disputam a especificidade de seus negócios com as empresas Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft. As duas empresas líderes mundiais em receitas publicitárias são o Google e o Facebook. As respectivas lógicas monopolistas têm atuado ora em aliança ora em confronto. Como enfrentar esse ciclo fragmentação, globalização e concentração econômica, controle da circulação e vigilância social?

Parece que o ciclo a que se refere Tim Wu está se estabilizando pela lógica da ordem hegemônica. Por isso, os ideólogos da chamada aldeia global, da liberdade total, da livre circulação são, na melhor das hipóteses, equivocados, porque não há autonomia da tecnologia em relação às condições de produção. A tecnologia é produto de seu tempo e os usos que se faz dela são regulados pelas lógicas econômicas e culturais desse tempo. O processo de criação e circulação de uma técnica, de um saber de uma tecnologia sofre o mesmo embate que qualquer outra criação do conhecimento humano.

No capitalismo de plataforma “(…) os dados são cada vez mais centrais para as empresas e suas relações com os trabalhadores, clientes e outros capitalistas.”[4] (SRNICEK, 2018, p.13, tradução livre).

Para Tylbor, é:

um novo modelo de negócio que se tornou um novo e poderoso tipo de empresa, o qual se foca na extração e uso de um tipo particular de matéria prima: os dados. As atividades dos usuários são a fonte natural dessa matéria prima, a qual, assim como o petróleo, é um recurso que se extrai, se refina e se usa de distintas maneiras.[5]  (TYLBOR, 2019, online, tradução livre).

Desse modo, o trabalho digital em plataformas configura-se como qualquer tipo de interação humana com meios digitais em rede. Essa interação propicia uma fonte inesgotável de material a ser transformado em valor de uso e valor de troca. A extração e a mineração de dados são a nova fronteira de riquezas que o sistema econômico hegemônico acumula e redimensiona nas organizações e nas instituições para poder usufruir dos lucros deles advindos. Todos os sistemas integrados das empresas atuam a partir de plataformas de informação. Essas plataformas de sistemas interligados propiciam processos de gestão de maior controle e vigilância do trabalho e dos trabalhadores.

Esses processos integrados ativados pelas prescrições algorítmicas têm alterado a forma de produção, circulação e recepção de todo tipo de produto, sobretudo, os produtos culturais. Além do jornalismo, podemos citar as séries de audiovisual, a cultura de fãs. Por exemplo, a plataforma de streaming Netflix, por meio de seus algoritmos, capta dados de seus usuários/clientes, organiza as ofertas de acordo com perfis específicos, e também, a partir da coleta e mineração de dados das preferências, determina temas e organiza a produção de filmes e séries. (LIMA et. al., 2015) 

Tom Slee (2017) fala da precarização do trabalho nas empresas de plataforma. Ele usa o neologismo uberização para explicar como o trabalho tem sido precarizado e os lucros têm levado essas empresas a crescimento assombroso. Úrsula Huws (2017) discute a formação do cibertariado, ou seja, como os processos de informatização abrangem amplos espectros da classe trabalhadora. Há um conjunto de pesquisadores em todo o mundo ávidos por compreender as transformações e as repercussões delas na vida das pessoas, no trabalho e na organização social. Nós estudamos essas implicações no trabalho de jornalistas, categoria profissional que sinaliza, pelo tipo de sua atividade, como estão se reestruturando as atividades no setor da comunicação.

 Há grande pressão para a manutenção dos interesses das forças tradicionais que comandam o negócio do jornalismo, sejam elas nacionais ou internacionais. A forma de monetização do negócio jornalístico entrou em fase bastante perigosa, pois a publicidade tradicional, o informe publicitário e a matéria paga ficaram démodé com a nova sensação de pautas originadas do volume de cliques em #toptrends de redes sociais, as mais lidas (clicadas) nos portais. As rotinas produtivas foram açambarcadas por lógicas que impõem na redação a espetacularização e a regra primeiro publica, depois apura.[6] Por outro lado, há uma força humana profissional e de conhecimento abandonada e retirada do mercado de trabalho que não aceita o desprezo e o desalento e busca alternativas próprias para a situação do trabalho no jornalismo.

Renovações das práticas jornalísticas

Esse contexto, nos coloca no olho do furacão e a área da comunicação é um campo de ensaio importante para transformações ainda mais profundas. Conforme aponta Souza:

(...) muitos dos sintomas da “crise do jornalismo” são consequências da crise estrutural do capital. Essa, articula, via cooperação complexa, inovações tecnológicas e gerenciais, intensificando a subsunção do trabalho vivo ao sistema de metabolismo social vigente (SOUZA, 2018, p. 55).

Isso quer dizer que, os dilemas vividos no mundo do trabalho do jornalismo não provêm dele mesmo somente. As lógicas da circulação da informação e a valorização dela como aspecto de valorização do capital reverberam na área profissional do jornalismo. Essa repercussão incide para além da incorporação das tecnologias digitais, pois implica uma lógica produtiva e de relações de trabalho que têm como orientação atender às demandas do acesso prioritário à informação que aumenta o potencial de controle dos recursos e do poder para aqueles que já os detêm.

A informação é a mercadoria mais relevante para o sistema do capital, ela pode ser um dado qualquer (uma comodity) da natureza (meio ambiente) ou do corpo humano. A informação com maior valor agregado é aquela já trabalhada, ou seja, minerada e posta para circular. Assim, a informação jornalística é uma mercadoria superior que atrai anunciantes, consumidores e investimentos.

Como exemplo dessas implicações, podemos citar o relatório A imprensa nas plataformas. Como o Vale do Silício reestruturou o jornalismo, publicação da edição brasileira da Columbia Journalism Review (BELL e OWEN, 2017). Ali temos dados alarmantes sobre a concentração do negócio do jornalismo e de sua completa reestruturação organizacional, financeira e de lógicas de produção e de circulação, a partir da convergência de meios, dirigida pela racionalidade financeira e pela regulação por algoritmos.

Quanto ao trabalho no jornalismo, além da convergência de meios, narrativas e polivalência/flexibilidade dos perfis profissionais, vemos a destruição de postos \, precarização das relações de trabalho e perda de credibilidade do produto jornalístico. As alternativas que os profissionais buscam são voltadas para maior autonomia e a possibilidade de produzir um jornalismo de qualidade para a democracia e os direitos dos cidadãos. Nonato Lima (2015) chamou-os de migrantes do jornalismo. Jornalistas vão em busca de arranjarem-se em novos formas organizativas de trabalho e de sustentação.

Nesse arranjar cabe a constituição de empresas, associação, conjunções de microempreendedor individual ou outras formas não prescritas que sustentam a produção noticiosa. Mais do que forma jurídica de relação de trabalho, os arranjos alternativos[7] dos jornalistas são espaços de sobrevivência, de arranjar formas criativas para desenvolver a atividade de comunicação e, embora, muitos deles não sejam remunerados, têm condições de ofertar conteúdo informativo para regiões e cidades que não possuem nenhuma fonte de informação sobre suas realidades.

A nova configuração da rotina produtiva e a instituição das redações virtuais da mídia alternativa dialogam com diferentes interfaces. Algumas delas podem ser destacadas: o aprofundamento do modo de acumulação flexível, o cenário pós-crise de 2007, a concentração de grandes e mundiais monopólios, a migração dos recursos publicitários para internet e compra de dados conforme nova lógica da publicidade, o papel do jornalismo na sociedade contemporânea.

Nesse contexto, ter como centro redações descentralizadas que apresentam aspectos articulados com o modo combinado de fragmentação, polivalência e flexibilização é revelador das formas e contradições entre capital e trabalho. Essas contradições se apresentam como tensionamentos dentro do próprio jornalismo, cujas novas marcas ainda não se consolidaram e os velhos modos de trabalho ainda não foram superados; aspectos comuns de momentos de transição, crise e realidades instáveis em que há um embate entre o inovador e o anacrônico dentro do processo de produção do jornalismo que nunca é pronto e acabado, ao contrário, está sempre se transformando.

Os arranjos alternativos do trabalho do jornalista que são objetos deste artigo nasceram em formato digital e são frutos do acesso aos softwares, programas e à internet. Portanto, a convergência em unidades de produção que é habitual em pesquisas sobre a redação das grandes corporações de mídia, não se aplica.

Ser concebido no ambiente digital, como a maioria dos veículos e coletivos de mídia alternativa atuais, faz com que o principal obstáculo não seja mais com quais meios fazer, como era antigamente, visto que o celular é um dos principais instrumentos de transmissão de vídeo ao vivo, edição do texto, para fotografar e publicar nos sites e redes sociais. A dificuldade atual é a distribuição, circulação e ampliação do alcance do sentido do material produzido.

Ademais, os discursos dos monopólios da comunicação são reforçados através da internet, configurando-se como extenso lastro nas redes sociais. A força econômica dos monopólios de comunicação transborda para esses espaços, reforçando a sua hegemonia e fortalecendo seu bloco histórico (GRAMSCI, 2002).                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    

A outra faceta da internet pode ser considerada uma fissura no sistema que possibilita a constituição de um circuito independente de trabalho, conecta ações comuns, como nas redações virtuais, a troca de experiências, constituição de redes, amplia as formas de cooperação e potencializa a circulação da informação dos meios alternativos.

Essa nova forma de organizar as rotinas produtivas e sua rede de jornalistas colaboradores pressionam o jornalismo feito pelas corporações de mídia de diversos modos. Por isso, para se diferenciarem negam o sentido jornalístico da mídia alternativa, denominando-o como jornalismo panfletário ou engajado (conforme se vê em Manual da Folha e Diretrizes do Grupo O Globo, ambos de 2018).

Em que pese haver poucos estudos sobre as rotinas produtivas e as condições de trabalho dos jornalistas da mídia alternativa, podemos inferir, após longa observação, mudanças na forma de produção da notícia e, consequentemente, certa atualização na teoria Newsmaking. Essa mudança é provocada pela alteração da relação tempo-espaço, proporcionada pelo uso das tecnologias da informação e comunicação – as plataformas digitais, os celulares – o que cria um cronotopo (BAKHTIN, 1992) diferente para o tratamento da notícia, para a relação com as fontes e com o público.

A partir do ponto de vista da sociologia do conhecimento e da sociologia das profissões, a abordagem teórica do newsmaking combina a cultura profissional dos jornalistas, a organização do trabalho e os processos produtivos (GAYE TUCHMAN, 1978), enquadrados por valores-notícia, critérios de noticiabilidade, formato e a construção da audiência (WOLF, 2012). Dessa forma, estamos percebendo alterações que implicam nos valores notícia e nos critérios de noticiabilidade.

Faz parte do andamento produtivo tensões articuladas com o sentido ético da profissão, os valores que são necessários negociar no desenvolvimento de suas atribuições, a concepção de mundo do profissional e a posição editorial do veículo que dialoga com sua natureza e objetivo. Contar com uma rede ampla de jornalistas, em que muitas vezes há falta de condições, e o trabalho não alienado goza de mais liberdade e autonomia, faz esses embates e as “dramáticas do uso de si” (SCHWARTZ, DURRIVE, 2007, p. 194) serem frequentes e marcarem o sentido do jornalismo produzido.     

O trabalho digital no jornalismo: as redações virtuais

Durante as Pesquisas (FIGARO, 2018) e (SILVA,2019) foi possível verificar as formas de organização do trabalho do jornalista em circunstâncias diferentes das redações tradicionais. Analisar as mudanças nesses espaços é fundamental para compreender as transformações no mundo do trabalho do jornalista e os tensionamentos do próprio jornalismo no uso das plataformas.

Sem as condições de trabalho ofertadas pelas corporações de comunicação tradicionais, o espaço virtual de plataformas como G-talk[8], Telegram e WhatsApp é utilizado por arranjos da mídia alternativa como locais de organização de trabalho. Esses arranjos de mídia desafiam os processos produtivos do jornalismo tradicional, para se constituírem em produção jornalística com redação virtual, mais horizontalizadas e com permanente debate sobre aspectos editoriais. Podemos tomar como exemplo analítico: Agência Pressenza[9], Jornalistas Livres[10] e Opera Mundi[11].

Nos Jornalistas Livres, a redação é somente virtual com reuniões de pauta presenciais não periódicas. Na Agência Pressenza é virtual a redação internacional, mas a nacional é física, presencial. No Opera Mundi a redação é mista, ou seja, física e virtual. Nos dois tipos de redações, temos a imposição de perfil de jornalista polivalente, multitarefa, engajado e sem limites, que excede a jornada de trabalho, ocupando também o tempo privado, na execução do trabalho digital e, portanto, na criação de valores de uso e de troca. Assim como nas empresas monopolizadas de mídia, as relações de trabalho são marcadas pela precarização estrutural do trabalho.

É importante ressaltar que, através do olhar sobre o trabalho e as rotinas produtivas, esses processos de transformações que alteram as relações sociais são derivados do avanço das forças produtivas e da própria reestruturação do sistema capitalista. Essa recomposição é permanente e inerente para sustentação da cadeia de valor global do capital.

Não é somente no jornalismo que esse fenômeno acontece. Contudo, pelo papel da comunicação como qualificadora e exponente da geração de valor e por sua função de servidora ativa do sistema dominante, podemos verificar nas relações de trabalho do jornalismo como a antessala das mudanças de determinadas relações sociais.

As mudanças consolidadas com o avanço das forças produtivas, desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, combinadas com o acesso aos softwares, programas e aparelhos por meio da conectividade, configuram-se para esses novos arranjos como espaços de reorganização do trabalho do jornalista.

É essa função que cumpre a redação virtual nessas iniciativas jornalísticas. É nesse novo lugar social de produção do jornalismo, que junto com as ruas onde é realizada apuração in loco das matérias, conformam o chão de fábrica dos jornalistas da mídia alternativa cujo objetivo é organizar, estabelecer a rotina produtiva, consolidar métodos de produção do material jornalístico, se relacionar com as fontes que ora também assumem o lugar de público receptor da comunicação produzida.

Pode ser considerada uma redação virtual o agrupamento on-line a partir de três ou mais jornalistas, configurando um arranjo que tem como finalidade a produção de material jornalístico. A redação pode ser dividida por função ou linguagem (secretaria de redação, editor, fotógrafo, texto, vídeo, charge, tradução, designer etc.), ou editoria (nacional, internacional, política, moradia, cidades, direitos humanos etc.), coberturas, programas ou projetos especiais (em torno de eventos, acontecimentos, elaboração de livros, manuais, reportagens e programas especiais) ou por interesse dos colaboradores (educadores, trabalhadores do transporte, petroleiros etc.) que ora são fontes, ora cumprem papel de elaborar a matéria ou parte dela.

A redação virtual substitui o deslocamento, é o espaço para montar equipes virtuais, independentemente do local, com requisitos específicos em projetos determinados, criando oportunidades de participação para jornalistas.

É o ambiente em que se modulam e se padronizam as relações de trabalho e é o local possível para se observar como esses jornalistas falam sobre e no trabalho (NOROUNDINE, 2002); como constroem valor de uso e de troca; como se dão as novas formas culturais das relações de produção, bem como os valores mobilizados para o trabalho e o que levam do trabalho para a sociedade.

A redação virtual é um espaço finito, delimitado e observável. Os rastros prováveis de recuperação da atividade permitem acompanhar e analisar as transformações do jornalismo, das condições de trabalho do jornalista e as mudanças quanto aos meios de produção, e assim ver como os profissionais interagem nesse contexto determinado com as tecnologias de informação e comunicação.

Essa nova redação se constitui em espaço e tempo nos quais se operam as ações e decisões sobre o trabalho. É ela a instituinte do cronotopo (BAKHTIN, 1992) que conforma a narrativa jornalística, ao mesmo tempo em que é a porta de entrada para analisar o gênero com a respectiva orientação de espaço e tempo e as condições sociais específicas, sendo o cronotopo o centro de organização dos acontecimentos espaço-temporais.

Assim como na redação física, o espaço social da produção jornalística também é marcado por hierarquias e atribuições diferenciadas. Nos três veículos analisados neste artigo, as relações são mais horizontais e o profissional goza de mais liberdade e autonomia no fazer jornalístico. Entretanto, essas relações estão localizadas em espaços-tempos diferentes, como podemos verificar na imagem do fluxo de trabalho dos Jornalistas Livres.

Gráfico 1 – Organização da redação virtual dos Jornalistas Livres

Fonte: Marques (2019)

Essa figura ilustra a hierarquia nos Jornalistas Livres cujas posições centrais orientam e decidem a produção jornalística. Embora essa organização seja diferente da verticalização da redação física, os círculos denotam a presença de direção no arranjo. O círculo menor é o núcleo dirigente que conta com menos pessoas e decide quem entra nos grupos, questões práticas etc.

O segundo círculo, a redação de Publicadores, engloba a secretaria e decide sobre as postagens, conteúdos, distribuição de pauta, etc. Os espaços destinados às coberturas estaduais, especiais e linguagem decidem sobre temas específicos atribuídos para esses locais; e o Colaboradores é um espaço amplo para o envio de textos prontos, fotos, sugestões de assuntos etc. Cada círculo representa uma esfera de decisão. Cada esfera tem seu próprio cronotopo: uma ordem tempo-espacial que resulta em determinado tipo de inserção enunciativa e tem uma lógica produtiva própria.

As redações virtuais analisadas estão inseridas em aplicativos e softwares com origem no exterior (Estados Unidos e Rússia). Essas plataformas detêm e produzem discursos ideológicos próprios e aparentam tornar as relações de produção espontâneas, sem hierarquia, livres e sem interesses no controle algorítmico e na concentração de tráfego na rede mundial de computadores. Parecem ser componentes da esfera pública, quando são essencialmente privadas. Os coletivos e veículos alternativos que analisamos dependem desses aplicativos e softwares para existirem como lugar social do trabalho.

A produção dos arranjos jornalísticos é apropriada pela lógica algorítmica dessas plataformas: tanto na organização do trabalho, quanto na distribuição e circulação do produto jornalístico. Os jornalistas que se dedicam a esse trabalho não são remunerados pelas plataformas, embora contribuam com a produção de dados especializados que passam a constituir um ativo a ser negociado no mercado político, governamental e publicitário.

Por outro lado, verifica-se o esforço desses jornalistas em criar novas formas de produzir e circular jornalismo. A prática deles sintetiza a contradição que se necessita superar na atualidade. Temos meios de produção que nos convidam a socialização dos conhecimentos e das formas de distribuição de riquezas. No entanto, a organização social e política não superou o sistema de concentração imposto pela lógica do capital.

Ainda no que tange à redação virtual, podemos compreender que ela representa o espaço de transformações na produção do jornalismo, contudo, dialeticamente, é o espaço em que se dão as contradições do trabalho e as relações mais precárias, em alguns casos, similares com as do século passado, sem jornada fixa, divisão de tempo de trabalho e não trabalho e intensidade do trabalho com engajamento total e polivalência. Quanto menos formas de sustentação, maior a dependência da tecnologia para fazer jornalismo.

Novos sistemas e práticas são exigidos dentro da redação virtual dos Jornalistas Livres. O método de trabalho para publicação de qualquer material jornalístico é ser aprovado por três pessoas que precisam estar presentes no chat na hora da discussão da pauta. Isso acarreta certo tensionamento constante do jornalismo, expressos nas perguntas sobre o que é pauta, se está de acordo com a linha editorial do veículo, o que merece ser publicado, com qual viés, linguagem e enfoque. Essas são questões permanentes para todos os membros do coletivo.

Essa tensão constante por um lado, evidencia as dissensões entre o grupo e, por outro, torna o jornalismo do coletivo pungente e com vigor, diminuindo as possibilidades de erros por contar com vigilância coletiva.

Os desafios de trabalhar na redação virtual vão além das tensões da área. Como em qualquer outro lugar, o dispositivo comunicacional (MAINGUENEAU, 2001) organiza o discurso orientado pelo locutor, com uma finalidade e forma de ação em interatividade e dialogismo.

A construção das etapas de produção na redação virtual é feita em rede desde a apuração, edição e construção da pauta. Muitas vezes isso ocorre não somente entre os jornalistas do veículo, mas entre outros sites e coletivos da mídia alternativa. Essa é uma diferença essencial entre as redações tradicionais e a da mídia alternativa. Na mídia tradicional, muitas vezes, em busca de um reconhecimento e para se manter no trabalho, o jornalista encara o colega ao lado como seu opositor. A disputa por furos entre as empresas de comunicação é ainda mais sem ética na busca da matéria exclusiva.

No espaço virtual de trabalho dos arranjos alternativos, o editor-geral não dirige as matérias, mas contribui com as etapas da construção jornalística e, ao mesmo tempo, cria modelos de gestão.

A redação virtual da Agência Pressenza agrega profissionais de distintos países e estados – como é o caso do Brasil, contudo também é o espaço de conflitos, tensionamentos acerca do jornalismo e onde se expressam as múltiplas dimensões do trabalho, como o jornalista entende a sociedade e os valores acionados para o trabalho como para si próprio.

Na Agência Pressenza, o coordenador de redação também realiza diferentes funções. Organiza a cobertura da semana, distribui as pautas, coordena a produção e contribui com a formação dos profissionais em temas que têm expertise, tais como otimização de site, análise e mineração de dados.

Desse modo, o papel do editor-geral ou o coordenador de redação passa por uma atualização, seja pelo entendimento de suas funções ou por questões de falta de estrutura. No relatório sobre a adaptação do jornalismo “aos novos tempos” elaborado por Anderson, Bell e Shirk (2013, p. 53), a função do editor é “(...) agregar conteúdo, dar links para material produzido ou não pela organização, fazendo uma meta-análise do processo e de fontes, dando continuidade à cobertura com o cultivo e a recomendação de fontes em público”. Como observamos, na redação virtual o editor faz muito mais que essas atribuições.

Novas funções emanam do trabalho digital. O grupo destinado aos editores dos Jornalistas Livres é chamado de Publicadores, onde “todos que estão nesse chat cumprem também a função de editor” [SILVA, 2019, p. 195]. Porém, o publicador é mais do que editor, porque muitas vezes a função não é editar algum material e sim só postar, distribuir o material em uma rede social ou no site.

Esse trabalho está longe de ser mecânico ou copiar e colar, visto que cada plataforma terá o material distribuído com as características que já são enquadradas por elas. Por exemplo, no Twitter, o publicador precisa elaborar a matéria com até 280 caracteres, utilizar a mensagem mais apropriada para esse mídium que é diferente da postagem feita no Instagram ou Facebook.

As diferenças exigidas são marcadas até pelo léxico utilizado pelos jornalistas. Telegramar (enviar mensagem no Telegram), Facebookar (postar mensagens no Facebook) e Instagramar (fazer postagem no Instagram) são sinônimos de ações específicas do trabalho jornalístico. Da mesma forma que fazer base significa ficar de plantão e ser o responsável pela curadoria de conteúdo, distribuição e circulação do material produzido e enviados por colaboradores em diferentes lugares.

Durante um dia de cobertura intensa esse trabalho requer um método apropriado para que o conteúdo chegue ao seu destino. Fazer base significa organizar o fluxo, estabelecer critérios de relevância do conteúdo, encaminhar para os publicadores que autorizam a publicação, garantir a publicação, gerar o link e distribuir em diferentes grupos para assegurar a circulação.

Nos Jornalistas Livres também há uma jornalista que, entre as atribuições, tem o papel de mediação entre os grupos e administrar todos os chats, passar informação de um para outro, de maneira frenética, o que faz com que se sinta “muitas vezes como aquelas telefonistas de antigamente, tirando um cabo e conectando o outro ou como um chefe de reportagem no tempo que ele organizava o local” (SILVA, p. 198).

A fluência do trabalho em rede é valorizada na redação virtual, mas o desafio de controlar quem pode publicar e em qual rede para manter a vigilância e qualidade do material exige novas atribuições.

Outra jornalista entrevistada (SILVA, 2019) afirma que além das suas atribuições de gravar e editar vídeos, fazer textos e base e distribuir o conteúdo, também é uma mediadora de conflitos e guardiã de todas as senhas que dão acesso aos canais de distribuição. Essa mediação de conflitos, explicitada pela jornalista, é mais exigida, por óbvio, nas redes maiores e, consequentemente, mais complexas, cuja relação é de trabalho voluntário ou nos espaços onde as relações de trabalho são mais precárias.

Na redação virtual, o profissional tem liberdade de ação de maneira distinta da organização de trabalho de uma redação tradicional. O fluxo – e muitas vezes a ausência de um caminho para o processo produtivo – não se dá de forma “militaresca em que é difícil fazer qualquer coisa sem pisar no calo de alguém”, como apontado por Anderson, Bell e Shirk (2013, p. 62) ao analisarem a redação tradicional. De acordo com Franciscato (2018, p. 6), “o fenômeno da inovação é, então, um elemento com potencial para pensar as transformações da atividade jornalística, das organizações e da profissão em um cenário de intensificação dos impactos das tecnologias digitais.”

Em meio a essas transformações e às novas formas de sistematização e tratamento da informação, os critérios definidores de noticiabilidade e valores-notícias se encontram em transição. Esses critérios são comumente encarados de formas subjetivas, exterior à práxis jornalística, e colocam o profissional distante do acontecimento cujo papel é apenas relatar o fato. De forma objetiva, a notícia ou produto informativo é resultado das negociações que acontecem em graus e motivações diferenciadas no seio do processo de produção desde a seleção até a publicação. O objetivo é atrair os leitores, chamando atenção para aspectos da realidade social que o veículo ou o coletivo seleciona.

Os valores-notícia não são estáticos e cumprem a função de nortear a produção cotidiana da matéria jornalística e suas ênfases, embora os interesses e a linha editorial sejam mais perenes e representem elementos de continuidade na decisão sobre porque o acontecimento é considerado notícia. A própria organização da redação virtual por temas, a seleção de fontes e a linguagem utilizada indicam os critérios de noticiabilidade do arranjo alternativo. Opostamente ao uso da fragmentação como tática de manipulação (PERSEU ABRAMO, 2002), o recorte do acontecimento-notícia acontece para recomposição e explicitação do que é o fato, como, onde e quem o realizou e qual é o interesse em demonstrar o evento-notícia.

Ao referenciar a atividade jornalística como análise e relato de uma jornada ou período, a produção da notícia acontece dentro do ínterim da veiculação. No jornalismo realizado no ambiente digital, a lógica e noção de tempo são outras, desde o incontável tempo do imediatismo do furo até a periodicidade e tempo diferentes de acordo com a plataforma utilizada na distribuição.

A mesma matéria produzida pelo arranjo é veiculada em diferentes dias e horários nos canais diversos de distribuição. O uso da tecnologia determina a versão e o horário de distribuição da informação, extrapolando a matéria jornalística e conferindo interdiscursividade à produção.

Desse modo, o avanço e acesso aos meios diminuiu a lacuna entre a produção da redação tradicional e da mídia alternativa, distanciando-a do rótulo de amador, que a grande imprensa sempre colocou nos meios alternativos.

Considerações finais

O processo de reestruturação do sistema do capital iniciado com os abalos da crise de 2007 marca a transição e disputa mundial. Embora algumas plataformas tenham sido criadas antes desse período, como a Elance, fundada em 1999, a Odesk, de 2003 e a Amazon Mechanical Turk, fundada em 2005, é após a crise que as chamadas plataformas austeras (Srnicek, 2018) como Uber e Airbnb nasceram e, ao negar os direitos e garantias sociais, configuram uma nova forma de trabalho.

Assim como WhatsApp e Telegram, todas as plataformas dependem de infraestrutura material instalada de redes de cabos, produtos em conexão e de processos de comunicação para garantir o seu funcionamento. A comunicação é a face dialética do trabalho, sem ela não existe o trabalho de plataforma.

Desta forma, o trabalho do jornalista, que trata a informação, faz a mediação entre acontecimentos e um público mais amplo, é utilizado pelas plataformas para ampliar seus arquivos com esse tipo diferenciado de matéria que só pode ser produzida com a participação de um profissional. Além disso, os veículos jornalísticos geram volume maior de dados para essas empresas que expropriam o valor gerado pelo trabalho digital.

As formas de extração de valor feitas a partir de sistema privado de governança e gestão, baseada em ampla coleta de dados e interações ‘datificadas’ são pontos a serem explorados de forma aprofundada e articulada às discussões atuais sobre capitalismo de plataforma (SRNICEK, 2018).

O capitalismo de plataforma segue os objetivos originários do capital de gerar lucro, controlar mercados, concentração extrema de renda e, consequentemente, desigualdade social através de um modelo econômico que captura a produção massiva de dados.

Por outro lado, em que pese serem empresas e constituírem uma esfera privada, os sites de redes sociais possuem também dimensões de socialização de conhecimento e novas relações produtivas que podem constituir uma cultura de resistência cujo papel é contribuir com a diversidade e pluralidade de informação para a sociedade em busca de avanços civilizatórios.

Compreender e ampliar a discussão sobre o trabalho digital e os espaços virtuais de trabalho são necessários para apreendermos as mudanças desses tempos de transição do modo capitalista de produção e os impactos nas relações sociais como forma de interpretar e gerar mudanças estruturais na realidade.

São exigidas outras qualificações para trabalhar no ambiente das plataformas e é requerida mais compreensão dos mecanismos de comunicação, refletindo em mudanças nas bases sociotécnicas da divisão do trabalho.

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Roseli Figaro é professora livre-docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da USP. Coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (CPCT). Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa; desenvolvimento da discussão teórica; apoio na revisão de texto; redação da primeira parte do manuscrito e revisão da versão em língua estrangeira.

Ana Flávia Marques é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Atua como pesquisadora no Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho. Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa; levantamento dos dados empíricos; interpretação dos dados; apoio na revisão de texto; redação da segunda parte do manuscrito e revisão da versão em língua estrangeira.

Submissão em: 11/11/2019. Revisor A: 06/01/2020; Revisor B: 25/01/2020. Aceite em: 09/03/2020.

Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: FIGARO, Roseli; SILVA, Ana Flávia Marques da. A COMUNICAÇÃO COMO TRABALHO NO CAPITALISMO DE PLATAFORMA: O caso das mudanças no jornalismo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 101-115, abr./jul. 2020.



[1] Aqui indicamos uma matéria jornalística entre as muitas existentes. Ver (Gilbert, 2020) nas referências do artigo.

[2] O assunto foi pauta para muitas matérias jornalísticas. Uma delas pode ser lida no link: https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2019/11/12/como-o-uber-sobrevive-com-prejuizo-de-us-12-bilhao-e-sem-nunca-ter-dado-lucro.ghtml. Acesso em: 08 maio. 2019.

[3] George Soros por seu discurso de Davos, em janeiro de 2020, foi chamado pela revista Exame de “especulador que se transformou em filantropo”. Ora, só a partir de matérias de pouca apuração se pode chegar a essa conclusão. Afinal, Soros, ao protagonizar investimentos na expansão do digital, está garantindo retorno futuro a seus investimentos. Ver a matéria: https://exame.abril.com.br/mundo/george-soros-promete-investir-us-1-bilhao-contra-ditadores/. Acesso em: 08 maio 2019.

[4] No original: “ (…) los datos se han vuelto cada vez más centrales para las empresas y su relación con trabajadores, clientes y otros capitalistas”.

[5] No original: “(...) un nuevo modelo de negocios que ha devenido en un nuevo y poderoso tipo de compañía, el cual se enfoca en la extracción y uso de un tipo particular de materia prima: los datos. Las actividades de los usuarios son la fuente natural de esa materia prima, la cual, al igual que el petróleo, es un recurso que se extrae, se refina y se usa de distintas maneras”.

[6] Podemos citar um elenco de pesquisas realizadas sobre as mudanças no trabalho do jornalista e a quebra da qualidade da informação. Thales Lelo. Reestruturações produtivas no mundo do trabalho do jornalista. Tese de doutorado da Unicamp, 2019. Janara Nicoletti. Reflexos da precarização do trabalho dos jornalistas sobre a qualidade da informação. Proposta de um modelo de análise. Tese de doutorado da UFSC, 2019. Zélia Leal Adghirni. O jornalista: do mito ao mercado, 2017, Insular. Adriana Barsotti. Jornalista em mutação, 2014, Insular. Sylvia Moretzsohn. O novo ritmo da redação de O Globo: a prioridade ao jornalismo digital e seus reflexos nas condições de trabalho, 2014, Parágrafo (FIAM_FAAM). Jacques Mick. A precarização do trabalho dos jornalistas no Brasil, 2013, Fenaj.

[7] De acordo com Nonato; Pachi; Figaro. (2018, p. 104), a “intenção é destacar a possibilidade de que micros e pequenas empresas, organizações não governamentais, organizações da sociedade civil, coletivos e outros grupos de trabalhadores da comunicação e do jornalismo possam representar efetiva alternativa de trabalho (empregabilidade) e de produção de um serviço de qualidade por seus vínculos e compromissos com a democratização dos meios de comunicação e com a sociedade”, de maneira alternativa aos conglomerados de mídia.

[8] G-Talk é Aplicativo de conversa da Google; Telegram é de origem russa; WhatsApp faz parte do monopólio de Mark Zuckerberg, proprietário do Instagram e Facebook. Os três são serviços de mensagens instantâneas baseados na nuvem em é possível o envio de mensagens de diversos formatos e chamadas telefônicas.

[9] Agência Pressenza é a representação da agência de notícias internacional que tem sede em Quito e foi criada em Milão, Itália, em 2009. Com uma concepção pacifista e humanista, “participa de uma ampla rede de novos meios que conseguem difusão mundial de suas propostas locais ao mesmo tempo em que nutrem suas informações com o material que provê a agência” (SILVA, 2019, p. 36).

[10]  Jornalistas Livres “se apresenta como jornalismo democrático, plural, em rede, pela diversidade e defesa implacável dos direitos humanos” (SILVA, 2019, p. 35). Foi criado em 12 de março de 2015 em meio às manifestações pelo impeachment devido à “necessidade urgente de enfrentar a escalada da narrativa de ódio, antidemocrática e de permanente desrespeito aos direitos humanos e sociais”, que é apoiada pela mídia tradicional.

[11] O Opera Mundi, que foi lançado em 2008, se propõe a fazer uma ampla cobertura da política internacional com “incursões na área da cultura, comportamento e debate ideológico” (CERAVOLO e TERRA, 2014, p. 7). Assume-se o posicionamento de esquerda e afirma que “nunca abriu mão de princípios e fundamentos do fazer jornalístico informativo” com a influência do jornalismo da imprensa independente e alternativa.