DOSSIÊ
Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado?
DIGITAL PLATAFORMS AND UBERIZATION: Towards the globalization of an administrated South?
Ludmila Costhek Abílio
Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT - UNICAMP) – Campinas, São Paulo, Brasil.
E-mail: l.c.abilio@gmail.com. ORCID: 0000-0002-2332-8493.
Resumo
Este artigo trata do trabalho de plataforma a partir da definição de uberização, uma tendência global que estabelece novas formas de organização, gerenciamento e controle do trabalho. É analisado o gerenciamento algorítmico: catalisado pelas plataformas digitais, se refere a uma nova forma de controle que opera de forma monopolizada na extração e processamento de dados da atividade da multidão de trabalhadores, costurada pela possibilidade de mapear plenamente o processo de trabalho. A partir da análise do trabalho de revendedoras de cosméticos argumenta-se que características tipicamente femininas e periféricas do trabalho se generalizam com a uberização; com a pesquisa com motofretistas na cidade de São Paulo são analisadas as mudanças em um trabalho que está se uberizando.
Palavras-chave
Motoboys; Revendedoras de cosméticos; Gerenciamento algorítmico; Trabalho de plataforma; Uberização.
Abstract
The article discusses platform work based on the definition of uberization. This definition is understood as global trend that establishes new forms of work organization, management and control. The novelty catalysed by digital platforms refers to an algorithmic management which can be understood as a new form of control that operates in extracting and processing data from the multitude of workers, informed by the possibility of full mapping the work process. The work of cosmetic sellers is brought to the analysis in order to present typically feminine characteristics of work that are becoming generalized; also the results of empirical research with motorcycle couriers and their uberisation in the city of São Paulo are discussed.
Keywords
Motorcycle couriers; Cosmetic resellers; Global South; Platform labour; Uberisation.
Introdução
“é tempo, enfim, de deixarmos de ser o que não somos” (Aníbal Quijano, A colonialidade do poder).
A uberização é aqui definida como uma nova forma de organização, gerenciamento e controle do trabalho, que se apresenta como uma tendência global. Apesar de ter ganhado visibilidade com o trabalho de plataforma (seguindo aqui com a definição de Van Doorn, 2017), a uberização transcende-o: é fruto de décadas de eliminação de direitos, da dispersão global e, ao mesmo tempo, centralizada de cadeias produtivas – aliadas à liberalização de fluxos financeiros e de investimento – e do desenvolvimento tecnológico, que fundamenta novas formas de organização e controle do processo de trabalho. Entretanto, há uma novidade catalisada pelas plataformas digitais que se refere ao gerenciamento algorítmico, o qual precisa mais bem compreendido e analisado pelos estudos do trabalho. Sinteticamente, trata-se da gigantesca possibilidade de extração, processamento e administração de dados da multidão de trabalhadores, de forma centralizada e monopolizada. Estabelecem-se meios novos e obscuros no gerenciamento do trabalho, informados por um pleno mapeamento do processo de trabalho e de um novo tipo de subordinação, que conta com a previsão e a indução individualizada de comportamentos (ZUBOFF, 2018). O difícil acesso às informações das empresas-aplicativo (termo cunhado em ABÍLIO, 2017) sobre os modos de funcionamento das plataformas dificulta a compreensão de como o gerenciamento do trabalho vem sendo concebido e executado; entretanto, é possível perscrutar uma nova forma de controle a partir das perspectivas dos trabalhadores e trabalhadoras uberizados (ABÍLIO, 2019; ROSENBLAT e STARK, 2016; ROSENBLAT, 2018; MÖEHLMANN e ZALMANSON, 2017).
Assim, tratar da uberização requer ao mesmo tempo olhar para o gerenciamento algorítmico e os processos de flexibilização e precarização do trabalho, que, como veremos, culminam de modo entrelaçado na formação de enormes contingentes de trabalhadores just-in-time (ABÍLIO, 2017; ABÍLIO, 2019; DE STEFANO, 2016). Desprotegidos socialmente, estes arcam com riscos e custos de sua atividade, vivem na incerteza sobre sua própria remuneração e carga de trabalho e estão subordinados, sob novas lógicas, a empresas que têm alto poder de monopolização e centralização (SLEE, 2018).
Por isso, é preciso esmiuçar as definições de uberização, de ser just-in-time e o gerenciamento algorítmico. Essas tornam-se mais complexas e também centrais quando olhamos para o trabalho na periferia. Termos como flexibilização, precarização e agora uberização requerem um cuidado permanente com a aplicação de categorias, de modo que não se obscureça a precariedade estruturante do mundo do trabalho em países do Sul, assim como não se invisibilize elementos que são comumente tratados como marginais ou desimportantes (ABÍLIO, 2018; CASILLI, 2018). A perspectiva que costura toda a análise é que a uberização deve ser compreendida como a tendência à generalização de características de mercados de trabalho do Sul, os quais agora ganham visibilidade ao se espraiarem por países do centro e entre trabalhadores com qualificação e rendimento maiores (ABÍLIO, 2017; ABÍLIO, 2019). A análise embasa-se em pesquisa empírica finalizada em 2011 sobre revendedoras de cosméticos (ABÍLIO, 2014), assim como por pesquisa em andamento há cinco anos com motofretistas na cidade de São Paulo (ABÍLIO, 2019). A investigação sobre as revendedoras mostra que a flexibilização do trabalho pode ser compreendida como uma generalização de elementos centrais que definem o trabalho tipicamente feminino e periférico. Estes agora passam a ser potencializados e aprofundados por meio do gerenciamento algorítmico e da uberização (ABÍLIO, 2019). A pesquisa com motofretistas permite evidenciar a profunda reestruturação do trabalho promovida pela entrada das empresas-aplicativo nesse ramo de atividade.
Uberização: Uma tendência para além da plataformização do trabalho
Apesar da visibilidade conferida pela empresa Uber, a uberização não está restrita nem ao setor de transportes nem às plataformas digitais. A perspectiva aqui apresentada vem sendo construída desde 2007, quando termos como crowdsourcing, sharing economy, gig economy ainda não haviam sido formulados. A pesquisa com revendedoras de cosméticos para uma única empresa, a brasileira Natura – que se torna uma gigante mundial com a aquisição da Avon internacional –, já delineava questões que hoje estão fortemente associadas ao trabalho de plataforma, mas que na época foram analisadas pela perspectiva da informalidade e da exploração do trabalho tipicamente feminino (ABÍLIO, 2014). A pesquisa foi realizada a partir de entrevistas baseadas no estudo de trajetórias de vida de 23 revendedoras de diferentes perfis socioeconômicos em São Paulo, além de uma consultora em Paris e outra em Londres; entrevistas semiabertas com cinco funcionários e ex-funcionários da empresa, além de acompanhamento de reuniões da empresa com as consultoras.[1] Em 2007, essa investigação olhava para um exército de 200 mil revendedoras, que apresentou um crescimento exponencial naquela década: em 2011 eram mais de um milhão de revendedoras trabalhando para uma única empresa.
O estudo de uma ocupação tipicamente feminina, socialmente invisível – até os dias de hoje – possibilitou uma perspectiva que já tratava de um trabalho realizado sob o gerenciamento da multidão, gerenciamento que ganharia um nome com o artigo e o livro de Jeff Howe (2006, 2008): crowdsourcing. Com o crescimento do exército de revendedoras delineava-se cada vez mais fortemente a questão: como pode uma empresa organizar toda sua distribuição com base na atividade de um exército de um milhão de trabalhadoras informais? Ao chegar às descrições e análise de Howe foi possível concluir que estava em jogo no mundo do trabalho uma nova forma de organização e controle, que também conta com novos modos de engajamento e mobilização dos trabalhadores. Esse tipo de organização opera não a partir de um contingente preestabelecido de trabalhadores, pelo contrário, pode crescer indefinidamente; não há contrato, mas adesão ao trabalho; formalmente não há pré-requisitos, são habilidades, competências e estratégias pessoais que garantem o sucesso e a permanência na atividade.
O crowdsourcing pode então ser compreendido como uma nova forma de controle e organização do trabalho. Sua definição é complexa, na medida em que envolve uma crescente indistinção entre o que é trabalho e o que não é, assim como entre trabalho e consumo. Envolve desafios sobre o reconhecimento e a categorização de novas formas de valorização e sua relação com atividades que dificilmente podem ser identificadas como trabalho, mas engajam uma multidão de usuários. Podemos entender o crowdsourcing como um novo tipo de terceirização que caminha junto e entrelaçadamente com uma perda de formas do trabalho. Há um deslocamento da constituição de uma identidade profissional forjada no trabalho para a de trabalho amador (DUJARIER, 2009), definição que aqui nomeia um trabalho sem forma trabalho bem estabelecida, que tem alta flexibilidade e transita entre consumo, lazer, trabalho não remunerado e trabalho temporário.
Quando informalidade vira informação
A atividade das consultoras de cosméticos é desempenhada pela multidão de trabalhadoras informais, em um trabalho sem forma trabalho; com elas é possível deslocar o foco excessivo das plataformas para o mundo do trabalho e suas transformações. Provavelmente por ser um trabalho tipicamente feminino, a revenda de cosméticos, e o Sistema de Vendas Diretas como um todo, não têm a visibilidade social da multidão de motoristas da empresa Uber.
O Sistema de Vendas Diretas atua dentro da legalidade, há regulações nacionais e também a organização internacional das empresas que utilizam esse modo de comercialização e distribuição de seus produtos. O exército de trabalhadoras-consultoras é, portanto, legalmente informal. O trabalho das revendas é apresentado pelas empresas de cosméticos quase como se não fosse um trabalho, mas um exercício de sociabilidade, um meio para a promoção da beleza e até mesmo da responsabilidade ambiental. No caso de empresas-aplicativo, e sua multidão de trabalhadores uberizados, a ausência de predeterminações sobre a jornada de trabalho, sobre a dedicação a uma única empresa-aplicativo e sobre procedimentos na execução do trabalho coloca lenha na fogueira da celebração do empreendedorismo e da defesa de que o trabalho de plataforma não guarda vínculos empregatícios.
O trabalho das revendedoras apresenta altas maleabilidade, flexibilidade e capilaridade. As 25 entrevistas em profundidade com revendedoras evidenciaram diferentes relações com a atividade, diferentes percepções, assim como diferentes possibilidades de obter ganhos e de proteger-se dos riscos das revendas. O perfil socioeconômico tem uma ampla variação em termos de idade, rendimento, raça, ocupação. Assim como a categoria Uber Black cria uma distinção entre motoristas pelo valor de seu carro, o que também operará para o lado do consumo – pagar mais para andar em um carro mais caro –, a empresa Natura criou o setor Crystal. Este congrega revendedoras da elite e da classe média paulista que também vendem e circulam entre um público de maior poder aquisitivo, possibilitando que se distingam das revendedoras de baixa qualificação e rendimento.
Assim, as revendedoras mantêm diferentes relações com um trabalho que tem alta permeabilidade com outras ocupações e diferentes sociabilidades, sendo exercido, portanto, como trabalho amador (DUJARIER, 2009; ABÍLIO, 2014; ABÍLIO, 2019). A professora vende nos intervalos do horário escolar; a diarista de limpeza vende para sua patroa e vizinhas enquanto trabalha; a dona de casa monta uma loja informal no térreo do sobrado onde o marido tem seu escritório de contabilidade e torna-se uma das revendedoras que mais vendem em São Paulo; a digitadora de 60 anos de idade largou essa profissão há trinta, passando a dedicar-se inteiramente à revenda de cosméticos. Do mesmo modo que o motorista da Uber afirma que trabalha para pagar a prestação do carro que virou seu meio de trabalho, a revendedora pode engajar-se nas revendas movida pelo objetivo de consumir, concebendo o que seria sua remuneração como um desconto sobre os produtos desejados.
Assim como atualmente milhares de pessoas se tornam empresárias amadoras de suas próprias casas ao aderirem ao Airbnb, milhões de motoristas tornam-se profissionais de transporte ao aderirem ao Uber, milhares de jovens desempregados ou subocupados tornam-se bike boys ao aderirem ao Ifood, Rappi, UberEats (atividade que tem como principal elemento o extenuante uso de sua força física), nas últimas duas décadas centenas de milhares de mulheres aderiram às revendas. Em todos esses casos, adesão significa o engajamento em atividades que trazem riscos e custos ao mesmo tempo em que não oferecem nenhuma garantia, direito ou proteção. A maleabilidade e a flexibilidade dessas atividades permitem diferentes relações de trabalho, além de diferentes possibilidades de se obter uma real remuneração por elas.
Para as empresas, essa flexibilidade da forma trabalho está bem amarrada e administrada: a revenda do lado de fora da fábrica de cosméticos traduz-se em informação administrada para o lado de dentro. As tecnologias da informação permitem que informalidade e produção just-in-time estejam imbricadas e se retroalimentem. Cada revendedora é um número num cadastro de centenas de milhares de trabalhadoras. Seu pedido é uma informação, o fluxo dos pedidos é um conjunto de dados que pautam de forma automatizada o que será produzido, em que tempo, em qual quantidade. A empresa trabalha com baixos níveis de estoque e alta taxa de inovação. O tempo das revendas pauta o da produção; riscos e custos do estoque estão dispersos nas gavetas de revendedoras que vendem em relações informais e sem predeterminações ou garantias legais, ao mesmo tempo que têm seu compromisso com a empresa formalizado por meio de um boleto bancário.
Crowdsourcing e a dispersão global e controlada do trabalho
Com a empresa Natura podemos então ver elementos centrais do crowdsourcing a partir de um trabalho tipicamente feminino e socialmente invisível. A flexibilidade, a falta de definições, a indistinção entre o que é e o que não é trabalho, entre o que é e não é tempo de trabalho, evidenciam a capilaridade do trabalho e sua aderência – o espaço da escola, o espaço da casa, o tempo de trabalho de outra ocupação e o tempo do lazer são colonizados pelas vendas e já não é possível delimitar fronteiras para a análise. Entretanto, para as mulheres essas indistinções não são verdadeiramente novidades. Como desenvolvido mais profundamente em ABÍLIO (2014 e 2018), as fronteiras borradas entre o que é e o que não é tempo de trabalho; o que é espaço da casa e o que é espaço do trabalho; o que é trabalho e o que não é; o que é trabalho remunerado e o que não é, são elementos que estruturam de diferentes maneiras o emprego doméstico, o trabalho em domicílio e o trabalho reprodutivo. A novidade é que tais elementos estão subordinados a uma empresa, que opera com essas indistinções de modo organizado, administrado e produtivo. Ou seja, esses elementos são gerenciados na transformação da atividade da multidão em informação que pauta a linha de produção.
O espraiamento do trabalho por plataformas traz consigo um árduo exercício de compreensão e definição das categorias que o estruturam (CASILLI 2018; De Stefano, 2016; Srnicek, 2016). Atualmente o trabalho por plataforma envolve diferentes setores econômicos, tipos de serviço, formas de trabalho. Antonio Casilli (2018) define como trabalho digital as tarefas que são realizadas por usuários humanos em sites da web e aplicativos, mediadas por algoritmos e baseadas em plataformas. Independentemente da forma mais ou menos visível do trabalho, são trabalhos digitais na medida em que produzem riqueza para as empresas. De Stefano (2016) estabelece duas categorias de análise que estão fundadas na relação entre trabalho e territorialização para pensar múltiplas relações de trabalho e os desafios que trazem sobre sua regulação e categorização. O crowdwork traz consigo as relações de trabalho que são oferecidas e concluídas online. Ou seja, não há uma predeterminação necessária sobre a localidade física onde o trabalho será realizado. Um turker pode aceitar e completar as tarefas da Amazon Mechanical Turk de qualquer local. Já o work on demand (DE STEFANO, 2016) caracteriza-se como trabalho que é oferecido online, mas tem uma determinação territorial para sua conclusão. O motorista da Uber, por exemplo, não pode realizar seu trabalho em qualquer lugar, mas apenas na cidade onde está localizado e de onde se origina o pedido.
Nas últimas quatro décadas, o encontro entre desenvolvimento tecnológico, flexibilização do trabalho e globalização das cadeias produtivas, aliados às políticas de eliminação de direitos e proteções ao trabalhador, consolidaram a possibilidade de dispersar globalmente o trabalho sem perder o controle sobre ele (Bernardo, 2004; Harvey, 1992; Ritzer 2008). George Ritzer (2008), ao cunhar o termo mcdonaldização, mirou na importação e expansão do taylorismo para o setor de serviços. Entretanto, a mcdonaldização não se referia apenas à taylorização do setor terciário que Harry Braverman (1987) já havia apontado nos anos 1970; demonstra também uma dispersão altamente organizada e subordinada do trabalho. Analisando a corporação McDonald’s, o autor mostra como essa empresa enxuta subordina e controla ferozmente a produção de seus fornecedores, da alface aos frigoríficos, como globaliza sua distribuição via franquias e ao mesmo tempo detém controle total sobre a padronização, o tempo da produção e da distribuição, assim como o preço de seus produtos.
Dispersão do trabalho e centralização do controle não envolvem apenas empresas, mas também trabalhadores, elemento central do toyotismo. A figura do home office deixa clara essa dispersão controlada, visto que transfere para o trabalhador o gerenciamento de seu próprio tempo e do seu local de trabalho; entretanto, essa transferência da administração de sua jornada não significa perda de controle sobre seu trabalho. Tanto a figura das metas e bônus, como a da participação nos lucros e resultados, evidenciam novas formas de controle do trabalho que contam com uma dispersão bem-sucedida do gerenciamento para o próprio trabalhador, o qual contribui com incremento de sua própria produtividade.
O trabalho por plataformas possibilita pensar num outsourcing global, na formação de um mercado de trabalho planetário que, entretanto, é geopoliticamente definido (Graham e Anwar, 2019). É um fenômeno global, que produz novas especificidades e desigualdades nos contextos nacionais e é também determinado por estes. Trata-se da formação de um espaço transnacional de exploração do trabalho, que ainda tem constrangimentos da territorialização (cada vez mais restringidos ao trabalho e não ao capital), mas opera desvinculado das regulações e proteções nacionais do trabalho. A perspectiva da formação de um mercado de trabalho planetário (Graham e Anwar, 2019), assim como as categorias de De Stefano (2016) e Casilli (2018), abrem para uma geopolítica do trabalho digital, na medida em que possibilitam pensar as determinações da exploração do trabalho no espaço, a apropriação e os limites das empresas com relação às especificidades locais e nacionais, a divisão internacional do trabalho e como ela é produzida e reproduzida por meio dessa nova forma de dispersão e controle do trabalho. Estão em jogo novos meios de concentração territorializada da demanda de trabalho e dispersão geopoliticamente definida da mão de obra (Casilli, 2018; Graham et. al., 2016). Possibilitam também perscrutar possibilidades e desafios de organização e resistência. Já assistimos à greve mundial dos motoristas Uber, que se reconhecem no espaço da cidade, se articulam e se organizam também espacialmente. Quais seriam as formas de organização dos turkers?
A preocupação é menos a de nos atermos a crítica ou limites dos termos que hoje envolvem trabalho digital, plataformas, uberização, Sul global, e mais a de contribuir com instrumentos de análise que embasem perspectivas críticas. Como afirma Ursula Huws (2003), nossa atual dificuldade em nomear os processos se dá não pela falta de um termo certo, mas pela pouca clareza sobre os horizontes que guiam a análise. Nenhum termo será suficientemente adequado ou preciso na categorização dessas transformações. O que está em jogo é evidenciar os processos cristalizados nessas definições e qual o horizonte crítico que as guia.
Aqui, a categoria Sul sintetiza o trabalho socialmente invisível, recorrentemente associado às margens do desenvolvimento e à descartabilidade social, historicamente associado aos negros e, mais especificamente, às mulheres negras. No Brasil, estas se encontram na base da pirâmide social, nas ocupações de mais baixa remuneração, no trabalho informal e no emprego doméstico. O movimento de dispersão e centralização traz consigo o espraiamento de características tipicamente periféricas do trabalho que, entretanto, estão subordinadas a novos modos e ganham novas visibilidades.
Gerenciamento algorítmico e consolidação do trabalhador just-in-time
A definição de trabalhador just-in-time (ABÍLIO, 2017; ABÍLIO, 2019; DE STEFANO, 2016) põe à mostra o cerne das novas formas de controle, gerenciamento e exploração. Elas trazem uma nova complexidade à flexibilização do trabalho, na medida em que consolidam a transferência de riscos, custos e responsabilidades para o trabalhador, ao mesmo tempo que eliminam proteções, direitos e garantias. Tornou-se possível, de forma administrada, racionalizada e produtiva, converter uma multidão de trabalhadores em trabalhadores informais que estão disponíveis ao trabalho, mas só são utilizados na medida determinada pelas próprias empresas.
A figura do trabalhador que está disponível, mas só é remunerado de acordo com a exata utilização de sua força de trabalho não é uma novidade, pelo contrário, mobiliza a permanentemente conflituosa relação entre capital e trabalho. O conflito materializa-se historicamente nas batalhas entre reduzir o trabalhador a força de trabalho eficientemente utilizada no tempo e no espaço ou reconhecê-lo como um ser humano que tem direito ao descanso no decorrer e fora de sua jornada, à segurança sobre sua própria reprodução, ao envelhecimento etc. Materializa-se na luta pela redução dos poros do trabalho, faz-se nos limites ou desregulações do tempo de trabalho e de sua intensidade. Nesse cabo de guerra os nós da corda são feitos pelas definições em permanente disputa e movimento, nunca universalizadas, do que é justiça e dignidade. A uberização parece consolidar a redução do trabalhador a mero fator de produção que, enquanto pessoa, passa a estar inteiramente responsabilizado por sua própria reprodução social. Nada lhe está garantido, nem a remuneração, nem a carga de trabalho, nem o tempo de trabalho, ao mesmo tempo que está disponível para ser utilizado quando necessário. Nessa consolidação há um embaçamento entre o que é e o que não é tempo de trabalho, o que também pode significar que todo tempo é potencialmente tempo de trabalho (ABÍLIO, 2014). Ser just-in-time é ser um motorista da Uber que passa doze horas logado, em uma fila de centenas de motoristas no aeroporto, à espera de uma corrida (MACHADO, 2017). Agora vemos o dia a dia dos bike boys, que perambulam pela cidade doze horas por dia, sete dias por semana, movidos pela espera da próxima entrega (ALIANÇA BIKE, 2019). Ser just-in-time é adoecer de ansiedade e burn out, como já mostram estudos sobre os trabalhadores da plataforma Amazon Mechanical Turk, que chegam a passar 24 horas do dia conectados esperando uma tarefa que pode vir do outro lado do globo (Bergvall-Kareborn e Howcroft, 2014).
Afirmar que o trabalhador disponível só será utilizado na exata medida da demanda requer destrinchar o que se sustenta e se cristaliza nesse argumento. É preciso, de saída, explicitar que “exata medida da demanda” não se refere à defesa de um equilíbrio geral – supostamente abstrato e neutro – entre oferta e procura. A noção liberal de equilíbrio geral é central hoje para que empresas-aplicativo se apresentem como meras mediadoras, promotoras de um simples encontro autorregulado entre oferta e procura, assim como embasa a perspectiva de que o uso de algoritmos no gerenciamento do trabalho se fundamenta em uma aleatoriedade neutra.
Caminhando com Gillespie (2018, p. 98), algoritmos são procedimentos codificados, orientados por resultados desejados; não se trata de concebê-los como “realizações técnicas abstratas” e sim, “desvendar as escolhas humanas e institucionais que estão por trás desses mecanismos frios”. Quando olhamos para as empresas-aplicativo e sua multidão de trabalhadores uberizados, é preciso mirar no controle do trabalho. Em um poderoso processo de informalização, a pergunta urgente e necessária é: quem detém o poder de definir as regras do trabalho e como elas operam. Rosenblat e Stark (2016), ao tratarem do gerenciamento algorítmico, referem-se à assimetria de poder e informação como elementos fundamentais para a estruturação do controle da Uber sobre os trabalhadores. Baseados em acompanhamento dos fóruns de discussão e em entrevistas com motoristas, os autores evidenciam como as regras que regem a distribuição do trabalho no tempo e no espaço, e as possibilidades de remuneração, operam de modo permanentemente cambiante, sendo obscuro para os trabalhadores como elas funcionam e o que as fundamenta. Não há clareza nem mesmo sobre quais são as regras.
Recorrendo a Zuboff (2018), um dos elementos do capitalismo de vigilância é a possibilidade tecnológica de mapear plenamente as diferentes etapas do processo de trabalho. Esta não é apenas uma mudança quantitativa, altera qualitativamente a forma como o trabalho pode ser organizado e a racionalidade que opera em seu gerenciamento. Ainda, a administração refere-se à possibilidade de codificar e transformar a vida cotidiana em dados – a serem processados, gerenciados e utilizados para fins que não estão claros para o cidadão/consumidor/trabalhador.
Hoje o discurso do empreendedorismo e da liberdade de escolha é propagado na uberização (ROSENBLAT, 2018; ABÍLIO, 2019), inclusive pauta argumentos jurídicos para o não reconhecimento de vínculos trabalhistas; mas em realidade o que está em jogo é um autogerenciamento subordinado (questão aprofundada em ABÍLIO, 2019). Autogerenciamento no sentido de que, submetido a um gerenciamento obscuro e cambiante que define/determina quanto ele pode ganhar e quanto tempo terá de trabalhar para tanto, o trabalhador estabelece estratégias de sobrevivência e adaptação, visando ao mesmo tempo decifrar, adequar-se à e beneficiar-se da forma como o trabalho é organizado, distribuído e remunerado. Essas estratégias também são previsíveis e integráveis à gestão. É preciso considerar ainda que o trabalhador não tem poder algum de interferência – nem mesmo de negociação – sobre as regras de distribuição e remuneração do trabalho. O gerenciamento algorítmico, em sua relação com o crowdsourcing, realiza um mapeamento pleno da distribuição da multidão de trabalhadores, a avaliação permanente de sua produtividade, um rastreamento constante e onipresente das dinâmicas da demanda. Estabelece procedimentos – obscuros, informais e definidos humanamente – que determinam e alteram a distribuição dos trabalhadores no tempo e no espaço, que beneficiam trabalhadores mais produtivos, que punem trabalhadores que não se adequarem às regras que nem mesmo estão acordadas.
O trabalhador uberizado adere, não é contratado. De modo que não é demitido, mas pode ser desligado. Saindo do campo obscuro dos algoritmos e voltando às revendedoras, já ficava evidente que a concorrência é um instrumento poderoso que regula o dia a dia da atividade. Mecanismos informais operam na vigilância do trabalho e nos estímulos às estratégias pessoais que garantem a produtividade e a permanência naquele trabalho. O desligamento não era um elemento tão operante, mas a concorrência e as dificuldades na venda podiam funcionar como incentivos à desistência e ao mesmo tempo estabelecimento de estratégias pessoais, como abrir mão de parte da remuneração para vender mais. Já as bonificações, premiações e ranqueamentos operam onipresentemente, o que coloca a revendedora para trabalhar, para arcar com riscos e custos que ela não previa inicialmente, para dedicar-se à atividade em busca do reconhecimento como bem ranqueada. No caso do gerenciamento algorítmico, ranqueamento e bonificação são incorporados como método de gestão, por meio de elementos programados e automatizados da formação, extração e gerenciamento de dados. São utilizados na definição de procedimentos e resultados a ser obtidos, em uma retroalimentação permanente entre a ação dos trabalhadores, a participação vigilante dos consumidores (ABÍLIO, 2017) e a gestão do trabalho.
O termo gamificação do trabalho (SCHOLZ, 2013) nomeia essa racionalidade nos novos tipos de informalização do trabalho. Na realidade, consiste numa transferência de riscos e em estímulos à produtividade, que também são novas formas de controle sobre o trabalho. A forma-desafio que é lançada ao trabalhador deixa claro que nada está garantido, nem mesmo a remuneração pelo trabalho executado. É preciso arriscar-se, e o risco é justamente o de trabalhar de graça, na medida em que a bonificação pode ou não chegar. Assim como é a empresa-aplicativo que define as regras do jogo, pode ser ela também que define quem será o vencedor. Um dos entrevistados, Mauro, 39 anos, motofretista há 15, narra o gerenciamento de sua produtividade operando, sua percepção deixa evidente o saber-se subordinado, vigiado e controlado:
Se o tempo estiver chuvoso, igual hoje de manhã, eles mandam mensagem às 9 horas: ‘das 10h até as 13h, fazendo 8 pedidos delivery você ganha mais R$50’. Se você não fizer você não ganha o bônus (...). Eu, você e outro motoboy estamos trabalhando lá, são 8 pedidos para conseguir o bônus. Eu e você fizemos 7, o outro motoboy fez 4. Para quem eles vão jogar a entrega? Para o outro motoboy.
O trabalhador põe à mostra que aquilo que aparece como uma aleatoriedade algorítmica na realidade pode ser uma distribuição programada. Enquanto não se abrir a caixa preta do gerenciamento algorítmico, são apenas hipóteses confirmadas ou não pela experiência dos trabalhadores e trabalhadoras, que podem até mesmo ser rotuladas como mitos e lendas urbanas (na definição um tanto decepcionante de Möehlmann, Zalmanson, 2017). Como alega Zuboff (2018), as empresas têm sido vencedoras na defesa de sua privacidade em detrimento da dos cidadãos.
Motoboys: Da vida loka do pai de família para o trabalho amador
“estão transformando nossa profissão num bico” (fala de um motoboy, Gig – uberização do trabalho)
A pesquisa empírica com motofretistas vem sendo feita desde 2014, de modo que foi possível ver em ato o processo de uberização de seu trabalho.[2] Em 2014 apliquei 50 questionários semiabertos com motoboys em diferentes bairros da cidade. A estratégia era abordá-los em seus pontos de descanso/espera pela cidade. Alguns trabalhadores e uma trabalhadora dispuseram-se a conversar fora do horário de trabalho, o que resultou em cinco entrevistas guiadas pelo estudo de trajetórias de vida (REVEL, 1998). Em 2019 realizei mais duas entrevistas com motofretistas, todas orientadas pelo estudo de trajetórias de vida, no âmbito do projeto Informalidade no Brasil Contemporâneo.
Em 2014 a pesquisa evidenciou que ser motoboy era uma ocupação tipicamente masculina e que não era ocupação tipicamente juvenil, apesar de ter participação de jovens. Um terço dos entrevistados tinha até 30 anos e os outros dois terços, entre 30 e 60 anos. Quanto à escolaridade, 35% tinham ensino fundamental completo ou incompleto e 47%, ensino médio completo. Nenhum dos 50 respondentes havia concluído o ensino superior.
Quanto à jornada de trabalho, 90% trabalhavam mais de oito horas por dia, 50% ultrapassam dez horas e 20 % trabalhavam usualmente entre 13 e 16 horas diárias como motoboys. Com relação à remuneração, havia uma variação significativa: de R$500 a R$4.500, do seguinte modo: 30% tinham remuneração entre R$ 500 e R$ 1.500; 40% tinham remuneração entre R$1.300 e 2.000; 20%, entre R$ 2.500 e 3.000; 10%, acima de R$3.000. Entretanto, seu rendimento familiar per capita apresentava uma uniformidade: 80% auferiam rendimento familiar per capita inferior a R$1.500, dos quais 60% inferior a R$ 1.000, sendo que 39% auferiam rendimento inferior a R$ 800.
A variação da remuneração explicava-se pela experiência do trabalhador e pelo tipo de relação que estabelecia com a atividade. Até sua uberização, o motoboy tinha diferentes contratos e formas de remuneração. Estes permanecem operantes, mas de modo reduzido frente ao processo de monopolização das empresas-aplicativo, acompanhado de uma crescente multidão de motofretistas autônomos. O trabalhador pode ser contratado diretamente por uma empresa, por exemplo, ser empregado de uma corretora de imóveis, formalizado ou não. Pode ser contratado terceirizado, ou seja, é contratado por uma empresa de motoboys, a qual presta serviço para aquela corretora, fornecendo o trabalho de um de seus motoboys. Nesses casos, geralmente têm um salário fixo, o que eles chamam de trabalhar com contrato. Mas há também o contrato de trabalho definido como esporádico. Os esporádicos recebem o piso salarial mais um valor pelas entregas que fazem; podem estar formalizados ou não.
Até a entrada dos aplicativos, o trabalhador com contrato geralmente era aquele que fazia uma opção por uma remuneração menor, mas com mais segurança e menor intensidade de trabalho. Trata-se da diferença entre ter um salário fixo ou ser remunerado por entrega. Era comum a frase dos entrevistados, “eu era esporádico, mas casei, tive filhos e mudei para o com contrato”. Para o trabalhador esporádico a remuneração depende da oferta de trabalho da empresa, mas também de seu próprio conhecimento sobre a cidade e de suas competências para realizar mais entregas, lidando com o cálculo permanente entre risco e remuneração.
Além de ser responsável pela manutenção de sua moto e ter de saber dirigir “aniquilando o espaço pelo tempo” (HARVEY, 1992), cabe ao motoboy uma série de saberes que envolvem tarefas burocráticas, como autenticação de documentos em cartórios e coleta de assinaturas de documentos; monetárias, como pagamento de contas, retirada de talões de cheque e transporte de valores; entrega de bens pessoais, como livros e exames médicos; transporte e entrega de produtos delicados, como flores e alimentos; além de não só transportar com a moto, mas carregar com as próprias mãos objetos pesados, como galões de água.
Na pesquisa em 2012, os entregadores de pizza geralmente faziam jornada dupla; a entrega de refeições podia então ser considerada um bico, um complemento de renda – tanto que alguns entrevistados diferenciavam ser motoboy de ser entregador de pizza. O entregador de alimentos trabalhava em uma área mais restrita e com apenas um tipo de entrega.
Passados cinco anos, uma parte significativa das empresas terceirizadas quebrou na concorrência com as empresas-aplicativo. A empresa Loggi entrou no mercado paulistano no final de 2013, hoje está avaliada em US$ 1 bilhão e tem mais de 25 mil motofretistas cadastrados. Apresentou este ano o plano ambicioso de realizar qualquer entrega em qualquer local do país em um dia (FIESER, 2019). Como descreve outra reportagem, a “estratégia de expansão agressiva da empresa” inclui “explorar desde o transporte a pé até entregas feitas por barcos” (STACHEWSKI, 2019, online).
Quando a pesquisa com motoboys teve início, em 2014, os aplicativos de entrega ainda eram uma novidade. A maioria dos entrevistados trabalhava para empresas terceirizadas de entrega ou diretamente empregados por pequenos estabelecimentos, em sua maioria recebendo o piso salarial da categoria mais a remuneração por entrega.
As entrevistas em profundidade realizadas em 2014 e 2019 evidenciam que a opção pelos aplicativos se dá majoritariamente por uma tentativa de eliminação da mediação das empresas terceirizadas. Entretanto, o crescimento da adesão dos trabalhadores aos aplicativos e a centralização e monopolização conquistadas por algumas empresas-aplicativo delineiam um novo tipo de concorrência, um fator permanente de degradação das condições de trabalho e da remuneração. Como explica Mauro, o motofretista já citado:
Você vai até achar estranho de eu falar só Loggi, hoje eles conquistaram o mercado, tanto que você tem que trabalhar até meia-noite, a carga horária aumentou... antigamente você tinha meta, eu particularmente e vários amigos meus, tinha meta de R$300 por dia…’Eu vou fazer, tipo, até as 6h, no máximo até 7h’… você conseguia… hoje não. É o que a gente fala, o cara quando não tem família, é solteiro, é diferente, ele trabalha até a hora que ele quiser, então hoje a Loggi está praticamente obrigando você ficar até meia-noite, 11 horas, na rua.
Mauro explicita o autogerenciamento subordinado: os motofretistas uberizados definem as metas que têm de alcançar cotidianamente, mas a duração de sua jornada dependerá inteiramente do modo como o trabalho lhes for distribuído. Em tempos de crise econômica e aumento da concorrência, potencializa-se a precariedade do ser just-in-time.
Com o trabalho uberizado, a distinção entre o que é e o que não é tempo de trabalho torna-se nebulosa, assim como o que é trabalho pago e trabalho não pago. Estar disponível ao trabalho, à espera das entregas, torna-se tempo de trabalho não pago, envolvendo a tarefa permanente de encontrar estratégias que garantam mais trabalho, ou em outros termos, engajar-se no deciframento das regras cambiantes do gerenciamento algorítmico. Ainda com Mauro:
Antes tinha muita entrega, não tinha tanto stress, não era tão nervoso, hoje em dia você cansa mais andando de moto, gastando sem ganhar nada do que trabalhando. Por isso que eu falo, nesse último ano agora, pelo amor de Deus, o stress, nervoso, cansaço, as dores físicas nas costas, mental, piorou, porque você está andando mais de moto do que fazendo serviço, porque você tem que ficar rodando.
A concorrência entre as empresas tem como instrumento o rebaixamento do valor do trabalho. Segundo Mauro, os trabalhadores não estão organizados para enfrentar essa desvalorização, quanto mais aderem individualmente aos aplicativos, mais veem coletivamente o valor de seu trabalho ser rebaixado. A entrada dos aplicativos como iFood, Rappi, UberEats, Glovo, altera as características da oferta de trabalho e o perfil dos trabalhadores. Estabelecimentos que não utilizavam delivery – mercados, restaurantes de pequeno porte, sorveterias, entre outros – passam a fazê-lo. Também aí operam novas formas de subordinação e monopolização desses estabelecimentos (MADUREIRA, 2020). O que era um bico para os motoboys – a entrega de comida – vai se tornando sua principal tarefa. Com a crise econômica, trabalhadores desempregados, subutilizados e em ocupações precárias tornam-se motoboys uberizados. O que era uma profissão agora pode ser vivenciado como mais uma tentativa precária, instável, improvisada, passageira, de garantir a própria sobrevivência.
Em São Paulo, para ser motoboy para a empresa Loggi é preciso que o motofretista esteja regularizado como tal no departamento de trânsito, com moto branca de menos de cinco anos e com placa vermelha, e seja MEI (microempreendedor individual). Essa não é uma exigência de todas as empresas-aplicativo. Isso requer uma série de custos para o trabalhador. Entretanto, a empresa criou um meio de facilitar a adesão. O programa Loggi Start permite que o trabalhador que não esteja regularizado se cadastre no aplicativo; a regra é que ele pode trabalhar para a plataforma por até um ano. Para tanto, recebe um valor menor por sua hora de trabalho. A descrição de Mauro mostra uma mudança na própria figura profissional do trabalhador e em sua relação com o trabalho:
Porque funciona assim, eles têm um ano para se regularizar, a pessoa não vai se regularizar, ela vai ganhar dinheiro, e fora a escravidão que ela faz, é um absurdo... que nem, esse galpão aí pega e entrega para esses caras fazerem de R$38, para você ganhar dinheiro, meu, você vai rodar muito, é 15, 20 pacotes, é muito serviço para ganhar R$38. Então eu olho para os caras e falo: vocês são doidos. [Passa um motoboy Loggi Start] Olha aí, tudo cheio, Loggi Start que passa, é humilhação que eles estão fazendo, os caras vêm com mercadoria tudo para o lado de fora, é pedir para ser assaltado, eu não faço isso.
A profissão do motoboy sempre foi precária, com baixos índices de formalização, insalubre e arriscada. Distantes da figura clichê do cachorro loko, na realidade esses profissionais enfrentam discriminações cotidianas, têm no espaço conflituoso e violento do trânsito seu local de trabalho, mobilizam permanentemente suas competências e estratégias para garantir uma remuneração melhor. Casilli (2018) evidencia o deslocamento da categoria trabalho para a de tarefas. A partir da análise do trabalho das revendedoras, inspirada em Dujarier (2009), pode-se pensar na categoria de trabalho amador. Maleabilidade, capilaridade, perda de formas preestabelecidas do trabalho fundamentam o deslocamento da identidade profissional do trabalhador, que de motoboy-motofretista torna-se um entre os milhares de entregadores temporários por aplicativo.
A uberização de seu trabalho tem de ser compreendida em sua dupla face: monopolização e novas formas de gerenciamento, controle e subordinação do trabalho. Vemos em ato a transformação do motofretista em trabalhador just-in-time e amador, que, diferentemente daqueles que já de forma precária e arriscada ficavam jogando dominó no quintal de uma empresa terceirizada até chegar a vez de sua próxima entrega – recebendo um piso salarial e tendo ciência das regras da distribuição –, passa a ficar rodando pela cidade em busca do chamado, concorrendo com a multidão, sem nem mesmo ter clareza sobre as regras que regem seu trabalho. Em vez de um valor por entrega pré-definido e baseado na distância e no tempo de trabalho, ou uma remuneração estabelecida por um contrato, agora passam a operar as definições obscuras e oscilantes sobre o valor do trabalho, as bonificações e estímulos para dirigir na chuva, na neve, na madrugada. A necessidade de trabalhar todos os dias da semana, mais de doze horas por dia, se dá na nebulosidade do que é e do que não é tempo de trabalho, ou, melhor dizendo, na ampliação de seu tempo de trabalho não pago. Vemos uma perda de formas socialmente estabelecidas desse trabalho que passa a se apresentar como um bico permanente que, entretanto, ocupa inteiramente o tempo da vida do trabalhador.
Conclusão: a monopolização produtiva de um viver periférico generalizado
Apesar de ter uma participação ainda pequena nas economias europeias, o trabalho por plataforma apresenta um crescimento veloz (HUWS et al., 2018). O termo gig economy vem sendo utilizado como um guarda-chuva analítico para essas ocupações mediadas por/subordinadas a empresas-aplicativo. Também vem sendo perigosamente traduzido e importado para a realidade brasileira como economia dos bicos, o que invisibiliza e obscurece elementos estruturais do mundo do trabalho daqui que estão sendo apropriados e subordinados sob novas lógicas.
Nas dualidades evolucionistas e estruturantes, tão bem evidenciadas por Quijano (2005), que se fazem entre desenvolvimento e subdesenvolvimento, centro e margem, trabalho formal assalariado e trabalho informal, o modo de vida periférico é associado ao atraso, aos resquícios do desenvolvimento, às margens onde residem os não integrados e não integráveis da modernização – como os jovens bike boys negros periféricos, as empregadas domésticas, os motoboys.
O estabelecimento de estratégias pessoais, o trânsito por diversas ocupações, o acúmulo de diferentes tarefas, as indefinições sobre o que é tempo de trabalho e o que não é, o trabalho não pago, a incerteza e a ausência permanentes de garantias sobre a remuneração não são novidade para trabalhadores da periferia, dando aqui o sentido ao que definimos como Sul. Esse modo de vida é persistentemente invisibilizado quanto a sua centralidade no desenvolvimento e acumulação capitalistas.
Quando se constrói um olhar a partir da periferia o que fica evidente é que, na uberização, empresas-aplicativo conseguem subordinar massivamente e apropriar-se de forma organizada e produtiva de um autogerenciamento que é constitutivo do viver de trabalhadores e trabalhadoras periféricos. A real vida loka do trabalhador motoboy hoje está subsumida, controlada e gerenciada por algumas poucas empresas que conseguem ao mesmo tempo monopolizar os setores em que atuam e transformar as estratégias cotidianas dos que vivem permanentemente na precariedade em dados administrados, integrando de forma monopolizada e racionalizada o viver por um fio (CASTEL, 1998) à gestão.
Portanto, o viver periférico é agora centralizado e produtivamente administrável. Para além dessa façanha, as características tipicamente periféricas do trabalho passam hoje a apresentar-se como tendência global nas formas de organização e controle do trabalho. Reconhecê-las como tendência global não quer dizer apenas enxergá-las na gig economy – termo que em realidade cristaliza que o invisível modo de vida do Sul chegou ao Norte, também de forma subordinada e monopolizada. Seguindo com a perspectiva de Casilli (2018) de tornar visíveis as atividades produtivas invisíveis, é preciso dar um passo além e compreender que os elementos que estruturam a vida dos trabalhadores da periferia vêm se generalizando por meio do que denominamos flexibilização do trabalho. A uberização apresenta uma mudança qualitativa nessa flexibilização por meio da combinação entre gerenciamento algorítmico e redução do trabalhador a trabalhador just-in-time. É preciso, portanto, salientar que a uberização não se restringe aos trabalhos de baixa qualificação e rendimento oferecidos nas plataformas, mas se apresenta como uma tendência poderosa que atravessa generalizadamente o mundo do trabalho. Não se trata de uma generalização homogênea: a produção, reprodução e aprofundamento de desigualdades se fazem também por dentro da uberização. Trata-se do espraiamento de características tipicamente periféricas do trabalho, que agora ganham uma visibilidade outra e que, talvez, sejam reconhecidas em sua centralidade.
Referências
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Ludmila Costhek Abílio é pesquisadora do CESIT (IE/UNICAMP), pós-doutoranda em Desenvolvimento Econômico no IE/UNICAMP, pós-doutora em Economia pela FEA/USP, doutora em Ciências Sociais pelo IFCH/UNICAMP e mestre em Sociologia pela FFLCH/USP.
Submissão em: 12/11/2019. Revisor A: 10/01/2020; Revisor B: 09/02/2020; Revisor B: 03/03/2020. Aceite em: 08/03/2020
Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: ABÍLIO, Ludmila Costhek. PLATAFORMAS DIGITAIS, UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E REGULAÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020.
[1] A pesquisa sobre as revendedoras foi sediada no programa de Doutorado em Ciências Sociais, IFCH-UNICAMP, entre 2007 e 2011, com financiamento do CNPq.
[2] A pesquisa com os motoboys tem três fases. A primeira foi sediada na Faculdade de Economia da USP, como parte de pesquisa de pós-doutorado financiada pela FAPESP entre 2012 e 2015. Nesta apliquei 50 questionários semiestruturados com motofretistas, realizei entrevistas em profundidade baseadas no estudo de trajetória de vida com cinco destes trabalhadores em São Paulo, além de entrevista aberta com fundadores da empresa Loggi. Em 2018 realizei duas entrevistas em profundidade com motofretistas, uma em São Paulo e outra em Campinas. Estas integram a atual pesquisa de pós-doutorado sediada no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (CESIT) – UNICAMP, financiada pela CAPES; contei também com auxílio da Fundação Perseu Abramo como parte da pesquisa nacional sobre trabalho informal no Brasil por mim coordenada entre 2018 e 2019.