DOSSIÊ
PLATAFORMAS DIGITAIS, UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E REGULAÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
DIGITAL PLATFORMS, UBERIZATION OF WORK AND REGULATION ON CONTEMPORARY CAPITALISM
Vitor Filgueiras
Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Salvador, Bahia, Brasil.
E-mail: fvitor@hotmail.com. ORCID: 0000-0002-3284-9178.
Ricardo Antunes
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) – Campinas, São Paulo, Brasil.
E-mail: rlcantunes53@gmail.com. ORCID: 0000-0002-9035-0033.
Resumo
O objetivo deste texto é analisar a relação entre trabalhadores/as e as chamadas plataformas e aplicativos, bem como as possibilidades de sua regulação, à luz do uso das novas tecnologias da informação e comunicação (TIC). Para tal, apresentamos os principais elementos da narrativa dominante das “plataformas”, contrapondo-os às evidências empíricas oriundas das relações estabelecidas. Ao contrário do ideário empresarial, estas relações são caracterizadas por uma intensa exploração do trabalho. Tecnicamente, nunca foi tão fácil regular o direito do trabalho. Porém, politicamente, talvez nunca tenha sido tão difícil. A narrativa sobre o que são essas empresas joga papel importante na promoção dessa gestão precarizante, ainda que haja sinais de resistência dos trabalhadores a esse processo.
Palavras-chave
Uberização; Assalariamento; Regulação.
Abstract
The aim of this text is to analyze the relationship between workers and "platforms" and "applications", as well as the possibilities for their regulation, in the light of the use of new information and communication technologies (ICT). To this end, we present the main elements of the dominant narrative from the “platforms”, contrasting them with the empirical evidence from the actual relationships. Contrary to business rhetoric, these relationships are characterized by an intense exploitation of labour. Technically, it has never been easier to regulate labour law. However, politically, it may never have been so difficult. The narrative about what these companies are plays an important role in promoting this kind of management, even though there are signs of workers' resistance to this process.
Keywords
Uberization; Wage labour, Regulation
Introdução
Nesta segunda década do século XXI, têm sido crescentes as alusões e análises sobre grandes transformações na organização e natureza das relações de trabalho associadas à utilização de novas tecnologias, particularmente da informação e comunicação, que se acentuam ainda mais com as propostas e avanços da chamada Indústria 4.0 (e o consequente aumento da automação e da inteligência artificial).
Não é a primeira vez que são reivindicadas grandes mudanças no mundo do trabalho em escala global. É recorrente a tese de que determinadas transformações levariam até mesmo à perda de centralidade do trabalho em nossa sociedade. Esse chamado adeus ao trabalho, todavia, não se confirmou. (ANTUNES, 1995, 1999). E mais recentemente, uma retórica em alguma medida assemelhada vem propugnando a tese de que as supostas novas formas de trabalho estariam substituindo o assalariamento como modo predominante de organização do trabalho, engendrando uma espécie de novo adeus à classe trabalhadora (FILGUEIRAS e CAVALCANTE, 2020).
Na conjuntura atual, parte desse movimento se expressa em um leque de palavras presentes nas plataformas digitais que, a despeito de não designarem exatamente os mesmos processos, se aproximam por se relacionar ao uso de ferramentas digitais e da internet para gerir a produção e o trabalho, como as chamadas plataformas digitais e os aplicativos. Uma miríade de atividades pode ser efetuada presencialmente (entregas, transporte, limpeza etc.) ou eletronicamente (por meio do próprio computador, como serviços de engenharia, tradução etc.). Seu crescimento e sua natureza, entretanto, merecem uma avaliação crítica, ao mesmo tempo cautelosa e rigorosa, de modo a evitar conclusões superficiais e precipitadas.
Desde logo é necessário contrapor-se ao léxico e à retórica empresarial acerca desses chamados novos negócios, novas formas de organização, especialmente porque a narrativa do capital é um elemento central para, ao escamotear sua natureza, alcançar com maior eficiência seus objetivos. Mascarar, e assim negar o que efetivamente significam, tem sido um ingrediente central para o dito sucesso das plataformas e aplicativos.
Assim, o objetivo deste artigo é analisar algumas características das mudanças que o mundo do trabalho vem experimentando, particularmente no que concerne à utilização das novas tecnologias, e em relação à natureza e à processualidade dessas mudanças no controle, organização e regulação do trabalho por aplicativos e plataformas.
Os principais argumentos desenvolvidos podem ser assim resumidos:
1) As supostas novas formas de organização do trabalho associadas ao uso das novas tecnologias de informação e comunicação (TIC) e às empresas que se apresentam como plataformas ou aplicativos são, de fato, estratégias de contratação e gestão do trabalho que mascaram o assalariamento presente nas relações que estabelecem. A negação do assalariamento é elemento central da estratégia empresarial, pois, sob a aparência de maior autonomia (eufemismo para burlar o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho para recrudescer a exploração e sua sujeição;
2) A recusa da condição de empregador como estratégia de gestão e controle do trabalho é um fenômeno praticado há décadas; porém, a utilização das TIC por plataformas e aplicativos vem potencializando e aprofundando exponencialmente esse processo. Isso ocorre tanto quando o discurso empresarial propaga a narrativa de que os trabalhadores/as seriam seus clientes (e, portanto, desprovidos de relações de trabalho efetivas), quando se utiliza destas novas ferramentas de processamento e transmissão de dados para subordinar, sujeitar e ampliar os níveis de exploração da força de trabalho;
3) Vivemos um momento de contradição quase irônica no capitalismo contemporâneo. Do ponto de vista técnico, a utilização das TIC na gestão do trabalho torna a identificação e a efetivação de direitos aos trabalhadores/as mais fácil do que em qualquer outro período da história. Contudo, o discurso de que estamos diante de novas formas de trabalho que não estão sujeitas à regulação protetiva (ou de que não é possível tal regulação) tem desempenhado papel fundamental para legitimar, incentivar, cristalizar e acentuar a falta de limites à exploração do trabalho e à precarização de suas condições. A mesma tecnologia que torna a regulação tecnicamente mais fácil é apresentada pelas empresas como fator que inviabiliza a proteção. E esse contraditório e complexo movimento, típico da razão instrumental e de suas engrenagens de dominação, tem impactado fortemente as legislações, as instituições públicas, além de se constituir em um elemento a mais para dificultar e obliterar a criação de laços de solidariedade e de organização da classe trabalhadora.
Nossos argumentos estão alicerçados em uma série de dados e informações de bases primárias e secundárias, além da revisão crítica de parte da bibliografia disponível. Em relação às fontes primárias, esse artigo apresenta os resultados de pesquisa que resultou de 26 entrevistas com trabalhadores/as de quatro empresas de entrega, entre 20/05/2019 e 17/10/2019, na cidade de Salvador (BA). Desses, 16 eram motoboys e 10 bike-entregadores, abordados em efetivo labor em sete bairros da cidade. Além da aplicação de questionário semiestruturado, a pesquisa adotou a estratégia metodológica de captação de prints das telas dos celulares (quando autorizada pelos trabalhadores), de modo que as informações coletadas são incontroversas quanto às jornadas, pagamentos e outras características da relação entre trabalhadores e aplicativos[1].
Tecnologias digitais e novas relações de trabalho?
Na produção acadêmica, nas instituições, nos veículos de comunicação, nos meios empresariais, há uma profusão de termos para definir transformações nos negócios do capital e no mundo do trabalho, que estariam associadas ao uso das novas TIC. Gig-economy, platform economy, sharing economy, crowdsourcing, on-demand economy, uberização, crowdwork, trabalho digital, entre outros, para os quais há mais dissenso do que consenso.
De Stefano (2017), por exemplo, apresenta uma definição que pode englobar platform economy, gig-economy e collaborative economy. Para o autor, nestas atividades o trabalho seria contratado ou realizado através das TIC, podendo ser efetuado digitalmente (crowdwork) ou presencialmente (on-demand).
Nesse contexto, ganham destaque as empresas que se identificam como aplicativos ou plataformas digitais. É frequente a ideia de que o objetivo desses empreendimentos seria conectar a demanda de clientes por serviços específicos ofertados por trabalhadores/as provedores (THE HAMILTON PROJECT, 2015). Nessa mesma direção, outra definição mais ampla de platform economy como intermediação contempla tanto serviços quanto bens e ativos a serem vendidos (FARELL, GREIG, 2016)[2].
A análise também pode ser feita numa perspectiva que relaciona transformações na estrutura empresarial e do trabalho. Neste caso, as plataformas digitais significariam uma mudança fundamental no processo de outsourcing, que permitiria que trabalhadores/as superassem as barreiras dos mercados de trabalho locais para potencialmente realizar tarefas de qualquer lugar do mundo para outro. (GRAHAM et al., 2017).
Crowdwork, work on-demand e digital labour também podem aparecer como sinônimos. É o caso de Chesalina (2017), que defende que a platform economy estaria acompanhada pela ascensão de novas formas de emprego, não mais caracterizadas pela transferência de atividades de uma empresa para agentes específicos, mas para um grande número de indivíduos ou organizações indefinidas.
Nosso objetivo aqui não é esgotar e nem delimitar precisamente cada um dos termos, mas tão somente identificar características comuns, presentes nestas expressões e fenômenos que têm impacto relevante na natureza das relações de trabalho. Assim procedendo, parece-nos essa terminologia pretende identificar fenômenos que possuem as seguintes identidades típicas das TIC: 1) contatos on-line entre produtores e consumidores; trabalhadores e empresas; 2) uso de aplicativos ou plataformas para acesso em computador ou instrumentos móveis de comunicação; 3) uso abrangente de dados digitais para a organização e gestão dessas atividades; 4) relações estabelecidas por “demanda” (ou seja, que resultam de arranjos por cada produto, desprovidos de segurança jurídica capaz de garantir sua continuidade).
A posição de perfil mais acrítico, que parece predominar, é a de que essas transformações têm sido benéficas para quem trabalha, dentre outras razões, porque permitiriam que as restrições de oferta de serviços especializados por questões geográficas fossem reduzidas, facilitando também a busca por oportunidades de renda para trabalhadores/as, independentemente da sua localização espacial (KITTUR, et al, 2013). Ou ainda, de que as plataformas e aplicativos tornariam a conexão e comunicação entre provedores de serviços e consumidores, mais fácil e dinâmica, constituindo mercados on-line que facilitariam os negócios para ambos (MANYIKA et al, 2016).
Um dos elementos centrais das análises e das disputas nesse cenário (muitas vezes reproduzido acriticamente) é o fato de que as organizações se apresentam como empresas de tecnologia, “intermediárias” entre “consumidores e produtores”, constituindo um mercado de “dois lados”, com externalidades cruzadas por redes (VALENDUC, 2019). Dada a inexistência de compromisso formal de continuidade da contratação de serviços, essas empresas apresentam o argumento de que trabalhadores/as realizam as atividades apenas quando querem e onde querem.
Afirma-se também que plataformas e aplicativos criam ambientes de trabalho mais atrativos para quem tem estilos diferentes de vida, sem a rigidez dos empregos tradicionais e assim facilitam a manutenção de mais de um emprego. Também é comum a alegação de que esses trabalhos são apenas um meio de conseguir uma renda extra ou um modo divertido de conseguir dinheiro no tempo livre (DI STEFANO, 2017).
A ideia de expansão das oportunidades para pequenos negócios, desenvolvida com a ampliação das TIC, é também bastante difundida pelo Banco Mundial (World Bank, 2019) e instituições congêneres e apresentada como uma variante de neoempreendedorismo. Isso acarretaria, então, uma democratização dos meios de produção (basta ter um computador/celular, carro ou mesmo bicicleta) para a produção autônoma de renda, seja como criador, seja como parceiro de uma startup. E o léxico corporativo, com sua alta dose de mistificação, acrescenta: mais do que nunca, seu sucesso só depende de você. Tendência que se intensifica quando as empresas alegam disponibilizar aplicativos ou as plataformas digitais para pessoas que querem ofertar e melhorar seus negócios, engendrando a ideia de que o/as trabalhadores/as são clientes das empresas. Por exemplo, a Uber afirma que o/as motoristas não são empregados, nem prestam serviço à empresa, mas sim aos consumidores, de modo que são o/as trabalhadores/as considerados independentes que contratam os serviços do aplicativo e não o contrário. Nessa mesma direção, também é comum identificar nos estudos sobre esta temática, a responsabilização do/as trabalhadores/as pelo sucesso ou fracasso em aproveitar as “oportunidades” fornecidas pelas plataformas (MANYIKA et al., 2016).
É preciso reconhecer, entretanto, que há posições críticas sobre essas transformações vinculadas às TIC. Alguns autores indicam que defender e mesmo justificar a instabilidade e mesmo intermitência em nome da flexibilidade não é uma estratégia recente para invisibilizar a figura do empregador e assim dificultar a regulação protetiva do trabalho (IRLE, 2017). Outros argumentam que o trabalho em plataforma deve ser entendido no contexto mais geral de precarização do trabalho (HUWS, 2014 e 2003; DE STEFANO, 2017; ANTUNES, 2018).
Os assim chamados apps e plataformas digitais impõem os/as trabalhadores/as, quase sempre, o rótulo de autônomo/as, sendo o trabalhador/a remunerado por tarefa ou lapsos temporais mínimos (como horas), sem qualquer garantia de jornada e de remuneração, o que acarreta implicações importantes na dinâmica da gestão e controle da força de trabalho (dada a ausência de compromisso explícito de continuidade).
Enfeixa-se o ciclo da lógica da exploração nas grandes plataformas digitais, visto que as corporações alegam que: 1) são empresas de tecnologias digitais; 2) fazem a intermediação de atividades nas quais trabalhadores/as oferecem serviços de forma autônoma; 3) convertem a força de trabalho em clientes; 4) eliminam a subordinação, alegando liberdade para trabalhar quando, onde e como quisessem.
Mesmo entre autores críticos, muitas vezes não se percebe ou não se explicita o caráter assalariado dessas relações ou se supõe que é impossível sua regulação (STANDING, 2016, 2014). Em linhas gerais, prevalece a ideia de que houve ou haverá grandes mudanças na natureza da organização do trabalho e que esse fenômeno está produzindo alterações estruturais nos mercados de trabalho.
Em nosso entendimento, entretanto, a chamada uberização do trabalho somente pode ser compreendida e utilizada como expressão de modos de ser do trabalho que se expandem nas plataformas digitais, onde as relações de trabalho são cada vez mais individualizadas (sempre que isso for possível) e invisibilizadas, de modo a assumir a aparência de prestação de serviços. Mas, os traços constitutivos de sua concretude, como veremos a seguir, são expressão de formas diferenciadas de assalariamento, comportando tanto obtenção de lucro, exploração do mais valor e também espoliação do trabalho, ao transferir os custos para seus/suas trabalhadores/as que passam a depender diretamente do financiamento de suas despesas, que são imprescindíveis para a realização de seu labor.
Diferentemente da planta produtiva taylorista e fordista que foi dominante no século XX, na era do automóvel, as empresas liofilizadas e flexíveis desta nova fase digital-informacional-financeiro, vêm impondo sua tríade destrutiva em relação ao trabalho, no qual a flexibilidade, a informalidade e a intermitência se convertem em partes constitutivas do léxico, do ideário e da pragmática da empresa corporativa global. Vem ocorrendo tanto a derrelição e corrosão da legislação protetora do trabalho, quanto imposta uma nova legislação que em verdade permite as formas mais arcaicas de exploração, como ocorreu com a legalização do trabalho intermitente na contrarreforma trabalhista realizada pelo governo Temer em 2017 (ANTUNES, 2018).
Enquanto o conjunto amplo, compósito e heterogêneo da força global de trabalho nas plataformas digitais e nos aplicativos se torna responsável por suas despesas de seguridade, gastos de manutenção de seus veículos e demais instrumentos de produção (que os capitais, em um vilipêndio ideológico desmesurado definem como sendo proprietários dos meios de produção), a plataforma digital se apropria da mais-valia gerada pelos trabalhos, burlando sistematicamente as formas de regulamentação do trabalho existentes.
Não é por outro motivo que, a partir da expansão das TIC, ampliaram-se os processos de precarização da força de trabalho em amplitude global, que propiciou inclusive a universalização do termo uberização do trabalho. Floresce, então, nas plataformas digitais e nos aplicativos, um mosaico de modalidades de trabalho, como se pode presenciar na Amazon (e Amazon Mechanical Turk) e nos aplicativos de transportes privados e delivery da Uber (e UberEats), Cabify, 99, iFood, Rappi, Glovo etc., criando um novo proletariado de serviços que padece das vicissitudes da chamada escravidão digital (ANTUNES, 2018).
Liberdade e flexibilidade, ou mais subordinação e controle?
Como outros autores já indicaram, a tecnologia digital não é condição necessária para a adoção de modalidades contratuais de trabalho flexibilizadas e precarizadas (DE STEFANO, 2017). Do mesmo modo, a estratégia de contratar trabalhadores/as, negando sua condição de assalariamento, vem se intensificado há algumas décadas (FILGUEIRAS, 2016). Muito antes da existência das plataformas dos aplicativos, já se falava na expansão de novas formas de trabalho. Dentre outros exemplos, temos as cooperativas, o aluguel de cadeira, o trabalho integrado, os sócios, freelancers, o trabalho avulso etc. Nesses casos, negar a condição de assalariamento é uma estratégia chave na gestão do trabalho, pois, ao precarizar (negando direitos e garantias) e transferir os riscos o/as trabalhadores/as, acaba por trazer novas dificuldades para a organização e resistência às determinações do capital, acentuando, inclusive, sua subsunção (FILGUEIRAS, 2013).
Conjugando o rótulo do trabalho autônomo (ou a negação da própria relação de trabalho) com o contrato por tarefa[3], o/as trabalhadores/as, além de não terem salário, renda ou jornada garantida em seus contratos, não gozam de qualquer direito, mesmo quando conseguem um serviço. Assim, a grande novidade na organização do trabalho introduzida pelas novas TIC é, além de potencializar exponencialmente as formas de obtenção de lucros e até mesmo de extração do mais valor, é o de permitir que as empresas utilizem essas ferramentas como instrumental sofisticado de controle da força de trabalho, de que são exemplos o registro em tempo real da realização de cada tarefa, velocidade, local e movimentos realizados; a mensuração das avaliações; tudo sob o aparente comando dos algoritmos.
E este novo fetiche do mundo tecnológico do capital permite, ao mesmo tempo, que se expanda o ideário fetichizado de que tudo está sob impulsão de uma neutra tecnologia, autônoma, quando é a engenharia informacional do capital que tem de fato o comando do algoritmo e, portanto, dos ritmos, tempos, produtividade e eficiência no universo microcósmico do trabalho individual, tendência que não para de se acentuar com a proposta da chamada Indústria 4.0., como se esta fosse um imperativo inexorável da tecnologia.
A ideia de liberdade e flexibilidade (trabalhar quando e onde quiser) propagada pelas empresas constitui, na verdade, a transferência deliberada de riscos para aumentar o controle sobre os/as trabalhadores/as, pois essa liberdade significa ausência de salário garantido e incremento de custos fixos que se convertem em responsabilidade dos mesmos. Ademais, em contradição com o discurso da liberdade, as plataformas e aplicativos empregam ao menos 11 medidas explícitas para controlar os/as trabalhadores/as, conforme apuramos nos termos de uso, autos de infração, processos judiciais, entrevistas realizadas e mensagens de celulares analisadas. As plataformas e os aplicativos têm um claro receituário, que executam cotidianamente:
Primeiro: determinam quem pode trabalhar. Se elas são mais ou menos exigentes na admissão, isso não muda o fato de que as decisões são tomadas segundo suas conveniências e interesses (estratégias). Os/as trabalhadores/as estão sempre sujeitos à aceitação do cadastro na plataforma para poder trabalhar.
Segundo: delimitam o que será feito, seja uma entrega, um deslocamento, uma tradução, uma limpeza, etc. Os/as trabalhadores/as não podem prestar serviços não contemplados pelas plataformas e aplicativos.
Terceiro: definem que trabalhador/a realizará cada serviço e não permitem a captação de clientes. Ou seja, as empresam contratam (ou não) os serviços segundo suas conveniências. As avaliações dos clientes são apenas um dos instrumentos para uma decisão de alocação que é a empresa que realiza.
Quarto: delimitam como as atividades serão efetuadas. Isso ocorre nos mínimos detalhes, seja o trajeto, condições dos veículos, controlando até mesmo o comportamento do/as trabalhadores/as frente aos clientes.
Quinto: determinam o prazo para a execução do serviço, tanto para as entregas, quanto os prazos máximos para realização das traduções, projetos e demais atividades realizadas.
Sexto: estabelecem de modo unilateral os valores a serem recebidos. Essa é uma variável chave, porque os pagamentos são manipulados para dirigir o comportamento do/as trabalhadores/as. Aqui entram os algoritmos, que, conforme dissemos anteriormente, nada mais são do que programas comandados pelas corporações globais, para processar grande volume de informações (tempo, lugar, qualidade) que permitem direcionar a força de trabalho segundo a demanda em todos os seus momentos.
Há uma espécie de leilão invertido que coloca os/as trabalhadores/as em concorrência permanente, na busca por um novo labor a ser executado. Criam-se mercados de trabalho no interior de cada empresa, visando ao enfraquecimento do poder de barganha da força de trabalho. Assim, um amplo contingente (recrutado em diversas profissões, em sua maioria desempregada) fica à disposição da plataforma, para competir entre si, permitindo que haja sempre a possibilidade real de rebaixamento salarial.
Essa baixa remuneração converte-se em importante mecanismo para a imposição de longas jornadas, uma vez que para sobreviverem, são obrigados a arcar com o conjunto dos custos de manutenção, comprando ou alugando carros e motos e assim contraindo dívidas que dependem dos salários percebidos para serem quitadas. De fato, quanto menor a tarifa paga, mais horas de trabalho serão necessárias para garantir a sobrevivência do indivíduo.
Não bastasse a instabilidade das tarifas, as empresas usam promoções para tornar os rendimentos ainda mais incertos. Nos casos do/as entregadores/as pesquisados, constatamos que é frequente que mais de 50% dos pagamentos sejam provenientes das metas cumpridas ao longo das jornadas de trabalho e das gorjetas percebidas. As empresas muitas vezes chegam a determinar até o valor das gorjetas que os trabalhadores podem receber.
Sétimo: determinam como os/as trabalhadores/as devem se comunicar com suas gerências. Por exemplo, é vedado a/os entregadores/as acessar o site RECLAME AQUI, redes sociais, ou quaisquer outros meios que não aqueles estipulados pelas empresas.
Oitavo: pressionam os/as trabalhadores/as para serem assíduos e não negarem serviços demandados. No site da Uber, por exemplo, explica-se que o/a trabalhador/a poderá ser desativado se tiver uma taxa de aceitação de corridas menor do que a taxa de referência da cidade. Em nossas entrevistas, realizadas em Salvador, detectamos mensagens de empresa que questiona o entregador que só realizava pedidos acima de determinada quantia.
Nono: pressionam os/as trabalhadores/as a ficar mais tempo à disposição, através do uso de incentivos. Como relatado por todos os entrevistados, são comuns as promoções, que atuam como metas com horários a serem cumpridos pelos entregadores/as, para incitar que trabalhem por mais tempo.
Décimo: usam o bloqueio para ameaçar os/as trabalhadores/as, o que implica deixá-lo/as sem poder exercer suas atividades por tempo determinado, por inúmeras razões arbitrárias, sempre determinadas pelas plataformas.[4]
Décimo primeiro: utilizam a possibilidade de dispensa a qualquer tempo e sem necessidade de justificativa, sem qualquer espécie de aviso prévio, como um importante mecanismo de coerção e disciplinamento da força de trabalho. Isso transparece de modo patente nas entrevistas e nos termos de uso de diversas empresas. Vário/as entregadores/as entrevistados relataram seus desligamentos arbitrários e mesmo quando recorreram ao suporte da empresa, nenhuma justificativa objetiva lhes foi oferecida.
Todas essas medidas de controle mantêm os/as trabalhadores/as em completa instabilidade, convertendo-se o regramento acima descrito em poderoso instrumental de gestão e controle da força de trabalho. Ao assim procederem, as empresas utilizam-se desta condição de vulnerabilidade, que é enormemente potencializada pelas TIC que permitem uma infinidade de dados que podem ser usados contra a classe trabalhadora.
O controle e a subordinação são ainda mais exacerbados pela transferência dos riscos a/os assalariados/as, que inclui a assunção de custos, como a aquisição de carros, celulares, computadores, bem como a sua manutenção. As empresas conseguem, então, transformar instrumentos de trabalho em capital constante, sem nenhum risco e sem necessidade de terem sua propriedade formal.
Desse modo, para as empresas há ampla flexibilidade (DAL ROSSO, 2017), mas para o/as trabalhadores/as a flexibilidade (escolher horários, periodicidade, locais e forma de trabalho) é apenas aparente, porque na prática são obrigados a trabalhar mais para garantir sua sobrevivência e manutenção de seus instrumentos de trabalho, exatamente como a empresa indica.[5]
A despeito de não gozar da flexibilidade aludida pelas empresas, trabalhadores/as (e instituições) são fortemente influenciados por esse discurso, interiorizando-o em suas práticas e em suas subjetividades. E, mais uma vez, a “neutra” tecnologia digital emerge para aperfeiçoar o controle e mesmo sujeição, ao oferecer uma radiografia completa de como atuam os/as trabalhadores/as, com uma precisão inimaginável para o próprio Taylor. Assim, as TIC, com seus instrumentos de controle e exploração, ao exasperar a retórica das novas formas de trabalho, procuram legitimar e cristalizar a estratégia de gestão do capital. Forma-se, então, uma situação aparentemente contraditória: poucas vezes o trabalho foi tão estritamente controlado (agora pela via informacional-digital), enquanto o discurso apologético não para de propagandear as benesses do trabalho autônomo, livre, do empreendedorismo etc. Não é difícil constatar que, na contrapartida destas formulações apologéticas, estamos presenciando o advento de um novo proletariado de serviços que não para de se expandir na era digital (ANTUNES, 2018; ANTUNES e BRAGA, 2009).
Uma fenomenologia da exploração sem limites
Os rigorosos monitoramento e controle das empresas são normalmente acompanhados pelo labor intensivo e salários rebaixados. Nas atividades de entrega com bicicletas, por exemplo, pesquisa da Aliança Bike (PERFIL, 2019) sobre os ciclistas, realizada em junho de 2019, com 270 entregadores, indica que 57% trabalham todos os dias (de segunda a domingo) e 55% trabalham 10 ou mais horas por dia (apenas 25% trabalham menos do que 8 horas diárias). São resultados muito parecidos com os obtidos por nossa pesquisa em Salvador, em que a jornada média foi de 10h23min por dia, seis dias na semana. Em ambos os casos, os limites legais de jornada e descanso são amplamente ignorados. Essas situações são também similares às detectadas para os entregadores no Reino Unido (FILGUEIRAS e CAVALCANTE, 2020).
Em vários setores, é comum que os trabalhadores passem muito tempo on-line esperando por serviços. Por isso, como apurou pesquisa da OIT:
Noventa por cento dos trabalhadores da pesquisa relataram que gostariam de trabalhar mais do que atualmente, citando trabalho insuficiente e baixos salários como os motivos para não fazê-lo. Apesar do desejo por mais horas, muitos já estavam trabalhando muito: 40% dos entrevistados relataram que trabalhavam regularmente sete dias por semana e 50% indicavam que haviam trabalhado por mais de 10 horas durante pelo menos um dia no mês passado. O baixo salário, combinado com a necessidade de trabalhar, resultou em trabalhadores gastando longas horas online (DE STEFANO, 2017, s/n, tradução nossa)[6].
Não por acaso, por exemplo, os indivíduos em zero hour contracts (em que se enquadram os/as trabalhadores/as digitais), também no Reino Unido, laboram ora muito mais, ora muito menos do que a média, criando uma espécie de polarização das jornadas (FILGUEIRAS et al. 2017). Algo muito semelhante é verificado no Brasil após a reforma trabalhista de 2017 (KREIN et al., 2019). Além disso, ao contrário do propalado pelas empresas, a maioria do/as trabalhadores/as não têm vínculos apenas pontuais com essas empresas para uma renda extra (DE STEFANO, 2017; PERFIL, 2019). Similarmente, em nossa pesquisa, 70% dos entregadores só possuíam essa ocupação. Assim, configura-se uma tendência à subsunção permanente do trabalho à dinâmica do capital (e não apenas durante a jornada), já que trabalhadores/as passam a moldar sua vida toda à demanda (ou possibilidades de encontrá-la) por seus serviços, podendo ficar initerruptamente à disposição.
Fotografia 1 – Tela de celular de trabalhador de empresa de entrega
Fonte: Os autores
Como já indicamos, as baixas remunerações são condição essencial para a submissão dos trabalhadores a longas jornadas. Há várias evidências de que isso procede de maneira dramática, como ilustra o print acima, em que o entregador trabalhou sete dias seguidos, ficou on-line por mais de 61 horas, e recebeu apenas 212 reais. Em São Paulo, trabalhando 09h24min por dia, os entregadores ganham R$ 936,00 por mês (PERFIL, 2019); se fosse uma jornada legal de 44 horas, eles receberiam R$762,66 por mês. Em Salvador, um/a entregador/a recebe, em média R$ 1.100,00 por mês; mas, quando se restringem a uma jornada de 44 horas, conseguem apenas R$780,64 mensais. Em ambos os casos, a renda média da jornada regular é muito inferior ao salário mínimo.
A grande São Paulo, a pesquisa realizada por Moraes, Oliveira e Accorsi (2019), com 100 motoristas de transporte particular por aplicativo, oferece um quadro particular. Segundo os autores, os/as motoristas entrevistado/as, por um lado, se sentem como empreendedores/as e valorizam a flexibilidade da jornada de trabalho, mas, contraditoriamente, seguem em busca de um trabalho formal, reclamam da carga horária de trabalho excessiva, da baixa remuneração percebida e entendem a falta de vínculo como um fator negativo na relação às empresas similares de transporte particular por aplicativo.
Na pesquisa verificou-se a predominância do trabalho masculino (88%), com a faixa etária entre 26 e 45 anos (69%); escolaridade oscilando entre o ensino médio completo e superior completo (90%); pouco tempo de trabalho com o aplicativo (89% até dois anos); jornada diária de trabalho entre 6 e mais de 8 horas (77%); dirigindo de 5 a 7 dias por semana (73%); remuneração bruta[7] inferior a R$ 2.000,00 (90%) por semana, tendo no aplicativo de transporte sua fonte única de remuneração (57%) (MORAES, OLIVEIRA, ACCORSI, 2019, p. 667).[8]
Dentre os aspectos positivos, os/as trabalhadores/as citam as “vantagens como a oportunidade de conhecer outras pessoas e certa liberdade para determinar o próprio horário de trabalho”, mas não deixam de apontar as desvantagens, como a “necessidade de trabalhar muitas horas na semana; a ausência de “total liberdade para definir a jornada de trabalho”; a falta do vínculo empregatício; “os rendimentos auferidos na atividade são inferiores ao de um emprego tradicional”, além de afirmar que “gostariam de ter carteira assinada” e “direitos trabalhistas” (MORAES et al., 2019, p. 674).
No Brasil, o rendimento médio do setor de transporte de passageiro/as (em que predomina o trabalho autônomo) na média móvel de setembro de 2019 (PNAD) foi de R$ 1.876,00 e tem caído justamente após a expansão do UBER (chegou a ultrapassar R$ 2.050,00 em 2014). Motoristas com carteira, em 2018, tiveram média salarial de R$ 2.137,00 (sem contar demais direitos). [9]
Nos arranjos sem reconhecimento do vínculo de emprego, as longas jornadas, que remetem aos primórdios da Revolução Industrial (BASSO, 2018), bem como a negação completa de direitos do trabalho acentuam os riscos à própria vida do/as trabalhadores/as, pois as plataformas e aplicativos não se consideram responsáveis pela saúde e segurança do trabalho. Em julho de 2019, em São Paulo, o trabalhador (motoboy) Thiago de Jesus Dias, no exercício de seu trabalho para a Rappi, sofreu um AVC e, sem receber atendimento imediato da empresa, morreu alguns dias depois. O descaso, brutal e desumano, repercutiu fortemente na grande imprensa (ANTUNES, 2019, p. 548).
Sabemos que esse trágico acidente letal não é um caso isolado. Segundo Relatório da Companhia de Engenharia de Tráfego da cidade de São Paulo, em 2018, os acidentes fatais com motociclistas aumentaram 18% (360 no total)[10], ultrapassando, pela primeira vez, aqueles envolvendo pedestres. Além dos acidentes de trânsito, os trabalhadores/as estão também expostos à violência que resulta em morte durante o labor. Segundo matéria publicada por Mike Issac (The New York Times, 23 de agosto de 2019)[11], 16 motoristas do Uber foram assassinados no Brasil até meados de 2019. Na grande São Paulo, apenas em setembro, ocorreram cinco assassinatos de motoristas.[12]
Vale destacar que quando adoecem, descansam, tiram férias, têm seus instrumentos de trabalho fora do funcionamento, em todas estas situações, os rendimentos são zerados para os/as trabalhadores/as. É por isso que, para sobreviver, atenuar suas vicissitudes e manter seu vínculo de trabalho, são obrigados a trabalhar por longas horas, suprimir descansos, intensificar suas jornadas e ainda agir em estrito acordo com o que é determinado pela empresa.
Em suma, se as novas TIC trazem grandes mudanças para o mundo do trabalho, os seus elementos centrais estão canalizados tanto para elevar a capacidade de controlar e comandar um enorme exército de força sobrante de trabalho, do que resulta um aumento exponencial, tanto na exploração, quanto na espoliação do trabalho, levando ao limite os interesses ditames do capital e de suas corporações. Desse modo, as TIC se configuram como um elemento vital, dentre os distintos mecanismos de acumulação criados pelo capitalismo de nosso tempo. Ao contrário da equivocada previsão do fim do trabalho, da classe trabalhadora e da vigência da teoria do valor, o que de fato temos é uma ampliação do trabalho ainda mais precarizado, que se estende e abarca (ainda que de modo diferenciado) desde os/as trabalhadores/as da indústria de software aos de call center (o infoproletariado ou cibertariado), atingindo crescentemente os trabalhos nos bancos, comércio, fast food, turismo, além da própria indústria e agroindústria etc. (ANTUNES et al., 2009; HUWS, 2003, 2014).
É por isso que, nos dias atuais, é difícil encontrar qualquer modalidade de trabalho que não tenha alguma forma de interação e dependência de celulares, computadores, smartphones e assemelhados, sendo que a gestão praticada nos moldes das plataformas tornou-se potencialmente expansível para um imenso conjunto de ramos e setores. São estabelecidas relações sem qualquer limite de jornada, renda, saúde, segurança. Nesse sentido, é necessário acentuar que esse vilipêndio em relação ao trabalho não é uma possível remissão ao futuro. No presente, a expansão do trabalho digital vem demolindo a separação entre o tempo de vida no trabalho e o tempo de vida fora dele (ANTUNES, 2018; 2019).
Nesse cenário, algumas contradições emergem. Primeiro, com a individualização dos serviços e da remuneração, a exploração se torna mais explícita – sabe-se quanto cada trabalhador/a produz e o qual o percentual desse valor que é apropriado pela empresa, que está rigorosamente quantificado nas plataformas digitais, ao mesmo tempo em que se nega, de modo mais do que dissimulado, a natureza assalariada das relações de trabalho.
Ademais, o controle do capital se reforça e se reproduz com a ideia de que os/as trabalhadores/as estão se autogerindo. Mas, contrariamente, as plataformas digitais controlam todo o processo, determinam os formatos exatos dos contratos de trabalho, pagam, mobilizam, ameaçam e dispensam. Os/as trabalhadores/as são induzidos a adotar estes comportamentos e estas atitudes, não lhes cabendo outra alternativa, se querem permanecer exercendo o seu labor. O fato de serem submetidos a estas condições, então, não significa que a iniciativa, o controle e a autonomia das atividades estejam em suas mãos.
Contudo, tratando-se de um sutil mecanismo de sujeição, ao menos nas primeiras fases do trabalho, não é de surpreender que o consentimento seja maior em relação aos ditames empresariais. Não por acaso, esses/as trabalhadores/as externam com frequência a defesa de uma suposta liberdade existente, dada a aparente ausência do patrão, ou também vejam como positiva a flexibilidade (FILGUEIRAS e CAVALCANTE, 2020). Tudo isso, entretanto, tende a se desvanecer, quando se vivencia um cotidiano pautado por vilipêndio, exploração e precarização, como procuramos demonstrar ao longo do artigo.
Por fim, justamente quando é mais fácil proteger o trabalho do ponto de vista tecnológico, mais difícil se torna politicamente implementar essa regulação, por conta da assimetria de forças em que a retórica joga papel muito importante, como veremos.
É impossível criar mecanismos de proteção ao trabalho?
No capitalismo, dar efetividade aos direitos previstos para a classe trabalhadora é um desafio central que constitui a própria história do movimento operário. Desde os primórdios das normas de proteção ao trabalho, a luta do capital para impossibilitar os direitos da classe operária é marcante, como seminalmente indicou Marx em O Capital (MARX, 2013). Com o advento das novas TIC e seu uso pelas empresas na gestão e controle do trabalho, podemos provocativamente dizer que nunca foi tão fácil, do ponto de vista técnico, efetivar o direito do trabalho. As novas tecnologias (particularmente a internet e os dispositivos móveis) tornam muito mais rápido, preciso e incontroverso identificar os trabalhos realizados, seus tempos e movimentos, suas durações, pagamentos e demais ocorrências, assim como impor às empresas o cumprimento de normas.
A identificação de todos os aspectos da relação de emprego, antes dependente de testemunhas, papéis e inspeções in loco, agora se encontra minuciosa e detalhadamente disponível na rede e nas bases de dados das empresas, para cada trabalhador/a, individual ou coletivamente: jornadas de trabalho, descansos, pagamentos, tarefas etc. Para acessar essas informações, bastaria requisitá-las. Isso já foi feito, por exemplo, em Nova York, apurando-se que a grande maioria dos motoristas de passageiros recebia menos do que o salário mínimo da cidade.[13]
Também a efetivação das normas se tornou tecnicamente muito mais fácil. Até hoje têm sido usados procedimentos presenciais como audiências, assinatura de compromissos, eventual uso da polícia, procura por bens etc. Sob o mundo digital e suas plataformas, bastaria tão somente interpelar diretamente a empresa, sob ameaça, bloqueio ou intervenção direta em seu aplicativo ou conta. Desse modo, há uma facilidade técnica inédita para impor limites às horas trabalhadas, seu ritmo e intensidade, garantir descansos, férias, pagamentos mínimos, pagamentos de horas extras, ou qualquer outro aspecto da relação de emprego.
Contraditoriamente, entretanto, talvez nunca tenha sido tão difícil impor normas de proteção ao trabalho para limitar a compulsão do capital. Vivemos uma conjuntura de grande ofensiva do capital sobre o trabalho, uma verdadeira contrarrevolução preventiva de amplitude global, sustentada por uma forte ideologia neoliberal em uma fase de crise estrutural do capital (ANTUNES, 2018). E são estes condicionantes que permitem às empresas de aplicativos impor uma suposta inviabilidade de regulação protetiva.
A ideia de que o direito do trabalho gera desemprego impregnou o discurso em geral, contaminando fortemente o debate sobre a regulação de aplicativos e plataformas, particularmente pela condição aparentemente flexível que os trabalhadores/as dessas empresas se encontram. Além disso, o discurso sobre a própria natureza do trabalho nas plataformas e aplicativos tem papel importante no enfraquecimento do direito do trabalho. Ele é parte de uma espécie de novo adeus à classe trabalhadora, uma narrativa que advoga a emergência de mudanças radicais nos mercados de trabalho em amplitude global, na o qual o assalariamento estaria sendo substituído por novas formas de trabalho (FILGUEIRAS e CAVALCANTE, 2020).
Há pelo menos três diferentes perspectivas que se enquadram nesse novo adeus à classe trabalhadora, englobando distintos matizes teóricos e ideológicos. A primeira, mais “radical”, pressupõe que o trabalho autônomo está substituindo o trabalho assalariado. A segunda afirma que novas formas de trabalho estão se expandindo e por isso não se enquadrariam como assalariadas ou autônomas, constituindo o que tem se chamado de zona cinzenta. Essas duas perspectivas são normalmente combinadas para enfatizar as mudanças nos mercados de trabalho. Elas aparecem, por exemplo, numa publicação da Organização Internacional do Trabalho, sugestivamente chamada de The Changing Nature of Jobs (ILO, 2015), ou a mudança da natureza dos empregos.
Essas formulações costumam dar destaque ao papel das novas tecnologias na promoção dessas mudanças, que junto com a nova maneira como as empresas organizariam a produção seriam fatores chaves por trás das mudanças nas relações de trabalho e da disseminação de novas formas de trabalho (ILO, 2015).
A terceira perspectiva é apresentada por Standing (2011, 2016), sintetizada pelo que ele entende como precariado, uma nova classe social que estaria crescendo ao redor do mundo, que se diferencia dos assalariados. O tipo de trabalho que mais cresce é o crowdwork, realizado pelos taskers, que integram o precariado e estão em atividades desprovidas de direito, estabilidade e garantia de renda. Os taskers trabalhariam por meio dos labour brokers (como o Uber), consideradas pelo autor como rentistas, pois não seriam proprietários dos meios de produção. Para o autor, estes novos contingentes sociais não seriam empregados, pois não sendo diretamente supervisionados e sendo proprietários dos principais meios de produção, teriam o controle do seu tempo de trabalho (STANDING, 2016)
Por isso, para Standing, a regulação protetiva do trabalho não é solução para essa parcela crescente da população. Para o autor, estamos vivendo uma revolução nas formas de trabalho que inviabiliza a regulação anterior para proteger os trabalhadores.
Em síntese, em suas três versões, o novo adeus à classe trabalhadora presume (quando não apoia) que o direito do trabalho tende a ser anacrônico porque as novas formas de trabalho o tornariam inviável ou inaplicável. Trabalhadores/as seriam crescentemente autônomos, empreendedores ou parte do precariado sem vínculos com um empregador específico que pudesse ser responsável pelos seus direitos (FILGUEIRAS; CAVALCANTE, 2020).
E estas formulações encontram eco e ganham amplas adesões inclusive junto às instituições públicas, além de se ampliar socialmente junto a parcelas de trabalhadores/as que, premidos pelo desemprego ou seu risco iminente, tendem a introjetar e assimilar esse ideário. Esse processo, então, se retroalimenta e se reitera pelas formas de contratação que, como enfatizamos, mascaram e negam a condição de assalariamento e assim se converte em um leitmotiv das plataformas digitais, que são de fato grandes corporações do capital (como a Amazon, Uber e tantas outras já mencionadas anteriormente), agenda de destaque na demolição e corrosão dos direitos do trabalho.
O empreendedorismo é exemplar: trata-se frequentemente de uma forma oculta de trabalho assalariado, apresentada como “trabalho autônomo”. E essa mistificação encontra base social, uma vez que o/a “empreendedor/a” se imagina, por um lado, como proprietário/a de si-mesmo, enquanto em sua concretude e efetividade se converte em proletário/a de si-próprio. (ANTUNES, 2018).
Uma breve nota conclusiva
Esse amplo e multiforme processo de precarização do trabalho, apesar de suas dificuldades, vem acarretando descontentamentos, revoltas, mobilizações, bem como esboçando novas formas de representação, todas procurando responder ao intenso processo de corrosão dos direitos sociais do trabalho que atingem o infoproletariado ou ciberproletariado (HUWS, 2003, 2014; ANTUNES e BRAGA, 2009; DYER-WHITEFORD; 2015).
Como a precarização não é algo estático, mas um processo que tanto se amplia como se reduz, a capacidade de resistência, revolta e organização deste novo proletariado digital será um elemento decisivo para a conquista de formas protetivas de trabalho, capazes de obstar sua escravidão digital.
Tendo um desenho ora mais espontâneo, ora esboçando elementos de organização, estas ações vêm ocorrendo nas ruas, praças, avenidas e demais espaços de trabalho, sendo que seu exemplo mais expressivo foi a recente tentativa de paralisação mundial dos trabalhadores/as da Uber, em 8 de maio de 2019. Mesmo tendo uma amplitude parcial e limitada, esta ação sinalizou o mal-estar que começa a transparecer no universo dos trabalhos que se proliferam nas plataformas digitais e aplicativos.
Também no plano jurídico, a despeito das enormes pressões das pautas empresariais profundamente destrutivas em relação ao trabalho (como a recente decisão do Tribunal Superior do Trabalho, no Brasil, que considera os motoristas do UBER como autônomos), há precedentes de imposição de limites à exploração do trabalho por plataformas e aplicativos em vários países. No Reino Unido, em dezembro de 2018, a Court of Appeals (segundo tribunal mais importante do país) reconheceu vínculo empregatício dos Motoristas da Uber. Na Argentina, um tribunal condenou a Rappi por ter bloqueado três entregadores que atuavam para organizar um sindicato para representá-los. Na Espanha, o Tribunal Superior de Justiça de Madri ratificou a condenação da Deliveroo, após a Inspeção do Trabalho constatar que seus entregadores eram falsamente considerados como autônomos.
Outra importante vitória ocorreu no estado da Califórnia, em setembro de 2019, com a aprovação da lei AB5, que considerou os/as trabalhadores/as da Uber e a Lyft como assalariados vinculados às empresas. Em seguida, a Uber e a Cabify pediram uma liminar para revogar o AB5, que, entretanto, foi negada em 10 de fevereiro de 2020.
Estes exemplos indicam, então, que por meio de ações de resistência e confrontação é possível combater a intensa precarização do trabalho que impera nas grandes plataformas digitais. Como a precarização é uma processualidade, que tanto se amplia como se reduz, será através da capacidade de resistência e organização da classe trabalhadora (contemplando e incorporando esse enorme contingente de trabalhadores/as das plataformas digitais) que essa destrutividade poderá ser obstada.
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Vitor Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professor visitante da Facultad de Ciencias Económicas y Empresariales de Universidade Complutense da Madrid (UCM). Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa; desenvolvimento da discussão teórica; interpretação dos dados; apoio na revisão de texto; redação do manuscrito e revisão da versão em língua estrangeira.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa; desenvolvimento da discussão teórica; interpretação dos dados; apoio na revisão de texto; redação do manuscrito e revisão da versão em língua estrangeira.
Submissão em: 06/12/2019. Revisor A: 17/01/2020; Revisor B: 10/02/2020; Revisor C: 09/02/2020. Aceite em: 09/03/2020
Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: ANTUNES, Ricardo; FILGUEIRAS, Vitor. PLATAFORMAS DIGITAIS, UBERIZAÇÃO DO TRABALHO E REGULAÇÃO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.
[1] Dados extraídos do Projeto Caminhos do Trabalho (UFBA-PRT 5ª Região, coordenado por Vitor Filqueiras), sendo que as fontes secundárias formam consultadas nas bases da RAIS, CAGED e PNAD. Parte da pesquisa qualitativa é resultado também dos Projetos “Trabalho, Tecnologia e Impactos Sociais: o Advento da Indústria 4.0” (UNICAMP/PRT 15ª. Região, coordenado por Ricardo Antunes) e Bolsa-Produtividade/CNPq, Trabalho Intermitente e ‘Indústria 4.0’: Complexificando a Nova Morfologia do Trabalho, de Ricardo Antunes.
[2] Neste texto, priorizamos as plataformas e aplicativos em que os trabalhadores/as oferecem sua força de trabalho, deixando de lado aquelas em que os são ofertados bens, que merecem uma análise específica.
[3] De modo que constituem, de fato, modalidades de contrato de zero hora (só que sem admissão do vínculo de emprego), como os tradicionais chapas nos portos secos.
[4] Conforme as entrevistas, estes atrasos são decorrentes de falha do restaurante e não dos entregadores. Em muitos casos, sequer uma resposta objetiva é oferecida para as razoes do bloqueio.
[5] Nesse sentido, chega a ser risível esperar que as empresas controlem o ponto diretamente. Se o fizessem, estariam obrigados a garantir alguma renda ou salário, exatamente o inverso da sua estratégia de controle e de exploração do trabalho.
[6] No original: “Ninety percent of workers in the survey reported that they would like to be doing more work than they are currently doing, citing insufficient work and low pay as the reasons they were not. Despite the desire for more hours, many were already working a lot: 40% of respondents reported that they regularly worked seven days a week and 50% indicated that they had worked for more than 10 hours during at least one day in the past month. Low pay coupled with the need to work resulted in workers spending long hours online”.
[7] É importante destacar que todas as despesas são sempre pagas pelos trabalhadores/as, o que reduz significativamente este montante.
[8] Em Nova York, 85% do/as motoristas de transporte de passageiro/as ganhavam abaixo do mínimo por hora, em 2017, sendo que 60% trabalhavam em tempo integral (17% mais de 50 horas por semana) (PARROT e REICH, 2018).
[9] Mesmo quando o modelo de contratação sem garantia de jornada é usado em empregos formais, se verifica uma precarização acentuada. Os dados da RAIS para os/as trabalhadores/as intermitentes em todos os setores, em dezembro 2018, sugerem que ao menos 40% não tiveram remuneração e outros 25% receberam um salário mínimo ou menos.
[10] Não por acaso, cresceu de 9% para 14% a participação de entregadores e motofretistas entre as mortes de motociclistas no trânsito em 2018 (CET, 2019)
[11] Disponível em: https://www.nytimes.com/2019/08/23/business/how-uber-got-lost.html. Acesso em: 10 nov. 2019.
[12] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/09/30/motorista-de-aplicativo-e-espancado-no-abc-setembro-registra-5-mortes-na-grande-sp.ghtml. Acesso em: 10 nov. 2019.
[13] Disponível em: https://www.bbc.com/news/technology-50418357. Acesso: em 15 nov. 2019.