Submissão em: 05/04/2019

Revisor A: 03/06/2019; Revisor B: 26/07/2019. Revisor A: 22/08/2019; Revisor B: 12/08/2019

Aceite em: 24/08/2019


Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: COUTINHO, Iluska; MARINO, Caroline. UM OCEANO DE SILÊNCIO: Análise das representações sociais de gênero no telejornalismo brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 38, n.2, ago./nov. 2019.


Iluska Coutinho

Doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (2003). Professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordenadora do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual, NJA. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: iluskac@globo.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5597-9453.


Caroline Marino

Mestre em Comunicação e Sociedade, pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Jornalista. Membro do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual, NJA. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. E-mail: carolinemarinop5@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6741-3246 .


UM OCEANO DE SILÊNCIO1:

As representações sociais de gênero no telejornalismo brasileiro a partir da análise do Jornal Nacional


AN OCEAN OF SILENCE:

Social representations of gender in Brazilian television journalism based on the analysis of Jornal Nacional



Resumo


A problemática da exclusão social das mulheres tem um caráter histórico e continua presente na sociedade contemporânea. Quando lançamos luz a essa questão no campo do jornalismo, há de se perceber um cenário de invisibilização e silenciamento. Este trabalho propõe uma investigação quali-quantitativa das representações sociais de gênero difundidas nas matérias do Jornal Nacional, telejornal mais representativo da principal emissora do país. Com base na Análise da Materialidade Audiovisual, busca-se perceber qual o lugar da mulher como fonte de informação e opinião. A partir das análises das matérias veiculadas pelo telejornal, no primeiro semestre de 2018, o objetivo é contribuir para a construção de uma perspectiva crítica de gênero sobre os produtos jornalísticos televisivos na realidade brasileira.


Palavras-chave

Gênero; Representações Sociais; Mulheres na mídia; Telejornalismo brasileiro.



Abstract


The issue of the social exclusion of women has a historical character and is still present in contemporary society. When we shed light on this question in journalism, we can see a scenario of invisibilization and silencing. This paper offers a qualitative and quantitative investigation of social gender representations disseminated in the audiovisual narratives in Jornal Nacional, the biggest Brazilian television news program. Based on the Analysis of Audiovisual Materiality, we seek to understand the place of women as a journalistic source of information and opinion. From the analysis of the material published by the news program in the first semester of 2018, the objective is to contribute to the construction of a critical gender perspective on television news products in the Brazilian reality.


Keywords

Gender; Social Representations; Women in the media; Brazilian telejournalism.


Introdução


A problemática da exclusão social das mulheres tem um caráter histórico e continua presente na sociedade contemporânea. Ao refletir sobre desigualdades de gênero, é possível afirmar que a voz dominante não é feminina. Para pensar esse tensionamento, uma contribuição importante é a de Ana Carolina Rocha Pessôa Temer e Fernanda Ribeiro Lima. As autoras relembram que: “O machismo, pensamento da supremacia masculina, baseia-se em afirmar a superioridade masculina e reforçar a inferioridade da mulher em várias formas de discurso: filosófico, científico, religioso, jurídico e até mesmo popular” (TEMER, LIMA, 2014, p. 4). Essa hegemonia masculina ainda se reflete, sobretudo na mídia de massa, que muitas vezes exclui as mulheres dos espaços de debate.

Se entendermos a comunicação como um direito humano, negar esse direito é negar algo fundamental à humanidade de um indivíduo, sobretudo, em uma sociedade permeada por relações de poder. O silêncio desumaniza e exclui. E o silenciamento faz parte da história das mulheres. Em uma sociedade midiatizada, os discursos midiáticos ocupam um papel privilegiado nas narrativas e representações acerca do feminino e do masculino. “A forma como as mulheres são abordadas, ou a exclusão de vozes femininas destes espaços, contribui de modo significativo para a manutenção da discriminação de gênero” (MARINO, COUTINHO, 2018, p. 13).

Em um contexto de monopólio e interesses privados – como é o caso da comunicação de massa no Brasil – é que são disseminados os discursos hegemônicos. No Brasil a maioria das empresas de comunicação pertence à propriedade de emissoras de rádio e TV em sinal aberto concentradas em oligopólios. Neste cenário, poucas emissoras se estruturaram como hegemônicas também pelo sistema de afiliação, nosso modelo. Como as grandes emissoras de TVs são empresas de exploração comercial, acabam por privilegiar os interesses hegemônicos, se construindo como “o mais sofisticado dispositivo de moldagem e deformação do cotidiano e dos gostos populares e uma das mediações históricas mais expressivas de matrizes narrativas, gestuais e cenográficas do mundo cultural popular” (MARTÍN-BARBERO & REY, 2004, p. 26).

Diferentemente de países onde a evolução da televisão foi centrada na comunicação pública, Görgen aponta que no Brasil, o setor privado se aproveitou das oportunidades geradas pelo desenvolvimento de novas mídias que surgiam e os mesmos grupos empresariais acabaram se fazendo presente em todos os mercados pelos quais a comunicação de massa foi evoluindo ao longo dos anos.


Esta lógica fez as empresas de comunicação se organizarem sob a forma de grupos, principalmente a partir de famílias pertencentes a oligarquias regionais ou empreendedores individuais que obtiveram sucesso nacional comprando e revitalizando veículos mal geridos (GÖRGEN, 2009, p. 89).



Neste contexto, poucas empresas concentram a hegemonia da comunicação no país. Garaza (2015) afirma que, por isso, é relevante também pensar nos meios de comunicação enquanto espaços nos quais o poder simbólico é criado e reproduzido. “O monopólio privado dos meios de comunicação conseguiu legitimar um discurso hegemônico” (GARAZA, 2015, p. 6). A autora (2015, p.13) salienta que nas práticas de comunicação dos meios tradicionais novas vozes têm permanecido por muito tempo, excluídas. Em consequência, os discursos dominantes se legitimam na cena pública, ressaltando desigualdades como a de gênero e conservando discursos de supremacia masculina. Se um discurso dominante é legitimado, vários outros são silenciados.

A historiadora Rebecca Solnit (2017), ressalta que: “O silêncio é o oceano do não dito, do indizível, do reprimido, do apagado, do não ouvido. Ele cerca as ilhas dispersas formadas pelos que foram autorizados a falar, pelo que pode ser dito e pelos ouvintes” (SOLNIT, 2017, p. 27). Para a autora, privar as mulheres destes espaços de circulação de discursos é privá-las de exercer seu direito humano à comunicação. “Se nossas vozes são aspectos essenciais da nossa humanidade, ser privado de voz é ser desumanizado ou excluído da sua humanidade” (SOLNIT, 2017, p.28).

Quando pensamos em invisibilidade das mulheres nos meios de comunicação de massa, sobretudo nos discursos jornalísticos, é preciso pontuar a questão racial. Djamila Ribeiro (2017) ressalta a importância de um olhar interseccional para estas questões. Para a autora, (2017, p. 64) a problemática do silêncio de mulheres negras é urgente, uma vez “tirar essas pautas da invisibilidade e um olhar interseccional mostram-se muito importantes para que fujamos de análises simplistas ou para se romper com essa tentação de universalidade que exclui”. (RIBEIRO, 2017, p. 43).

Paula Lobo e Rosa Cabecinhas (2007) ao tratar das representações de gênero no cenário de mídia de Portugal, salientam que “estudos recentes, revelam que as mulheres, cerca de metade da população mundial, são quase ignoradas no universo das notícias e que a sua presença nos noticiários se encontra frequentemente associada a estereótipos de género” (2007, p. 1730). Para as autoras, a representação equilibrada de mulheres e homens nos conteúdos midiáticos deve ser um critério a se considerar na produção de um jornalismo de qualidade.

Em agosto de 2014, a ONG Think Olga lançou o projeto “Entreviste uma mulher2” que pretende aumentar o número de mulheres entre as pessoas entrevistadas sobre os mais variados temas. A proposta do projeto, que conta com 150 nomes em um documento disponível online, é encontrar mulheres e conectá-las aos jornalistas. A ideia surgiu a partir da divulgação de uma pesquisa realizada em 2013, pela Universidade de Nevada, que constatou que dentre os entrevistados de 352 matérias de primeira página do jornal The New York Times, 65% eram homens e apenas 19% eram mulheres (17% se referiam a fontes institucionais)3. No Brasil, a Superinteressante abordou o tema em 2016 e revelou que apenas uma em cada quatro fontes da revista é mulher, chegando a uma estimativa de 23% mulheres e 77% para homens. Menos de um quarto dos entrevistados pela Super é do sexo feminino.4

Estes dados geraram uma inquietação a respeito da realidade quanto ao gênero das fontes de informação no telejornalismo brasileiro. Tomando como ponto de partida esses números, é possível avançar e pensar na desigualdade de gênero nos meios de comunicação além do caráter numérico. Qual o espaço de fala dedicado às mulheres nas narrativas dos telejornais? Em que medida as mulheres têm direito a voz nestes espaços? Qual o lugar das mulheres enquanto fonte de opinião e informação? Quais papéis elas desempenham nas narrativas veiculadas nos noticiários? Partindo destes questionamentos, este artigo busca analisar a questão de gênero nos processos de oferta da informação no telejornalismo.

Este trabalho propõe uma investigação quali-quantitativa de uma semana composta do Jornal Nacional, recortada a partir de edições veiculadas no primeiro semestre de 2018 a partir de uma metodologia desenvolvida no âmbito do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual, denominada de Análise da Materialidade Audiovisual (COUTINHO, 2016) e do conceito de dramaturgia do telejornalismo (COUTINHO, 2012). A ideia é perceber qual o lugar da mulher como fonte de informação no telejornal mais representativo da principal emissora do país. A partir das análises das representações sociais de gênero nas matérias televisivas, objetiva-se contribuir para a construção de uma perspectiva crítica de gênero sobre os produtos jornalísticos televisivos na realidade brasileira.


Desigualdade de gênero e telejornalismo no Brasil


Embora representem maioria numérica5 da população brasileira, as mulheres são consideradas minoria em termos representativos, também nas mídias. Esse entendimento é possível uma vez que a noção contemporânea de minoria, de acordo com Sodré (2005), se refere àqueles que tiveram ou têm sido privados de uma maior participação na esfera pública e de ter possibilidade de voz ativa nas instâncias decisórias do Poder.

Historicamente, a mulher ocupa um lugar de inferioridade na organização social. Para pensar esse tensionamento, uma contribuição importante é a de Ana Carolina Rocha Pessôa Temer e Fernanda Ribeiro Lima. As autoras relembram que: “o machismo, pensamento da supremacia masculina, baseia-se em afirmar a superioridade masculina e reforçar a inferioridade da mulher em várias formas de discurso: filosófico, científico, religioso, jurídico e até mesmo popular” (TEMER, LIMA, 2014, p. 4). Essa hegemonia masculina ainda se reflete, sobretudo na mídia de massa, que exclui as mulheres dos espaços de debate, além de contribuir na construção de imagens entre homens e mulheres baseados em definições tradicionais de feminilidade e masculinidade.

Neste tipo de categorização binária são atribuídos papéis e valores exclusivos ao homem e à mulher, que são repassados de geração em geração. Tais valores contribuem significativamente para a desigualdade de gênero. Joan Scott ao conceituar o que é ‘gênero’ explica que o termo indica construções culturais, “uma forma de se referir às origens exclusivamente sociais das identidades subjetivas de homens e de mulheres”. (SCOTT, 1995, p. 75). A autora (1995, p. 82) salienta que o modo pelo qual as sociedades representam o gênero, servem-se dele para articular relações e regras sociais, além de ser uma das referências pelas quais relações de poder se estabelecem. Scott conceitua o termo da seguinte maneira: “O gênero é uma forma primária de dar significado as relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (SCOTT, 1995, p.88).

O filósofo Michel Foucault, em sua obra Microfísica do Poder (1979), afirma que em uma sociedade como a nossa existem relações de poder múltiplas que se atravessam e constituem o corpo social. Tais relações não se estabelecem sem uma produção, circulação e funcionamento do discurso. Discursos que produzem efeitos de verdade que, segundo o autor, decidem, transmitem e reproduzem os efeitos de poder aos quais estamos submetidos. “Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2008, p. 180).

Se pensarmos no campo midiático como um espaço favorável para a circulação destes discursos, é impossível negar que em uma sociedade midiatizada os conteúdos veiculados pelos meios de comunicação ocupam um papel relevante nestas relações inclusive nas definições de identidade e de gênero – uma vez que é por intermédio deles que são difundidos discursos e representações que tendem a reforçar estereótipos socialmente construídos. De acordo com Valquíria Michela John, ao levar em conta que “as relações de gênero não são naturais e sim construídas social e historicamente, o dis­curso atua decisivamente na construção de nossas representações quanto ao mundo e quanto às atribuições dos papéis de ho­mens e mulheres” (JOHN, 2014, p. 501).

Neste contexto, os discursos midiáticos ocupam um papel privilegiado. Mais especificamente no cenário brasileiro, cuja televisão é historicamente o principal meio de informação de grande parte da população, seu papel nestas construções narrativas e sociais se torna ainda mais relevante. Segundo dados da Pesquisa Brasileira de Mídia 2016, 89% dos brasileiros afirmam se informar sobre o que acontece no país pela televisão, sendo que 63% têm a TV como principal meio de informação e, destes entrevistados, 77% dizem fazer isto diariamente. A partir destes dados, como afirma Gouvêa (2014), parece razoável pensar que a TV é capaz de construir e desconstruir mitos, agendar os assuntos que serão discutidos, hierarquizar a importância dos temas e, “acima de tudo, representar a realidade social, se constituindo como agente decisivo na construção dessa realidade à qual a sociedade está submetida” (GOUVÊA, 2014, p. 3).

No presente artigo o foco está na televisão uma vez que ela e, consequentemente, os telejornais se instauram como “forma preferencial de acesso à informação em um país marcado pela oralidade e, durante muitos anos, pela crença nas imagens e sons veiculados em edições de noticiários” (COUTINHO, 2013, p. 01). Coutinho (2008) acrescenta que, para além do convite ao lazer ou ao entretenimento, a televisão brasileira também se constitui como um importante instrumento de informação. “Essa é a premissa fundamental, quase crença, do telejornalismo, gênero televisivo que pertence à categoria Informação, e de muitos que têm esse tipo de programa como sua principal forma de orientação no mundo” (COUTINHO, 2008, p. 01).

Segundo a autora (COUTINHO, 2008), a tela da TV pode ser considerada o espaço onde o país se informa e se localiza. Por isso a importância do jornalismo audiovisual como forma de democratizar as informações em uma cultura em que a oralidade mantém seu predomínio sobre a escrita. Levando-se em consideração a conjuntura sociocultural do Brasil, a televisão e o telejornalismo, por conseguinte, ocupam uma posição de centralidade e hegemonia “pelo fato de atingir um público semi-alfabetizado e que tem acesso às notícias quase como um rito de passagem televisivo, senha ou passaporte para o consumo das telenovelas” (COUTINHO, 2008, p. 01).

Nesse cenário, no qual a televisão é o principal meio de informação de grande parte da população, seu papel na construção de uma sociedade mais igualitária se torna ainda mais relevante. Por ocupar esse lugar privilegiado, o telejornalismo deveria trabalhar em prol da busca pela igualdade e cidadania de forma a contemplar as expectativas de transformação social e de participação de grupos com histórico de silenciamento, como é o caso das mulheres. Entretanto, o telejornalismo raramente foge à regra de desigualdade quanto ao acesso às vozes femininas. A ausência de igualdade entre os gêneros presente na sociedade acaba por refletir também no fazer jornalístico, sobretudo em um contexto de monopólio e interesses privados – como é o caso da comunicação de massa no Brasil.

Em pesquisa recente, Temer e Santos (2016) destacam um processo de feminização nas redações jornalísticas. “No Brasil, a pesquisa sobre o perfil dos jornalistas brasileiros em 2013 apontou que as mulheres constituem 63,7% do mercado de trabalho, e que 59% dos jornalistas são jovens (até 30 anos)” (TEMER e SANTOS, 2009, p. 5). Entretanto, como apontam Paula Lobo e Rosa Cabecinhas (2007, p. 3), “o aumento da presença das mulheres nas redações não implica um maior equilíbrio de gênero nos ângulos de análise adotados nos conteúdos mediáticos”. Ainda que as redações estejam passando por este processo de feminização, no que diz respeito aos produtos finais do jornalismo – as matérias – parece que ainda há muito no que se avançar. Como apontam Paula Lobo e Rosa Cabecinhas, “o aumento da presença das mulheres nas redações não implica um maior equilíbrio de gênero nos ângulos de análise adotados nos conteúdos mediáticos” (2007, p. 3).

Ao analisar a televisão e a imprensa norte-americana na década de 1970, Tuchman (2009) observou uma sub-representação feminina. Para a autora, os homens tendem a ser representados de forma mais positiva, mesmo em lugares cuja presença de mulheres na vida pública é superior ao restante dos países ocidentais. Em 2009, Tuchman retomou o conceito e refletiu sobre a forma como a representação de gênero na mídia se modificou desde 1978, ano em que lançou o livro Hearth and Home: Images of Women in the Mass Media. A autora explica como os meios de comunicação operam a “aniquilação simbólica”:


Ao procurarem ganhar mais audiência, os mass media norte-americanos sub-representam as mulheres (ou seja, omitem-nas do discurso público), trivializam as suas atividades (será que a nova Secretária de Estado tem um novo penteado?) e condenam-nas (como imbecis ou meros objetos sexuais). Como indica “o modelo de transmissão”, e uma vez que os media têm um impacto nas pessoas que os utilizam, a aniquilação simbólica limita as possibilidades inerentes às vidas das mulheres, o que, provavelmente, desencoraja algumas mulheres de alargar os seus horizontes, ao mesmo tempo que encoraja outras, e também homens, a adoptar visões estereotipadas do potencial individual e coletivo das mulheres (TUCHMAN, 2009, p. 16).



Para Tuchman, é impossível negar como a situação de algumas mulheres, ao nível individual, se modificou ao longo das décadas, mas não podemos ignorar “o quanto os media contemporâneos continuam a tomar parte na aniquilação simbólica das mulheres” (TUCHMAN, 2009, p. 22). Em pesquisa recente, Lobo e Cabecinhas corroboram com a visão de Tuchman ao constatarem que “a tradicional divisão de gênero entre esfera pública e esfera privada se mantém, assim como o problema da invisibilidade feminina e dos pontos de vista das mulheres nos temas centrais da agenda noticiosa” (LOBO E CABECINHAS, 2018, p. 97). As autoras (2018, p. 83) entendem que as representações midiáticas das mulheres ainda estão profundamente enraizadas no contexto político das estruturas de poder em que homens são, habitualmente, dominantes. Isso implica nos valores-notícias e nas escolhas das fontes e pautas, que acabam por refletir a perspectiva hegemônica da vida pública, em que as vozes femininas são sistematicamente ignoradas.

Durante muito tempo a mulher foi submetida a uma gama de imposições, proibições e julgamentos. Ao tratar da história das mulheres, Michelle Perrot (2007) aponta que a participação feminina sempre esteve restrita à esfera do lar, muitas vezes excluídas do ciclo da dinâmica social. Eram oferecidos a elas os espaços privados e o silêncio. Para Perrot, a mulher sempre foi um sujeito historicamente silenciado, destinado à obscuridade e que se mantinha fora dos acontecimentos. “Confinadas no silêncio de um mar abissal” (PERROT, 2007, p. 16). Segundo a autora: “Nesse silêncio profundo, é claro que as mulheres não estão sozinhas. Ele envolve o continente perdido das vidas submersas no esquecimento no qual se anula a massa da humanidade. Mas é sobre elas que o silêncio pesa mais. E isso por várias razões” (PERROT, 2007, p. 16).

Para Solnit, privar as mulheres dos espaços de circulação de discursos é privá-las de exercer seu direito humano à comunicação. “Se nossas vozes são aspectos essenciais da nossa humanidade, ser privado de voz é ser desumanizado ou excluído da sua humanidade” (SOLNIT, 2017, p.28). A autora ressalta que ter voz é um aspecto fundamental, sobretudo quando diz respeito a história dos (e da falta de) direitos das mulheres. Ela aponta ainda que, não se refere apenas à voz no sentido literal, mas sim à capacidade de posicionamento, participação, de se experimentar e de ser experimentado como uma pessoa livre e com direitos (2017, p. 31). Segundo a autora, o silêncio é a condição da opressão.


Se ter voz, poder falar, ser ouvido e acreditado é essencial para ser um participante, uma pessoa com poder, um ser humano com pleno reconhecimento, então é importante reconhecer que o silêncio é a condição universal da opressão, e existem muitas espécies de silêncio e silenciados (SOLNIT, 2017, p. 35).


Michelle Perrot aponta que o silêncio das mulheres é imposto pela ordem simbólica. Sendo assim, não é referente apenas à fala, mas também à expressão gestual/corporal e aos lugares destinados às elas. Perrot ressalta que, ao traçar um histórico do lugar da mulher na sociedade, percebe-se também um processo de invisibilidade em que as mulheres são menos vistas no espaço público. “São invisíveis. Em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas” (PERROT, 2007, p. 17). Esse processo de invisibilização recai sobre as mulheres com tamanha força a ponto de interferir nos espaços físicos e simbólicos que ocupam. Pierre Bourdieu ressalta que até mesmo as posturas corporais ensinadas às mulheres – como as costas eretas e as pernas que não devem ser afastadas, por exemplo – geram uma espécie de confinamento simbólico carregado de significação moral;


Como se a feminilidade se medisse pela arte de “se fazer pequena” (o feminino, em berbere, vem sempre em diminutivo), mantendo as mulheres encerradas em uma espécie de cerco invisível (do qual o véu não é mais que a manifestação visível), limitando o território deixado aos movimentos e aos deslocamentos de seu corpo – enquanto homens tomam maior lugar com seu corpo, sobretudo em lugares públicos (BOURDIEU, 2012, p. 39).



Essa dimensão simbólica demarca valores e atitudes atribuídas à universos binários: masculino e feminino, estabelecendo uma relação (desigual) entre os gêneros. As definições do que é ‘ser mulher’ na sociedade carregam assim marcas históricas de desigualdade, sustentadas em mitos que se sedimentaram no universo simbólico, que impõe a homens e mulheres lugares distintos e opostos na esfera da vida em sociedade.


Onde estão as mulheres no JN? Análise da materialidade audiovisual


Levando em consideração tais questões, este artigo busca analisar a participação feminina no contexto do telejornalismo nacional. Lançando um olhar atento, sobretudo, para o telejornal mais representativo da principal emissora do país, o Jornal Nacional (JN). No ar desde 1969, o JN é o primeiro telejornal do Brasil a ser transmitido em rede. Atualmente é exibido de segunda a sábado e possui cerca de quarenta minutos de duração. A escolha do objeto empírico de pesquisa se deu pelo fato de ser o principal telejornal da TV Globo e líder de audiência no horário nobre.

Para realizar uma análise geral das narrativas do telejornal, adotou-se um método aleatório para definir o recorte: a semana composta. De acordo com Riffe, Aust e Lacy (1993), é uma metodologia utilizada na escolha aleatória dos dias da semana do período a ser analisado. Assim, todos os dias tem a mesma possibilidade de serem inseridos no estudo. O método prevê a seleção de edições de diferentes meses, formando uma semana. De acordo com os autores, o método considera que toda a publicação tem uma regularidade, obedece aos mesmos critérios técnicos jornalísticos. Sendo assim, uma semana artificialmente montada representa o semestre a ser avaliado. De acordo com os autores, uma avaliação sequencial poderia conferir um peso desproporcional a um determinado tema, cuja repercussão foi grande ao longo da semana. Neste trabalho estabelecemos como recorte o primeiro semestre de 2018, escolhendo aleatoriamente uma edição de segunda-feira em janeiro, uma de terça-feira em fevereiro, uma de quarta-feira em março, uma de quinta-feira em abril, uma de sexta em maio e uma de sábado em junho.

A escolha pela Análise da Materialidade Audiovisual, metodologia desenvolvida no âmbito do Núcleo de Jornalismo e Audiovisual (CNPq/UFJF), se faz pertinente já que assim seria possível a análise mais completa acerca das especificidades da narrativa audiovisual e sua relação com as questões de pesquisa, na medida em que não haveria uma preocupação prévia com a tradução do vídeo em outros códigos para responder a um protocolo investigativo. Iluska Coutinho (2016) propõe que é necessário, ao escolher o objeto de pesquisa, fazer um levantamento das demandas a serem analisadas, de modo a construir em diálogo com os referenciais do estudo, uma ficha de análise que contenha as perguntas que respondam ao problema de pesquisa. Esse olhar integrado na entrevista do objeto empírico permitiria assim realizar a parte da análise propriamente dita, observando sempre a complexidade do material audiovisual. “Nessa perspectiva poderíamos considerar que o pesquisador se comporta em certo sentido como um telespectador privilegiado, que desvela estratégias, modos de dizer e sentidos, explícitos ou silenciados, nas narrativas audiovisuais que analisa”. (COUTINHO, 2016, p. 9). A autora defende ainda que se deve observar a unidade dos cinco elementos audiovisuais texto som + imagem + tempo + edição a fim de se ter uma investigação mais fiel à natureza audiovisual do objeto.

Tendo como referência esse princípio de investigação, levou-se em consideração o conceito de dramaturgia do telejornalismo (COUTINHO, 2012) para a construção da ficha de análise. Coutinho entende que o telejornalismo se apropria de características dramáticas em suas narrativas, na medida em que eles passam a narrar o mundo e seus acontecimentos por meio da fórmula de contar histórias. Nesse aspecto há a utilização dos personagens, que além de dar voz e representação a certo assunto, entram na narrativa a fim de criar uma maior identificação com o público (COUTINHO, 2012, p. 199).

Segundo Coutinho (2012, p. 147), os telejornais se apresentam como a expressão da realidade nacional. Os discursos e falas que são veiculados nesse espaço, além de receberem visibilidade, também adquirem uma espécie de marca de relevância, ou seja, os entrevistados seriam investidos de “poder de fala”, um reconhecimento de uma autoridade midiática, ainda que expressa em poucos segundos. Além de representar e ressaltar a parcela da sociedade da qual o entrevistado faz parte.


Na medida em que seria impossível ouvir todos os brasileiros em um programa diário, a apresentação das falas, aqui considerada uma ação ou expressão de poder, se daria por representação. Através da análise, identificação do grupo ou setor da sociedade a que pertence cada entrevistado, estaremos tentando confirmar a hipótese de que há efetivamente pluralidade de vozes e/ou saberes no material exibido em rede nacional, se os telejornais atuam no sentido de construir de fato uma democracia eletrônica ou se, a partir das falas de determinados atores privilegiados, implantariam um consenso narrativo (COUTINHO, 2012, p. 148).


Para analisar a participação feminina no JN, levamos em consideração o que Coutinho aponta. Segundo a autora, os personagens são apresentados de três formas: entrevistas, imagens de ação e no texto do repórter. Neste trabalho consideraram-se apenas as entrevistas (ou sonoras), uma vez que o objetivo é avaliar o espaço de voz e visibilidade ocupado por mulheres. Entre os papeis desenvolvidos nas narrativas, Coutinho elenca os de: mocinho, vilão, herói, vítima, expert, parceiro, mediador, concorrente e “musa” ou troféu em disputa. Para analisar a posição dos entrevistados como representantes de determinados grupos sociais, a autora cria oito categorias de classificação: fontes da iniciativa privada; de órgãos públicos e judiciário; sindicalistas; do show-business e/ou astros esporte; internacionais; autoridades políticas; populares e experts.

Além das categorias de análise propostas por Coutinho, nos eixos de avaliação, serão incluídas também questões interseccionais. Rebeca Solnit reflete acerca de diferentes tipos de silenciamentos que permeiam o coletivo ‘mulheres’. Ela reforça: “A categoria mulheres é uma longa avenida que cruza com várias outras, entre elas classe, raça, pobreza e riqueza. Percorrer esta avenida significa cruzar outras e jamais significa que a cidade do silêncio tem apenas uma rua ou uma rota importante” (SOLNIT, 2017, p. 35). O exemplo das avenidas que se cruzam apresentado por Solnit traz à tona a urgência de se evidenciar as diferenças entre mulheres, sobretudo na questão racial.

Estudos contemporâneos têm discutido a respeito do silenciamento e invisibilização das mulheres negras. Djamila Ribeiro (2017, p. 41) é uma filosofa brasileira que trata dessas questões no contexto atual. A autora aponta que ao tratarmos a categoria ‘mulher’ como algo universal, sem marcar as diferenças existentes, faz com que somente uma parte seja vista. Quando pensamos em invisibilidade das mulheres nos meios de comunicação de massa, sobretudo nos discursos jornalísticos, é preciso pontuar a questão racial. Quais são os espaços de fala ocupados por mulheres negras? Djamila ressalta a importância de um olhar interseccional para estas questões.


Tirar essas pautas da invisibilidade e um olhar interseccional mostram-se muito importantes para que fujamos de análises simplistas ou para se romper com essa tentação de universalidade que exclui. A reflexão fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o direito à própria vida. (RIBEIRO, 2017, p. 43).


Partindo desses referenciais teóricos, foram montados os eixos de avalição, como prevê a análise da materialidade audiovisual. O objetivo é obter resultados quantitativos sobre o espaço de vozes femininas no telejornalismo brasileiro, mas para além de dados numéricos, busca-se entender quais papeis são destinados às mulheres nas narrativas e a quais categorias pertencem. Sendo assim, foram definidas aleatoriamente seis edições para o recorte. São elas as edições dos dias: Segunda-feira, 22/01/18; Terça-feira, 13/02/18; Quarta-feira, 21/03/18; Quinta-feira, 19/04/18; Sexta-feira, 18/05/18 e Sábado, 02/06/18.

No total, 65 matérias compõem as edições analisadas, distribuídas entre os meses de janeiro e junho de 2018. Dentre elas, 41 possuem entrevista ou sonora, as outras são notas cobertas ou VTs apenas com imagens de off e texto do repórter. O foco de análise se deu nas matérias que possuem sonoras, uma vez que o objetivo é avaliar em que momento as mulheres são ouvidas pelo telejornal. Das 41 matérias analisadas, 23 inserem mulheres nas narrativas. De todas as reportagens com entrevistas exibidas pelo JN no recorte estabelecido, 46% não possuíram nenhuma fonte ou participação feminina.

Após os levantamentos, foram contabilizadas 143 fontes ouvidas pelo Jornal Nacional. Dentre elas há personagens, especialistas, políticos, povo fala etc. Deste número total, 44 são mulheres. Chegando a uma estimativa de 31% mulheres para 69% homens. Menos de um terço dos entrevistados pelo JN é do sexo feminino. Quando o recorte leva em consideração questões interseccionais, o resultado é ainda menor. Apenas oito das fontes ouvidas pelo telejornal são mulheres negras. Quantitativamente, o resultado revela que apenas 6% dos entrevistados pelo telejornal no período avaliado são mulheres negras.



















Gráfico 1 – Fontes do Jornal Nacional de acordo com o gênero

Fonte: Dados da pesquisa


Foram avaliadas também como essas mulheres são representadas nas narrativas do telejornal levando em consideração as categorias propostas por Coutinho (2012) na obra Dramaturgia do Telejornalismo. Após as análises, percebeu-se que as mulheres que são ouvidas pelo JN se enquadram em quatro categorias, sendo elas: experts, da iniciativa privada, de órgãos público e judiciário e populares.

Quatro mulheres são ouvidas como “da iniciativa privada” ou como “experts”, apenas em duas das 41 matérias analisadas. A primeira aparece em uma matéria de janeiro, sobre a volta do crescimento no setor de turismo. Representando a agência de viagens que serviu como locação para a matéria, uma mulher explica as mudanças da empresa para superar o período de crise. Na mesma matéria, é ouvida a presidente da Associação Brasileira das Operadoras de Turismo, que se enquadra na categoria “expert”, uma vez que é a fonte especialista sobre o setor. As outras duas “experts” aparecem na edição referente ao mês de maio na matéria sobre o menino Bernardo que, devido a uma doença rara passou a vida no hospital e, após um transplante de pulmão bem-sucedido, pôde voltar pra casa. São ouvidas a médica e a enfermeira que o acompanharam desde o início do tratamento.

A categoria referente à ‘órgãos público e judiciário’ aparece em dois momentos diferentes, em março e em abril, mas a fonte é a mesma. A então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Carmem Lúcia.6 Ela é a única mulher que aparece como fonte nas matérias sobre política. Ressaltando também a falta de representatividade feminina nas instâncias de poder. A maioria das fontes se enquadra na categoria ‘populares’, geralmente personagens que ilustram alguma matéria ou inseridas no povo fala sobre algum acontecimento da semana. Das 44 fontes mulheres, 38 são populares.


Gráfico 2 – Fontes mulheres do Jornal Nacional de acordo com as categorias

Fonte: Dados da pesquisa


Para além de dados quantitativos, a proposta deste texto é analisar também os papeis desenvolvidos pelas mulheres nas narrativas. Em algumas das matérias é possível identificar uma construção dramática que nos permite categorizar de acordo com as definições propostas por Coutinho (2012). Uma das mulheres entrevistadas pode se enquadrar na categoria “vilã”. Na matéria sobre os 20 anos do Código Brasileiro de Trânsito, exibida em janeiro, a repórter entrevista uma mulher parada por uma blitz enquanto dirigia embriagada e sem habilitação. Ela serviu de exemplo para ilustrar como esse tipo de comportamento causa danos e acidentes.

Em três momentos, já citados, as mulheres podem se enquadrar como ‘heroínas’, no caso das matérias com a ministra Carmem Lúcia, que é sempre ligada ao combate à corrupção no país. E na matéria sobre o transplante de Bernardo, em que as profissionais do hospital contribuíram para o final feliz da família. Como ‘experts’ as mulheres aparecem na matéria sobre o crescimento do setor de turismo.

As mulheres aparecem também como ‘parceiras/aliadas’ nas matérias especiais sobre os jogadores convocados para a Seleção Brasileira. Nos meses de maio e junho foram exibidas reportagens especiais sobre a vida dos atletas, em virtude da realização da Copa do Mundo da Rússia 2018. Nestas ocasiões elas são apresentadas como parceiras que auxiliaram no sucesso dos jogadores. São quatro mulheres, duas em cada reportagem. Na primeira, exibida em maio, são ouvidas a mãe e a esposa de Marquinhos. Na segunda, exibida em junho, a mãe e a avó de Filipe Luís ajudam a contar a história do atleta.

No mês de fevereiro boa parte do telejornal foi dedicada à cobertura do carnaval pelo país. Nestas matérias foram ouvidas 11 mulheres, sendo cinco mulheres negras, de diferentes estados brasileiros, que estavam presentes nos blocos ou desfiles. Não é possível identificar nenhuma das categorias de análise uma vez que aparecem como povo fala em sonoras de curta duração, geralmente contando sobre suas percepções acerca da festa.

Na maioria das matérias analisadas, em que é possível perceber uma construção dramática, as mulheres aparecem como vítimas. Das 44 fontes, 23 se enquadram nessa categoria. Ou seja, quantitativamente, 53% das mulheres aparecem na posição de vítima das narrativas do telejornal. Sejam elas vítimas da crise, de doenças na família ou de violência, como é o caso das mulheres negras. As mulheres negras só não aparecem como vítimas nas matérias sobre carnaval. Fora desta época, elas apenas são inseridas nas narrativas com este viés.

A primeira, em janeiro, é a personagem da matéria sobre o crescimento no setor de turismo. Ela aparece para ilustrar que, apesar do avanço no setor, a população ainda não se recuperou. Uma vez que, devido à crise, ela vai precisar diminuir os dias em que pretendia viajar. Nas outras duas narrativas, as mulheres negras são vítimas da violência. Em março, na matéria sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, a irmã de Marielle fala sobre a impunidade no caso da execução da vereadora. Na segunda matéria, exibida em maio, a mãe de uma jovem assassinada no Rio de Janeiro fala sobre a dor de perder a filha de forma tão brutal. Há poucas mulheres entrevistadas em posição de poder. Quando o recorte considera mulheres negras, não há nenhuma.


Gráfico 3 – Mulheres do Jornal Nacional de acordo com as categorias dramáticas

Fonte: Dados da pesquisa


Em relação à construção de estereótipos de gênero, é possível perceber a reprodução de padrões no recorte avaliado. Nas matérias de esporte, as mulheres aparecem apenas como familiares dos jogadores, mães, avó e esposa. Geralmente, quem os incentivou a jogar bola e percebeu o talento dos atletas foram as figuras masculinas, como o pai, o irmão e o técnico. Não há nenhuma matéria sobre mulheres no esporte.

É possível perceber estereótipos de gênero também nas matérias sobre as consequências da greve dos caminhoneiros, em junho de 2018. São três matérias que tratam do assunto: a primeira que avalia o preço do combustível e entrevista diversos motoristas. São sete fontes ouvidas, entre povo fala e especialista e, dentre elas, não há nenhuma mulher. Já nas matérias sobre o aumento dos preços nos mercados e feiras e a dificuldade de se encontrar locais para venda de gás de cozinha, os personagens ouvidos incluem mulheres. As personagens das demais matérias analisadas também aparecem em papeis exclusivamente femininos, como na figura de mães (do Bernardo, da jovem assassinada no Rio, de uma criança vítima de atropelamento, entre outros). Até mesmo quando as mulheres são entrevistadas como experts, são associadas a papeis femininos, como cuidar da saúde, da família e do lazer, das férias.

Em relação à participação de repórteres mulheres no programa, o cenário também não é tão equilibrado, 61% dos repórteres do período analisado eram homens. Em todas as edições analisadas, a bancada foi dividida por um apresentador homem e uma mulher e a apresentação ao vivo da previsão do tempo é comandada por uma jornalista. Entretanto, apesar disso, em relação aos VT’s que possuíam passagem ou texto de off, 33 foram conduzidos por repórteres homens e 21 por mulheres. E neste cenário, apenas uma mulher negra aparece, na figura da apresentadora da previsão do tempo, a jornalista Maria Julia Coutinho.


Considerações finais


Após este percurso de investigação, é possível concluir que a desigualdade de gênero no telejornalismo deve ser pensada além da análise da presença ou ausência numérica de fontes mulheres. Ela pode se manifestar nos conteúdos veiculados, nas pautas, na escolha dos personagens e nos papeis desempenhados por cada indivíduo nas narrativas. Os números de mulheres como fonte de informação e opinião no maior telejornal do país ainda são baixos. A partir da análise, foi possível chegar à estimativa de que menos de um terço dos entrevistados pelo JN são mulheres.

Para além deste resultado, o cenário de representatividade feminina no telejornalismo é ainda mais desconfortante. As análises mostram que raramente as mulheres aparecem como protagonistas e geralmente são entrevistadas em momentos de vulnerabilidade e passividade. A visibilidade das mulheres no telejornalismo parece depender de sua associação a temas que permeiam o estereótipo social de ‘universo feminino’ (como as matérias sobre os resultados da greve, que entrevista mulheres sobre o preço do gás de cozinha e do mercado) e a pautas emocionais (como o caso das mães que perderam seus filhos para a violência). A maioria das entrevistadas assume um papel de vítima da narrativa dramática. Sobretudo as mulheres negras que, em momento algum do recorte estabelecido, aparecem em posição de poder.

Esta sub-representação é resultado da estrutura social vigente, na qual a desigualdade ainda é recorrente. O telejornalismo acaba por reproduzir um cenário de invisibilização presente em diversos setores da sociedade. A ministra Carmem Lúcia é a única mulher a tratar assuntos políticos em todas as edições analisadas, também pelo fato de ser uma das poucas mulheres no judiciário brasileiro.

Ao longo das análises foi possível identificar alguns padrões que se repetem no primeiro semestre de 2018. A maioria das mulheres é retratada nas notícias como vítimas de algo e/ou são apresentadas no âmbito de uma relação familiar (mãe, esposa, irmã). Raros são os momentos em que aparecerem como experts em algum assunto. Muitas vezes a inserção da fala feminina na narrativa é utilizada com o intuito de ser um depoimento emotivo na construção dramática da reportagem. Mulheres nas áreas de política e economia são praticamente inexistentes nas edições analisadas.

Cabe ressaltar que, por limitações de tempo e espaço, este trabalho se limitou a análise de apenas um telejornal, mas pode servir de base para outras pesquisas em diferentes meios (rádio, impresso, digital), gerando novos dados que possibilitem traçar uma visão mais ampla do espaço de voz e representatividade das mulheres no jornalismo brasileiro.

Este levantamento nos alerta que a desigualdade de gêneros presente na sociedade se reflete também no fazer jornalístico. A televisão ainda é o principal meio de informação da população brasileira, por isso, seu papel na construção de uma sociedade mais igualitária deveria ser primordial. Pensar em conteúdos que tratem as mulheres com igualdade e um jornalismo que reflita sobre como elas são inseridas nas narrativas pode contribuir para a disseminação de notícias mais equilibradas no que dizem respeito à representatividade de gênero. Lançar um olhar para estas questões é uma tentativa de construção de uma sociedade mais igualitária. Analisar o que tem sido feito e refletir criticamente a respeito é um primeiro passo.


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1 Uma versão anterior deste texto foi apresentada no 16º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, que aconteceu em São Paulo, em 2018. Ressalta-se que, após as discussões geradas no grupo de trabalho, este artigo sofreu modificações substanciais com o objetivo de aprimorá-lo baseado nas considerações e contribuições geradas durante o debate.

2 Disponível em: https://thinkolga.com/2018/01/31/entreviste-uma-mulher-1/. Acesso em: 15 ago. 2018.

3 Disponível em: http://www.poynter.org/2013/lack-of-female-sources-in-new-york-times-stories-spotlights-need-for-change/217828/ Acesso em: 15 ago. 2018.

4 Disponível em: https://super.abril.com.br/ciencia/onde-estao-as-mulheres-da-super/. Acesso em: 15 ago. 2018.

5 De acordo com o censo do IBGE, em 2010, o percentual de mulheres era 51%, enquanto o de homens era de 49% do total da população brasileira.

6 Cármen Lúcia Antunes Rocha é uma jurista, professora e magistrada brasileira, atual ministra do Supremo Tribunal Federal(STF), tendo sido presidente dessa corte e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2016 a 2018.