dossiê
Da lean manufacturing à smart factory: a comunicação nos processos de organização do trabalho no capitalismo contemporâneo
FROM LEAN MANUFACTURING TO SMART FACTORY: COMMUNICATION IN WORK ORGANIZATION PROCESSES IN CONTEMPORARY CAPITALISM
Claudia Nociolini Rebechi
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) – Curitiba, Paraná, Brasil.
E-mail: claudiarebechi@utfpr.edu.br. ORCID: 0000-0002-3072-5163.
Geraldo Augusto Pinto
Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) – Curitiba, Paraná, Brasil.
E-mail: geraldoaugustopinto@gmail.com. ORCID: 0000-0003-1347-2173.
Resumo
Este artigo tem por propósito refletir sobre a comunicação na gestão do trabalho flexível por meio de uma discussão que dialoga com os estudos críticos sobre as novas formas de exploração do trabalho no capitalismo atual. Mais especificamente, procuramos tratar sobre formas de mobilização da comunicação em apoio à lógica organizativa do trabalho assumida pelas empresas que se consideram flexíveis e enxutas (lean manufacturing), ou inteligentes (smart). O enfoque principal está no exame crítico de elementos constitutivos de uma determinada narrativa, presente no mundo do trabalho contemporâneo, que combina transformações tecnológicas e a precarização do trabalho humano.
Palavras-chave
Comunicação e trabalho; Lean manufacturing (produção enxuta); Smart factory (fábrica inteligente).
This article aims to reflect on communication in flexible labor management through a discussion that dialogues with critical studies on the new forms of labor exploitation in current capitalism. More specifically, we seek to address ways of mobilizing communication in support of the organizational logic of work assumed by companies that consider themselves flexible and lean, or smart. The main focus is on the critical examination of the constitutive elements of a particular narrative, present in the contemporary world of work, which combines technological transformations and the precariousness of human labour.
Keywords
Communication and work; Lean manufacturing; Smart factory.
No contexto da atual configuração do capitalismo, apoiada no paulatino uso de recursos tecnológicos nas formas de exploração do trabalho humano, as empresas têm procurado se apresentar como organizações flexíveis alinhadas a princípios, conceitos e práticas que vêm se fazendo presentes no mundo do trabalho contemporâneo. Sob esta égide, é possível observar a constituição e a circulação de uma narrativa na sociedade que difunde um certo ideário sobre o trabalho ligado aos conceitos de Indústria 4.0, quarta revolução industrial, advanced manufacturing, smart factory, assim como plataformização e uberização.
Trata-se de ideias que têm encorpado um determinado referencial discursivo por meio do qual a imprensa, think tanks e a própria academia costumam debater e, cada qual a seu modo, orientar governos e diversos segmentos sociais em suas ações. Esse referencial discursivo, vale dizer, já vinha historicamente carregado por outros elementos, tais como lean manufacturing, gestão flexível, toyotismo, taylorismo-fordismo, entre outros termos que representavam – como, em grande medida, ainda representam – princípios e práticas (estas também no sentido de artefatos e métodos) de organização do trabalho que são comumente aplicadas em fábricas, escritórios e em outros ambientes de produção. Enfim, em todos os espaços onde aqueles e aquelas[1] que vivem da venda do próprio trabalho desempenham as funções de, por um lado, prover a sociedade de bens e serviços (sobrevivendo com o que lhes é pago por tal atuação), e, por outro, gerar lucros aos que os empregam (ou seja, aos que compram a sua capacidade de trabalho como mercadoria).
Tendo isso em vista, o objetivo deste artigo é refletir sobre o papel da comunicação em apoio à lógica organizativa do trabalho flexível basilar ao mundo do trabalho, discutindo questões tais como: o que caracteriza os conceitos e elementos mobilizados na narrativa ligada à referida lógica; a que processos sociais e econômicos estão vinculados e como se correlacionam? Há algo de comum por traz da gênese de seus princípios e de suas práticas que os embasa e lhes dá coerência?
Embora esses conceitos e elementos sejam mobilizados por seus agentes de modo a representar a realidade concreta dos processos de trabalho das empresas com base em uma perspectiva neutra, imparcial e desvinculada das posições objetivas e subjetivas de classe, – e nesse sentido, apresentam a mera função de descrever a realidade tal qual ela é –, ao que tudo indica, eles defendem ideias e ideais, cuja finalidade última é dirigir o processo histórico, promover visões de mundo unilaterais e comportamentos adestrados.
Eis um universo indagativo no qual a Sociologia e a Comunicação, dedicadas aos estudos sobre o trabalho humano, se encontram. E é por meio desse encontro que se pretende, no presente texto, examinar as questões acima.
Trabalho e acumulação de capital
O capitalismo herdou dos modos de produção baseados na apropriação privada do trabalho alheio um aspecto que é crucial a esse tipo de organização societária: o controle da geração e difusão do conhecimento (como atividade teórica e prática) e o controle do uso do tempo e do espaço. Em retrospectiva, o escravismo havia privado os trabalhadores não só das decisões sobre as atividades que deviam forçosamente executar, e do acesso aos resultados destas, mas também de professarem os seus cultos, falarem as línguas de seus antepassados, e resgatarem a própria vida coletiva. A servidão feudal avançaria pouco a esse respeito: uma religiosidade oficial constituía o principal cimento ideológico dessa forma de exploração do trabalho e, contanto que os servos camponeses (ou os aprendizes na corporação) não fossem em si propriedade privada dos senhores feudais (ou dos mestres de ofício), submetiam-se a eles mediante um severo controle em suas atividades laborais, as quais realizavam, em sua maior parte, em meios de produção alheios, sendo também apartados dos resultados ao final. Moradia e local de trabalho se confundiam e, se a um aprendiz cabia sonhar em um dia, talvez, ser mestre de ofício (se não viesse a concorrer com a corporação na qual se formara), aos camponeses algo similar equivalia a abandonar seus senhores e, com isso, a proteção da própria vida.
O capitalismo, supostamente, teria inovado nesses aspectos, ao garantir, juridicamente ao menos, a liberdade de escolha às pessoas (como indivíduos e consoante as regras de cada país ou região) sobre onde residir e para (ou com) quem trabalhar. Mas, como advertiu Marx (2013, p. 787), “esses recém-libertados só se convertem em vendedores de si mesmos depois de lhes terem sido roubados todos os seus meios de produção, assim como todas as garantias de sua existência que as velhas instituições feudais lhes ofereciam”. Em outras palavras, o capitalismo partiu de uma sociedade de despossuídos e, não só manteve, mas ampliou o que já estava em curso: a concentração dos meios de produção como propriedade privada de um grupo social, que, por meio disso, explora o labor da grande massa da população.
Conquanto todo modo de produção fundado na apropriação do trabalho alheio (como foram o escravista e o feudal) articule suas mediações em torno do controle das necessidades de existência dos trabalhadores, no capitalismo esse processo histórico adquire sutilezas e complexidades inusitadas, pois os proprietários dos meios de produção não adquirem o trabalho comprando totalmente, em corpo e alma, os que trabalham; compra-se a capacidade de trabalho dessas pessoas, e por um dado período de tempo. Disso decorrem graves consequências, nem sempre claras, pois por detrás da aparente probidade e liberalidade deste arranjo, há um gigantesco mecanismo de opressão psicossocial e de extração de trabalho não pago, frente ao qual o escravismo ou o servilismo feudal foram meros protótipos.
Tome-se, para início de análise, o fato de que cabe aos próprios produtores diretos (sejam assalariados ou trabalhadores autônomos) reproduzirem, por si mesmos, a mercadoria que vendem, qual seja: a capacidade de trabalho, e/ou os meios necessários à execução do próprio trabalho (no caso dos autônomos). Parece algo óbvio, mas o que passa é que reproduzir e conseguir vender o próprio trabalho como mercadoria é conditio sine qua non para que essas pessoas simplesmente existam; do contrário, tornam-se seres supérfluos e não há regra ou lei que leve alguém ou alguma instituição a lhes empregar ou manter vivos.
Aliás, o capitalismo não admite qualquer modalidade coletiva de planejamento da produção e da distribuição dos frutos do trabalho social (nem mesmo dos excedentes porventura advindos de uma elevação técnica da produtividade ou da saciedade temporária de determinado segmento social). Essas medidas – das quais poderiam advir, entre outras coisas, uma redução gradativa das jornadas de trabalho, ou um controle mais preciso dos efeitos colaterais do consumo, como a poluição ambiental – são blasfêmias às regras supostamente libertárias desse sistema.[2] Do que, contraditoriamente, resulta um crônico desperdício de capacidade de trabalho social (como nas crises de superprodução) e de seres vivos de todas as espécies (incluindo a humana, pois, na impossibilidade de vender o próprio trabalho, não são poucas as pessoas que morrem anualmente por privação de alimentação)[3].
O desemprego e o consequente excesso de força de trabalho imobilizada, além de banalizar o desperdício e a vida, mais do que efeitos supostamente indesejados, são processos funcionais à reprodução do sistema capitalista na medida em que atacam o poder de barganha de quem depende do próprio trabalho para sobreviver, em face de quem compra o trabalho alheio e com ele não só vive, como lucra. A força de trabalho, por seu atributo de conservar e, mais do que isso, de agregar valor aos meios de produção, é a mercadoria mais valiosa a ser consumida por quem os detém, é a fonte de todo lucro industrial e comercial. Para a classe trabalhadora, contudo, o trabalho, como mercadoria da qual se deve alienar intermitentemente por toda a vida, torna-se um meio de sobrevivência. Isso na melhor das hipóteses, quando se considera o trabalho com um direito fundamental, por ser a garantia de proteger a própria vida. Mas tal critério não vai além da letra morta de regulamentos solenemente ignorados por empresas e Estados.
É interessante observar que, assim como a força de trabalho, os meios de produção também são produzidos e comprados como mercadorias pelo empresariado. E deter sua posse, apenas, é insuficiente. Deve-se pô-los em movimento para que gerem produtos e serviços, que, novamente na forma de mercadorias, são vendidos e convertidos em dinheiro, reiniciando-se o ciclo. Não se busca por meio disso, como é sabido, reaver a mesma quantia de dinheiro adiantado na compra de meios de produção (e de força de trabalho), mas um excedente – o lucro. Longe de ser o resultado de especulações (como comprar barato e vender caro), e tampouco o salário com que o empresariado sobrevive (pois assim não seria possível o crescente reinvestimento e, a partir dele, a reprodução ampliada da acumulação), o lucro é uma parcela do montante de trabalho comprado a um custo sempre menor do que o resultado desse trabalho efetivamente realizado e entregue. E isso somente é possível pelo fato de que empresários não compram, no capitalismo, qualquer capacidade de trabalho, e nem exploram toda a potência de seus vendedores (os trabalhadores) em quaisquer condições.
O capitalismo é, acima de tudo, um modo de produção fundado no trabalho cooperado, embora num sentido muito particular de cooperação: a maioria dos produtos e serviços resultam de processos de trabalho que são realizados no interior de espaços (mesmo que virtuais e/ou dispersos geograficamente) nos quais, mediante uma divisão técnica e social, diferentes indivíduos especializados operam, ao mesmo tempo e de forma combinada, meios de produção privados e construídos em larga escala. A produtividade decorrente desse tipo de arranjo social permite extrair um resultado muito maior (e crescente) do trabalho dessas pessoas frente ao que se obteria caso estivessem a produzir sozinhas. No entanto, é na condição de peças individuais dessas imensas engrenagens corporativas que os trabalhadores recebem os seus pagamentos em troca da massa de valor que geram ao operar, coletivamente, esses meios de produção, que não só são concentrados juridicamente como propriedades privadas, mas tecnicamente projetados para realizar com precisão esse tipo de exploração social massiva.
O consumo eficiente e contínuo dos meios de produção torna-se, por isso, também algo da maior relevância no capitalismo. E como só se pode dispor da força de trabalho por intervalos de tempo intermitentes (diários, mensais e anuais), à margem dos quais esses meios de produção (e os insumos que os alimentam) inevitavelmente desvalorizam-se, o capitalismo engendrou artefatos técnicos e métodos organizacionais que processam e intensificam as habilidades e energias humanas a níveis inimagináveis às sociedades anteriores. Na ausência de uma macro-estrutura coletiva que coordene a produção e a distribuição dos resultados do trabalho social, há na micro-esfera empresarial um tour de force cotidiano para extrair lucro de cada centavo aplicado e por cada bolha de tempo decorrido, pondo-se, sempre que possível, os meios de produção a operar no limite máximo de sua capacidade, ao longo das 24 horas/dia, dos 7 dias/semana e dos 365 dias/ano. Daí a necessidade dos variados turnos de trabalho, das horas-extras ou das variadas formas de flexibilizar ou mesmo burlar as jornadas.
A organização do trabalho no capitalismo
Nessa guerra – entre, de um lado, os que se obrigam a girar esse moinho para dele extrair o direito à vida, e, de outro, os que o detém como capital para dele extrair não apenas a própria vida, mas, acima de tudo, lucros – não se emprega mais a simples violência ostensiva, ao modo primitivo do xingamento e da chibata. Diferentemente, empreendem-se as mais formidáveis engenharias de controle, envolvendo desde a investigação e a assimilação de saberes-fazeres, até a metrificação e imposição de padrões de percepção e conduta aos trabalhadores, do âmbito sócio-coletivo ao individual-psíquico e das esferas gerenciais aos níveis operacionais nas empresas - e nos próprios lares, no caso de trabalhos executados remotamente. As denominadas revoluções industriais, tão memoráveis pelos ditos avanços tecnológicos logrados, não foram senão o resultado dessa sanha empresarial em elevar continuamente a produtividade por meio do mais absoluto controle das atividades de trabalho e de sua execução em meios (espaços e artefatos) e sob condições (organizacionais) obstinadamente projetadas a gerar o máximo de lucros, ao invés de melhores meios de vida.[4]
O sistema de manufatura, logo de sua implantação ao final do século XVIII, já expunha essa necessidade de controle ao deslocar os trabalhadores para fora dos locais de moradia para operarem, ainda que inicialmente sob métodos tradicionais, equipamentos dispostos em larga escala e sob uma administração privada e centralizada (MARGLIN, 1996). Com o passar dos anos, um staff gerencial passou a acumular os saberes-fazeres vernaculares dos trabalhadores e a impor nos locais de trabalho uma profunda subdivisão técnica de atividades, que, reduzidas então a tarefas ocas e repetitivas, passaram a ser distribuídas entre grupos estanques de pessoas, num processo que, ao fim e ao cabo de décadas, tornou ex-artesãos em operários cultural e fisicamente mutilados (não raro em sentido literal) (MARX, 2013).
Essa especialização depauperante abriu espaço a um design unilateral e reducionista dos artefatos de trabalho, o que, pari passu às técnicas de obtenção e aplicação mais versáteis de energia (com o uso dos combustíveis fósseis e a eletricidade), permitiu uma automação do trabalho, com o advento de máquinas crescentemente complexas que passaram a executar desde a força motriz até as próprias operações com as ferramentas sobre os objetos de trabalho, primeiramente intermediando, mas com o tempo substituindo mesmo a presença do ser humano, e, acima de tudo, alterando social e culturalmente a relação deste com o objeto de labor. Ao superar, em muitos casos, a capacidade humana em rapidez e precisão em tarefas que, antes complexas e intuitivas, foram rebaixadas a atos reflexos e repetitivos, as máquinas passaram a ser empregadas massivamente desde o século XIX, alterando os ambientes de trabalho e assimilando funções (como controlar-se, abastecer-se etc.), num movimento que se espraiou da indústria à mineração, à agropecuária, aos transportes, à comunicação, alterando, enfim, as relações sociais do ser humano, o que inclui, evidentemente, o uso e a percepção do espaço e do tempo.
O surgimento de um sistema de mensuração por cronômetro de cada ato físico e mental, executado em ferramentas especiais num espaço laboral desenhado cuidadosamente para sugar cada lapso de tempo produtivo, tal como empreendeu o taylorismo na virada do século XIX para o XX, não foi, portanto, mais do que um avanço nessa mesma trajetória (PINTO, 2013). Logo depois, a introdução da linha de série fordista engendraria não só a produção, mas o consumo de massa, em uma sociedade na qual não só o conhecimento sobre o trabalho e o próprio ato de trabalhar, mas a percepção subjetiva acerca do direito, do dever e dos meios de se obter o resultado do trabalho, passaram a ser ressignificados e manipulados (GRAMSCI, 1996).[5] Provam isso a endêmica sujeição da emergente classe média (e mesmo de setores do proletariado) no século XX à mercantilização do trabalho e de seus resultados, e a resignação diante da colossal burocracia e da maquinaria nela empregada[6], configurando o que Marcuse (1987) denominaria como o advento de um ser humano unidimensional.
O passo seguinte nesse processo, a partir dos anos 1970, com a crise do petróleo, foi a difusão mundial do Sistema Toyota de Produção (CORIAT, 1994; HIRATA, 1993; MONDEN, 1984; OHNO, 1997), alcunhado nos EUA de lean manufacturing (produção enxuta) (WOMACK, JONES, ROOS, 1992). A inovação em relação ao taylorismo-fordismo estaria no fato de que o toyotismo, além de maior eficiência no consumo de materiais e de tempo na produção, permitia a elaboração de uma variedade maior (mix) de produtos (ou serviços), mesmo sob a produção em larga escala. Para conseguir isso, o toyotismo exige um redimensionamento do espaço produtivo, eliminando-se a tradicional esteira da linha de série e introduzindo-se espaços (células) que integram equipes de variados tamanhos e com trabalhadores polivalentes, aos quais é imposto um número crescente de diversas atividades e a operação, não raro simultânea, de mais de um tipo de equipamento. Daí atribuir-se ao toyotismo (ou à sua releitura ocidental, a lean manufacturing) a aura de uma flexibilidade em contraposição à rigidez do taylorismo-fordismo: o tipo ideal de empresa é a que se adapta rápido à anarquia de um mercado cada vez mais convulsionado e oscilante. E como as empresas não são mais do que compradoras e mobilizadoras de trabalho alheio, eis que surge o ideal do trabalhador flexível, capaz de se adaptar às bruscas mudanças provocadas pela concorrência nas qualificações e nas relações contratuais de trabalho, incluindo lidar com o próprio desemprego (ANTUNES, 1995, 1999; ANTUNES e PINTO, 2017; PINTO, 2011b).
Entretanto, flexibilidade é o que todos esses sistemas de organização engendrados pelo capitalismo exigiram à classe trabalhadora. Exigiu-se dos camponeses - junto, evidentemente, com a supressão de suas propriedades - adequarem-se ao arrendamento ou ao assalariamento na zona rural; ou migrar às cidades, onde passariam a concorrer com os ex-artesãos, tornados, também sob o risco de sucumbirem, em operários manufatureiros. A posterior introdução e o uso crescente da maquinaria de base eletromecânica na indústria, na mineração e no campo, além de intensificar o trabalho (sobretudo quando é impossível estender mais as jornadas, visando amortizar os custosos investimentos) (DAL ROSSO, 2008), levaria também inúmeras pessoas à condição de descartabilidade, num movimento que adquiriu especial virulência desde fins do século XX com a introdução da eletrônica e da informática nos equipamentos e espaços de trabalho (HARVEY, 1992; LOJKINE, 2002; SCHAFF, 1995; WOLFF, 2005).
A difusão de computadores de variados portes e sua integração em redes abastecidas com servidores, operados por softwares cada vez mais complexos e, ao mesmo tempo, mais versáteis e acessíveis aos usuários, provocou um crescimento exponencial da capacidade de armazenamento, mineração e processamento de dados. Conjugadas à esfera da comunicação, configurando o rol de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), essas novas forças produtivas potencializaram o controle do trabalho humano pela via da automação, ao permitir a coleta de dados produzidos pelos trabalhadores em suas jornadas (locais ou remotas) de trabalho, possibilitando evidenciar nos mínimos detalhes os saberes-fazeres numa espécie de "texto eletrônico", como expressa Zuboff (2018, p. 21).
Já no início dos anos 1980, Zuboff (ibid) relatava em seus artigos uma mudança qualitativa na automação do trabalho humano desde que este passou a ser, em suas palavras, “mediado pelo computador”. Se as formas de automação realizadas até então se limitavam à simplificação do trabalho e à substituição do ser humano por máquinas que ofereciam maior controle e continuidade, a introdução das TICs agregaria ainda outra camada de dominação do trabalho pelo capital: a geração e a acumulação de dados, produzidos simultaneamente ao desenrolar do trabalho, cujo processamento (e análise) à parte “(...) proporciona um nível mais profundo de transparência a atividades que pareciam parcial ou totalmente opacas”, o que produz uma “(...) ação ligada a uma voz reflexiva, pois a mediação pelo computador representa simbolicamente eventos, objetos e processos, que se tornam visíveis, passíveis de serem conhecidos e compartilhados de uma nova maneira” (ZUBOFF, 2018, p. 20).
Para Zuboff (2018, p. 20-21), há nesse estágio dois processos simultâneos: a automação e a informatização do trabalho; por esta última, amplia-se “(...) a codificação organizacional, resultando em uma abrangente textualização do ambiente de trabalho – o que chamei de 'texto eletrônico'”. Com isso, acirrou-se ainda mais a disputa em torno do conhecimento do trabalho, pois o aprendizado em tempo real e mediado por computadores tornou-se algo cada vez mais comum e endógeno aos processos de trabalho (Id. ibid., loc. cit.). A emergência de novas mediações técnicas tendo a internet e suas ferramentas (aplicativos, plataformas, páginas, portais, blogs, canais, motores de busca etc.) como base e lugar comum do fluxo de ações e comunicação nos ambientes de trabalho, permitiu que a coleta, o armazenamento e o processamento de informações – por si inerentes à gestão capitalista – ultrapassassem os limites formais das relações de trabalho e atingissem níveis de controle social que vão ao âmago da vida privada dos trabalhadores:
Algumas dessas ações são mais formais: metodologias de aperfeiçoamento contínuo, integração empresarial, monitoramento de empregados, sistemas de tecnologia da informação e comunicação que proporcionam a coordenação global de operações dispersas de manufatura, atividades profissionais, formação de equipes de trabalho, informações sobre clientes, cadeias de fornecedores, projetos inter-empresas, forças de trabalho móveis e temporárias e abordagens de marketing para diferentes configurações de consumidores. Outras são menos formais: o fluxo incessante de mensagens eletrônicas, buscas online, atividades no smartphone, aplicativos, textos, videoconferências, interações em redes sociais etc. (...) O ponto-chave aqui é que o texto eletrônico, quando estamos tratando da esfera do mercado, já se encontra organizado pela lógica de acumulação na qual está incorporado, bem como pelos conflitos inerentes a essa lógica (ZUBOFF, 2018, p. 21-22).
As constatações de Zuboff (2018) evidenciam o quanto a aplicação das TICs na automação do trabalho permitem - e exigem, numa espécie de realimentação dos próprios aparatos de organização e seus métodos – a elaboração de uma gestão capitalista do universo simbólico do trabalho nas empresas, por meio da qual se constroem ambientes impositores de determinadas prescrições de comportamento no trabalho, exigidas por esses novos arranjos que se reivindicam lean (enxutos e flexíveis) e, mais recentemente, smart (inteligentes).
Assim como o sistema Toyota de produção superou, sem eliminar suas bases fundantes, o fordismo (tal como este fizera, ademais, com o taylorismo) (PINTO, 2007), a chamada smart factory (fábrica inteligente), propagada como parte do receituário alemão da Indústria 4.0, é uma fábrica organizada nos princípios da lean manufacturing, mas agregando outros elementos físicos e gerenciais, pautados no uso massivo da informática (sobretudo pela intensificação das formas de conectividade no sistema de maquinaria) e, como apontado por Zuboff (2018), de métodos de coleta permanente (e invasiva) de dados humanos pelas mediações digitais dos processos de trabalho, abrindo as portas a um nível de controle que concretiza o pesadelo do panopticon e possibilita vigiar e punir – parafraseando Foucault (2014) – em tempo real.
Dentro desse contexto, Srnicek (2017, p. 34-35) aponta que é possível perceber um número crescente de empresas e fábricas interessadas em integrar plataformas ao campo da manufatura tradicional, com o propósito de coletar dados, armazená-los e analisá-los, sendo que uma das tentativas dessas organizações em concretizar tal propósito é conhecida como “internet industrial das coisas” ou, simplesmente, "internet das coisas". Basicamente, segundo ainda o mesmo estudioso, a ideia é que cada componente no processo de produção das empresas torne-se capaz, através do uso da internet, de se conectar com máquinas sob a orientação de trabalhadores e gestores. A “internet industrial das coisas” promete fazer o processo de produção ainda mais eficiente ao reduzir custos e tempo de inatividade.
Na área da automação, as empresas estão lançando mão de maquinaria com processamento computacional embarcado e gerido por interações mediante uma conexão contínua à rede mundial de computadores. Uma parte desses artefatos possui dispositivos que captam uma miríade de informações (de tempo e deslocamentos no espaço, de temperatura, pressão, maneiras com que são manipulados etc.), tanto de si e de outros equipamentos do entorno, como dos trabalhadores que os operam. Essas informações são processadas por softwares embarcados nesses equipamentos e/ou situados em determinados pontos do processo produtivo, permitindo tomadas autônomas (leia-se: maquínicas) de decisão e até mesmo certo nível de aprendizado (machine learning), evidenciando, assim, a disseminação de técnicas de Inteligência Artificial (IA) nos espaços de trabalho. Por fim, essa colossal quantidade de dados gerados na interação entre trabalhadores e máquinas, e que são por elas mesmas sequestrados, é armazenada em grandes servidores a partir dos quais são minerados e processados, produzindo informações precisas e em tempo real que permitem à gerência capitalista uma leitura translúcida e quase ubíqua de cada tarefa, em todas as séries de atividades ao longo de centenas ou até milhares de postos de trabalho numa planta (e, no limite, em mais de uma planta numa cadeia produtiva). Eis o chamado big data.
Igualmente a outros tipos de plataformas, as chamadas plataformas industriais contam com a extração de dados como uma ferramenta competitiva no mercado, considerando serviços mais rápidos, flexíveis e baratos (Srnicek, 2017).
Um exemplo do que entendemos neste artigo por smart factory, ou do que Srnicek (2017) chama de plataformas industriais, – mesmo que ainda em fase de elaboração – é a fábrica de caminhões da Mercedes-Benz em São Bernardo do Campo, no Brasil. Essa antiga planta, inaugurada em 1956, vem recebendo desde 2015 altos investimentos do Grupo Daimler nas áreas acima citadas, que chegarão a R$ 2,4 bilhões até 2022. Em 2018, já inaugurou uma nova linha de montagem de caminhões com mais de 300 automatic guided vehicles (AGVs) (PROJETO..., 2009), autonomous intelligent vehicle (AIVs, dotados de IA), robôs colaborativos (com sensores que lhes permitem atuar ao lado de seres humanos sem gaiolas de segurança), parafusadeiras eletrônicas e até exoesqueletos e óculos de realidade aumentada. Tudo isso está conectado em rede, gerando dados que são armazenados num data lake, gerido por uma plataforma que monitora não só esta planta, como pretende fazer o mesmo (conectando-a) com as demais fábricas do grupo, no Brasil e no mundo. Monitora-se a qualidade do trabalho por detecção de falhas de produção, traçam-se correlações entre produção e vendas (dando maior agilidade e flexibilidade ao mix produtivo), entre outras possibilidades. Segundo informa a empresa, um simples aplicativo para smartphone entrega uma interface ao usuário que permite acompanhar esses detalhes da produção em tempo real e a partir de qualquer lugar do mundo com conexão à internet (CURCIO, 2019; MERCEDES-BENZ..., 2018, 2019a, 2019b).
Diante do atual cenário do capitalismo digital, Sadowski (2019, p. 5, tradução nossa) nos lembra que: “diferentes indústrias acumulam diferentes tipos de dados para dar conta de suas próprias motivações e de seus objetivos”, considerando que os dados – sua extração, acumulação e circulação – são um elemento central da economia política do século XXI. Nesse sentido, os dados podem ser compreendidos, conforme o referido estudioso, como uma forma de capital que gera valor, levando em conta que os tipos de dados coletados e como eles são usados são aspectos fundamentais nesse contexto.
A comunicação na gestão capitalista do trabalho
Em cada um desses momentos, conjuntamente às estratégias gerenciais de organização das hierarquias, dos postos, das tarefas, dos espaços físicos e virtuais, e dos instrumentos de trabalho, a comunicação teve um papel essencial. Da mesma forma como o trabalho cooperado e as técnicas (artefatos; metodologias; linguagens corporais, verbais e escritas), a comunicação, como práxis social gestada e mediada pelo trabalho humano na história, têm como propósito adensar e aperfeiçoar as relações dos seres humanos entre si e com a natureza, sempre tendo como pressupostos os objetivos, as finalidades e os limites dados pelo contexto histórico e cultural de cada sociedade. Subordinada a modos de produção baseados na exploração privada do trabalho alheio, como o capitalista, a comunicação, tal como outras práxis sociais, tem sua virtuosidade pervertida pela imperiosa necessidade de controlar e ampliar a produtividade do trabalho – para, no entanto, como já aludido antes, gerar como resultado a concentração dessa crescente riqueza em posse de uma classe dominante, restando às demais submeter-se para garantir, ao menos (e a priori), a simples sobrevivência. Nesse sentido, Roseli Figaro (2008, p. 30) aponta esse aspecto contraditório da comunicação no trabalho da seguinte forma: “na sociedade capitalista globalizada, a comunicação extrapola o âmbito das relações genéricas do ser social em relação ao trabalho, para constituir-se em elemento do processo produtivo de riquezas e acúmulo de capital”.
Os métodos e artefatos de prospecção, metrificação, redefinição, padronização, controle e intensificação do trabalho nas empresas trazem em seu bojo usos da comunicação por um viés tecnocrático, associando-a às relações de poder, aos princípios da gestão estratégica – ou management, na linguagem dos expertos do capital –, sendo essas atividades de comunicação integradas a um gerenciamento que pretende racionalizar também o universo simbólico nos ambientes laborais. Trata-se de uma postura teórica e prática que, se bem reforça o papel social da comunicação, o faz aliando-a ao domínio de uma ideologia mercantil que é representativa de uma sociedade produtivista como a atual (SODRÉ, 2012).
Sodré (2014) alerta que capitalismo financeiro e comunicação caminham juntos na contemporaneidade. Atualmente, comunicação e informação podem ser consideradas relevantes ao capitalismo seja como base material, seja como base ideológica:
Ficcionando ou virtualizando o real em função da atualidade histórica do capital, o par comunicação/informação contribui, portanto, para "naturalizar" o mercado financeiro como base da aceleração do desenvolvimento econômico e como fonte da ideologia capitalista do bem-estar humano na atual etapa de penetração da lei estrutural do valor (o capital) em todos os espaços existenciais dos indivíduos. E assim representa um aspecto da luta de classes em que a modernização neoliberal acarreta o desmatamento do Estado de bem-estar social e da tradicional organização das forças produtivas em favor da precarização do trabalho, com vistas ao aumento de rendimentos do capital fictício (SODRÉ, 2014, p. 56-57).
O uso da comunicação nas funções de articulação e tracionamento da produção na esfera empresarial capitalista data, pelo menos, do advento da organização industrial da produção. Boutet (2008), em suas investigações sobre as inter-relações entre as atividades da linguagem e do trabalho, com base numa abordagem teórico-metodológica denominada de “via verbal no trabalho”, aponta que as manifestações comunicativas dos trabalhadores eram foco de atenção por parte dos gestores do capital já no século XIX.
Analisando mais de 300 réglements d’ateliers (regulamentos de oficinas), produzidos entre 1798 e 1936 na França, Boutet (2008) mostra que diferentes modalidades da atividade verbal de operários e operárias - como assobiar, conversar, gritar, injuriar ou cantar - eram censuradas e impedidas no ambiente de trabalho. Dois tipos de interdições à expressão comunicativa dos trabalhadores são identificados e categorizados pela linguista no material levantado: as de natureza produtiva e as de natureza moral (BOUTET, 2008, p. 28). As interdições do primeiro grupo agregam as práticas linguageiras consideradas impeditivas de um trabalho bem feito e de boa qualidade - neste caso, o silêncio é condição fundamental para o êxito da produção. Já o segundo grupo, de natureza moral, comporta interdições de qualquer expressão verbal tida como portadora de comportamentos transgressores de normas de civilidade e dos bons costumes.
A pesquisa de Boutet (2008) é interessante, entre outras coisas, por instigar a reflexão sobre as valorações diferenciadas do uso da comunicação nos ambientes laborais em distintos momentos no capitalismo. Se antes esse uso era rejeitado sob a acusação de ser considerado um entrave à produtividade, na atualidade a mobilização da comunicação é algo valorizado e explorado economicamente nesses ambientes. Em ambos os casos, no entanto, aponta Boutet (2008), perdura a vontade de racionalizar a linguagem e a comunicação no trabalho[7].
No final do século XX, com difusão mundial do toyotismo e de sua versão ocidental, a lean manufacturing, a comunicação foi igualmente instrumentalizada pelos proprietários do capital e seus managers como parte dos métodos de racionalização do trabalho, como se pode notar pelo uso disseminado de prescrições cuidadosamente estudadas e difundidas nos ambientes empresariais. Essas prescrições são um conjunto de enunciados compostos, dispostos e difundidos em campos de trocas simbólicas, impulsionadas pelas disputas de poder e pelas relações de força a que elas estão sujeitas, em condições históricas e sociais determinadas. São enunciados materializados em discursos que revelam recomendações e orientações consideradas obrigatórias para a conformação de um determinado modo de pensar e de ordenar as relações sociais (REBECHI, 2014).
O uso prescrito da comunicação na gestão das relações de trabalho nas empresas, portanto, não é um fenômeno originado com a aparição de um novo tipo de organização do trabalho. Seu papel na gestão racionalizada do simbólico das situações de trabalho (OLIVESI, 2006) foi potencializado a partir das duas últimas décadas do século XX, com o surgimento de outros aspectos da configuração atualizada do trabalho.
Pode-se identificar a mobilização de prescrições de comunicação constituídas em relação aos princípios da gestão toyotista, que, conjuntamente aos princípios da flexibilidade e enxugamento, enfatizam ideais de “valorização do trabalhador como pessoa”, de incentivo à “acessibilidade à informação” no ambiente de trabalho, de “individualização do trabalhador” no tratamento dado pelas chefias e de “envolvimento do empregado à cultura da empresa” (REBECHI, 2009, p. 103). Essas prescrições de comunicação incorporaram também um vocabulário que passou a pautar uma nova imagem e significado das atividades de trabalho e dos próprios trabalhadores nas empresas que se reivindicam enxutas e flexíveis: o termo funcionário é substituído por parceiro, associado, colaborador, consultor; não se fala mais em qualificações, mas em competências; e expressões como polivalência e multifuncionalidade passaram a ser naturalizadas.
Se já existiam conceitos que sempre fizeram parte da atividade humana de trabalho e que ocasionalmente constituíam princípios de formas de gestão do trabalho – tais como diálogo, participação, inteligência, respeito, humanismo, autonomia etc. –, agora esses mesmos conceitos dão corpo, tanto ao discurso das empresas, como às prescrições de comunicação nos processos de trabalho. Percebe-se, portanto, uma readequação do emprego de um vocabulário ligado ao contexto ideológico constitutivo das empresas. Trata-se de um jogo ideológico do emprego da palavra, traduzido por Bakhtin (1986, p. 95) nos seguintes termos: “(...) não são as palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”.
Esse uso ideológico da comunicação é algo que está claramente presente no discurso de governantes, entidades empresariais e até mesmo de acadêmicos, acerca da "quarta revolução industrial" (SCHWAB, 2016), com ênfase no receituário germânico Plattform Industrie 4.0 (PLATTFORM…, 2019) e no estadunidense Advanced Manufacturing, seguidos pelo chinês Made in China 2025 (PARDI et al., 2018). Nota-se uma tentativa desses agentes públicos e privados de criar um discurso hegemônico, uma espécie de clima e de estado de espírito, sobre a inevitabilidade dos diversos segmentos e setores sociais se envolverem nessa onda de transformação digital. Schwab (2016, p. 17), fundador e executivo do Fórum Econômico Mundial, afirma em seu livro que:
(...) o mundo carece de uma narrativa coerente, positiva e comum que descreva as oportunidades e os desafios da quarta revolução industrial, uma narrativa essencial caso queiramos empoderar um grupo diversificado de indivíduos e comunidades e evitar uma reação popular contra as mudanças fundamentais em curso.
Na esteira desse discurso, emergem prescrições e orientações relacionadas ao trabalho que vêm sendo criadas e difundidas por empresas e suas entidades representativas, buscando destacar as vantagens e positividades dos ditames da Indústria 4.0, sempre alinhadas à ideia de uma "hegemonia informacional-digital" – parafraseando aqui Antunes (2018). Coloca-se como uma obrigatoriedade, às empresas e aos trabalhadores, adequarem-se à chamada cultura digital e aos recursos tecnológicos que lhe conformam, tais como a IA e a internet das coisas, sob pena de sucumbirem ou então retardarem os progressos que essas tecnologias supostamente trarão (como, por exemplo, o aumento da renda global pela elevação da produtividade, baseada numa produção composta por dispositivos inteligentes em cooperação com os trabalhadores). Promete-se a velha liberação dos trabalhadores para atividades mais prazerosas e criativas, desde que passem, claro, a pensar e agir como nativos digitais.
Se até aqui a presente análise se circunscreveu ao interior das fábricas (ou dos escritórios) ditos inteligentes[8], cabe frisar que para além desses espaços vêm se expandindo outras modalidades de exploração do trabalho em cuja base artefatual e metodológica também estão as TICs e a gestão algorítmica, igualmente amparadas pelas prescrições de comunicação que apregoam a flexibilidade, a polivalência, a autonomia, o engajamento, o empreendedorismo e o consumo vigilante como os ideias de uma nova era. Tratam-se de modalidades de consumo privado dos frutos do trabalho alheio que se esquivam da relação de assalariamento mediante o estabelecimento de contratos com os trabalhadores como se estes fossem prestadores de serviço autônomos, ou mesmo empresários de si mesmos.
Essas modalidades de exploração fazem uso de algoritmos em plataformas digitais situadas na internet, emergindo desse movimento as ditas empresas de plataformas, em cuja liderança econômica (e propagandística) estão Airbnb e Uber (SLEE, 2017). Tomando-se a Uber, seus executivos (e outros entusiastas) defendem que a empresa não oferta serviços de transporte de passageiros, mas serviços de conexão entre passageiros e uma multidão heterogênea e oscilante de simples proprietários de veículos, que, por algum motivo, em certo momento descobrem que podem compartilhar as suas posses e habilidades, tornando-se motoristas autônomos ocasionais. Da parte destes, basta cadastrar-se num aplicativo (atendendo a regras minimalistas e que variam conforme cláusulas de poderes públicos locais) pelo qual podem prestar seus serviços por meio da Uber, que, por sua colaboração, recolhe de cada pagamento efetuado a seus parceiros, porcentuais que com frequência ultrapassam 20%. Riscos de acidentes, violência e adoecimentos (que podem, no mínimo, descontinuar a fonte de renda desses motoristas), assim como a responsabilidade pelo abastecimento e toda a manutenção física e tributária dos veículos, ficam por conta dos parceiros. E algo há que respingar, por óbvio, nos próprios passageiros, posto que, segundo a Uber, eles não estão contratando (e, portanto, não podem ser respaldados por) uma empresa de transporte; eles estão pagando por uma carona.
Esse modelo de negócio, agressivamente rentável e suavemente denominado sharing economy (economia de compartilhamento), rechaça por completo a necessidade de vínculos empregatícios e ainda exige do trabalhador que assuma, como um empreendedor, todos os riscos. A Uber se desvalida até mesmo da avaliação da qualidade e segurança do serviço que, por meio de sua plataforma, é prestado. Faz, na verdade, algo mais interessante: transfere essa tarefa de monitorar e controlar o trabalhador-motorista ao próprio consumidor-passageiro, por meio da ferramenta de avaliação em seu aplicativo. Em outros termos, a empresa-mãe do negócio (que em poucos anos se tornou uma megacorporação) sai de cena e deixa, frente a frente, dois indivíduos, dando a um deles, ao consumidor-passageiro, a tarefa (que deve realizar gratuitamente) e o poder (com a responsabilidade subjacente) de determinar (ainda que desprovido de todo critério além do senso comum, e isento de qualquer necessidade de justificativa) a qualidade e, no limite, a continuidade da prestação do serviço pelo trabalhador-motorista (SLEE, 2017).
Pesquisa recente, coordenada pela socióloga do trabalho inglesa Ursula Huws e outros pesquisadores, indicou que práticas da gestão do trabalho por plataformas digitais já estão sendo assumidas por empresas tradicionais na Europa, especialmente na área de serviços. Uma dessas práticas é a classificação que os clientes fazem para avaliar as atividades de trabalho realizadas, sendo considerada um meio de disciplinar os trabalhadores (THE PLATFORMISATION, 2019).
Esses diversos casos demonstram como as TICs têm contribuído para aprofundar o controle e a exploração do trabalho, abrindo o fosso entre concepção e execução do trabalho, simplificando e desqualificando o savoir faire desenvolvido pela classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 1995, 1999), explorando ao máximo a subjetividade do ser humano e propiciando danos psicológicos e físicos aos trabalhadores (ALVES, 2011; LINHART, 2007). Diante disso, essa lógica organizativa do trabalho vinculada ao mundo digital nos remete, de algum modo, à interpretação de Braga (2009, p. 65), que, há anos atrás, já descrevia a paradoxal “(...) miséria do trabalho informacional autêntico com a prosperidade do trabalho informacional idealizado”.
Considerações finais
As organizações empresariais, em geral, têm se mostrado relevantes agentes da reestruturação produtiva do capital vinculada à atual lógica organizativa do trabalho que mescla transformações tecnológicas - no âmbito da informação e da comunicação - e aspectos da precarização do trabalho. As empresas flexíveis, nesse sentido, atuam de diversos modos, sejam como plataformas digitais ou empresas de plataforma, como fábricas inteligentes (smart factories) ou, até mesmo, como organizações que não necessariamente incorporaram procedimentos tecnológicos avançados em seus processos produtivos, mas que já vêm assumindo determinados aspectos de digitalização da sua gestão do trabalho, mesmo que somente de modo simbólico. E todas elas admitem uma série de prescrições no contexto do mundo do trabalho que são constitutivas de narrativas e discursos basilares do próprio capitalismo digital.
Diante disso, procurou-se, neste artigo, dar lastro histórico-materialista aos elementos e conceitos constitutivos do ideário que embasa a lógica do trabalho flexível, buscando demonstrar como representam a realidade, e nela atuam, por duas vias. De um lado, eles manifestam o advento de princípios e práticas (tecnologias) de organização e exploração do trabalho humano no capitalismo. De outro, tais elementos constituem um universo simbólico (ideológico) no qual prescrições de comunicação são usadas para performatizar a realidade, moldando visões de mundo e engendrando comportamentos adequados aos interesses de uma determinada classe social. Em termos de método, fez-se uso de uma revisão bibliográfica, com ênfase nas áreas da Sociologia e da Comunicação. Espera-se, com esse labor, contribuir com a seara de estudos críticos sobre as novas formas de exploração do trabalho no capitalismo atual.
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Claudia Nociolini Rebechi é docente do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE/UTFPR) e do Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação (DALIC/UTFPR) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho, Tecnologia e Capitalismo Digital da UTFPR e do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA/USP. Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa, com o desenvolvimento da discussão teórica, a interpretação dos dados, o apoio na revisão de texto, e a redação do manuscrito.
Geraldo Augusto Pinto é bacharel em Sociologia e Ciência Política, mestre e doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com ênfase em Sociologia do Trabalho. Professor adjunto do Departamento Acadêmico de Estudos Sociais (Daeso) e do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Curitiba. Pesquisador dos grupos: Ciências Humanas, Tecnologia e Sociedade (CHTS/UTFPR); Trabalho, Tecnologia e Capitalismo Digital (UTFPR); Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (GPTM/Unicamp). Membro da Red Innovación y Trabajo en la Industria Automotriz Mexicana (RedItiam). Neste artigo, contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa, com o desenvolvimento da discussão teórica, a interpretação dos dados, o apoio na revisão de texto, e a redação do manuscrito.
Submissão em: 11/11/2019. Revisor A: 24/01/2020; Revisor B: 08/02/2020; Revisor C: 20/02/2020; Revisor B: 08/03/2020. Aceite em: 12/03/2020.
Ao citar este artigo, usar a seguinte referência: REBECHI, Claudia Nociolini; PINTO, Geraldo Augusto. DA LEAN MANUFACTURING À SMART FACTORY: A comunicação nos processos de organização do trabalho no capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 84-100, abr./jul. 2020.
[1] Por simplicidade expositiva, sem nenhuma conotação hierarquizante ou de outra natureza, será utilizado no restante deste texto uma só forma pronominal quando se tratar de sujeitos. E por ela se deve entender, sempre, tratarem-se de seres humanos homens e mulheres, indistintamente.
[2] Nas palavras de Marx (2014, p. 610), “a ideia de que a acumulação se realiza à custa do consumo é – enunciada desse modo geral – ela mesma uma ilusão, que contradiz a essência da produção capitalista, na medida em que pressupõe que o objetivo e a mola propulsora desta última é o consumo, e não a subtração de mais-valor e sua capitalização, isto é, sua acumulação”.
[3] Segundo publicação recente da Organização das Nações Unidas (FOME..., 2019): “cerca de 820 milhões de pessoas em todo o mundo não tiveram acesso suficiente a alimentos em 2018, frente a 811 milhões no ano anterior, no terceiro ano consecutivo de aumento. (...) O ritmo do progresso para reduzir para a metade o número de crianças com atraso no crescimento e de bebês nascidos abaixo do peso ideal é demasiado lento (...). A fome está aumentando em muitos países nos quais o crescimento econômico está estancado, particularmente nos países de renda média e naqueles que dependem em grande medida do comércio internacional de matérias-primas. (...) A desigualdade de renda está crescendo em muitos dos países onde a fome está aumentando, o que torna a situação ainda mais difícil para os mais pobres, vulneráveis ou marginalizados, frente à desaceleração e à recessão econômica”.
[4] Segundo Rosdolsky (2001, p. 379): “o traço mais evidente desse sistema [e sua necessidade para reproduzir-se, acrescentaríamos nós] é – e segue sendo – sua busca insaciável de lucros crescentes. Por isso, só se produzem 'bens', ou valores de uso, que também sejam, ao mesmo tempo, valores; e as necessidades humanas só são satisfeitas na medida em que isso incremente a mais-valia [fonte do lucro]. Por exemplo, os criadores de toda a riqueza social – os trabalhadores – têm grandes necessidades (afortunadamente, sempre crescentes); mas só podem satisfazê-las se sua força de trabalho for uma mercadoria vendável no mercado; e ela só é vendável se for capaz de criar mais-valia. O caso dos assim chamados 'fatores objetivos' é semelhante: máquinas e instrumentos de produção, mesmo os mais aperfeiçoados, só são empregados se podem aumentar a taxa de lucro. Finalmente, também o 'capitalista total' está restringido em suas comodidades e fruições pela necessidade da acumulação permanente de capital”.
[5] Nas palavras de Gramsci (1991, p. 393): “a história do industrialismo sempre foi (e hoje o é de forma mais acentuada e rigorosa) uma luta contínua contra o elemento ‘animalidade’ do homem, um processo ininterrupto, muitas vezes doloroso e sangrento, de sujeição dos instintos (naturais, isto é, animalescos e primitivos) a sempre novos, complexos e rígidos hábitos e normas de ordem, exatidão, precisão, que tornem possível as formas sempre mais complexas de vida coletiva, que são a consequência necessária do desenvolvimento do industrialismo”. Comentários sobre essa perspectiva gramsciana podem ser vistos em Pinto (2008, 2011a, 2012).
[6] Não por acaso, o século XX ficou marcado pela viabilização industrial massiva do automóvel, mas também do avião e dos foguetes, cujos desenvolvimentos acelerados são tributários das guerras de 1914-1918 e 1939-1945 e suas consequências, como a Guerra Fria.
[7] No Brasil, por exemplo, a gênese das prescrições de comunicação no trabalho em contextos organizacionais empresariais remonta à difusão, por entidades como o Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT), na primeira metade do século XX, dos preceitos da “organização científica do trabalho”, oriundos do sistema taylorista-fordista (e da escola de “relações humanas”). Preceitos que foram propagados, dentro e fora das empresas, como orientações para a formação de uma força de trabalho adequada à industrialização e ao avanço do capitalismo no país (REBECHI, 2014).
[8] Cuja maquinaria sequestra dados das operações que os seres humanos nela realizam, transformando-os em informação "inteligente" (leia-se: de interesse da acumulação capitalista). Aliás, em se tratando da expressão inteligência artificial, tida como uma consciência autopoiética, criativa e auxiliar do ser humano, eis aqui um fato questionável segundo Casilli (2018), para quem tais capacidades computacionais têm sido viáveis somente pelo sequestro de dados humanos, como já mencionado, pari passu à severa unilateralização das finalidades dos softwares e hardwares engendrados pelos interesses de seus detentores.