Ensaios de Geografia
Essays of Geography | PPGEO – UFF
A POÉTICA DA ROTATÓRIA[1]
THE POETIC OF THE ROUNDABOUT
Hiram de Aquino Bayer[2]
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
hirambayer@gmail.com
Não há equipamento de trânsito mais bem quisto que a rotatória (também conhecida como giradouro, rótula, balão, a depender de sua localização geográfica). Sua generosidade está em lado extremamente oposto ao despotismo dos semáforos (também conhecido como sinal, sinaleira, farol, a depender também de sua localização geográfica) com o seu “pare-atenção-siga” incansável. Sua gentileza se materializa em um ornamento triangular que lhe é como um brinco e que significa uma simples assertiva: “dê a preferência”. Àqueles que levam a sério esta composição geométrica não resta nada a não ser se render a seu pedido quase como uma ordem. E aí, é um carro para lá, dois para cá, mais uns para aqui e outros para acolá. Lugar de passagem, mas também de encontros, de trocas de olhares, de gentileza e gratidão. Lugar, também, de conflitos, é bem verdade, pois sempre haverá aqueles que não se dão tão bem com as formas geométricas e não compreendem muito bem seus significados. Se os automóveis e seus condutores formassem uma grande orquestra, certamente, a rotatória seria sua notável regente a cumprir dia e noite sua sina de dar ritmo aos desafinados, a dar fluidez onde reina aparentemente a rigidez do asfalto, das faces e dos dedos.
Seu Geraldo - um velho que frequentava cotidianamente uma velha praça de um velho bairro da cidade - costumava sentar (no banco novo, diga-se de passagem) e observar com certo descompasso sentimental uma rotatória que ficava logo ali ao lado. Ora, pensava na confusão que seria sem ela e dava graças a Deus por sua existência, ora recordava do tempo em que ela não existia. “Mas também pudera, não havia nem 1/3 dos carros que existem hoje”, pensava. E, por falar em Deus e em terço, dali mesmo Seu Geraldo escutava a voz baixinha e serena quase a sussurrar em seu ouvido do padre da paróquia que ficava em uma das extremidades da praça a realizar a homilia. Os alto falantes da casa de Deus não eram páreos para o barulho ensurdecedor da rua (para alguns a própria morada do Diabo), tampouco o cheiro do incenso proveniente do templo sagrado que travava uma árdua e incessante batalha contra o mau odor da fumaça dos carros e dos cigarros do templo profano.
No meio daqueles sons e odores variados da praça e arredores Seu Geraldo observava dois grupos de pessoas que se unia a ele e a mais alguns transeuntes para compor toda esta paisagem que arrebatava seus olhos, ouvidos e nariz. De um lado, um grupo de senhoras com pequenas criancinhas que ele julgou serem seus netos. Elas conversavam em baixo tom e solicitavam aos pequenos que fizessem o mesmo e se comportassem. Do outro lado, um grupo de pessoas que moravam ali mesmo, naquela velha praça do velho bairro, e que tinham, pelo menos, bancos novos para dormir. Não tinham avós (não ali) para lhes cobrarem um suposto “bom comportamento” e, então, se sentiam a vontade para contar causos divertidos e a gargalhar como se não houvesse amanhã. “É como se as senhoras fossem o padre e os mendigos os automóveis. O céu e o inferno”, pensou, mais uma vez, Seu Geraldo.
Seu Geraldo sentiu uma grande proximidade àqueles dois grupos, pois no mesmo espaço estavam, sentiam os mesmos cheiros e ouviam os mesmos sons. Ao mesmo tempo sentiu um enorme distanciamento, porque na verdade não compartilhavam essencialmente nada. Naquele exato momento, Seu Geraldo não estava mais ali. Devaneou. Lembrou-se da praça de antigamente. Era a mesma, mas era diferente para Seu Geraldo. Desejou que ela retornasse mesmo que fosse com os velhos bancos velhos. Desejou isso tão profundamente que aquele espaço também já não se encontrava mais ali. O tempo se esvaiu e não se sabia mais ser presente ou passado. Seu Geraldo, a despeito do relógio de pulso que dava brilho ao seu braço esquerdo, lançava o que foi sobre o que
é. Imaginação? Futuro? Apenas sonhava. Sabia que sonhava. Quando acordou, por mais que assim já estivesse, só conseguia pensar em uma coisa: “e se houvesse uma rotatória bem aqui no meio da praça?”
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BAYER, Hiram de Aquino. A poética da rotatória. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 6, nº 11, pp. 72-74, maio-ago 2020.
Submissão em: 05/09/2017. Aceito em: 29/08/2020.
ISSN: 2316-8544
[1] Versão revista e expandida da crônica “Rotatória” publicada em BAYER, Hiram de Aquino. Pelos caminhos de um labirinto: reflexões sobre as territorializações do medo no bairro de Candelária, Natal-RN. 2016. 166f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2016.
[2] Técnico em Assuntos Educacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e doutorando em Geografia pela mesma instituição.