
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
PEREIRA, Rafael Carvalho Drummond. Da produção do espaço à utopia urbana: contribuições teóricas a partir da obra de Henri Lefebvre.
Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 6, nº 12, pp. 83-103, setembro-dezembro de 2020.
Submissão em: 14/04/2020. Aceite em: 15/11/2020
ISSN: 2316-8544
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espaços-tempos da realização da vida cotidiana. Há a relação do espaço-tempo da cidade e da
vida cotidiana. Com a produção social do espaço submetida à lógica da mercadoria, a cidade
passa a ser vista como valor de troca e gerida enquanto valor de troca. O espaço que se consome
é um espaço dominado. E, segundo Lefebvre (2001; 1999), essa perda da ideia ou da
representação do espaço habitável, do espaço habitado, do espaço que é uma obra de uma
atividade humana, dá origem a seguinte contradição: a transformação do habitar em habitat, a
destruição da urbanidade.
Sem medo de recair numa controvérsia já longa, colocaremos fortemente em oposição
o habitar e o habitat. Este último termo designa um ‘conceito’, ou melhor, um
pseudoconceito caricatural. No final do século XIX, um pensamento (se é possível
dizer urbanístico, tão forte quanto inconsistentemente redutor, pôs de lado
literalmente entre parênteses o habitar. Ele concebeu o habitat, função simplificada,
restringindo o ‘ser humano’ a alguns elementares: comer, dormir, reproduzir-se [...]
Precisamente, o habitat, ideologia e prática, rechaçou ou recalcou o habitar na
inconsciência. Antes do habitat, o habitar era uma prática milenar, mal expressa,
insuficientemente elevada à linguagem e ao conceito, mais ou menos viva e
degradada, mas que permanecia concreta, ou seja, ao mesmo tempo funcional,
multifuncional, transfuncional. No reino do habitat, desapareceu do pensamento e
deteriorou-se fortemente na prática o que fora o habitar (LEFEBVRE, 1999, p. 80).
Habitar a cidade é habitar criativamente a cidade, é a relação que o indivíduo construiu
com a cidade enquanto possibilidade de uso, de uso criativo, de apropriação, de criação de
relações sociais, de criação de vínculos com essa cidade, com o sentido de necessidade e desejo.
A cidade como lugar da reunião, do encontro, da festa. Então, esse habitar é o próprio sentido
da humanidade do homem, da história como obra, como realização humana. O habitar é a
predominância do tempo cíclico, ou seja, do tempo da vida, da natureza. Habitar é, portanto,
um ato revelador da vida. Nos situa em relação aos desejos, em relação à história do lugar, aos
tempos acumulados no espaço (CARLOS, 2018; LEFEBVRE, 2001).
A partir da perda desse sentido de pertencimento, a dimensão poética do homem que se
constrói nas relações sociais, e a partir de sua moradia, também se esvai. A vida cotidiana vai
dar lugar a outra coisa. O habitat vai ser uma inflexão na história urbana na medida em que vai
significar o produto de uma urbanização induzida pelo processo de industrialização. Produto da
industrialização que explode as cidades e constrói as periferias desurbanizadas, sem
infraestruturas, que amontoam as pessoas, que juntam precariamente as pessoas. O habitat nada
mais é do que a negação do homem, a negação da obra (LEFEBVRE, 2001; 1999; 2006).