UM BREVE ENSAIO SOBRE A ECONOMIA POLÍTICA DA GLOBALIZAÇÃO E A GEOGRAFIA POLÍTICA DA PANDEMIA DA COVID-19
Felipe Nascimento Werminghoff[1]
Universidade Federal Fluminense
RESUMO:
O presente trabalho busca traçar um sucinto debate acerca da relação entre a economia política da globalização e a geografia política da pandemia da Covid-19. Na primeira parte do texto, elucidamos a imbricação entre a mundialização e a expansão do novo coronavírus pelo globo. Na segunda parte, discutimos os rumos da política internacional frente ao avanço da atual epidemia. Ao final do artigo, defendemos uma posicionalidade ética frente ao cenário de crise provocado pelo Sars-Cov-2.
Palavras-chave: Covid-19; Globalização; geografia política.
A MUNDIALIZAÇÃO ECONÔMICA E A PANDEMIA DA COVID-19
A Covid-19, doença causada pela transmissão do novo coronavírus (Sars-Cov-2), foi declarada uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 11/03/2020. Isso significa uma disseminação mundial da nova doença, ou seja, uma epidemia que se espalhou por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. O novo coronavírus teve seu primeiro registro na província de Wuhan, localizada no centro da China. O país, onde o vírus foi detectado inicialmente, detentor da segunda maior economia do mundo e maior parceiro econômico dos EUA (a primeira), nos mostra como a globalização – ou mundialização, para nos atermos à esfera econômica – auxilia nosso entendimento acerca dos fluxos de transmissibilidade dessa epidemia global e de seus epicentros. Lembremos que a primeira globalização da história foi a dos micróbios, no início do século XVI, com enfermidades europeias chegando às Américas, caso da tuberculose, e a sífilis saindo dos EUA e aportando na Europa (MORIN, 2007).
O mundo contemporâneo, globalizado, é caracterizado - sob o prisma da integração -por um aumento dos fluxos de pessoas, mercadorias, capitais e serviços. As redes técnicas de um espaço cada vez mais comprimido pelo tempo - para os que podem usufruir do avanço dos meios de transporte, comunicação e informação – explicam porque vários países têm optado pelo fechamento ou aumento do controle de suas fronteiras, em uma tentativa de atenuar os impactos da transmissão desse vírus. Essa biopolítica – adotada na tentativa de “imunizar” os países e restringir a circulação de imigrantes - nos mostra uma dimensão corporificada e territorializada da pandemia do novo coronavírus, em uma busca pela “imunidade” que se dá através de um reforço das soberanias nacionais sobre suas comunidades (PRECIADO, 2020).
Mapa 1: fluxo aéreo de aviões em dezembro de 2019 e casos confirmados de Covid-19 em março de 2020
Fonte: (CASTILHO, 2020).
O mapa acima nos mostra a relação direta entre os fluxos de aviões pelo mundo e a disseminação global da Covid-19, configurando um exemplo simples e claro sobre a relação entre a globalização e a expansão dessa pandemia. Por outro ladro, a biopolítica trabalhada pelo filósofo Paul Preciado, mencionada no parágrafo anterior, nos indica que a mesma globalização que integra, fragmenta e produz uma seletividade dos fluxos mais presente do que nunca. O mundo, antes compartimentado no sentido da diferença, hoje se mostra fragmentado[2] e faz da crise uma constante. O valor ético da solidariedade é solapado, enquanto a norma da competitividade, no lugar da competição, ganha força por meio das empresas globais, que arrastam os Estados em direção à essa mesma noção moral (SANTOS, 2001). De maneira sucinta, definimos a ética como um conjunto de valores não cristalizados, um comportamento derivado de uma reflexão sobre a moral (DROIT, 2012). Desse modo, entendemos que a pandemia da Covid-19, mais do que um desafio epidemiológico, é uma questão ética de suma importância em tempos de uma mundialização neoliberal que estimula o individualismo e negligencia a problemática do outro.
Essa mesma mundialização nos apresenta um cenário de grande incerteza econômica. A recessão se aprofunda, as ações das bolsas de valores despencam e o preço do barril do petróleo sofre uma forte depreciação. O cenário atual, no entanto, apresenta duas grandes diferenças em relação ao subprime de 2008, provocado pela crise imobiliária das hipotecas nos EUA: os governos, nessa conjuntura, apresentam menor capacidade de adotar medidas anticíclicas, pois as taxas de juros já se encontram em um patamar reduzido; além disso, por se tratar de uma pandemia, as medidas de distanciamento social adotadas (em maior ou menor grau) por praticamente todos os países do mundo acarretam em uma queda abrupta na demanda e no consumo da população. Destarte, estamos diante de uma crise de saúde pública - de graves consequências para a economia mundial - que caminha a passos largos, se nada de efetivo for feito, para uma precarização ainda maior da vida, principalmente nos países periféricos.
COVID-19: NACIONALISMOS (GEO) POLÍTICOS OU MULTILATERALISMO (GEO) ECONÔMICO?
O avanço da Covid-19 pelo mundo foi alvo de diferentes estratégias discursivas por parte dos Estados. Os EUA construíram uma narrativa baseada no surgimento de mais um “vírus chinês”, em uma clara tentativa de estigmatização xenófoba, a exemplo do que ocorreu em 1918 com a “Gripe Espanhola”. A China, em resposta, adotou a contraestratégia de endurecer a postura em relação à Casa Branca e rechaçar qualquer tipo de intencionalidade na proliferação da doença, além de auxiliar países da União Europeia, como a Sérvia, com suporte de máscaras. Em paralelo, advertiu o Brasil – alinhado de forma feroz à Washington – por meio da possibilidade de rompimento de acordos comerciais bilaterais entre ambos.
Desse modo, o mundo se encontra diante de uma geopolítica crítica (TOAL, 2005), ou seja, uma geopolítica que não se restringe à arte da guerra, manobras militares e obras de infraestrutura. O que está ocorrendo na atual conjuntura é uma batalha discursiva entre a surperpotência global (EUA) e uma potência emergente (China), cada uma defendendo seus interesses. Ainda no âmbito das potências emergentes, a Rússia, para além da solidariedade, fornece ajuda humanitária ao governo Trump e aumenta seus investimentos em tecnologia da informação, com o intuito de ampliar seu soft power (NYE, 2002).
A pandemia da Covid-19 escancarou aos olhos do mundo as distintas estratégias, capacidades e particularidades de cada Estado para lidar com essa crise de saúde pública ou afastá-la. Países do Sudeste Asiático como Coreia do Sul e Cingapura realizam testes em massa, seguidos de isolamento. No Extremo Oriente, o Japão conta um moderno sistema de saúde e uma população com hábitos de higiene cristalizados, enquanto a China faz uso de seu aparato estatal autoritário para controlar os corpos de sua população – dotada de forte senso comunitário, cabe a ressalva - e se vale do peso de suas empresas nas cadeias globais de valor, que produzem respiradores e uma série de insumos médicos no território chinês. Na Europa, a Alemanha recorre ao seu grande parque produtivo, inclusive farmacêutico, para fabricar máscaras e testar medicamentos. No mesmo continente, Portugal recebe elogios da imprensa internacional por sua rígida política de distanciamento social, que começou a ser aplicada antes mesmo da confirmação dos primeiros casos da doença no território lusitano. Na América do Norte, o presidente Donald Trump ordena o confisco de equipamentos médicos respiratórios, de máscaras e intensifica os testes na população, que tem Nova York - a principal cidade global do mundo -, não por obra do acaso, o epicentro da doença nos EUA.
Assim, entendemos que a cooperação internacional e multilateral é de extrema necessidade, mas atentamos para o fato de que os Estados continuam sendo atores importantes da globalização. Em contraposição aos nacionalismos e isolacionismos de líderes como Donald Trump (EUA) e Viktor Orbán (Hungria), partimos da premissa de que crises globais exigem respostas globais, dada a impossibilidade de um único Estado lidar com cenários de instabilidade mundial. No entanto, devemos questionar que multilateralidade está sendo proposta: a da subjetividade neoliberal, que aprofunda a relação centro-periferia, a competitividade e a noção moral do self, ou a que propõe uma solidariedade global entre os povos?
EM DEFESA DE UMA OUTRA GLOBALIZAÇÃO PARA DETER A COVID-19
O novo coronavírus nos coloca diante da necessidade de pensar uma outra globalização: um mundo globalizado em que a técnica esteja a serviço da Política (com P maiúsculo) e da solidariedade, não dos mercados (SANTOS, 2001). A indiferença, maior problema ético da contemporaneidade, deve dar lugar aos valores éticos do cuidado, da empatia e da solidariedade, de modo que o outro seja visto como um sujeito corporificado e territorializado de direitos (RIBEIRO, 2005), dentre eles o direito à vida. A noção moral da autossuficiência, tão propalada pelos ideólogos do neoliberalismo, se mostra incapaz de enfrentar uma crise mundial que demanda o fortalecimento de políticas públicas por parte dos Estados, responsabilidade social por parte dos governos e das empresas e laços solidários entre os sujeitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTILHO, Dênis. Um vírus com DNA da globalização: o espectro da perversidade. Revista Espaço e Economia, ano IX, n. 17, abr 2020.
DROIT, Roger-pol. Ética: uma primeira conversa. São Paulo: Martin Fontes, 2012.
MORIN, Edgar. As duas globalizações: comunicação e complexidade. In: MORIN, Edgar; CLOTET, Joaquim; SILVA, Juremir Machado da (orgs.). – 3. ed. - As duas globalizações: complexidade e comunicação, uma pedagogia do presente. Rio Grande do Sul: EDIPUCRS, 2007, pp. 39-60.
NYE, Joseph S. O paradoxo do poder americano. Por que a única superpotência do mundo não pode prosseguir isolada. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
PRECIADO, Paul B. Aprendiendo del vírus. In: Sopa de Wuhan: pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemias. ASPO, 2020, pp. 163-185.
RIBEIRO, Ana Clara Torres. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. Anais do X EGAL, USP, 20 a 26 de março de 2005.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. – 6. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001.
TOAL, Gearóid. Critical Geopolitics: The Politics of Writing Global Space. Londres: Routledge, 2005.
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
WERMINGHOFF, Felipe Nascimento. Um breve ensaio sobre a economia política da globalização e a geografia política da COVID-19. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 75-80, maio de 2020
Submissão em: 20/04/2020. Aceite em: 18/05/2020
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil
[1] Mestrando em geografia pela Universidade Federal Fluminense, sob orientação do Prof. Dr. Ivaldo Gonçalves de Lima.
[2] Santos (2001:81) entende a compartimentação como um cotidiano que, embora conflitivo e hierárquico, apresenta um acontecer complementar e solidário, na medida em que a fragmentação revela um cotidiano marcado por influências externas e, desse modo, com dificuldade e até mesmo impossibilidade de regulação.