COEXISTIR NO ESPAÇO-TEMPO DA PANDEMIA

 

Ricardo Scofano Medeiros[1]

Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Faculdade de Educação (UFRJ)

ricardoscofano@ufrj.br

 


RESUMO:  

Este ensaio mobiliza os escritos de Doreen Massey para pensar os contornos geográficos da pandemia causada pela COVID-19. Argumentamos que indagar o binário entre natureza e cultura passa, antes, por uma reimaginação daquilo que chamamos de espaço. Portanto, entendemos que tal movimentação nos permite deslocar o imaginário neoliberal que reduz a natureza à matéria-prima e concebe o espaço como simples superfície.    

 

Palavras-chave: Espaço; Coexistência; Natureza. 


 

COEXISTIR NO ESPAÇO-TEMPO DA PANDEMIA: ALGUNS APONTAMENTOS

 

 

Em nome do bem

Eles derramam fel

O nome é Jesus

Mas quer dizer piedade

Em cada um de nós

Há em si um céu

Pra viver o principio da liberdade

(PIETÁ)[2]

 

 

Em texto extremamente recente[3], o filósofo camaronês Achille Mbembe nos conclama a pensarmos a habitabilidade planetária não apenas da espécie humana, mas de diferentes espécies. “O direito universal à respiração” é o título do ensaio que funciona como corolário de toda argumentação ali desenvolvida. Respirar, mais do que um direito individual, aponta antes para um cenário de profundas relações intrincadas, para uma paisagem de interdependência entre humanos e outros-que-humanos (TSING, 2019). Por suposto, o motivo disso se deve ao fato de que a espécie humana não consegue produzir oxigênio por si mesma, apenas consumi-lo. E, a menos que não desejemos andar com balões de oxigênio em nossas costas, esse deveria ser um argumento considerado importante. Por menos óbvio que possa parecer, o direito à respiração está no seio da nossa vulnerabilidade enquanto espécie, uma vez que, em cada expiração, reside a despossessão de nós mesmos (para respirar dependemos do oxigênio produzido por outras espécies). Isso significa dizer que não somos, nem nos mais idílicos dos cenários, autossuficientes. Mais uma vez, dependemos de uma miríade de vidas para termos, também, o direito a respirar. 

A composição que pretendemos efetuar nesse texto consiste em operacionalizar a cartografia como método investigativo (DELEUZE e GUATTARI, 2011), uma vez que essa nos permite trabalhar com elementos heterogêneos (fragmentos de música, Filosofia e Geografia), experimentando, assim, as potências do pensamento. Nessa mesma direção, mobilizamos como intercessores o filósofo camaronês, a letra da música que nos serve como epígrafe e o pensamento de Doreen Massey (2004, 2015) para afirmarmos que o direito universal à respiração passa, igualmente, por instaurar e cultivar práticas relacionais que nos permitam conceber e vivenciar o espaço como aquela “coreografia espaço-temporal generativa sempre em movimento.” (MASSEY, 2015, p. 88). Por certo, pensar a contaminação, proliferação e propagação da COVID 19 é pensar espacialmente. Da propagação iniciada em centros urbanos, passando pela forma como o vírus se inscreve no tecido das grandes cidades, ignorar o espaço como categoria teórica e de análise para pensarmos os contornos geográficos da pandemia é, quem sabe, perder uma oportunidade de reimaginá-lo. Assim, a pergunta que nos fazemos no decorrer dessas breves páginas é a seguinte: o que o novo coronavírus nos permite apreender/aprender sobre o espaço?   

Com a teorização de Doreen Massey (2004, 2015), sabemos que reduzir o espaço a uma simples superfície, ou pensá-lo como mero substrato material na qual as relações humanas se desdobram, é limitar a potência política e filosófica das nossas imaginações geográficas. O  anseio que nos atravessa encontra eco nas palavras da geógrafa britânica, isso porque, para Massey (2015, p. 33), “o argumento aqui é que espaço é igualmente vivo e igualmente desafiador, e que, longe de ser morto e fixo, a própria enormidade de seus desafios significa que as estratégias para dominá-lo têm sido muitas, variadas e persistentes” (MASSEY, 2015, p. 33). Ora, o que vemos nas formas de controle da pandemia a não ser tentativas de controlar o espaço? Redução no fluxo de ônibus, redução no fluxo de pessoas nas ruas, controle de trajetórias individuais por QRCODES[4], ou a interdição de praias no caso de cidades litorâneas, nada mais são do que estratégias espaciais para evitar o alastramento do vírus. Por outro lado, o apelo irresponsável de setores da sociedade civil, ou de governantes de diferentes países, ao norte e ao sul do globo terrestre, em espectros políticos que cobrem posicionamentos tanto de esquerda como de extrema-direita, para que a vida retorne àquilo que é considerado “normal”, não deveria ser lido desde uma gramática diferente daquela que não envolva o controle ou regulação do espaço. 

Em outras palavras, sendo o espaço concebido como produto de uma multiplicidade de trajetórias (MASSEY, 2004, 2015), o que a paisagem de uma pandemia acaba por escancarar é que a sustentação de modos de vida humanos ou não-humanos, independente de pandemias, encontra-se arraigada em práticas espaciais que se organizam de tal ou qual modo. Controlar uma multiplicidade de trajetórias (isto é, o espaço) durante uma pandemia pode ser o que separa a vida da morte. A contaminação de um indivíduo pode acarretar um considerável incremento ao número de infectados e gerar um verdadeiro efeito em cascata, contribuindo, por ora, para o colapso dos sistemas de saúde. Quer dizer, o espaço como a esfera do encontro de múltiplas trajetórias testemunha uma adensada interdependência e coabitação de outras trajetórias em apenas uma que, anteriormente, poderia ser considerada individual (leitores de Deleuze e Guattari (2011) poderiam ver, nessa situação, o Uno afirmar o Múltiplo). Uma única trajetória, para se tornar possível, arrasta consigo uma outra infinidade de movimentos que a trouxe até ali (INGOLD, 2015).

Tal visão de interdependência e coabitação não deve, contudo, ser confundida com um holismo celebratório no qual tudo encontra-se interligado de antemão (não vivemos em uma aldeia global). Ao contrário, é justamente porque o espaço não é totalizável e está sempre em devir (MASSEY, 2004, 2015) que ele não forma, como objeto final, um “sistema coerente, fechado, dentro do qual, como se diz, ‘tudo está (já) relacionado com tudo’ ”(MASSEY, 2004, p. 9). Inclusive, isso explica o porquê da COVID-19 se distribuir desigualmente pelo espaço (MASSEY, 2015), posto que nem tudo encontra-se igualmente interconectado, seja em escala global, regional ou local. Talvez a maior lição que o coronavírus deixe para aqueles (as) que se ocupam com o pensamento espacial seja o ensinamento de que, para o espaço, o pensamento representacional bloqueia imaginações geográficas outras (como fazer pesquisa com aquilo que não para de mudar?). Não que a representação seja, por si, inimiga do pensamento espacial (mapas são representações), mas reduzir o espaço ao que pode ser representado é limitar sua excelência disruptiva: o espaço como dimensão em que encontros acontecem é também a esfera na qual outras possibilidades de vida e morte podem se tecer. 

Por conseguinte, não atribuímos ao termo disrupção qualquer valoração que o qualifique como algo desejável ou indesejável, bom ou ruim. A COVID-19 é, antes de tudo, produto de um encontro de distintas trajetórias, ou múltiplos encontros que datam uma jornada mais longa do que podemos supor. A hipótese do coletivo chinês Chuang[5] é de que o surgimento do vírus esteja associado ao modelo de produção no qual estamos inseridos. Mais do que qualificar a especificidade do arranjo econômico chinês (seria a China um modelo de capitalismo de Estado?), interessa destacar a dissociação que julgamos mais importante, qual seja: a oposição entre natureza e cultura perpetrada/perpetuada pelo imaginário neoliberal. Nessa perspectiva, o vírus emerge daquilo que insistentemente consideramos avaliar como recurso: a natureza. O argumento, em síntese, é que com o desequilíbrio e destruição de diferentes ecossistemas os vírus podem surgir com maior facilidade e se propagarem no contato com humanos e animais. Analogamente, acreditamos ter vivido situação semelhante no Brasil. O surto de febre amarela nos anos de 2016 e 2017, anos conseguintes ao rompimento da barragem de Mariana, é também correlacionado ao brusco desequilíbrio de ecossistemas, propiciando, então, a proliferação dos vetores da febre amarela.  

Os entrecruzamentos de diferentes trajetórias, desta vez trajetórias que extrapolam o domínio do humano: o mosquito, o depósito de lama nas margens dos rios, a alteração nos ciclos de reprodução de espécies nativas, afetam diretamente vidas humanas através da multiplicação dos surtos de doenças. A natureza, quando pensamos o espaço como uma multiplicidade de trajetórias, não necessariamente se constitui como o outro da cultura, mas como um lugar comum (HARAWAY, 1999). “A natureza não é um lugar físico ao qual se pode ir, nem um tesouro que se possa guardar, nem uma essência que se deve salvar ou violar (...). A natureza não é uma matriz, nem recurso, nem ferramenta para a reprodução do homem (...), é, estritamente, um lugar comum.” (HARAWAY, 1999, p. 122). 

Sendo assim, a natureza, tal como o espaço, pode ser compreendida como a dimensão na qual é possível estabelecer e pensar relações de coexistência – se é o entrecruzamento de diferentes trajetórias que garante o devir e a produção do espaço, é o cruzamento de diferentes trajetórias (humanas e não humanas) que forjam aquilo que chamamos de natureza, (como traçar a linha divisória entre natureza e cultura nessa situação ?). Uma vez que a natureza tenha sido forjada como um lugar comum, talvez possamos entender como o traçado de uma única trajetória arrasta consigo toda uma espacialidade da existência que não faz distinção entre o social e o natural. Ao mesmo tempo, se tal distinção se encontra com as fronteiras borradas, isso não deve ser motivo para descuidarmos de um discurso que evoque, em seu âmago, a efetuação de um outro mundo possível.  

A efetuação desse mundo, conforme podemos entrever, depende de uma reimaginação na qual o espaço, ou mesmo a natureza, não sejam elementos que representem uma exterioridade estática, mas que constituam intimamente o que chamamos por humano. Esse mundo, longe de ser um projeto de futuro alcançável, já existe. Coexistir não é algo que possa ser escolhido, pois desde que se existe se coexiste. O espaço que garante a coexistência, que é produto da coexistência de muitas vidas, é aquele que tem arranjos estabelecidos para que a vida se direcione de maneira mais ou menos previsível. 

Entretanto, continuamos a nos perguntar: quais trajetórias poderiam ser rearranjadas de forma que a coexistência não assuma a face da aniquilação e do extermínio? Quais trajetórias deveriam ser freadas para tornar possível outros espaços? Ou ainda, se o espaço não é menos regulado em tempos nos quais a pandemia não se faz presente, quais tipos de regulação espacial instauram a normalidade da vida? Quais trajetórias são valoradas como normais para o funcionamento e manutenção de um arranjo produtivo que insiste em pilhar aquilo que chamamos de natureza? 

Viver o princípio da liberdade, como escrito na epígrafe deste ensaio, é viver espacialmente. Por vezes, liberdade e espacialidade se conjugam de maneira esquisita. Em tempos de pandemia, liberdade não é ir onde se quer, na hora em que se deseja, e provavelmente nunca tenha sido, mas um modo de responder eticamente ao espaço, isto é, considerando que em nossas trajetórias residem outras vidas.   

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. vol. 1. São Paulo: Editora 34, 2011.

 

HARAWAY, D. Las Promesas de los monstruos: una política regeneradora para otros

inapropiados/bles. In: Política y Sociedad, nº30, 1999, p. 121-163.

 

INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Rio de Janeiro: Vozes, 2015.

 

MASSEY, D. Filosofia e política da espacialidade: algumas considerações. GEOgraphia, 6ºano, n.12, 2004, pp. 7-23.

 

___________. Pelo espaço: uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015.

 

TSING, A. L. Viver nas ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas, 2019.

 

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

MEDEIROS, Ricardo Scofano. Coexistir no espaço-tempo da pandemia. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 142-147, maio de 2020.

Submissão em: 22/04/2020. Aceite em: 07/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil


 


[1]É doutorando (bolsista CAPES) pelo PPGE e integrante do Bafo! (Bando de Estudos e Pesquisas em Currículo, Ética e Diferença), coordenado pelo Prof. Dr. Thiago Ranniery. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2016) e mestre em Educação pela mesma instituição (2019).

[2]Composição disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uO-Jb5uvG8Acessado em: 15/04/2020.

[3]No site, além do texto de Achille Mbembe, é possível encontrar ensaios de diferentes autoras e autores, tais como Vladmir Safatle, José Gil, Bruno Latour, entre outros. Disponível em: https://n-1edicoes.org/020. Acessado em: 16/04/2020.

[4] Um bom relato sobre o controle de trajetórias a céu aberto pode ser encontrado em: https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo- byung-chul-han.html. Acessado em: 16/04/2020.

[5] Texto disponível em: https://n-1edicoes.org/022Acessado em: 16/04/2020.