A PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS E A CRISE EXPLÍCITA DA HEGEMONIA NORMATIVA: 

ENSAIO SOBRE O PLURALISMO JURÍDICO NOS ESPAÇOS OPACOS

 

Arthur Dartagnan Chaves dos Santos[1]

Universidade Estadual Paulista

arthurdchaves@gmail.com 


RESUMO: 

A segregação socioespacial, intrínseca à sociedade de classes, está intimamente conexa a um pluralismo multiplanar: cultural, social e jurídico, dentre outros. Dessa forma, a lógica centro-periferia deriva a cidade em muitas microcidades, as quais se submetem a realidades e dinâmicas distintas. O pluralismo jurídico revela-se como intransigência dos ora espaços opacos à norma emanada pelo Estado, vez que carece de lógica ou coerência material. 

 

Palavras-chave: Desobediência; Pluralismo jurídico; Segregação socioespacial.


 

DEONTOLOGIA E INSUBORDINAÇÃO

 

 A sociedade se organiza, historicamente, por um objetivo comum, seja ele de sobrevivência ou, mais adiante, de acumulação material. Para isso, abandona-se, prioritariamente, o plano ontológico - de nada mais serve compreender o que é o sujeito ou quais seus propósito e potencial. Adentra-se, portanto, devido a uma lógica utilitarista, a deontologia: o que o indivíduo deve ser com vistas à sociedade, pois há de se desenvolver positivamente dentro de seu plano original (HARVEY, 2005). 

 Esse abandono da ontologia e predileção pela deontologia pode, a princípio, parecer inocente, conquanto é cooperativo com o projeto social. Fato ignorado, porém, é qual a fonte dessa emanação jurídica primeira: a esfera de objetivos a serem alcançados não surge de uma enunciado coletivo, mas, sim, de uma fonte singular ou homogênea e restrita (FOUCAULT, 1985). Veja-se: a proteção liberal à propriedade privada é contígua à desapropriação e controle fundiário, assim como, em exemplo extremo, o Ato Institucional n05 de 1968 (AI-5/68) é condescendente tão somente com os setores civis e militares apoiadores da Ditadura Civil-Militar no Brasil (1964 - 1985). 

 A luz da norma e das afetações não é a mesma para todos, como visto. Há espaços da sociedade iluminados – contemplados, por assim dizer – e outros sem luz, opacos, vez que os benefícios, inclusive os sociais, de uma norma dialetizam-se ao passo em que não há sopé de igualdade entre os membros de uma mesma sociedade. Esse é o primeiro e mais imediato conceito de espaço opaco. 

 Até o presente momento, tem-se, então: a análise jurídica das sociedades é, também, um mapeamento do poder e de que forma seus desmandos se tornaram mandamentos legais e supostamente revestidos de imparcialidade e cooperação com o projeto social. Depreende-se, igualmente, que há grupos sob o manto da norma ao passo que há muitos outros desprovidos de voz e proteção (TORRE e AMARANTE, 2011).

 A parcialidade da norma, assim, é a natureza de uma segregação mais sutil e anterior à socioespacial: a jurídica. Com o advento das grandes cidades e centros urbanos, a espacialidade é afetada, dando origem, então, à segregação socioespacial - note, com ressalto, o radical “socio” anterior e conjunto ao “espacial” -, vez que os desprotegidos unem-se e, também, são expurgados dos centros pelas elites detentoras do poder de normatizar. Há, a partir desse momento incerto na história – próximo, porém, do alto medievo -, tanto no microcosmos brasileiro quanto no global, um espaço de dentro da sociedade, e outro de fora, nos quais os irreverentes ou inadequados são aos poucos lotados. 

 O medievo, por excelência, consagra a configuração dos espaços de fora a partir de uma ótica útil à abordagem do presente artigo: o sanitarismo. Parte-se do pressuposto da pureza do não leproso e da imundice do leproso. Abandonados os argumentos religiosos estruturais, os leprosários se tornam depósitos dos que (i) não eram úteis ao campo nem a qualquer outro trabalho braçal e, narcisisticamente, (ii) seus corpos não eram aceitos pela sociedade central (FOUCAULT, 2000). 

 Invariavelmente, lê-se, até agora, uma desigualdade jurídico-normativa que configura o espaço geográfico a partir de um argumento sanitário. A desobediência à norma emanada pelo centro, assim, encontra o espaço da desobediência: o claustro com ou sem muros (TORRE e AMARANTE, 2011). Esse claustro se constitui verdadeiramente como um espaço opaco no espaço geográfico histórico. Não é visto por todos nem iluminado por todas as ações e mudanças. 

 

LOUCOS, PROFANOS E DESOBEDIENTES

 O código genético dos atuais periféricos - em ressalto, nos países de desigualdade mais aguda, como o Brasil - é dos leprosos, devassos e loucos, respectivamente; estes dois os sucessores dos leprosos nos leprosários após a erradicação da lepra (TORRE e AMARANTE, 2011). A norma de confinar perde seu sentido com a erradicação da lepra, mas sua eficácia é mantida pela sucessão de tipos sequestráveis (VIEIRA, 2007). Os periféricos, seja pelo contato constante consigo mesmos ou pelas investidas estatais, começa a não mais reverenciar as normas emanadas pelo Estado, vez que elas não compreendem suas realidades individuais e enquanto grupo tampouco têm iniciativa para tanto. O pluralismo jurídico ganha face quando normas locais, particulares e não estatais começam a ser editadas. Não são os periféricos mais desobedientes, mas, sim, obedientes ao próprio sistema jurídico (VERISSIMO, 2013; FOUCAULT, 1991). 

 Observou-se até agora a norma enquanto perversão, o que não a analisa completamente. Os enunciados estatais podem se revestir de argumentos científico e sanitário sem ser no intuito de expurgar e marginalizar: a Revolta da Vacina (1904) mostra um povo já calejado de ter seu corpo invadido e violado por um Estado no qual não se viam representados. O argumento agora racional sanitário perde sua eficácia e as periferias insurgem em revolta (CAMPOS, 2016). 

 Nada se nota mais, desde então, no Brasil, de um sistema jurídico-normativo hegemônico e único no plano da existência, pois as periferias, por seus atores - com o fortalecimento do tráfico de entorpecentes, facções e grupos em redes sociais - agrupam-se de forma a se perceber uma sociedade paralela; quando muito, a norma central é obedecida por força policial. 

 

 

 

O NOVO CORONAVÍRUS E A MAZELA DA DESOBEDIÊNCIA 

 A pandemia do novo coronavírus e a disseminação da COVID-19 é um anúncio múltiplo às comunidades periféricas do Brasil, especialmente devido: (i) ao medo de não serem validas por um sistema de saúde eficaz tampouco (ii) por políticas estatais que as garantam efetivamente, e, (iii) paradoxalmente, pela incredulidade na letalidade da doença viral, vez que os anúncios sanitários já têm, historicamente, sua reputação rarefeita[2]

 Obedecer ao isolamento social compulsório, assim, é, em primeiro momento, uma farsa, seja pela não abrangência dos periféricos, haja vista que as funções de operador de caixa, repositor, gerente, motorista e vigilante, dentre tantas outras, são ocupadas majoritariamente por eles. A exposição ao vírus, portanto, é certa e eles não estão na posição de ação (HARVEY, 2005). 

 Em segundo momento, com a informalidade crescente no trabalho e, simultaneamente, com o Estado omisso em garantir a sobrevida das famílias brasileiras em necessidade – omissão esta pela falta de celeridade ou montante bastante de subsídio –, não há outra opção senão minimizar o potencial letal da doença. Isso, acontece, porém, através de subjetivações, como as narrativas recém denominadas fake news, nas quais a realidade é suprimida pela necessidade de um objeto reconfortante para crer. A norma, nas periferias, consequentemente, passa a ser sobreviver e o meio de efetivação é a subjetivação, nesse caso. A realidade noticiada deve estar, precisamente, a serviço do que se crê ou se precisa para tanto.  

 Há, também, as desobediências cuja força motriz é a cultural: isolar-se significaria suprimir o espaço coletivo de trocas que é o baile funk, chamados “pancadões”. A periferia, com olhos de desconfiança, vê o isolamento como forma de supressão e opressão, ao que se mostram irreverentes (HARVEY, 2005). 

 As estruturas de subjetivação e atuação objetiva firmadas nos espaços periféricos afirmam, a cabo, mais uma acepção ao conceito de espaços opacos: o obscurantismo é modus operandi de um inconsciente coletivo há muito vulnerabilizado pelas investidas estatais. A norma de sobrevivência parece ser, em suma, o que justifica espasmos culturais e econômico-sociais no espaço geográfico restante à periferia[3]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A pandemia do novo coronavírus explicita espaços nos quais a ciência e o sanitarismo têm guarida - os centrais. Mais gravemente, traz à observação espaços opacos nos quais a ciência não penetra e o sanitarismo é alvo de ataque. Desta feita, o espaço geográfico encontra-se cindido e segregado socioespacialmente. 

 Seria onírico, portanto, pensar num sistema normativo hegemônico em voga, vez que a sobrevida objetiva e subjetiva depende de enunciação de normas próprias, fazendo vigorar uma opacidade obscurantista e ferrenha na derrocada do enunciante central, ora o Estado. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CAMPOS, T. de S.; CASTRO, R. O. de. Um rosto na areia: o sujeito em Foucault. USP. Tempo soc. [online]. 2016, vol.29, n.3, pp.313-331. ISSN 1809-4554.

Disponível em: https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.117546. Acessado em: 16/03/2018.

 

HARVEY, D. A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo: Anablume, 2005.

 

FOUCAULT, M. A História da Loucura na Idade Clássica. 6. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000. 

 

_____________. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991.

 

_____________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. 

 

TORRE, E. H. G.; AMARANTE, P. Michel Foucault e a “História da loucura”: 50 anos transformando a história da psiquiatria. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, Florianópolis, v. 3, n. 6, p.41-64, nov. 2011. 

 

VERISSIMO, D. S. Considerações sobre corporeidade e percepção no último Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, Assis, v. 4, n. 18, p. 599-607, dez. 2013. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/epsic/v18n4/a07v18n4.pdf. Acessado em: 10/05/2018.

 

VIEIRA, P. P. Reflexões sobre “A História da Loucura” de Michel Foucault. 2007. Dissertação (Mestrado em História Cultural) - Curso de Mestrado em História Cultural, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) - Unicamp, Campinas, 2007.

 

 

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

SANTOS, Arthur Dartagnan Chaves dos. A pandemia do novo coronavírus e a crise explícita da hegemonia normativa: ensaio sobre o pluralismo jurídico nos espaços opacos. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 22-27, maio de 2020.

Submissão em: 24/04/2020. Aceite em: 21/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil

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[1] Graduando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (IGCE/UNESP) e em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado (FD-FAAP). Pesquisador em análise do discurso e formação do espaço geográfico (Santander Iberoamericana). 

[2] O poder sanitário perverso do Estado, historicamente, produziu os indivíduos que não mais creem nele ou o observam: “[o] poder não é apenas repressivo, ele também é produtivo, e produz antes de mais nada os próprios sujeitos. Não há lugar aqui para pensar uma teoria da ação política ou mesmo da resistência. Para justificar como estas são possíveis, Foucault busca formas de constituição do sujeito que estão para além do poder disciplinar. Este é o horizonte a partir do qual a ação faz sentido, o solo a partir do qual é possível fazer a crítica do poder” (CAMPOS, 2016, p. 328). 

[3] Nesse sentido, é assertivo pensar a norma como contempladora, também, do desvio, ou seja, a periferia juspluralista como projeto. Os atores periféricos, nesse sentido, são essenciais à sociedade de classes, porém, são malquistos por uma hierarquia forjada historicamente. Veja-se: “Não havia lugar para pensar teoricamente a resistência, já que o desvio é no livro explicado como um efeito da norma” (CAMPOS, 2016, p. 327).