REFLEXÕES POR UMA SEGURANÇA ALIMENTAR PÓS-PANDEMIA
 

Henrique Freitas Alves[1]

Universidade de São Paulo
hfreitas.alves0@gmail.com


RESUMO: 

O presente artigo visa analisar os valores recentes de importação de alimentos das regiões que mais sofrem com insegurança alimentar de acordo com mapa da insegurança alimentar da FAO. Além disso, pretende discutir como estes números sinalizam o cenário da segurança alimentar em meio à pandemia do coronavírus, traçando um paralelo com o contexto pós-crise de 2008 e propor reflexões futuras sobre o atual sistema de produção de alimentos. 

Palavras-chave: Insegurança alimentar; Soberania alimentar; Pandemia.


 

INTRODUÇÃO

 

O cenário atual da pandemia do coronavírus escancara alguns dos desafios internacionais no combate à insegurança alimentar e nutricional. A FAO (Food and Agriculture Organization) inclusive está atuando no sentido de alertar os Estados a fim de evitar uma “catástrofe alimentar” (GLOBAL NETWORK AGAINST FOOD CRISES, 2020). Uma das preocupações da FAO é que o panorama da crise econômica de 2008/2009 se repita, com os Estados diminuindo drasticamente as exportações de alimentos - preocupação constatada na declaração conjunta com outras agências da ONU (Organização das Nações Unidas) e também diretamente ao G-20 (FAO, 2020).

 Diante disso, a proposta do presente artigo é analisar e comparar a situação atual com a da crise de 2008/2009 nas regiões mais afetadas pela insegurança alimentar. Os parâmetros de segurança alimentar utilizados foram baseados nos estabelecidos pelo Committee on World Food Security sobre estabilidade alimentar, mais precisamente em dependência de importação de cereais e valores de importação de alimentos sobre o total de exportação. Para realizar o recorte dos países com maior nível de insegurança alimentar, foram utilizados Hunger Analytics Hub e Hunger Map LIVE, bancos de dados da FAO, identificando que África, América Central e Ásia são as regiões com maior presença de insegurança alimentar. Por fim, foi utilizado o banco de dados FAOSTAT para comparar os dados de importação e exportação agrícola das regiões destacadas, no período de 2000 a 2017.

 

DEPENDÊNCIA DE IMPORTAÇÃO DE ALIMENTOS E IMPLICAÇÕES NA SEGURANÇA ALIMENTAR

Yaméogo, Nabassaga e Ncube (2014) analisam que dos produtos agrícolas exportados pelos países africanos, 47% se refere a commodities e produtos primários, 31% de recursos bases manufaturadas e 22% de manufaturados de baixa tecnologia, enquanto a média mundial é 37%, 52% e 10%, respectivamente. Como resultado, entre 1999 e 2012, a África ganhou cerca de US$ 51 bilhões em exportação de commodities agrícolas, enquanto gastou US$143 bilhões, situação que foi acelerada a partir de 2003 (YAMÉOGO; NABASSAGA; NCUBE, 2014).

 Com base nos dados disponíveis no FAOSTAT (base de dados da FAO) podemos perceber que desde a crise de 2008, a África aumentou a dependência de importações, inclusive importando mais do que exportando, ao contrário do que acontecia antes da crise. Enquanto isso, a América Central manteve-se relativamente igual ao cenário antes da crise 2008. Por sua vez, a Ásia registrou cerca de US$ 518 milhões a mais de exportações do que de importações. Contudo, se excluirmos a China, maior potência e responsável por inflar os valores, essa diferença cai para apenas US$ 88 milhões. 

Neste sentido, a FAO (2019) sustenta que após a crise de 2008/2009 o maior problema da insegurança alimentar foi decorrente do alto nível de dependência de importação e/ou exportação de cereais (commodities), principalmente de África, América Central e Ásia. Oliveira (2009) destaca que o grande problema da crise dos alimentos não foi a falta de alimentos produzidos, mas a alta dependência do mercado e a falta de políticas de produção voltadas ao sustento interno. Carvalho (2010) complementa afirmando que com a crise de 2008, os países mais pobres foram os que mais sofreram privações, sobretudo diante das restrições às exportações que muitos países colocaram, além do controle dos preços de alimentos. 

Entretanto, o maior problema na segurança alimentar não ocorreu imediatamente durante a crise. Em seu último relatório do estado da segurança alimentar no mundo, a FAO (2019) esclarece que, como os países estavam vindo de crescimento econômico progressivo, no pico da crise de 2008/2009 as reservas dos mesmos permitiram a sobrevivência sem danos maiores. Porém, o relatório conclui que os países nos anos seguintes não se recuperaram economicamente, pelo contrário, seguiram em diminuição constante do crescimento econômico, o que levou ao aumento da fome e insegurança alimentar a partir de 2015. O contexto é distinto da pandemia que estamos presenciando, pois os países mais vulneráveis apresentaram nos últimos anos recessão econômica, estando mais frágeis do que na crise passada. Neste sentido, o Global Report on Food Crises (2020) projeta que
 

A pandemia pode devastar meios de subsistência e segurança alimentar, especialmente em contextos frágeis e particularmente para pessoas mais vulneráveis, que trabalham na agricultura informal e setores não-agrícola. Uma recessão global perturbará principalmente a redes de fornecimento de alimento (FSIN, 2020, p.4).

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Diante do exposto, é preciso ter cuidado ao analisar a situação. Sem saber como os países vão se comportar com relação à restrição às exportações em meio à crise econômica como houve em 2008, é difícil realizar o mesmo paralelo com a situação atual. Esta, inclusive, é uma das preocupações da FAO, que em pronunciamento durante a pandemia reforçou que os países não devem restringir o comércio internacional (GLOBAL NETWORK AGAINST FOOD CRISES, 2020), diante do drástico impacto que isto provocaria na insegurança alimentar.

 Contudo, a incerteza se torna mais preocupante na África, que foi o continente mais impactado na crise de 2008 e, a partir da análise do FAOSTAT, vemos que o panorama é de uma dependência ainda maior na importação de alimentos desse continente. Enquanto isso, para América Central e Ásia o cenário se manteve relativamente similar, o que não deixa de ser preocupante, sob o ponto de vista geral pós-pandemia. Sem dúvidas, a pandemia do coronavírus já está afetando e afetará ainda mais a situação da segurança alimentar nos países que mais sofrem com a recessão econômica. Entretanto, deverá ser agravada naqueles países que não produzem seus próprios alimentos e são dependentes de importações, tanto pelo possível risco de restrição do mercado, quanto pelo encarecimento dos produtos que está ocorrendo de acordo com os dados de monitoramento de preços da FAO e pela diminuição do poder aquisitivo da população. Por exemplo, o Food Prices data calcula que, entre 14/02/2020, início da pandemia, e 08/05/2020, houve aumento de 21.8% do preço dos alimentos no Sudão, 18.1% em Ruanda, 16.5% no Haiti, 10.8% no Uzbequistão, para citar apenas alguns países que já são críticos nos índices de fome e altamente dependentes de importação de alimentos.

 A situação atual torna ainda mais evidente a necessidade de revisão das políticas de produção de alimentos, sobretudo dos países periféricos. A alta dependência do mercado internacional é extremamente arriscada para a segurança alimentar, não só em tempos de crise inesperada como a atual, mas também em tempos de diminuição do crescimento econômico – isso sem entrar no mérito da qualidade dessa alimentação. Basta vermos que, como mostra a FAO (2019), a insegurança alimentar voltou a crescer desde 2015, principalmente na África, sendo o mesmo período de diminuição das importações de acordo com o FAOSTAT, evidenciando que a insegurança está diretamente relacionada à diminuição no volume de importações de alimentos.

 Neste sentido, urge a necessidade de repensar a fragilidade do sistema de produção alimentar atual. Essa nova crise econômica e alimentar representa mais uma chance para aprofundar as discussões sobre as problemáticas do sistema produtivo, como definido por Porto-Gonçalves (2004): “não estranhamos, pois, que a insegurança alimentar mantinha fortes relações com um sistema agrário/agrícola que visa a mercantilização generalizada como o que vem caracterizando o período neoliberal” (PORTO-GONÇALVES, 2004, p.6).

Estamos diante, portanto, de mais uma oportunidade de discutir a importância dos preceitos da soberania alimentar para garantir a estabilidade e a segurança alimentar dos países. Valorização da produção camponesa, da agricultura urbana e dos mercados locais são algumas das alternativas a se pensar para a garantia da segurança alimentar mesmo em tempos de crise. O diagnóstico das causas da insegurança alimentar pela FAO (2019) encaixa exatamente com o da Via Campesina feito décadas atrás quando elaborou a proposta da soberania alimentar. Ao que indica, para superação da insegurança alimentar no futuro pós-pandemia, é essencial a promoção dos circuitos curtos de alimentos, que independem do mercado internacional, com preços estáveis, maior acessibilidade e garantem o abastecimento mesmo em tempos de crise. De acordo com a FAO (2019), em 2018 voltamos aos números de 2010/2011, ou seja, em poucos anos estamos caminhando para os padrões de mais de uma década atrás, a fragilidade das políticas aplicadas é evidente. Assim, é imprescindível que no cenário pós-pandemia sejam revistas as estratégias, dando maior voz para as pautas propostas pelos movimentos camponês, pela soberania alimentar.

Além disso, a agricultura urbana pode ser, também, uma saída, visto o enorme potencial de até suprir a demanda de hortaliças de cidades inteiras dentro da logística dos circuitos curtos e promove o acesso a alimentos saudáveis e de menor custo para comunidades pobres, estratégias fundamentais na diminuição da vulnerabilidade do sistema alimentar. Ainda, por meio da agricultura urbana poder ser iniciada uma nova forma de urbanização, de ocupação do espaço urbano, de solidariedade, rompendo com a imposição da lógica neoliberal, causadora do enorme impacto social e desigual da pandemia.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CARVALHO, M. A. de. A crise dos alimentos não acabou. Revista Análises e Indicadores do Agronegócio, v.5, n.4, abril de 2010.

 

FAO. Joint statement on COVID-19 impacts on food security and nutritionRome/Washington DC, 21 April 2020. 

Disponível em: <http://www.fao.org/news/story/en/item/1272058/icode/>. Acessado em: 25 de abril de 2020.

 

FAO. The State of food insecurity in the world: economic crises – impacts and lessons learnedRome: FAO, 2009. Disponível em: <http://www.fao.org/docrep/012/i0876e/i0876e00.htm>. Acessado em: 26 de abril de 2020.

 

FAO. The state of food security and nutrition in the world. Food and Agriculture Organization of the United Nations. Rome, 2019.

 

FSIN. Global report on food crises. Food Security Information Network. Online.

 

GLOBAL NETWORK AGAINST FOOD CRISES. Key takeaways of the Global Network Against Food Crises on Preventing a food catastrophe during the COVID-19 pandemic. 21 April 2020, Brussels / Rome / New York / Washington. 

Disponível em:  <http://www.fightfoodcrises.net/fileadmin/user_upload/fightfoodcrises/doc/GN_KeyMessages_FoodCrises_Covid19.pdf>. Acessado em: 25 de abril de 2020.

 

OLIVEIRA, G. de L.T. An agroecological description of the current crisis/Uma descrição agroecológica da crise atual/Una descripcion agroecologica de la crisis actual. Revista NERA, vol. 12, n. 15, 2009. 

 

PORTO-GONÇALVES, C. W. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais. Revista Internacional Interdisciplinar Interthesis, Florianópolis, PPGICH, UFSC, 2004.

 

YAMÉOGO, N. D.; NABASSAGA, T.; NCUBE, M. Diversification and sophistication of livestock products: the case of African countries. Food Policy, v. 49, p. 398-407, december of 2014. 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

ALVES, Henrique Freitas. Reflexões por uma segurança alimentar pós-pandemiaRevista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 44-49, julho de 2020.
Submissão em: 27/04/2020. Aceite em: 24/06/2020
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil                                                                                              

 


[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana FFLCH/USP – São Paulo, SP.