POSSIBILIDADES DE TEMÁTICAS GEOGRÁFICAS PARA DISCUSSÃO A PARTIR DA PANDEMIA DA COVID-19
Bruno Machado[1]
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
bhfmachado@gmail.com
Luciana F. Machado[2]
Universidade Federal do Rio de Janeiro
machado.lucianaf@gmail.com
RESUMO:
A partir do contexto da pandemia da COVID-19, o presente trabalho tem por objetivo instigar reflexões sobre a organicidade da Geografia, enquanto ciência interdisciplinar. Por meio da proposição de temáticas, para possíveis rediscussões de conceitos e métodos científicos na área, pretende estimular releituras de paradigmas e dicotomias, relacionados ao Brasil. O resultado esperado permeia novas perspectivas e considerações futuras no campo da ciência.
Palavras-chave: Geografia do século XXI; Crises mundiais; Pandemia da COVID-19.
INTRODUÇÃO
A Geografia pode ser entendida pelo senso comum, de forma geral, ao longo da sua história, como uma ciência interdisciplinar crítica do amplo espectro das ciências, se propondo a explicar os fenômenos físicos ou sociais manifestados no mundo. Sem ter a pretensão de abordar com profundidade a história do pensamento geográfico, este trabalho parte de pressupostos teóricos que orientam para uma ampliação da compreensão da evolução da Geografia do século XXI, a partir do contexto da pandemia da COVID-19, propondo temas para possível rediscussão de conceitos e métodos científicos na Geografia.
Porto-Gonçalves (1982) faz importante análise, por um viés geográfico, sobre fenômenos e crises, lançando debate acerca de práticas de geógrafos, nos contextos históricos, que caracterizaram os distintos debates acadêmicos na Geografia. O autor ressalta que o espaço é objeto de estudo da Geografia, pois é no espaço que as evidências das crises são manifestadas por fenômenos. A ciência geográfica analisa e critica as mais diversas formas de crise e rupturas de processos naturais do cotidiano, com intuito de compreender e explicar os fatos, assim como lidar ou desenvolver teorias para a solução de problemas relacionados ao tempo. Na prática, muitas variáveis influenciam nessas análises, assim como os problemas surgem à medida que um fenômeno é analisado. Emergem mais dúvidas que respostas. Lacoste (1988) menciona, em sua obra, as mudanças de perspectivas do poder científico e como algumas questões geográficas se tornaram mais complexas, com relação ao tempo. Moreira (2013) contribui, a partir da análise do espaço como prática estratégica na condução de guerras e dominações, na organização do Estado e práticas de poder, refletindo o uso ideológico da Geografia pós-imperialismo.
Embora a Geografia tenha ganhado força no contexto positivista, ela foi direcionada como um conhecimento com o propósito de servir aos interesses capitalistas europeu e norte-americano para expansão territorial no mundo do “imperialismo”. Como consequência desse uso, observou-se uma certa negligência quanto a sua cientificidade, tendo dificuldade de evoluir enquanto ciência.
As ciências, de forma geral, entre os séculos XIX e XX, especificamente na Europa, seguiram um progresso evolutivo acompanhando os movimentos sociais, em adequação e desenvolvimento à medida que a complexidade das relações demandava. Assim, surge a necessidade da Geografia se expandir e se aprimorar como ciência, com suas teorias próprias, de forma liberta, não contida atrás de “máscaras”, não conduzida por interesses perversos. A constatação epistemológica de que história se desenrola no espaço através do tempo ganha força com o entendimento da evolução da sociedade e a mudança cultural e política. Assim, o espaço se torna o objeto de estudo na Geografia e ela começa a se evidenciar como ciência. Torna-se possível considerar que quanto mais específico for o processo de reflexão da área de abordagem, mais complexa e única se torna a experiência interdisciplinar.
DESENVOLVIMENTO
Nessa linha teórica, o presente trabalho, no contexto da pandemia da COVID-19, tem por objetivo instigar reflexões sobre a organicidade da Geografia, por meio da proposição de temas geográficos para rediscussão de conceitos, assim como análises dos impactos advindos de múltiplas crises que se manifestam atualmente no Brasil, nas mais diversas escalas de desenvolvimento social, ambiental, econômico, político, sociocultural e técnico-informacional. Embora o trabalho aborde alguns temas da dicotomia da Geografia, enquanto ciência física e ciência humana, intenciona apontar a complexidade dos temas e suas relações interdisciplinares conectadas diretas e indiretamente.
No início do ano de 2020, o fenômeno sanitário mundial da COVID-19, considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) uma pandemia, desde 11 de março de 2020, desencadeou uma série de crises de igual proporção, impactando e modificando, de imediato e completamente, o modo de vida humano e suas atividades econômicas e sociais. Devido à alta taxa de transmissibilidade e letalidade do vírus causador doença, países de todo o mundo, seguiram orientações da OMS. Tomaram medidas de prevenção e isolamento social, como estratégia de sobrevivência. Diversas questões geopolíticas tornaram-se complexas e delicadas. Diante da crise mundial, questões levantadas sobre o modo de vida atual e futura ganham destaques e percepções que outrora não poderiam ser observadas com tanta clareza, ofuscadas pela dinâmica frenética de mercado. Acentua-se agora a crise do capitalismo, da desigualdade social, ambiental, territorial, fontes energéticas, sanitária, entre outras.
No intuito de iniciar as discussões, tendo por base os estudos de Milton Santos sobre a globalização (2010), a primeira sugestão temática seria: Globalização e seu legado para o séc. XXI, como fenômeno retroalimentado pela dinâmica capitalista, diante das crises causadas pela pandemia. De caráter amplo, possibilita múltiplas discussões e aprofundamentos ao tratar da desigualdade social nos países de periferia capitalista. Dimensões dinâmicas concretas da sociedade podem ser discutidas como: sociedade, política, saúde, segurança, economia, estrutura jurídica, práticas sociais e culturais, tanto nacionais como internacionais. Inspirados nos estudos de Davis et al. (2020) e Harvey (2020), que são referências de renome sobre análises das questões geográficas sociais, os próximos temas propostos talvez sejam os mais complexos deste trabalho: A geografia política nacional em tempos de pandemia e A crise da saúde pública nacional e repercussão mundial. É de conhecimento notório que nos últimos anos o Brasil tem enfrentado problemas de cunho político refletidos na esfera social. As divergências ideológicas cresceram aumentando também as crises sociais. Nesse sentido, desde as eleições de 2018, o cenário político nacional acentuou impactos negativos em outras esferas da sociedade, como saúde pública, educação, segurança, economia e, sobretudo, a confiança popular nas instituições jurídicas nacionais. Nesse “caldeirão” de crises, a pandemia alcança o território nacional instabilizado e vulnerável, e dificulta o planejamento em direção ao seu confrontamento. Com referência a crise política citada anteriormente, Lilia Schwarcz (GUIMARÃES, 2020) afirma que uma onda de falsas informações tem invadido o cenário nacional, nas mídias sociais. O negacionismo das responsabilidades por parte órgãos governamentais, e as inúmeras tentativas de desmonte das instituições públicas, centrais da manutenção dos direitos sociais democráticos, tem aprofundado ainda mais o “abismo” da desigualdade social. No âmbito da educação e desigualdade social, segundo Borges (2020), uma das propostas de enfrentamento da crise sanitária tem sido a educação a distância (EAD). O sistema público de ensino não possui aparato facilitador de acesso a EAD, nem o preparo dos profissionais de educação, como acontece no setor privado, para a continuidade do conteúdo letivo. A falta de recursos evidencia cada vez mais a desigualdade social e acesso à educação. Assim, como sugestão, o próximo tema proposto, inspirado em Paulo Freire, versa sobre a Crise na educação: Aulas EAD e a desigualdade social do ensino. Esse tema tem forte potencial para levantar dados estatísticos censitários de pesquisa para elaboração de futuras políticas públicas a fim de reduzir essa desigualdade. Tratando da esfera da economia e trabalho, baseado em Freitas e Freitas (2020), a próxima temática proposta, relacionada ao emprego, refere-se a “A percepção da sociedade civil sobre o comportamento das empresas na relação de contrato social de trabalho em períodos de pandemias”. Ainda nessa esfera, a proposição da próxima temática é sobre um assunto abrangente e controverso dentro das discussões nacionais sobre geografia associado a turismologia, e apoiado em Masson (2020). Esse tema abrange “Os impactos da pandemia no turismo mundial - eventos internacionais”. Assim como a ciência geográfica, o turismo é igualmente uma área multidisciplinar vinculado a meteorologia (dinâmica sazonal), a geologia (manutenção e conservação de atrativos naturais), entre outras ciências das quais depende de informações estratégicas para sua dinâmica, além de condições políticas necessárias para controle dos seus impactos, geração de renda e escapar do estereótipo de atividade econômica, exploratória e predatória. Outra perspectiva interessante que este trabalho pretende ressaltar é a inversão de destaques na relação homem – natureza, analisando não somente as dinâmicas das crises e seus impactos na sociedade, mas também trazer para a discussão como a dinâmica social tem impactado nas dinâmicas naturais. Sem a pretensão de reavivar as discussões realizadas nos encontros internacionais sobre impactos do modo predatório humano nas questões ambientais, este trabalho também propõe discussão do tema do impacto da não-atividade humana. Pela primeira vez neste novo século os cientistas e especialistas tem a oportunidade de corroborar as discussões ambientais antigas, mensurando o impacto do beneficiamento a resiliência de ambientes naturais diante da paralização mundial das atividades humanas, por viés biológico, meteorológico, tectônico, etc. Nesse sentido, com base em Como a pandemia do coronavírus faz a terra tremer menos (2020), o tema proposto é O estudo biogeográfico da interrupção das atividades humanas pela crise pandêmica global da Covid -19. Com relação à fauna e distribuição geográfica, é possível desenvolver a discussão a partir de Cyranoski (2020) na temática Crise na caça de animais endêmicos, devido a riscos de novas epidemias. Desde o surgimento das primeiras epidemias de doenças humanas causadas por animais, tem aumentado o número de morte de animais que são considerados possíveis vetores dessas doenças. Contudo, novas reflexões sobre o comportamento cultural devem ser discutidas a fim de mitigar a extinção de animais que possam desequilibrar ecossistemas. Ainda neste contexto, o último tema proposto neste trabalho para discussão entre geografia e pandemia, seria o tema “Sociedade e Natureza: perspectivas para o futuro com relação a práticas sociais coletivas, com base na prevenção de novas crises epidemiológicas”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposição de alguns temas e possibilidades a serem discutidas na Geografia, instiga novas reflexões sobre a organicidade dessa ciência interdisciplinar, aplicada às temáticas atuais, por meio da reconstrução de perspectivas e geração de novos temas a serem explorados. As contestações e argumentações proporcionadas pelos debates e discussões teóricos científicos podem trazer luz ao papel humano enquanto sujeito-objeto de análise dentro dos fenômenos geográficos. O poder de uma crise em escala mundial pode romper visões sobre paradigmas e dicotomias e percepções isoladas ainda muito evidentes no mundo acadêmico (como, por exemplo, a tendência de dividir a Geografia em lados físico e humano).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LACOSTE, Y. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer guerra. Trad. Maria Cecília França. Campinas, SP: Papirus, 1988.
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MOREIRA, R. A Geografia serve para desvendar máscaras sociais. In: MOREIRA, R. Pensar e ser em geografia. 2ª edição. 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2013, p. 61-79.
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MACHADO, Bruno; MACHADO, Luciana F. Possibilidades de temáticas geográficas para discussão a partir da pandemia da COVID-19. Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 20-26, julho de 2020.
Submissão em: 28/04/2020. Aceite em: 02/06/2020
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil
[1] Tecnólogo em Gestão de Turismo, pós-graduado em Turismo Sustentável pelo CEFET/RJ - UnED NF e graduando em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) – Seropédica (RJ).
[2] Mestranda em Tecnologia para o Desenvolvimento Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).