A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA ATUAL EM TEMPOS DE PANDEMIA: RETROCESSOS E CONSEQUÊNCIAS PARA O BRASIL DO FUTURO

 

Renan Yamasaki Veiga de Barros[1]

Universidade Estadual Paulista (Campus de Rio Claro)

renan.yamasaki@unesp.br 

 


RESUMO: 

O texto dedica-se a compreender, através de fontes jornalísticas, acadêmicas e oficiais, os rumos da nova política externa brasileira definida pelo governo Bolsonaro e suas prováveis implicações negativas no médio e longo prazo. Não obstante, buscamos avaliar as consequências do abandono do pragmatismo nas relações políticas do Brasil e como isso influenciaria a dinâmica de cooperação no cenário mundial em tempos de pandemia.

 

Palavras-chave: Política externa brasileira; Pandemia; Política sul-sul.


 

BREVE PANORAMA DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA ATÉ O CORONAVÍRUS

 

 O atual período revela uma complexidade jamais imaginada, permitindo com isso o afloramento de inúmeras interpretações conjunturais acerca da sociedade, da política e não obstante, também da economia, que confundem a tomada de decisões e polarizam cada vez mais o imaginário coletivo, obscurecendo a superação do quadro imposto pela Covid-19.  Não obstante, isso se transplanta também no âmbito da Política Externa Brasileira (PEB) por aspectos singulares do comportamento do governo Bolsonaro que impactaram diretamente o curso das relações do Brasil externamente. Os desdobramentos até o presente momento já contribuíram, para a decadência de laços de cooperação de outros países com o Brasil e uma mudança na condução da PEB no interior do Itamaraty. Dentro do escopo de análises acerca da estrutura do governo, Saraiva e Silva (2019) identificam a presença de dois elementos que se dividem em dois grupos – o ideológico e o pragmático.  Elementos de uma ala ideológica olavista[2], do governo Bolsonaro se alocam em cargos estratégicos, como no Ministério das Relações Exteriores (MRE), que já oficializou crenças da existência de uma ameaça à civilização ocidental – muito semelhante ao ensaio “Choque de Civilizações” de Samuel P. Huntington[3] –, da necessidade de adoção de uma “metapolítica externa brasileira” para o combate do “globalismo” que desvaloriza a pátria, e da homogeneização das nações, todas falas proferidas oportunamente pelo chanceler Ernesto Araújo (SARAIVA e SILVA, 2019). 

 Ademais, a drástica ruptura com a política sul-sul, acusada por Bolsonaro de se tratar de uma política “ideológica” mantida por anteriores governos petistas, justificou a aproximação de Trump e a definição de novas prioridades para o Brasil (MILHORANCE, 2018). A impulsividade e a superficialidade das decisões adotadas já geraram crises com Pequim e países árabes, após a visita do então candidato Bolsonaro à ilha de Taiwan e a proposta de mudança da embaixada brasileira para Jerusalém, em Israel (PASSOS e SANTANA, 2018). Em março de 2019, o estreitamento dos laços diplomáticos entre Brasil e Estados Unidos (EUA), ademais, resultaram em uma série de acordos desequilibrados, sucedendo dentre as medidas, a oferta do visto brasileiro a todos cidadãos estadunidenses, o início do processo de entrada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) assim como, na concessão de uso da base de lançamento de foguetes de Alcântara, no estado do Maranhão[4].

 Uma nova sucessão de crises externas – a cogitada nomeação de Eduardo Bolsonaro (filho do presidente) como embaixador nos EUA, das dúvidas europeias na assinatura de um acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, ofensas à chefes de Estado e acusações infundadas –, resultaram gradualmente no isolamento do Brasil – somaram-se ao contexto, tornando constantes as crises internas proporcionadas por desentendimentos entre alas ideológicas e pragmáticas do governo. Como se não bastasse, somou-se também às adversidades brasileiras, a crise global provocada pela Covid-19. No contexto da pandemia, governos que a princípio contrariaram as recomendações de cientistas e profissionais da saúde – Boris Johnson (Reino Unido), López Obrador (México) e Donald Trump (EUA) –, diante da proporção que a pandemia atingiu, mudaram o tom dos seus discursos, acatando as recomendações dispostas pela Organização Mundial da Saúde. Já no Brasil, as polarizações política e popular se acentuaram tornando-se motivo de preocupação pública, nacionalmente e internacionalmente. Assim, com base na análise de fatos noticiados pela imprensa, assim como na literatura teórica e documental acerca dos fatos que conduziram a PEB até o presente momento – levando em conta o recente abandono da política sul-sul e da interdependência promovida pela globalização – seria possível prevermos (sucintamente) a postura do governo em relação à política externa futura e suas consequências no Brasil no curso da pandemia e depois dela?

 

DESDOBRAMENTOS DA CRISE E POSSÍVEIS IMPACTOS DA ATUAL PEB

 

A perpetuação de uma conduta negacionista, incorporada pelo Itamaraty nas ideias de Ernesto Araújo, ignora a existência de um mercado global e a interdependência econômica integrada em redes das mais variadas, geradas pela globalização. O Brasil cumpre hoje um importante papel na cadeia de abastecimento mundial fornecendo recursos para diversos segmentos econômicos através, sobretudo, de produtos minerais e alimentícios, o que nos assegura entre uma das maiores economias do mundo[5]. Se tomarmos de exemplo a China, veremos que a exportação de primários pelo Brasil, como soja e minério de ferro, garante um saldo positivo na balança comercial brasileira desde que se tornou maior parceiro comercial do país asiático na década passada. Isso resulta de uma maior atenção e aproximação ao Sul global, que vinha sendo uma pauta marcante na PEB desde a virada do século e responsável por parcerias estratégicas que arquitetaram coalisões para a cooperação político-econômica, como os casos do IBAS (Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul), BASIC (bloco de países em desenvolvimento para mudanças climáticas, composta por Brasil, África do Sul, Índia e China) e o BRICS (Bloco multilateral de cooperação Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) – este último indo mais além, com a criação de mecanismos institucionais para maior autonomia financeira a partir do NDB e o ACR em 2014[6]. Geopoliticamente, essas ações permitiram uma mudança de status dos países periféricos, impelindo a descontinuidade dependentista da chamada Tríade (EUA, Europa e Japão), e de organismos supranacionais como o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional).

Fragmentar e romper laços com importantes parceiros, como o país asiático, através da intolerância como estratégia para tanto, pode (e muito provavelmente irá) contribuir também para o retardamento da resolução do problema da Covid-19[7], assim como para o aumento da perversidade imposta pela globalização dos países hegemônicos, além de criar uma imagem negativa ao nosso país a posteriori. Queremos dizer com isso que o afastamento do Brasil dos países em desenvolvimento e o alinhamento a países dominantes seria capaz de aprofundar relações verticais de dependência, assim como barrar a cooperação entre nações do Sul por nossa imagem transplantada pelo governo Bolsonaro, reiterando nossa condição de periferia global. Dessa forma, a análise da PEB no atual contexto pode ser feita por uma perspectiva de médio e de longo prazo, sendo a primeira relativa à superação da nova doença através das ações relacionais do governo com o mundo e a segunda, na nova concepção que se consolida no interior do Itamaraty.

No cerne daquilo que pode ser analisado no médio prazo, é possível perceber a ocorrência de repetidos ataques destinados à China, seguindo os passos de Trump e sua ideologia nacionalista-conservadora. Cabe destacar que o Brasil não possui o mesmo peso geopolítico que a China e os EUA de forma que, iniciar um conflito com um desses dois trariam gravíssimas consequências como retaliações e embargos políticos e econômicos. A China possui uma tradição diplomática pautada, sobretudo na reciprocidade e preservação de sua soberania nacional, apoiando os rumos de sua geopolítica, em grande medida, em seus movimentos econômicos (IBAÑEZ, 2020) – o que explica o interesse no Brasil no passado dada a abundância de recursos estratégicos presentes em nosso território. Ainda que o aparecimento de políticas descentralizadas, – como os diálogos entre governadores de estados  brasileiros no diálogo com a China – estejam sendo efetuadas, o país asiático possui um imenso grau de coesão cultural e histórica, fazendo com que as agressões à sua honra e soberania não passem despercebidas futuramente, podendo resultar em retaliações e na interrupção do diálogo de parceria desde o presente momento da pandemia.

Essa descontinuidade atrapalharia o engajamento na continuidade de instituições às quais o Brasil é membro, como o BRICS. A multilateralidade e maior atenção aos países do Sul global contribuíram no avanço conjunto de negociações e propostas de reformas em organismos tradicionais – como aqueles pertencentes ao sistema Bretton-Woods (FMI e Banco Mundial sobretudo) –, o que nos conferiu maior poder de barganha e autonomia política e econômica frente aos EUA e União Europeia, por exemplo. O resultado foi a fundação de todo um aparato jurídico e institucional com alternativas mais vistosas aos países em desenvolvimento, antes fortemente dependentes de um sistema interestatal hierárquico e hegemônico (ABDENUR e FOLLY, 2015). No longo prazo, o abandono dessas iniciativas de preservação – como já se pode observar – implicaria no recrudescimento da perversidade neoliberal dos países centrais sobre a periferia, junto aos seus aparatos institucionais de regulação, provocando uma nova (re)organização do espaço. 

 Com isso, pode-se concluir que muitos efeitos da crise provocada pela Covid-19 serão sentidos nas estruturas que compõem o governo e a sociedade civil. A PEB se inclui nisso e a soma de fatos que interligam aspectos ideológicos trazidos por Bolsonaro com o avanço do coronavírus incidem diretamente no destino do Brasil enquanto potência emergente na economia global. A subserviência aos EUA e o desprezo à China, certamente trarão frutos amargos para os brasileiros, que sofrem pela falta de recursos e instalações para o combate à pandemia, com o desemprego, e são obrigados a conviver cotidianamente com sucessivas crises políticas proporcionadas pelo governo federal, que ademais, vem negando ajuda externa. A hipótese de uma rápida superação se faz distante. A impulsão e a hostilidade ganham força neste governo, as crises se aprofundam e com isso o destino trilhado pela Itália, Espanha e EUA, no que se refere aos resultados quanto a perdas de vidas humanas diretamente pela pandemia, parecem não incomodar suficientemente Bolsonaro para repensar suas ações e sua política futura.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABDENUR, A. E.; FOLLY, M. O Novo Banco de Desenvolvimento e a Institucionalização do BRICS. In: BAUMANN, R. (et al.). BRICS: Estudos e Documentos. Brasília: FUNAG, 2015, pp. 79-114.

 

IBAÑEZ, P. Geopolítica e diplomacia em tempos de Covid-19: Brasil e China no limiar de um contencioso. In: Espaço e Economia, n.18, 2020.

 

MILHORANCE, C. O alinhamento de Bolsonaro com Trump. In Le Monde Diplomatique Brasil, 21 de novembro de 2018. Disponível em: https://diplomatique.org.br/o-alinhamento-de-bolsonaro-com-trump/. Acessado em: 24/04/2020.

 

PASSOS, R. D. F.; SANTANA, D. P. F. Uma breve análise das propostas de Jair Bolsonaro para a política externa brasileira. In: Perspectivas, v. 52, jul-dez 2018, pp. 89-101.

 

SARAIVA, M. G.; SILVA, Á. V. C. Ideologia e pragmatismo na política externa de Jair Bolsonaro. In: Relações Internacionais, 2019, n. 64, pp. 117-137

 

AO CITAR ESTE ARTIGO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

BARROS, Renan Yamasaki Veiga de. A política externa brasileira atual em tempos de pandemia: retrocessos e consequências para o Brasil do futuro. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 136-141, maio de 2020.

Submissão em: 29/04/2020. Aceite: 14/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil

 


[1] Aluno de graduação em Geografia, Instituto de Geociências e Ciências Exatas - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, campus de Rio Claro). Atualmente é membro integrante do Laboratório de Estudos sobre Desenvolvimento e Geopolítica (LEDGE) do Departamento de Planejamento Territorial e Geoprocessamento, e do Laboratório de Apoio ao Estudo da Geografia (LAEGE) do Departamento de Geografia, da UNESP campus de Rio Claro. Área de interesse: Geopolítica, integração regional, política externa brasileira, relações internacionais e educação geográfica.

[2] Nome que se dá à vertente ideológica de Olavo de Carvalho (filósofo citado pela articulação de extrema direita e relacionado à nomeação de cargos no atual governo, como no Ministério da Educação e Ministério das Relações Exteriores). 

[3]Cf. HUTINGTON, Samuel P. Choque das civilizações? In: Política Externa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

[4]A relação de acordos firmados entre Brasil e Estados Unidos podem ser verificados no website do MRE, através do link: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/ficha-pais/5120-estados-unidos-da-america.

[5] Os dados relativos ao balanço comercial, produtos e destinos (em série histórica) são disponibilizados no website do Ministério da Economia, Indústria, Comercio Exterior e Serviços (MDIC). Disponível em: http://www.mdic.gov.br/index.php/comercio-exterior/estatisticas-de-comercio-exterior/balanca-comercial-brasileira-acumulado-do-ano.

[6] As siglas referem-se ao Novo Banco de Desenvolvimento e ao Arranjo de Contingente de Reservas, oficialmente institucionalizados na IV Cúpula do BRICS de 2014, em Fortaleza, Brasil.

[7] Devemos destacar que a China vem demonstrando reconhecida eficiência na contenção e no combate da pandemia por meio de políticas públicas e ações coletivas, e possui vasto know how em desenvolvimento em pesquisas epidemiológicas (IBAÑEZ, 2020).