COVID-19 NAS FAVELAS: DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS E AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA

 

Thais da Silva Matos[1]

Universidade Federal Fluminense

thaismatos092@gmail.com

 


RESUMO: 

O objetivo do artigo é mostrar a gravidade do avanço da COVID-19 nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, a partir das suas características socioespaciais desiguais. Abordaremos como a pandemia intensificou problemas urbanos pré-existentes e as novas formas de organização que os agentes das comunidades têm elaborado para evitar os efeitos devastadores da pandemia.

 

Palavras-chave: COVID-19; Favelas; Desigualdade socioespacial.


 

INTRODUÇÃO

 

A crise relacionada a pandemia do novo coronavírus revela, sem que possamos desviar o olhar, a face perversa da globalização, para me referir a importante contribuição de Milton Santos (2000) para compreender a complexidade do tema e as peculiaridades dessa pandemia global no século XXI. O mundo enfrenta uma ameaça biológica que se espalha muito rapidamente impondo às autoridades e a população o desafio crucial de frear a reprodução do novo coronavírus através da redução dos fluxos e do isolamento social.

 Porém, o fenômeno da globalização não encerra a explicação dos impactos socioespaciais da crise que antecede e sucede a pandemia, tornando necessário trazer para o debate os problemas da urbanização e o seu papel na proliferação do novo coronavírus (SPOSITO e GUIMARÃES, 2020). Essa análise se mostra necessária, sobretudo, em locais com características socioespaciais diferenciadasmarcados pelas desigualdades sociais, como é o caso das favelas da cidade do Rio de Janeiro. É importante pontuar que a crise expõe problemas anteriores a doença COVID-19, derivados do descaso do Poder Público e da crise político-econômica em que o país atravessa há anos, tornando ainda mais precárias as condições de vida a que muitas populações vivem expostas nas comunidades. Portanto, entender a crise provocada pela pandemia nas grandes metrópoles brasileiras requer um olhar para estruturas raciais, de gênero e classe que desenham uma realidade socioespacial desigual. 

Apesar da COVID-19 ser uma doença que   não faz distinções de raça, classe ou gênero, sabemos que as condições para lidar com seus efeitos dependem muito do status social de cada indivíduo. As desigualdades no acesso a cuidados médicos, no acesso à informação e até mesmo nas condições sanitárias básicas, revelam que os moradores de favelas e periferias, em sua grande maioria pessoas pretas e pobres, são as vidas mais afetadas pela quarentena e pelas mudanças que se anunciam. Tais mudanças não se tratam somente de questões relacionadas à saúde, pois apresentam também fortes impactos sobre o processo de precarização do trabalho e da vida de uma forma mais ampla. Dessa perspectiva, os efeitos da pandemia podem ser ainda mais devastadores, e mesmo quando o surto passar, teremos presenciado, além da morte de muitas pessoas, o agravamento das desigualdades socioespaciais, marcando mais uma vez com sofrimento a existência das populações mais vulneráveis.

Contudo, desse cenário caótico também emergem agentes que propõe articulações que demonstram, mais do que solidariedade, novas e eficientes formas de organização política dos grupos socialmente marginalizados. Neste artigo, além de pontuar as desigualdades socioespaciais como fatores de agravamento da crise relacionada a pandemia do Coronavírus nas favelas, pretendo abordar as iniciativas comunitárias que têm sido fundamentais na luta contra a política de morte desempenhada pelo Estado. O conceito de necropolítica, cunhado por Achille Mbembe (2003) descreve esse tipo de biopoder operado pelo Estado sobre os corpos, decidindo aqueles que devem viver e aqueles que podem morrer. A pandemia demonstra ostensivamente que os favelados são grande parte de uma linha de frente exposta a contaminação, tanto pela sua vulnerabilidade quanto pela sua ampla presença nos postos considerados “serviços essenciais”.

 

 

COVID-19 NAS FAVELAS

 Graças a iniciativas comunitárias como a do Jornal “Voz das Comunidades” podemos estar cientes da real situação da COVID-19 nas favelas da cidade do Rio de Janeiro. A subnotificação é um problema na gestão da pandemia em todo o Brasil por conta da testagem insuficiente, mas nas favelas o quadro se torna especialmente preocupante. Foram mais de 150 casos confirmados e 22 óbitos apenas no mês de abril, com a favela da Rocinha e a da Cidade de Deus liderando no número de casos (A VOZ DAS COMUNIDADES, 2020)[2]. As coalizões que tem se organizado para reportar e lidar com o desenvolvimento da pandemia nessas comunidades defendem que as medidas adotadas pelas autoridades não contemplam a realidade dos moradores.

 As favelas do Rio de Janeiro são resultado de um processo sistemático de segregação da população negra e pobre que tem como principal característica a ausência de políticas de desenvolvimento urbano.  São espaços que sofrem há muito tempo com a desigualdade no acesso a água, falta de planejamento habitacional e de estruturas higiênico-sanitárias, fatores determinantes de exposição a um maior risco de contaminação pela COVID-19. Para Britto (2020, p. 1), "a pandemia expõe uma dívida histórica do poder público e dos prestadores dos serviços de saneamento básico com essas populações, que têm seus direitos básicos negados". Como relata a Carta Aberta de Coalizão das Periferias[3] quando argumenta que, na realidade desses territórios, muitas vezes não é possível nem mesmo seguir a principal medida orientada pelas autoridades da saúde, como lavar as mãos.

 Ainda sobre as condições para lidar com os efeitos do novo Coronavírus, o acesso a saúde é um aspecto importante. O Sistema Único de Saúde (SUS) talvez seja um dos principais aliados da população brasileira pobre, porém, ao abordar a questão da saúde pública no nosso país, emergem diversas questões estruturais que complexificam a situação. A concentração de hospitais nas áreas centrais da cidade, superlotação e a crise financeira que a prefeitura do Rio de Janeiro vem enfrentando já eram problemas graves que, antes da pandemia, resultavam na falta de atendimento, principalmente às populações mais pobres. Em matéria, o coletivo de jornalistas do “Favela em Pauta” afirma que, no atual cenário, as desigualdades sociais aceleram o óbito

 

Após a infecção, os riscos de adoecimento e morte, segundo a Organização Mundial da Saúde, são maiores para pessoas com hipertensão, diabetes, doenças do coração, doença respiratória crônica e câncer. Algumas destas doenças crônicas são mais frequentes na população negra em comparação com a predominância na população branca, e com o cenário agravado pelas diferenças de classe (FAVELA EM PAUTA, 2020).

 

A Associação Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (ABMFC), através do grupo de trabalho de Saúde da População Negra, entrou com um pedido junto ao Ministério da Saúde no início de abril/2020 para que sejam divulgadas informações sobre raça/etnia dos infectados, já que até o momento não foram feitos levantamentos precisos. Entretanto, podemos perceber o recorte de raça da pandemia, quando 67% da população dependente do SUS é composta por pessoas pretas ou pardas (BRASIL, 2017) demonstrando, assim, outro fator de vulnerabilidade das pessoas negras, pobres, moradoras de favela que dependem da saúde pública e estão mais sujeitas a problemas como a lotação das UTI’s.

 O primeiro óbito registrado no Rio de Janeiro é bastante emblemático para compreensão dos conflitos que se apresentam. O caso mostra, principalmente, como o isolamento social é um privilégio de raça e classe e traz mais elementos essenciais para análise desta complexa conjuntura. A vítima foi uma mulher de 63 anos que contraiu o vírus de sua patroa que, cumprindo a quarentena após viagem à Itália, manteve a empregada doméstica trabalhando[4]. Esse acontecimento revelou a herança escravocrata e o racismo estrutural tão presente na sociedade brasileira que, por sua vez, provocou uma inquietação muito grande naqueles que reconheceram a gravidade da situação. Através do manifesto “Pela vida de nossas Mães” filhas e filhos de empregadas domésticas e diaristas se organizaram na internet, por meio de redes sociais e plataformas digitais, para pedir medidas de proteção para essas trabalhadoras e suas famílias que são precariamente assistidas pelos direitos trabalhistas e as principais vítimas do egoísmo das classes mais altas.[5]

Para trazer mais um aspecto racial dessa crise, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2019), a maioria dos trabalhadores informais (modalidade que vem crescendo nos últimos anos) e dos serviços essenciais do país, são negros. Isso manifesta, durante a quarentena, a impossibilidade de compor a renda necessária à sobrevivência para primeira parcela dessa população que não está trabalhando (os camelôs, por exemplo) e a maior exposição ao vírus da outra parcela que continua saindo todos os dias de casa para trabalhar. Soma-se a esse quadro a crescente demanda por serviços delivery através de aplicativos, empurrando um exército de pessoas que se veem sem opção de renda a se arriscar em empregos extremamente precários, sem uma efetiva segurança sanitária e sem garantias trabalhistas. 

 

 

FAVELAS NA LUTA CONTRA A COVID-19

Não há dúvidas de que a pandemia da COVID-19 está provocando uma transformação social sem precedentes. Uma das características mais marcantes é o seu impacto global, que revela as desigualdades socioespaciais inerentes ao sistema capitalista como agravante da situação, principalmente nos países mais pobres. Podemos perceber essas diferenças nos recursos financeiros e tecnológicos disponíveis, na qualidade do sistema de saúde ou na eficiência de definir medidas de prevenção que cada país é capaz de adotar.  No caso do Brasil, o cenário é devastador, com um claro recorte de raça e classe no acesso a meios de prevenir e tratar a doença.

Diante desse panorama e de toda a experiência de ausência que os moradores de favela vivem há décadas, emergem de dentro das próprias comunidades agentes capazes de realizar coalizões importantes. A internet se tornou uma ferramenta essencial para realizar articulações que procuram dar conta de necessidades que o Estado não é capaz de prover, como é o caso das campanhas de arrecadação de mantimentos e kits de higiene para famílias que estão impossibilitadas de compor sua renda. A grande maioria das favelas na cidade do Rio de Janeiro têm realizado suas ações através de financiamentos coletivos online, para que o isolamento social não seja prejudicado. De certa forma, esse momento é capaz de ativar um senso de responsabilidade social e comunitária no interior das favelas e na sociedade que vive alheia a sua existência, criando um sentimento de empatia que é fundamental para construção de uma sociedade mais justa. Torna-se muito importante que esse ímpeto não se esvaia, pois, as desigualdades não deixarão de existir com o fim da pandemia, talvez se agravem, e o combate a elas é mais que urgente.

Organizações e coletivos têm sido vitais no levantamento de dados e na difusão de informações sobre a situação da pandemia nas favelas. Moradores, jornalistas, artistas, entre outros, se unem como porta-vozes das comunidades de dentro para fora e de fora para dentro. Sua atuação abrange a informação sobre o número de casos e óbitos, denúncias de insalubridade e condições de trabalho abusivas, assim como a exposição da precarização da vida dos mais pobres para a sociedade através das suas plataformas digitais. É como tem atuado dois coletivos citados nesse artigo: o Jornal comunitário Voz das Comunidades e o Coletivo de Jornalistas Favela em Pauta, que colaboram na construção do “Painel COVID-19 na favela”, fornecendo boletins online e frequentes sobre o avanço da doença nas comunidades. Além disso, se esforçam na difusão de informações de prevenção ao contágio, na conscientização quanto a maior vulnerabilidade das favelas e na divulgação das campanhas de arrecadação para os moradores.

As crises, por mais difíceis que sejam, se tornam momentos bastante frutíferos para o surgimento de alternativas. Os agentes sociais das favelas desempenham, ao longo da sua história, um papel central na luta contra as desigualdades socioespaciais e a política genocida do Estado, produzindo uma capacidade de proteção interna das comunidades. Nesse contexto, se tornam uma frente muito potente contra o avanço da morte dentro dos seus territórios, nos dando verdadeiros exemplos de união, solidariedade e organização que podem servir de fôlego para dar um sentido mais positivo para as transformações profundas que a sociedade está atravessando. Esperamos que rumo a um mundo melhor.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

A VOZ DAS COMUNIDADES. Painel COVID-19 nas favelas. A VOZ DAS COMUNIDADES, 2020. Disponível em: <https://covid.vozdascomunidades.com.br/>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

 

BRITTO, A. L. O direito à água nas favelas e periferias em tempos de Covid-19. Observatório Nacional dos Direitos a Água ao Saneamento, 16 de abril de 2020. Disponível em: <https://ondasbrasil.org/o-direito-a-agua-nas-favelas-e-periferias-em-tempos-de-covid-19-artigo/>. Acessado em: 25 de abril de 2020.

 

FAVELA EM PAUTA. O coronavírus mata, mas a desigualdade social acelera o óbito. A VOZ DAS COMUNIDADES, 30 de março de 2020. Disponível em: <https://www.vozdascomunidades.com.br/geral/covid19nasfavelas-o-coronavirus-mata-mas-a-desigualdade-social-acelera-o-obito/>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

 

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Informação Demográfica e Socioeconômica, 2019. Disponível em:  <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: uma iniciativa do SUS. 3. ed. Brasília, 2017. 46 p. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_populacao_negra_3d.pdf>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 15. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. 

 

MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. 2018. ed. São Paulo: n. 1, 2003.

 

SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE. GT de saúde da população negra: manifestação sobre ausência de dados da COVID-19 desagregados por raça-cor. SBMFC, 9 de abril de 2020. Disponível em: <https://www.sbmfc.org.br/noticias/gt-de-saude-da-populacao-negra-manifestacao-sobre-ausencia-de-dados-da-covid-19-desagregados-por-raca-cor/>. Acessado em: 25 de abril de 2020.

 

SPOSITO, M. E. B; GUIMARÃES, R. B. Por que a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia: difusão da Covid-19 no país segue modelo relacionado a interações espaciais na rede urbana. Portal UNESP, 26 de março de 2020. Disponível em: <https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia>. Acessado em: 23 de abril de 2020.

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

MATOS, Thaís da Silva. COVID-19 nas favelas: desigualdades socioespaciais e as formas de organização comunitáriaRevista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 102-108, julho de 2020.

Submissão em: 29/04/2020. Aceite em: 13/05/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil


 


[1] Graduanda em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói, Rio de Janeiro. 

[2] Painel Covid-19 nas Favelas. Atualizado em 27/04/2020. Disponível em: <https://covid.vozdascomunidades.com.br/>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

[3] Carta aberta da coalizão periférica. Disponível em: <https://favelaempauta.com/coalizao-coronanasperiferias/>. Acessado em: 24 de abril de 2020.

[4] Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/19/rj-confirma-a-primeira-morte-por-coronavirus.ghtml>. Acessado em: 23 de abril de 2020.

[5] Pela vida de nossas Mães. Disponível em: <http://periferiaemmovimento.com.br/pela-vida-de-nossas-maes-o-manifesto-de-filhos-de-domesticas-sem-quarentena/>. Acessado em: 24 de abril de 2020.