“NOS NEGAMOS A MORRER NA PRISÃO”: A PANDEMIA DE COVID-19 E A (IN)VISIBILIDADE DOS ESPAÇOS CARCERÁRIOS
Moniqui Vassoler Bayerl Universidade Federal do Espírito Santo moniquibayerl@hotmail.com
Karina Eugenia Fioravante Universidade Estadual de Ponta Grossa karina_frr@hotmail.com
RESUMO:
O espaço carcerário é comumente observado enquanto local no qual normatizações e regras imperam de forma absoluta. Neste sentido, o objetivo desse ensaio é refletir acerca das estratégias de visibilidade que estão sendo desenvolvidas pela população encarcerada durante o atual momento de pandemia de Covid-19. Contrariando a lógica, os espaços carcerários estão se mostrando dinâmicos palcos para reivindicações políticas e sociais.
Palavras-chave: Espaços Carcerários; Pandemia de Covid-19; Invisibilidades políticas.
INTRODUÇÃO
No dia 23 de abril de 2020 um grupo de detentos da prisão de Villa Devoto, localizada em Buenos Aires, subiu aos telhados do prédio e pendurou um cartaz que afirmava: “Nos negamos a morrer na prisão”. Durante o protesto, que envolveu a queima de colchões no setor de celas e porte de armas improvisadas, alguns presos sofreram ferimentos enquanto reivindicavam por liberdade durante a pandemia de Covid-19. As autoridades argentinas afirmam que o vírus, que vem provocando sérias disrupções em nossas atividades cotidianas, ainda não chegou ao presídio (VEJA, 2020a). No Brasil, motins e levantes estão se tornando cada vez mais correntes revelando a forte invisibilidade à qual as populações encarceradas estão sujeitas.
Raramente nos questionamos verdadeiramente acerca das finalidades da existência dos espaços carcerários, bem como, quase nada que acontece em suas dependências nos choca. O imaginário que construímos nos direciona constantemente à elaboração de justificativas que oscilam entre noções de merecimento ou de justiça sendo aplicadas. Quem nunca entrou em contato com tais opiniões enfáticas? Independentemente de pontos de vistas e crenças individuais, os espaços carcerários, bem como as pessoas que os constituem, devem estar inclusos em nossas reflexões, principalmente se estas buscam trazer soluções reais para o momento de extrema fragilidade e inconstância que vivemos.
Colocando em outras palavras, é importante que pesquisadores e interessados estejam dispostos a “arregaçar as mangas” e, de fato, refletir acerca dos cárceres, dos indivíduos reclusos, funcionários e de toda a estrutura jurídica que os amparam. A partir de uma visão própria acerca da problemática dos espaços prisionais, a Geografia tem muito a contribuir com tal empreitada. O olhar do geógrafo, treinado para correlacionar dinâmicas sociais e materialidades, pode garantir uma análise capaz de abarcar a complexidade que envolve a relação entre os espaços carcerários e a pandemia de Covid-19.
SOBRE ESPAÇOS CARCERÁRIOS, POLÍTICA E (IN)VISIBILIDADES
Uma das principais teorizações acerca dos espaços carcerários foi fornecida por Michel Foucault (1975). Parece quase impossível refletir sobre as prisões sem beber da fonte construída pelo filósofo. Sempre preocupado com dinâmicas e relações de poder, os cárceres podem ser então interpretados enquanto locais onde ocorre o adestramento de corpos, onde a vigilância se faz imperante para garantir um espaço regido por normatizações impostas a corpos dóceis. A passividade dos sujeitos é alcançada nessas “instituições totais” (GOFFMANN, 1961) a partir da reclusão, da privação e da destituição de qualquer característica identitária que possa servir como gatilho para desrespeito a imposições.
É difícil não concordar com a afirmativa de que os cárceres são “(…) a forma disciplinar no estado mais intenso, o modelo em que concentram todas as tecnologias coercitivas do comportamento”. Entretanto, as ações que estão ocorrendo em inúmeros países nos direcionam a algumas ideias que podem ser distoantes - ou talvez complementares - àquelas propostas por Foucault (1975, p. 243). As manifestações que vêm ganhando espaço nos presídios da América Latina e do Brasil e, consequentemente, nos diferentes veículos de comunicação, demonstram que os espaços carcerários não estão totalmente vedados às demonstrações individuais e coletivas que perpassam às normatizações.
Essa ambiguidade se faz interessante principalmente num momento de extrema vulnerabilidade. Em linha contrária a todas as recomendações de especialistas, a reclusão no caso dos espaços carcerários pode servir como elemento catalizador para a propagação da doença. Uma questão importante e ignorada é que as prisões são e fazem parte de um todo social, ou seja, não podem ser consideradas como algo totalmente distante e desligado da realidade. Os espaços carcerários podem vir a se tornar locais de infecção e reinfecção da doença, terreno fértil para o vírus. Isso significa que ações para a manutenção da saúde de pessoas presas geram impacto, também, na saúde coletiva.
Seguindo as orientações do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Justiça, os estados vêm adotando medidas para “controlar” a propagação do novo coronavírus nos presídios brasileiros. A população carcerária no Brasil já ultrapassa 750.000 presos e presas. Desse modo, não é tão simples manter o silêncio e a invisibilidade durante uma pandemia lidando com a terceira maior população carcerária do planeta (DEPEN, 2019).
Algumas das principais medidas que os estados brasileiros vêm adotando para a prevenção ao vírus nas prisões consistem em afastamento físico, restrição de visitas, aumento do tempo do banho de sol, realização de quarentena para o ingresso de novos detentos e detentas, regime domiciliar para internos pertencentes aos grupos de risco, suspensão das aulas e das assistências religiosas nos presídios, entre outras (VEJA, 2020b). Seriam suficientes e, principalmente, eficientes essas ações de prevenção que estão sendo colocadas em prática pelos governos? Não se tratariam de mais uma grande falácia? Quando nos referimos aos “dados oficiais” relativos à população carcerária brasileira, esses dados sempre foram incertos e camuflados. Sobre a pandemia, isso não seria diferente. É importante destacar que o “isolamento” do cárcere não é suficiente enquanto política pública de prevenção ao vírus, já que os presídios brasileiros convivem com superlotação, dificuldade de distanciamento, higienização precária, baixa imunidade da população, falta de atendimentos, falta de médicos e racionamento de água. Este último foi, inclusive, a motivação de um motim no Complexo Prisional Francisco de Oliveira Conde, o maior do Acre (G1 ACRE – RIO BRANCO, 2020).
É interessante apontar que o até então Ministro da Justiça, Sergio Moro, defendia o isolamento da população carcerária como medida eficaz de combate à doença. O método principal seria realizado por meio da suspensão das visitas. De acordo com Moro, da mesma forma que a população está isolada em suas casas, os presos e presas deveriam continuar isolados nas prisões, pois o cárcere seria o “domicílio precípuo dessa população” (PASTORAL CARCERÁRIA, 2020). Acreditar na suspensão temporária das visitas como uma solução eficiente para a prevenção da doença é uma estratégia política negacionista, pois camufla as reais circunstâncias espaciais, de vida e de saúde das pessoas que estão em regime de privação de liberdade. Ou seja, presumir o “isolamento” dos presídios com a suspensão das visitas é, na prática, condenar os detentos à morte por omissão. Sendo assim, não nos equivocamos em afirmar que esta é uma necropolítica silenciosa para corpos considerados invisíveis, descartáveis e marginalizados.
É uma ilusão acreditar que as prisões são espaços hermeticamente fechados. Na verdade, são espaços que apresentam contato com o exterior, seja por meios legais, seja através de estratégias para subverter as normatizações. Interpretar o isolamento dos presídios como uma ação eficiente de controle contra o vírus é como armar uma bomba que poderá explodir para além dos muros da prisão. Os significados do espaço e da vida carcerária superam as questões físicas relativas a ele. As penitenciárias são formadas por uma população inserida na sociedade, dividida por muros que separam a comunidade livre daqueles que por ela foram rejeitados – que são, por muitas vezes, tratados como invisíveis. Nesse sentido, as prisões e as políticas públicas destinadas à população carcerária em nosso país são importantes espelhos de compreensão, de humanidade e de dignidade com seus cidadãos.
Todavia, é válido destacar que esses sujeitos aparentemente invisíveis para e perante à sociedade estão criando estratégias particulares para ganhar voz e mostrar seus rostos. Estamos vendo demonstrações cada vez mais correntes da vontade da população carcerária de sair da invisibilidade. No Brasil, presos pertencentes ao PCC (Primeiro Comando da Capital) acionaram a “sintonia dos gravatas” (apelido dado aos advogados que prestam serviços a integrantes do grupo) para que entrem com pedidos de soltura e prisão domiciliar de membros da organização que pertencem ao grupo de risco (TERRA, 2020).
É essencial, portanto, que não negligenciemos que cenas de levantes, motins e protestos, como as vistas nas prisões argentinas, podem se repetir no Brasil caso haja aumento do número de presos contaminados pela doença. É interessante apontar ainda que de acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa (DICIO, 2020), a palavra “motim” significa: 1) revolta; toda ação que, contra quaisquer autoridades, se define pelo uso de violência, pela falta de ordem ou pela utilização de armas; 2) tumulto; 3) revolta ou agitação popular. Sendo assim, considerar que a população carcerária pode estar, ou vir a estar realizando motins em busca de seus direitos pela prevenção à saúde, e contra a disseminação do vírus nas prisões, certamente será visto como um “crime” inadmissível.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Face ao exposto, nos perguntamos: o que o governo brasileiro tem apresentado à população em meio à pandemia não poderia ser qualificado enquanto um motim? Não estamos testemunhando uma guerra política declarada, que gera tumulto e falta de ordem em meio a uma crise já grande o suficiente? Os dois principais ministérios que atuam diretamente na prevenção da doença nas prisões a saber, o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde, demonstram em tempos atuais extrema fragilidade, falta de organização e vulnerabilidade na medida em que assistiram aos seus ministros caírem em meio a um motim político, que traz ainda mais instabilidade à população brasileira. O que esperar dos novos ministros e suas políticas? O que esperar para os próximos dias, semanas e meses? O que esperar da população carcerária brasileira e suas movimentações por direitos, voz e visibilidade?
São perguntas audaciosas e com respostas, até o momento, desconhecidas. Apesar das incertezas, podemos defender a ideia de que, a partir da constituição dos espaços carcerários, estes podem ser percebidos enquanto cenários nos quais múltiplas trajetórias coexistem em dinâmicas de multiplicidade. Tal pluralidade está se fazendo altamente perceptível nesse momento, principalmente a partir da criação de estratégias de visibilidade e reivindicações políticas que almejam escancarar a precária e temerária situações dos enclausurados.
O levante que ocorreu na Argentina é icônico e o recado que os presos envolvidos mostraram ao mundo não deve ser esquecido: “ A Covid-19 está em devoto... Juízes genocidas, o silêncio não é minha língua” (VEJA, 2020). Sendo assim, a vulnerabilidade das populações encarceradas deve ser levada em consideração a partir de toda a sua complexidade e, especialmente nos tempos atuais de provação, políticas públicas sérias, exequíveis e baseadas na importância da condição espacial dessas pessoas, devem ser propostas e aplicadas. É imprenscindível que representantes e autoridades encarem com seriedade o momento e sejam capazes de assegurar a vida da população encarcerada, abandonando definitivamente medidas sem resultados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DICIO. Dicionário online da Língua Portuguesa. Disponível em: https://www.dicio.com.br/motim/. Acessado em: 27/04/2020.
DEPEM. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. INFOPEN, 2019.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. História da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
1975.
GOFFMAN, I. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.
G1 ACRE – RIO BRANCO. Detentos são levados ao pronto-socorro após motim em presídio em Rio Branco. 23 de abril de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2020/04/23/detentos-sao-levados-ao-pronto-socorro-apos-motim-em-presidio-de-rio-branco.ghtml. Acessado em: 27/04/2020.
PASTORAL CARCERÁRIA. Covid-19 chegou nas prisões e resultado será trágico para toda sociedade. 17 de abril de 2020. Disponível em: https://carceraria.org.br/combate-e-prevencao-a-tortura/artigo-covid-19-chegou-nas-prisoes-e-resultado-sera-tragico-para-toda-sociedade. Acessado em: 27/04/2020.
TERRA. PCC quer usar coronavírus para libertação em massa de presos. 29 de março de 2020. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/cidades/pcc-quer-usar-coronavirus-para-libertacao-em-massa-de presos,e4588c21471ecb9956eb01c40c93a583zw7awaea.html. Acessado em: 27/04/2020.
VEJA. Presos fazem motim na Argentina para exigir medidas contra a Covid-19. 24 de abril de 2020a. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/presos-fazem-motim-na-argentina-para-exigir-medidas-contra-a-covid-19/. Acessado em: 27/04/2020.
VEJA. Estados impõem regras rígidas para conter corona vírus nos presídios. 04 de abril de 2020b. Disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/estados-impoem-regras-rigidas-para-conter-coronavirus-nos-presidios/. Acessado em: 27/04/2020.
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BAYERL, Moniqui Vassoler; FIORAVANTE, Karina Eugenia. “Nos negamos a morrer na prisão”: a pandemia de covid-19 e a (in)visibilidade dos espaços carcerários. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 124-129, maio de 2020.
Submissão em: 29/04/2020. Aceite em: 20/05/2020.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil