REFLEXÕES FENOMENOLÓGICAS EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS:

ENTRE ESPAÇOS, LUGARES E “PAISAGENS DO MEDO”

Larissa Lima de Souza[1]

Colégio Pedro II

Universidade Federal do Rio de Janeiro

larissalimageo@ufrj.br


RESUMO:

 

Este trabalho apresenta algumas reflexões e inquietações forjadas pela própria experiência espacial da autora no contexto da pandemia de COVID-19. A partir do aporte de geógrafas e geógrafos humanistas dedicados a compreender os espaços, os lugares e as paisagens através de seus simbolismos, sobretudo pelo viés fenomenológico, a autora pondera sobre as possíveis ressignificações de determinadas espacialidades durante e após o isolamento social. 

 

Palavras-chave: Topofilia; Topofobia; COVID-19.


 

INTRODUÇÃO

 

Há um mês e meio em isolamento social voluntário no Brasil, fomos atravessados por inúmeros vídeos e fotografias feitos durante a pandemia de COVID-19 em distintas cidades e países, compartilhados por meios de comunicação mais tradicionais e/ou pelas redes sociais: imagens sobre o confinamento; manifestações pela reabertura do comércio; famílias sepultando entes queridos etc. Temos acesso, diariamente, a tabelas e gráficos comparativos do número de testes realizados, de casos confirmados e de mortes de pessoas em cidades e países que vivem a pandemia em diferentes temporalidades. As previsões estatísticas diante dos números oficiais, além da sabida subnotificação, revelam a magnitude da situação em que nos encontramos. 

É inegável que a enxurrada de registros audiovisuais e das projeções de crescimento e posterior queda da curva de contágio já está causando forte impacto - não somente econômico e político, mas também simbólico-cultural. E é em relação a este último aspecto que gostaria de fazer algumas reflexões como geógrafa em isolamento. Afinal, como afirmou Cosgrove (2012), “a geografia está em toda parte”, o que torna bastante difícil não olharmos o mundo a partir de nossa formação como geógrafos, mesmo fora de nossos espaços e horários de trabalho.

Dentre algumas mudanças de caráter espacial promovidas pela rápida expansão do novo coronavírus, podemos citar algumas, como: fechamento de fronteiras marítimas e terrestres; suspensão de fluxos migratórios internacionais por via aérea; isolamento social; recomendação de permanência em nossas residências como forma de contenção da pandemia; esvaziamento de centros urbanos, incluindo cidades globais; sobrecarga de hospitais e cemitérios. A pandemia do COVID-19 também nos trouxe a necessidade de utilização do espaço virtual para encontros que antes ocorriam na materialidade de outros espaços, sejam para fins de lazer ou trabalho. 

Diante desse quadro, indagamos: como a pandemia de COVID-19 pode alterar nossas sociabilidades e relações afetivas em/com determinados espaços, lugares e paisagens? Proponho, então, uma reflexão sobre a experiência espacial no contexto atual a partir das contribuições da Geografia Humanista. Todas essas mudanças espaciais observadas nos últimos 45 dias podem nos remeter aos conceitos de espaço e lugar.[2]

SUBJETIVIDADE E EXPERIÊNCIA ESPACIAL EM TEMPOS PANDÊMICOS 

É a partir da atribuição de significado, individual ou coletiva, que um espaço se torna um lugar (TUAN, 2011); mas não necessariamente essa significação será positiva (OLIVEIRA, 2012). Devemos lembrar que cada indivíduo experenciar a espacialidade a seu modo, pois sua relação com o espaço é mediada, entre outros aspectos, pelo afeto. Dessa maneira, um grupo pode vivenciar determinado espaço, mas apenas alguns de seus integrantes se vincularem intimamente com o mesmo, fazendo dele seu lugar, seja negativamente ou no sentido de lar.

A partir do pensamento de Tuan (2011), Mello (2000; 2011), Relph (2012) e Oliveira (2012), trabalharemos com o conceito de lugar entendendo-o como uma porção do espaço com a qual se constrói uma relação de afeição ou rejeição a partir da experiência, podendo esta ser direta ou indireta (relatos, filmes, músicas etc.). A ideia de lar também está fortemente vinculada ao sentimento de topofilia, apego ao lugar, mesmo que não se restrinja às barreiras físicas de uma residência e se expanda para as ruas (TUAN, 2012). Por outro lado, o desprezo e a rejeição, por determinado lugar são denominados por Tuan como topofobia

Já o conceito de espaço, na perspectiva de humanista, implica em aventura, novas experiências, mas também em riscos” (TUAN, 2013, p.5), sendo vinculado a ideias como desconhecimento/estranheza, rejeição, desesperanças e escuridão (MELLO, 2000, 2011).

Se considerarmos o fato de que lugar e sentido de lugar não são constantes (RELPH, 2012), ou seja, que o grau de vínculo ou rejeição a determinado espaço geográfico pode ser alterado a depender das circunstâncias, proponho que examinemos a dinâmica espaço-lugar no contexto da pandemia de COVID-19, especialmente pensando na espacialidade da residência/casa e da rua (termo usado genericamente, em oposição ao espaço residencial).

A residência pode ser compreendida como o lar, quando nos despertando a sensação de aconchego, abrigo, proteção, acolhimento. Como medida de contenção da pandemia, pessoas de classes mais privilegiadas passaram a usar suas casas como home office, ampliando o que Castells (1999, p.423, citado por MELLO, 2012) denominou “centralidade da casa” no sentido de ser este um espaço de “desenvolvimento das mais diversas atividades no próprio endereço domiciliar” (MELLO, 2012, p.38). No entanto, para muitas pessoas em isolamento, a permanência na casa pode representar perigo durante a pandemia de COVID-19, seja pela violência doméstica (estupros, feminicídios), pelo desconforto da sensação de confinamento, pelas incertezas quanto ao futuro ou pela dificuldade de controlar a situação vivenciada.

Nesse sentido, concordamos com Yi-Fu Tuan (2013) e Jean Brum (2017) quando afirmam que, justamente por ser conhecido intimamente, o lugar pode se tornar entediante, despertando o desejo de escape, de busca por aventura; ao mesmo tempo, a falta de estímulos pode propiciar momentos de reflexão. Além disso, Brum (2017) também alerta para o fato de que “os lugares são, também, foco de tensões diárias, de lutas, de desavenças” (BRUM, 2017, p.106), não devendo ser compreendidos apenas como espaços vinculados a aspectos positivos.

Já a rua, geralmente vivenciada como lugar do encontro, da festa, do lazer, das trocas (comerciais, afetivas), em contexto de COVID-19 tem seus significados disputados e pode representar o risco de contágio, um espaço que desperta medo em muitos indivíduos, levando a seu esvaziamento; tal condição é ampliada pela medida de promoção à Saúde adotada em nível de política estadual de fechamento dos espaços de consumo e lazer que permitem a reunião de pessoas. Outros espaços têm despertado nossa topofobia nesses tempos pandêmicos, como os supermercados, os hospitais e os cemitérios; estes dois últimos, infelizmente, sofrendo diariamente com a superlotação e configurando verdadeiras paisagens do medo (TUAN, 2005) - aquelas que nos remetem ao sentimento de medo (por um risco real, ou não) ou à sensação de ansiedade devido à perda de controle de determinada ordem das coisas (TUAN, 2005). 

Na realidade, esses espaços (a residência/casa e a rua) combinam tal dualidade em termos de significados no contexto desta pandemia que vivenciamos. Cada pessoa vai experimentar tais espaços de um modo particular (OLIVEIRA, 2012). A casa pode parecer menos segura do que a rua para uma mulher que sofre violência doméstica. Ao mesmo tempo, a rua pode parecer mais acolhedora para quem está em estado de negação do problema que é a COVID-19, ou para quem a rua representa a possibilidade de suprir suas necessidades através do comércio e de atividades culturais, por exemplo.

Como demonstra Brum (2017), os deslocamentos também podem propiciar a atribuição de sentidos de lugar a determinados espaços percorridos em nosso cotidiano, tornando a mobilidade parte da experiência geográfica dos indivíduos na contemporaneidade, dotando-os de simbolismo e sendo fundamental para a “compreensão do envolvimento cotidiano das pessoas com os lugares e na experiência de mundo vivido” (BRUM, 2017, p.109). Além da mobilidade, a reunião – a capacidade de agregar pessoas e significações – é um dos aspectos do lugar (RELPH, 2012). Nesse sentido, podemos afirmar que a pandemia do novo coronavírus fez com que a rua perdesse, temporariamente, um pouco de seu sentido de lugar para as pessoas que cumprem à risca o isolamentoDigo “pouco”, pois ainda podemos nos apropriar das ruas através da memória afetiva e da imaginação esperançosa por dias melhores.

ALGUMAS REFLEXÕES... 

Se nos projetarmos ao futuro, é possível que as espacialidades pós-pandemia sejam diferentes das atuais. Daí, surgem alguns questionamentos: Se as ruas e demais espaços de lazer perderam momentaneamente seu potencial de reunião (RELPH, 2012), poderíamos afirmar que o espaço virtual da internet pode ter ampliado, então, seu sentido de lugar? Haverá uma acentuação do papel da reunião e da mobilidade na atribuição de sentido de lugar a nossos espaços vividos? Ou a experiência de isolamento social reforçará o sentido de lugar de nossas casas, levando-nos a uma claustrofilia (MELLO, 2012)? 

É provável que o contexto da COVID-19 tenha alterado o mundo vivido (BUTTIMER, 1985) e a relação afetiva de muitas pessoas com determinados espaços e lugares. Dessa forma, talvez alguns espaços que eram topofílicos tenham se tornado topofóbicos, evidenciando como a subjetividade nas/das relações humanas é fundamental para compreendermos geograficamente o mundo.  

Que possamos, ao fim desta pandemia, continuar nos reunindo e construindo nossos lugares nesse mundo, rompendo o isolamento e o medo do encontro!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRUM, J.L. Por uma interpretação humanista da relação entre lugar e mobilidade. Geousp – Espaço e Tempo (Online), v. 21, n. 1, p. 102-119, abril. 2017.

 

BUTTIMER, A. Aprendendo o dinamismo do mundo vivido. In: CHRISTOFOLETTI, A. Perspectivas da geografia. São Paulo: Difel, 1985. p. 165-193.

 

CASTELLS, M. A sociedade em redes.  São Paulo: Ática,1999.

 

COSGROVE, D. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: ROSENDAHL, Z.; CORRÊA, R. L. (orgs.) Geografia Cultural: uma antologia. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012. v. 1. p. 219-238.

 

MELLO, J. B. F. Dos espaços da escuridão aos lugares de extrema luminosidade: o universo da Estrela Marlene como palco e documento para a construção de conceitos geográficos. Tese (Doutorado em Geografia) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2000.

 

_____________. A Humanística Perspectiva do Espaço e do Lugar. Revista ACTA Geográfica, ano 5, n. 9, jan./jun. de 2011.

 

_____________. O triunfo do lugar sobre o espaço. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W; OLIVEIRA, L. de. (orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2012. p. 33-68.

 

OLIVEIRA, L. de. O sentido do lugar. In: MARANDOLA JR, E; HOLZER, W; OLIVEIRA, L. de. (orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2012. p. 3-16.

 

RELPH, E. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência do lugar. In: MARANDOLA JR., E.; HOLZER, W.; OLIVEIRA, L. de. (orgs.). Qual o espaço do lugar?: geografia, epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2012. p. 17-32.


TUAN, Y. Paisagens do medo. São Paulo: Unesp, 2005.

  

________. Espaço, Tempo e Lugar: um Arcabouço Humanista. Revista Geograficidade, v.1, n.1, jun./ set. 2011. 

 

________. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012. 

 

________. Space and Place 2013. Revista Geograficidade, v. 4, n. 1, jan./mar. 2014.


AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A REFERÊNCIA A SEGUIR:

SOUZA, Larissa Lima de. Reflexões fenomenológicas em tempos de coronavírus: entre espaços, lugares e “paisagens do medo”. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 94-99, maio de 2020

Submissão em: 30/04/2020. Aceito em: 23/05/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil 


[1] Professora de Geografia no Colégio Pedro II – RJ e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

[2] Agradeço ao colega Eduardo Vieira de Mello pela escuta, pela troca e pelo incentivo à escrita deste ensaio.