PANDEMIA, ESTUPIDEZ E DESPROTEÇÃO SOCIAL.

 

Edval Bernardino Campos[1]

Universidade Federal do Pará

edval.campos@hotmail.com

 


RESUMO: 

 

A pandemia do novo coronavírus é um fenômeno de dimensão social sem paralelo na história recente. Está desafiando à ciência a produzir respostas para mitigar seus efeitos lesivos; por outro lado, elucida a gravidade das políticas neoliberais em curso em vários países. Os dados indicam que as taxas de letalidade estão mais acentuadas nas sociedades em que a proteção social está submetida à lógica do mercado. 

 

Palavras-chave: Pandemia; Estupidez; Desproteção Social.

 


INTRODUÇÃO

O mundo encontra-se envolto em uma crise global de proporções e efeitos deletérios, sem paralelo na história recente da humanidade. A pandemia causada pelo novo coronavírus vem impondo restrições às atividades econômicas, redesenhando relações sociais, ressignificando os espaços urbanos e promovendo alterações na gramática social erguida nessas primeiras décadas do século XXI, fortemente marcado pela influência das mídias digitais e pela valorização das sinapses por plataformas virtuais.

Este vírus que atormenta trabalhadores, empresários, profissionais da saúde, governantes e pessoas comuns na maioria dos países, ocorre no curso de uma profunda crise estrutural do sistema capitalista, agravando as suas consequências e questionando as virtudes das diretrizes neoliberais que nos últimos anos empolgam e estimulam governantes de extrema direita no malsão empreendimento de destruição dos direitos trabalhistas em particular e, dos direitos sociais em geral.

Este artigo pretende refletir sobre possíveis conexões entre os efeitos da Covid-19, sua disseminação avassaladora e o elevado número de mortes, não obstante a sua letalidade proporcionalmente baixa quando comparada com outras epidemias, e o desmonte do estado de bem-estar social onde existia, e, na maioria dos casos, onde ele não se faz presente.

As questões que estimulam nossas reflexões são as seguintes: Existem relações causais entre os efeitos destrutivos do novo coronavírus e a destruição do Estado democrático de direitos, do Estado socialmente protetor? No caso brasileiro é possível estabelecer associações entre os efeitos da pandemia e o desmonte das políticas de proteção social patrocinadas pelo governo Temer (2016-2018) e incrementado no governo Jair Bolsonaro?

 

A PANDEMIA DA COVID-19

A crise provocada pela Covid -19 é, em sua essência, um fenômeno global, acelerado pela rapidez do mundo contemporâneo cujos circuitos de comunicações e interações proporcionam o encontro dos diversos sujeitos sociais em diferentes espaços em lapsos temporais exíguos. O novo coronavírus trafega na velocidade do mundo contemporâneo servindo-se dos agentes das várias iterações globais: econômicas, comerciais, artísticas, sociais, políticas, etc. O seu deslocamento ocorre no tempo e nos espaços em que as relações humanas medram e ilustram a fluidez, a dinamicidade, as virtudes e também as fragilidades de uma sociedade global, na qual os seres humanos estão progressivamente, sendo descartados e, por decorrência, destituídos dos fundamentos ontológicos de sua existência humana: a sua dimensão de ser social, de ser que se realiza nas experiências com o outro. As relações de convivência duradoura e solidariedade estão perdendo proeminência e cedendo lugar para práticas de individualização nutridas em convivências virtuais. 

Não há dúvidas que a crise provocada pelo novo coronavírus é muito grave do ponto de vista sanitário. Ela é, sobretudo, apavorante por elucidar as nossas indiferenças com o humano que há em nós e com o humano em geral, o ser social, coletivo, invisível nas entranhas da sociedade da concorrência desenfreada e da mercantilização da vida em todas as dimensões. A pandemia alerta-nos sobre as armadilhas da sociedade capitalista, ao denunciar que a humanidade não alcançará seus anseios civilizatórios, valorizando relações sociais tecidas por redes de competições desmedidas, estruturadas em fundamentos morais aliciadores do individualismo competitivo, do egoísmo sem culpa, da apropriação do trabalho alheio e do consumismo estéril.

A covid-19 também denuncia que o Estado moderno, enquanto instrumento da proteção do interesse público, está sendo erodido e, esse processo de desmonte do Estado desorganiza e ameaça destruir a “comunidade de semelhantes” sobre a qual ele se ergueu. O coronavírus como fenômeno social que é, prospera na ausência do Estado promotor de políticas públicas e protetor dos direitos e demandas da coletividade. A pandemia instala uma equação rica em paradoxos: por um lado, reclama a restrição da nossa movimentação nos espaços coletivos e impõe o isolamento social como estratégia de proteção sanitária; por outro lado, parece ensejar que a partir das restrições das interações coletivas com os indiferentes, possamos nos perceber como coletivo humano, cuja narrativa somente tem sido possível por nossas experiências gregárias. Poderemos cotejar o desenvolvimento de convivências sociais mais próximas das experiências solidárias forjadas nos laboratórios da sociedade salarial[i] ou o pós-pandemia nos devolverá ao palco do individualismo à la carte.[ii]

 

ESTUPIDEZ COMO EXPRESSÃO DE INDIFERENÇA

As lideranças políticas mundiais reagem e se pronunciam sobre a pandemia em conformidade com seus objetivos políticos, suas convicções ideológicas, seus interesses econômicos e, em circunstâncias específicas, movidos por interesses eleitorais. Não são determinantes éticos que em última escala orientam as ações dos governantes. Esta assertiva está amplamente comprovada empiricamente. Em alguns países (Estados Unidos da América, Itália, Espanha, etc.), onde prevaleceram às orientações de lideranças políticas conservadoras, avessas ao conhecimento científico, indiferentes à razão e negligentes com a vida humana, os efeitos da Covid-19 vêm se revelando danosos, dramáticos, promovendo tragédias inimagináveis para o século XXI.

O presidente Donald Trump (E.U.), por exemplo, como estandarte dessa leva de governantes indiferentes com os seres humanos, desdenhou das agências científicas, agrediu a imprensa, desqualificou a Organização Mundial da Saúde - OMS chegou a afirmar que “esse vírus é uma farsa”, etc. Ele e seus assemelhados, incluído, o presidente Jair Bolsonaro do Brasil, protelaram, ao limite, a mobilização dos recursos públicos para o enfrentamento da pandemia. O presidente do Brasil vem se notabilizando pela postura de desrespeito às orientações da OMS e com a política adotada pelo ministro da saúde do Brasil[iii]. Seu discurso e suas ações (incluindo a desobediência ao isolamento social, à agressão à imprensa, a crítica a governadores e prefeitos que operam políticas de isolamento), defendem a supremacia dos interesses econômicos em detrimento da proteção social e do direito à vida. 

O que explicaria tamanha indiferença com o sofrimento humano? Isto poderia ser explicado por uma deformação moral de alguém com elevado grau de soberba e egoísmo? Creio que a motivação é outra, e que por isso mesmo, não me parece alentador supor que a pandemia promoverá um processo de humanização das relações capitalistas. O que está em curso no mundo é uma crise estrutural do sistema capitalista. Entre as estratégias para o seu enfrentamento parece pouco plausível a reedição das experiências de Estado de bem-estar social. A fase contemporânea da economia mundial é fortemente marcada pela financeirização e pela concentração da riqueza. O metabolismo da ordem socioeconômica vigente, não apresenta sinalizações redistributivas; seus movimentos impõem mais restrições, sobretudo, no campo dos direitos sociais. A ordem econômica neoliberal é promotora de ataques às conquistas democráticas, particularmente, àquelas que propiciam mais inclusão social e maiores acessos aos instrumentos de poder político.

 

A DESPROTEÇÃO SOCIAL COMO FONTE DA LETALIDADE

A morte é um fenômeno que tem uma dimensão natural, orgânica e outra social. Redimensionado o axioma de Epicuro (2005) podemos afirmar que “a morte só está onde a vida não está”. A morte nessa ressignificação transpõe a dimensão da sensibilidade individual para ser apreendida como fenômeno social. O que estamos presenciando nos desdobramentos desta pandemia é a letalidade decorrente da desassistência, da desproteção, da carência de serviços públicos, da ausência de políticas universais de proteção social. Não é, exclusivamente a degradação da vida orgânica que predomina como fator determinante nos índices de letalidade decorrentes da Covid – 19. O fator causal na maioria dos casos, é a presença da morte evitável, é a morte resultante de opções políticas que privilegiam os interesses da rentabilidade econômica, que esvaziam os Estados das responsabilidades com o bem-estar social da população, com os direitos de cidadania conquistados ao longo do século XX. 

Em todos os países com alta mortalidade decorrente da pandemia há uma constatação comum: o esgotamento da estrutura responsável pela saúde pública, à ausência de políticas públicas. O governo de D. Trump, iniciado em janeiro de 2017, vem investindo sistematicamente na destruição de políticas de proteção social sob a responsabilidade do Estado, a saúde tem sido objeto de suas investidas em favor do mercado. O IDH deste país declinou no ranking da ONU, da 6ª posição em 2015 para a 15ª posição em 2018. Por outro lado, os dez países que lideram esse ranking, estão enfrentando a pandemia protegidos de tragédias, pânicos e tormentos. Em sua maioria, prevalecem os fundamentos do estado de bem-estar social.

O Brasil registrou um processo ascendente de melhoria do seu IDH entre 2010 e 2015. A partir de 2016, com a destituição da presidenta Dilma Rousseff e ascensão do presidente M. Temer em 2016, essa trajetória foi interrompida. Com a aprovação da EC nº 95/2016, há uma redução significativa nos investimentos na saúde, agravando-se no governo do presidente Jair Bolsonaro. O piso per capita da saúde vem decrescendo: em 2014 foi de R$ 595,00; em 2017, R$ 564; em 2019, R$ 558,00 e para 2020 o gasto orçado é de R$ 555,00. O orçamento para 2020 representa uma perda de R$ 20 bilhões em relação a 2019[iv].

É possível considerar, embora como hipótese a ser investigada, que a maioria das pessoas que está morrendo, no mundo e no Brasil em particular, não é determinantemente decorrente de um processo de esgotamento das condições fisiológicas; a letalidade na escala que está registrada decorre da ausência dos meios para assegurar o direito a viver. As pessoas estão morrendo em decorrência do esgotamento dos recursos públicas responsáveis pela proteção à saúde e à vida. No Brasil, por exemplo, até 25 de abril do ano corrente, o governo federal entregou apenas 17,5% dos leitos de UTI previstos para o atendimento das demandas decorrentes da pandemia.

Na geografia do poder institucional desenhada pelas lideranças neoliberais, o território dos direitos sociais é reconfigurado, representando uma tênue mancha das obrigações do Estado. As políticas públicas e aquelas de corte social serão confinadas às franjas periféricas das preferências políticas dos poderosos, não se constituindo, portanto, instrumentos para o reconhecimento e a efetivação de direitos de cidadania.

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. Petrópolis – RJ: Vozes, 1998;

 

EPICURO (341 a.C-270 a.C). Antologia de Textos de Epicuro. Tradução: Agostinho da Silva. São Paulo: Editora Abril Cultural, s.d. Os Pensadores

LIPOVETSKY, G. A era do vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Tradução: Terezinha M. Deutsch. Barueri – SP: Manole, 2005;

 


 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

CAMPOS, Edval Bernardino. Pandemia, Estupidez e Desproteção Social. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 69-74, maio de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 26/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.

 


[1] Diretor de Programas e Projetos de Extensão Universitária da Universidade Federal do Pará- Belém, PA-Brasil.


[i] Ver Robert Castel (1998).

[ii] Ver as instigantes reflexões de Gilles Lipovetsky (2005). 

[iii] Em decorrência das divergências públicas com o presidente Jair Bolsonaro o ministro Luiz Henrique Mandetta, defensor das recomendações da OMS, em 16 de abril 2020, o ministro foi destituído.

[iv] Dados disponíveis no Portal Brasil de Fato, em 21.02.2020.