A GEOGRAFIA EM DEFESA DA VIDA

 

Davi Teles Dietrich Lessa[1]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

davi.dietrich81@gmail.com

 

Ivaine Maria Tonini[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ivaine@terra.com.br


 

RESUMO: 

 

O artigo objetiva destacar uma geografia da solidariedade em defesa da vida. A partir de autores como Foucault (1999) e Mbembe (2016) serão analisadas as atuações necropolíticas do Estado e a geografia militante como alternativa de combate às políticas do governo brasileiro frente ao Covid-19. Este entrelaçamento teórico constata distanciamento de ações, onde a rede de solidariedade mostra como o ativismo político pode salvar vidas nos territórios subalternizados. 

 

Palavras-chave: Geografia militante; Necropolítica; Solidariedade.


 

A GEOGRAFIA DO TERROR

 

A grafia epidemiológica do coronavírus (Covid-19) marca o ano de 2020 e atinge fortemente a população mundial de países capitalistas ditos centrais e periféricos. As orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para combater o Covid-19 apresentam normativas que reconfiguram as relações socioespaciais dos centros urbanos: como o isolamento social, sendo a medida mais eficaz contra a infecção.

No Brasil, o número de casos confirmados já supera outros países que apresentam números vertiginosos de mortes[3]Foram confirmados 85.380 casos com 5.091 mortes até o fechamento desse artigo, em 30 de abril 2020, superando a China que foi epicentro da pandemia. Soma-se a esse quadro alarmante, a posição do presidente brasileiro Jair Bolsonaro (2019-2022) ao tratar o vírus como uma fantasia, uma gripezinha ou uma histeria da imprensa e de setores oposicionistas, jogando a população as incertezas futuras[4]. A negligência e a subserviência do governo ao capital, retratadas na Medida Provisória - MPV[5] (que autorizava a suspensão do contrato de trabalho) e na burocratização estatal (que emperra o auxílio emergencial de 600 reais a massa de precariados)[6], aprofundam a crise no país.

A população que mais sofre com a falta de investimento na saúde, consequência dos planos de austeridade, teme pelo déficit de leitos[7] em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), nos hospitais que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS), podendo colapsar o sistema nessa pandemia.  

Esta governamentalidade, que se desresponsabiliza de ações mais efetivas, sufoca o povo e alarga a subalternização periférica e negra brasileira. As pessoas em condições de moradia e de saneamento precarizados são os mais expostos ao Covid-19. A grande maioria da população negra concentra-se nesses territórios. Tais medidas, ou contramedidas[8], do governo autorizam os óbitos destes sujeitos, violando o direito constitucional à vida e viabilizando o racismo do Estado. 

 

 

 

 

A NECROPOLÍTICA DO ESTADO BRASILEIRO

Em tempos de crise humanitária, a biopolítica (FOUCAULT, 1999) deve ser compreendida, principalmente quando direcionada às periferias dos centros urbanos do país. Entende-se como uma tecnologia “[...] do poder sobre a população [...] o poder de fazer viver” (FOUCAULT, 1999, p. 294). Os corpos dos indivíduos são sujeitados à “[...] possibilidade de viver” e à “possibilidade de morrer” (FOUCAULT, 1999, p. 297). No caso dos subalternizados, deixa-se morrer.

As políticas defendidas pelo atual chefe do Estado privilegiam a parcela populacional elitizada, atacam com ódio os mais pobres e agravam a crise pandêmica quando o governo convoca estes últimos a saírem da quarentena e trabalharem, descumprindo as regras da OMS.

A governamentalidade do descaso com a vida, ao enfatizar a economia, está a serviço de salvar o lucro dos grandes empresários que querem continuar ganhando em meio à crise humanitária[9]. O discurso econômico deixa em segundo plano a vida de milhares de pessoas subalternizadas, mesmo sendo estas o alicerce socioeconômico do país. O capital necessita de pessoas para produzir a mais valia. Então, por que os trabalhadores, em sua maioria precariados, são aqueles colocados na linha de frente de contágio do Covid-19?

O atraso nas medidas de combate à crise sanitária e as ações contrárias às orientações da OMS regulamentam uma política de insegurança. Agrava-se a situação social com o adoecimento e a morte pelo Covid-19, principalmente das pessoas idosas e com outras enfermidades, além da população subalternizada. O primeiro grupo causa despesas previdenciárias ao Estado, e o segundo compõe a massa de precariadossujeitos descartáveis, pela racionalidade neoliberal. 

Foucault explica o “direito de matar” a partir do “velho direito soberano” sobre a vida e a morte, o qual funciona com “[...] os instrumentos, os mecanismos e a tecnologia de normalização” (FOUCAULT, 1999, p. 306). O governo brasileiro expõe a sua faceta nefasta, ao apropriar-se desse biopoder: governar sobre a vida e o temor à morte.

Este pensar relaciona-se ao Covid-19, pois os sujeitos que podem (devem) se isolar se diferem dos demais, pela proteção estatal e pela classe social. Os subalternizados são obrigados a trabalhar para a economia não quebrar, sem as garantias da proteção social do Estado. Isto evidencia a existência de uma soberania da morte a partir da seleção social de frações de classes.

A legislação estatal garante a manutenção da vida para todos. Contudo, em nome do capital, constrói-se um discurso de proteção de alguns a partir do trabalho compulsório de outros ameaçados pela discursiva do desemprego, sob o olhar vigilante do Estado e dos agentes neoliberais temerosos pelo lucro. 

O crescimento e o protagonismo das lutas periféricas nos centros urbanos alertam o neoliberalismo, o qual pressiona os governos a aplicarem a política da morte. Em tempos de pandemia, aciona-se o mecanismo do extermínio sob os inimigos ficcionais e reais que podem lutar contra o sistema hegemônico. Mbembe desenvolve o conceito de necropolítica para definir o modo contemporâneo colonial de matar, sendo uma forma específica do terror(MBEMBE, 2016).

Para Mbembe (2016), uma definição para esse genocídio passa pela relação bélica por excelência (resolver as coisas na bala) e pela ideia da racionalidade da vida atravessada pela morte do outro (quem são os bandidos que o governo teme?); ou que a soberania consiste na vontade e na capacidade de matar para possibilitar viver (quem deve trabalhar na pandemia para que o 1% elitista continue com o seu capital intacto?).

Portanto, expor as pessoas ao Covid-19, principalmente aqueles que necessitam trabalhar ameaçados pelo desemprego e sem a proteção do Estado, pode ser caracterizado como uma das faces da necropolítica. Na guerra contra o vírus global, escolhe-se intencionalmente quem vive e quem morre. Nesse caso, morre a parcela mais pobre com a condição de sublevação contra o Estado que a discrimina. É o segmento social que a instituição moderna deixa fatalmente à sorte.

Esse caldo de segregação, exclusão e diferenciação social indica o desrespeito à vida em comunidade e a falta de zelo pela saúde daqueles que detém a força do trabalho, subjugando-os e os explorando. Essas ações revelam a falta de empatia e de solidariedade aos subalternizados que sofrem coma espacialização racista e autoritária do Estado representa danas políticas do governo brasileiro.

 

A GEOGRAFIA DAS REDES DE SOLIDARIEDADE

É a Geografia ativa e militante através da qual a racionalidade neoliberal é enfrentada pela parte sensível e radical da coletividade humana. O individualismo e a economia acima das vidas são confrontados com as ações insurgentes e a desobediência civil. Afinal, a política oficial do governo para o enfrentamento à pandemia é o fim do isolamento social. 

Uma boa mostra dessa Geografia pelas vidas é a iniciativa do Instituto Marielle Franco[10]. No site está disponível o mapa Corona nas Periferias, cujo objetivo é dar visibilidade às ações não governamentais de combate ao Covid-19 nas favelas do Brasil.

A Geografia das redes de solidariedade é marcada pela empatia e pelas mobilizações sociais. É interligada pelas ações de coletivos autônomos e independentes, de associações de moradores e de indivíduos que se importam com a proteção à vida, seja através de ajuda financeira ou a partir de doações de cestas básicas de alimentos, materiais de higiene e limpeza, além de máscaras de proteção de tecido.

A pobreza que grafa os territórios periféricos é combatida nesse momento de crise epidemiológica pelo fluxo de empatia que vai ao encontro dos sujeitos subalternos, cujos problemas impactam suas vidas. Não podemos esquecer as ações dos próprios subalternos no ato de sobrevivência. Essa soma de forças conforma uma territorialidade contracorrente à governamentalidade desumana e necropolítica.

Cada ato solidário evidencia uma experiência em conjunto com quem sofre o apartheid social nas comunidades das favelas brasileiras. É sentir as “mãos” do Estado que, a serviço dos agentes econômicos, invisibiliza a saúde e o direito dos corpos periféricos, em sua maioria de negras e negras, ao segregá-los através da espacialidade racista.

 É urgente potencializar a força que emerge dos “debaixos”, para que através de suas estratégias possam viver ao invés de morrer. Entende-se que ocupam os espaços urbanos, com a sua força de trabalho e territorialidade emancipatória. É nesse sentido que a Geografia da resistência se distingue cientificamente. O seu ativismo solidário e insurgente explicita o seu posicionamento político. Aquela que mapeia e agrupa pessoas em diferentes partes do país em uma rede de protestos, como os panelaços[11]direcionados ao governo federal e às suas medidas necropolíticas.   

Os sujeitos que encampam essas frentes de ação conformam verdadeiros militantes geográficos ao acionarem a ciência da teoria para a ação. É a Geografia em movimento contínuo. Bartholl (2018) coloca a Geografia como uma ferramenta de luta que, constituindo uma mobilização social, dimensiona a resistência dos subalternizados e tensiona o poder por mudanças estruturais. A Geografia da resistência se territorializa, defende a vida e se dirige à população dos precarizados, dos periféricos, das minorias e outras tantas que necessitam de proteção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BARTHOL, T. Por uma Geografia em movimento: A ciência como ferramenta de luta. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.

 

FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976)/ Michel Foucault: tradução Maria Ermantina Galvão - São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

MBEMBE, A. Necropolítica. Revista Arte e Ensaios: programa de pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ.Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez.2016. Disponível em: <https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993> Acesso em: 30 mar. 2020.

 

 

 


 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

LESSA, Davi Teles Dietrich; TONINI, Ivaine Maria. A Geografia em defesa da vida. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 57-62, maio de 2020.

Submissão em: 02/05/2020. Aceite em: 24/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.

 


[1] Mestrando em Ensino de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Porto Alegre, RS-Brasil.

[2] Professora do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Porto Alegre, RS-Brasil.

[3] Disponível em: <https://covid.saude.gov.br/>. Acessado em 30 abr. 2020.

[4] Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-25/isolamento-vertical-proposto-por-bolsonaro-pode-acelerar-contagios-por-coronavirus-e-comprometer-sistema-de-saude.html>. Acessado em 12 mai. 2020.

 

[5]MPV nº 927, de 22 de março de 2020. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/Mpv/mpv927.htm>. Acessado em: 23 de mar. 2020.

 

[6]Definido como o proletariado precarizado, o conceito de "precariado" situa esse grupo como parte integrante da classe trabalhadora, enfatizando a precariedade como inevitável no processo de mercantilização do trabalho. Constituída por jovens-adultos (podendo ser altamente escolarizados) com inserção precária nas relações de trabalho e vida social. Disponível em: <https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/a-politica-do-precariado-411>. Acessado em: 29 abr. 2020.

 

[7]Espanha e Itália, recordistas de mortes pelo novo coronavírus, têm perto de 3 vagas de hospital para cada mil pessoas. O Brasil, só 1,95.Disponível em:<https://super.abril.com.br/saude/grafico-a-quantidade-de-leitos-hospitalares-ao-redor-do-mundo/>. Acessado em: 29 abr. 2020.

 

[8]Como exemplos temos aprópria MPV 927 já citada e a forma como ocorreu o processo de sancionamento, cadastramento e saque do auxílio emergencial (de apenas 3 meses sendo que a previsões apontam que a pandemia no Brasil atravessará o 2º semestre) autorizados pela lei 13.982/20 (primeiro o governo ofereceu somente 200 reais e por pressão dos movimentos sociais e partidos de oposição, fechou em 600 reais). Houve atraso na aprovação da lei, muitos brasileiros em situação de vulnerabilidade não receberam o auxílio e depois o governo chegou a negar o pagamento da segunda parcela.

[9] Os empresários têm realizado carretas em todo o Brasil pelo fim da quarentena. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/04/30/sem-responsabilizacao-por-mortes-dizem-empresarios-contra-quarentena.htm>. Acessado em: 12 mai. 2020.

[10]O Instituto Marielle Franco é uma organização sem fins lucrativos, criada pela família de Marielle, com o objetivo de buscar justiça sobre o caso, defender a memória da vereadora, multiplicar o legado deixado por ela e regar as sementes que surgiram após o covarde assassinato que tirou a sua vida e a do motorista Anderson Gomes no dia 14 de Março de 2018. Disponível em: <https://www.institutomariellefranco.org/>. Acessado em: 12 mai. 2020.

[11] Manifestantes batiam panelas em suas casas, ao repudiar as medidas tomadas durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (2020), assim como as suas declarações sobre a pandemia. Os panelaços eram divulgados pelas diferentes mídias. Os panelaços tem sido diários desde o dia 15 de março. Disponível em:<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/27/sao-paulo-registra-panelaco-contra-bolsonaro-pelo-11-seguido.ghtml> Acessado em 12 mai. 2020.