ESPIRAL CAPITALISTA E GEOGRAFIA EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Lai Bronzi Rocha[1]

Universidade Federal Fluminense

bronzi_rocha@id.uff.br

 


RESUMO: 

O presente ensaio é uma reflexão geográfica crítica acerca da dinâmica capitalista em tempos da Pandemia de COVID-19. Nos centramos a partir do texto Políticas anticapitalistas em tempos de covid-19, escrito pelo professor David Harvey, e conversamos com outros autores geógrafos para discutir fluxosglobalização e destrinchar a espiral capitalista de Harvey. 

 

Palavras-chave: Crise; Capitalismo; Pandemia; Coronavírus.


 

Em tempos de crise como a que vivemos, consequente da Pandemia de COVID-19, partilhar as leituras da conjuntura são imprescindíveis. Quando olhamos para a dramática situação nos vemos motivados a discussão. Estamos em um mundo altamente conectado, rodeados por aparelhagens de comunicação que nos bombardeiam informações, sendo provocados a todo tempo a emitir opiniões, e, muitas vezes, influenciados por nossas bolhas virtuais. É crucial se manter informado, e sobretudo, é importante cuidar para que intuição não se confunda em formação, e nos atentamos especialmente às interpretações críticas, então propomos um momento reflexivo.

Aqui, nos centraremos em uma análise com base no texto publicado por David Harvey em meio a Pandemia do novo coronavírus, intitulado Políticas Anticapitalistas em Tempos de COVID-19, conversando também com autores geógrafos para que junto ao leitor apuremos nossa reflexão. Isso, para que, ao mesmo tempo que refletimos sobre a atual conjuntura pandêmica resgatemos alguns conteúdos de Geografia. 

Harvey irá dizer que tem analisado a COVID-19 perante os noticiários em dois níveis, o primeiro são as características de circulação e acumulação vigentes, ou seja, o “modelo da economia capitalista como uma espiral de expansão e crescimento sem fim”, e outro que está “inserido em um contexto mais amplo de reprodução social” dependente de um entendimento das formações sociais distintas “que as populações humanas normalmente criam através do espaço e do tempo” englobando diferentes formações históricas e geográficas. Sendo assim, entende-se que o capitalismo é o modelo econômico hegemônico, mas que conta com formatações específicas. 

O modelo espiral de Harvey exprime uma ideia quase ilustrada do crescimento e expansão do capitalismo (Figura 1). O espaço do capital estabelece fluxos que possibilitam sua expansão e crescimento. Neste sentido, redes, circulação e globalização se tornam conceitos chave da geografia do mundo de hoje. E a globalização como entendemos aqui, não se dá como fábula (SANTOS, 2000) ou como “o fascínio de um mundo sem fronteiras” como ironiza Porto-Gonçalves (2006, p. 14). Abordamos a globalização enquanto o mundo se tornando uma escala territorial de interação, e esta por sua vez motivada por desejos capitalistas. 

 

Figura 1 – Ilustração Espiral Capitalista: Expansão e Crescimento. 

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Organizado por: Bronzi Rocha.

 

 

O nível de globalização da economia, estruturado em cadeias produtivas que se encontram fragmentadas no espaço, está em um estágio em que todos os atores estão conectados em rede e nutrem uma relação de dependência, direta ou indireta. O primeiro momento do surto localizado em Wuhan foi desprezado pelo empresariado e mídia internacional, quando se falava de um surto que ocorria no Oriente dava-se a entender que era um problema concentrado naquela região, e talvez impactando apenas a economia chinesa.  

O capital precisa se manter em circulação, e isso consiste tanto na circulação de mercadorias como na circulação de pessoas. O estágio de aceleração na comunicação entre os territórios, com as pontes aéreas e conteinerização, ocasionam uma “compressão de tempo-espaço [que] refere-se ao movimento e à comunicação através do espaço” (MASSEY, 1991), e “à extensão geográfica das relações sociais”, são essas interações que alimentam espiral capitalista de expansão e crescimento sem fim. Assim, ao interromper o fluxo das redes de interação para conter ou retardar o espalhamento da doença, tendo de haver bloqueios continentais e entre países, significa um retardo no fluxo da produção e reprodução do capital que culmina em desvalorizações monetárias e disso resulta o efeito dominó de depressão econômica global.

Sobre as origens da relação humana com o modelo de produção vigente um “fato é que o capital nasce na história subvertendo o modo de vida comunitário dos homens”, dividimos e isolamos os processos de trabalho. Observa Moreira (2009) que “alienada, a existência humana reproduz-se ao ritmo da reprodução do capital”, de forma combinadas e indissociáveis. A reprodução da vida humana e a reprodução do capital retroalimentam a existência uma da outra. 

Contanto, a “alienação é assim a forma ontológica do homem no capitalismo” e nos processos produtivos transformamos a primeira natureza (natureza natural) em segunda natureza (natureza socializada). Esta transformação decorre do trabalho, mas sua noção de natureza socializada se dá em um plano abstrato, mas que admitimos enquanto concretude histórica. O espaço do capital tem em sua essência os processos produtivos e socializantes, encobrem-se nestes a natureza primeira. 

As cidades são o símbolo concreto do império global do capital, são ambientes criados pela humanidade que ao confundir sua reprodução com a do capital persegue a lógica contínua de superação da natureza primeira. Esse constante domínio esbarra na Pandemia de COVID-19 e com a condição frustrante do prelúdio de uma crise sem solução imediata. Seria a própria dinâmica do capital, deslocando pessoas e mercadorias, que estaria promovendo a Pandemia, ou seria o vírus se impondo ao espaço do capital? O vírus pelo vírus ou o vírus pelo capital? 

O novo coronavírus só se espalha por ter um ambiente favorável para isso, ou seja, se está abalando a economia e a sociedade tendo seu contágio disseminado rapidamente é por conta de condições pré-existentes que asseguram esse ambiente favorável ao seu espraiamento. Neste sentido, as cidades, sobretudo as metrópoles, por serem grandes contingentes humanos e contarem com alta densidade demográfica, são fator propício para a rápida disseminação do vírus que tem propagação similar a uma gripe ou resfriado. 

Neste contexto de globalização e compressão tempo-espaço, a rede de interação entre cidades globais possibilitou ao vírus uma disseminação espacial descontínua (por pontes aéreas), que somada ao rápido espraiamento espacial contínuo (in loco e regional) teve os componentes perfeitos para uma disseminação centrífuga, veloz e em escala global. A disseminação espacial descontínua da doença se deu pelas camadas sociais mais ricas da sociedade, aqueles que usufruem dos fluxos e acessos. Já se observava que 

 

A “compressão de tempo-espaço” envolvida na produção e na reprodução das vidas cotidianas dos abastados das sociedades do primeiro mundo – não apenas suas próprias viagens, mas os recursos que trazem consigo, de todas as partes do mundo, para abastecer suas vidas – pode acarretar consequências ambientais ou promover restrições que limitarão a vida dos outros antes de afetar suas próprias existências. (MASSEY, 1991)

 

 

A partir da crise econômica de 2007/2008, houve uma mudança na orientação da produção e do consumo, dirigindo os investimentos a um consumismo baseado na venda de produtos que possam ser experienciados, sendo incentivados o setor de viagens aéreas, turismo, grandes eventos (esportivos e religiosos) e a indústria cultural, atividades que consistem na aglomeração e circulação de pessoas. Assim, ao interromper os fluxos e trânsito acaba por afetar também o setor do trabalho informal, chamada uberização do trabalho. Os trabalhadores autônomos têm sua fonte de renda atrelada a circulação de pessoas e mercadorias, não possuem salários fixos e sua renda depende das práticas espaciais motivadas pelo consumo.

O maior impacto em economias que perseguem o neoliberalismo põe em dúvida suas premissas de restrição da presença do Estado e políticas públicas de assistência social. Por exemplo, a privatização dos mecanismos de saúde fez a contabilidade de mortos saltar vertiginosamente nos EUA. O país tem liderado o número de contaminados e de mortos pela COVID-19 tornando-se o novo epicentro mundial[2]. Nota-se, além da saturação do sistema de saúde pelo surto do número de casos, famílias se endividando para poder ter acesso ao tratamento da doença[3]

No oriente “medidas tomadas para confinar geograficamente o vírus foram draconianas”, o que podemos interpretar como um enfoque no fazer viver dos governos autoritários da China, Coreia do Sul e Taiwan, com medidas de contenção da dispersão do vírus muito mais duras, ou seja, uma biopolítica de gestão dos corpos muito mais rígida. Enquanto no ocidente percebe-se que a lógica voltada para uma necropolítica, isto é, deixar morrer, fez com que lideranças de países como EUA e Brasil ocultassem a verdadeira ameaça, descreve Harvey que “por razões políticas, econômicas e culturais”. Agora, nestes países, vemos a curva de crescimento escalar em números de contaminados e mortes, ao passo que os governos asiáticos que optam por medidas mais autoritárias atingem o controle do surto, com menores números de mortes por covid-19. 

Entendendo que a sociedade é estratificada em classes sociais, e que apesar do vírus agir por ordem natural de contágio, assim que incorporado na dinâmica de nossa sociedade passou atuar sob a organização social. O vírus de primeira natureza é transformado em segunda natureza por interação com os processos produtivos, ele é socializado. Por isso, as já existentes injustiças e desigualdades sociais se potencializam com a pandemia, por exemplo, os serviços de cuidados como enfermagem, cuidadores, trabalhadores de serviços essenciais são exercidos por pessoas com recorte de classe, cor e gênero. 

A suspensão do trânsito de atividades econômicas tem efeitos imediatos nitidamente perceptíveis como o céu mais limpo, ou, enquanto a humanidade se confina dentro de suas residências outras espécies ocupam as ruas e cursos d’água agora já não tão poluídos. Mesmo que seja involuntária e não uma mudança do modelo produtivo, é indiscutível que sua ocorrência não seja positiva. Harvey expõe ainda que a contagem de mortos (por ser uma doença mais fatal aos idosos) pode vir a corrigir a pirâmide etária aliviando a Previdência Social. 

Portanto, a Pandemia evidencia a dinâmica capitalista e emergências sociais. Pode emergir uma nova racionalidade pós pandemia, que se expressaria em uma transformação cultural significativa? O espaço para Milton Santos é um acúmulo de tempos, e essa Pandemia certamente é um marco temporal que deixará marcas espaciais. É muito utópico, e neste ponto discordamos de Harvey, estar ocorrendo o início da implosão da espiral capitalista. No entanto, ao revelar que políticas públicas sociais são eficazes porque anticapitalistas, talvez a crise provoque um estalo de consciência social. Nenhuma mudança positiva será provocada se não partir de pressões e expressões populares coordenadas. 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

HARVEY, D. Políticas anticapitalistas em tempos de COVID-19. In: DAVIS, M. et alCoronavírus e a luta de classes. Brasil: Terra Sem Amos, 2020, p. 13-23. E-book.

 

MOREIRA, R. O que é geografia? 2. ed. rev. e atual. [S. l.]: Coletivo Território Livre, 2009.

 

PORTO-GONÇALVES, C.W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 11-17.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000. 

 

MASSEY, D. Um sentido global do lugar. In: ARANTES, A. (Org.). O espaço da diferença. Campinas, SP: Papirus, 2000, p. 176-188.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

ROCHA, Lai Bronzi. Espiral capitalista e geografia em tempos de pandemiaRevista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 5, nº 10, p. 56-61, julho de 2020.

Submissão em: 04/05/2020. Aceite em: 09/06/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil                                                                                                                                  


 


[1] Graduande em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) – Niterói, Rio de Janeiro.
 

[2] EUA superam Itália em número de mortos, com Nova York no epicentro da pandemia. El País. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-11/eua-superam-italia-em-numero-de-mortos-com-nova-york-no-epicentro-da-pandemia.html>. Acessado em: 29 de março de 2020.

[3] Custo com coronavírus pode levar famílias à falência nos EUADisponível em: <https://pfarma.com.br/noticia-setor-farmaceutico/saude/5175-custo-coronavirus-eua.html>. Acessado em: 29 de março de 2020.