26 vicente

                                                     

 

 

PENSANDO A CIDADE PÓS-PANDÊMICA

 

Vicente Brêtas[1]

Universidade Federal Fluminense

vicente.bretas@gmail.com

 


 

RESUMO: 

 

O artigo traz questionamentos embrionários que afloram na esteira da crise viral de 2020. Com foco na maneira através da quais indivíduos e grupos sociais se espacializam face à ameaça de contágio, buscou-se explorar os efeitos do medo da proximidade humana na vida gregária e a possibilidade do surgimento, a nível global, de novos arranjos de segregação urbana. 

 

Palavras-chave: Isolamento social; Segregação; Cotidiano urbano.

 


INTRODUÇÃO

No corolário da disrupção rítmica desencadeada pela atual crise pandêmica há um conjunto de desdobramentos cujos rebatimentos geográficos devem ser analisados com atenção. As ruas esvaziadas são categórico atestado da grave situação que o mundo enfrenta. Em seu avanço, o SARS-Cov-2 promove alterações na maneira através da quais indivíduos e grupos sociais se relacionam espacialmente, privando a paisagem urbana do elemento corpóreo que a dinamiza e que lhe fornece calor e movimento.

Termo imperativo do corrente debate público, o isolamento social implica a restrição da circulação cotidiana, o esvaziamento de espaços públicos e a constituição de corporeidades retraídas e sociabilidades cibernéticas. O que hoje se desenrola em metrópoles ao redor do mundo é, parece-nos, manifestação imperiosa e radicalizada de uma tendência que de maneira alguma se inaugura com a pandemia que assola o sistema global. De certa forma, o isolamento do indivíduo urbano e de suas experimentações espaço-temporais é produto de um movimento que não se inaugura na esteira das medidas de quarentena postas em prática por autoridades ao redor do mundo, mas que, com elas, atinge as últimas consequências.  

Termo imperativo do corrente debate público, o isolamento social implica a restrição da circulação cotidiana, o esvaziamento de espaços públicos e a constituição de corporeidades retraídas e sociabilidades cibernéticas. O que hoje se desenrola em metrópoles ao redor do mundo é, parece-nos, manifestação imperiosa e radicalizada de uma tendência que de maneira alguma se inaugura com a pandemia que assola o sistema global. De certa forma, o isolamento do indivíduo urbano e de suas experimentações espaço-temporais é produto de um movimento que não se inaugura na esteira das medidas de quarentena postas em prática por autoridades ao redor do mundo, mas que, com elas, atinge as últimas consequências.  

A VIDA URBANA E O MEDO

De maneira mais ou menos subterrânea, mais ou menos dissimulada, uma das mais significativas dinâmicas socioespaciais urbanas na contemporaneidade tem sido, afinal, a radicalização da segregação e do distanciamento entre concidadãos (MOREIRA JÚNIOR, 2010). Consideremos, por exemplo, a produção de inebriantes cenários de consumo que constrangem valores de uso tradicionais, o emprego de tecnologias cada vez mais insidiosas de vigilância e controle da circulação nas cidades ou o afloramento de enclaves e complexos residenciais fechados, quase autossuficientes. Estas dinâmicas de maneira alguma podem ser vistas como novidade, sendo tendência nas metrópoles do Norte e do Sul Global. No caso brasileiro, temos testemunhado também o despejo de comunidades vulnerabilizadas e seu realocamento para conjuntos residenciais nas periferias urbanas e o emprego, em favelas, de táticas militares que impõem verdadeiros cercamentos territoriais aos grupos sociais pobres e marginalizados.  

Torna-se evidente que entre as forças motrizes destes movimentos está a instrumentalização do medo, na forma do que Caldeira (2000) caracteriza como fala do crime: grupos são isolados (ou autoisolam-se) em função de uma fixação quase patológica com a segurança. Esta torna-se meio e fim, palavra de ordem para autoridades e objeto de desejo das classes médias e altas, inscrevendo-se nos postulados do planejamento, da arquitetura e transbordado para própria ordem cotidiana das ruas. Paga-se bem para sentir-se seguro. O pânico em relação à criminalidade e à violência promove cisões no que se refere à convivência nos espaços públicos. Tais cisões vêm fragmentando as experimentações de espaço e tempo nas cidades, pois promovem uma progressiva erosão da gregariedade que baliza a própria noção de vida urbana  

Cavaletti (2010) aponta que em um primeiro momento foi o medo, a busca pela proteção ante uma exterioridade que não era compreendida ou domesticada, que fez conformar os agrupamentos humanos que mais tarde se tornariam as cidades. O autor situa, na origem do processo de urbanização, a busca pelo refúgio “por qué, en otros términos, urbanización e civilización coinciden precisamente en nombre de la seguridad” (pg. 43). Nesta perspectiva, o sentimento de medo é dotado de uma energia criadora, construtiva. A aglomeração humana, componente básico da vida gregária, instaurou a segurança necessária no coração das sociedades antigas, possibilitando a complexificação de seus espaços sociais. Se a fala do crime, por outro lado, situa o medo enquanto força destrutiva desta gregariedade, a pandemia vai mais além. 

O corrente cenário parece trazer consigo uma atualização do sentimento de medo, que atinge de maneira significativa este lócus da aglomeração chamado cidade. Um medo que provoca não uma contínua apreensão em face à perspectiva de um assalto à mão armada mas que, dotado de contornos puramente biológicos, põe à prova a própria integridade orgânica da vida. Ao postular que a crise pandêmica estimula uma degeneração do contato pessoal e das relações de proximidade, suspensas em face ao medo do contágio, Agamben (2020) evoca a figura dos untadores, que em idos do século XVI espalhavam óleos infectados pelos becos e casas de uma Milão assolada pela peste. Em seu curso pela cidade estes levavam, de forma anunciada, a pestilência ao público e ao privado. Espalhavam não apenas a doença propriamente dita, mas também uma sensação de temor latente. Atualmente, no curso da pandemia, cada cidadão torna-se um untador em potencial. A diferença se situa no fato de que os antigos podiam ser encarcerados, dada a condição exteriorizada de sua ação. Hoje, ao contrário, o vetor do morbo é um indivíduo qualquer que pode contagiar, sem que ele mesmo ou outros saibam, dezenas de pessoas. Esta virtualidade do perigo traz implicações importantes no que se refere à maneira como nos relacionamos com o outro e com o espaço circundante: em face ao medo do contágio “nuestro proximo ha sido abolido” (AGAMBEN, 2020).  

As políticas de isolamento social tornam-se, neste sentido, a alternativa preferível nos esforços de frear o ritmo de infecções por um vírus ainda pouco compreendido pela comunidade científica. Tomam uma série de roupagens em diferentes países, culminando, em muitos casos, no lockdown horizontal imperativo. Tão logo o pico de infecções passarem, tais medidas deverão ser suspensas. Resta saber se a abolição do próximo que nelas se inscreve é temporária ou definitiva, e, caso temporário, se será superada num rompante súbito ou de maneira gradual. Afinal, como imaginar nossas cidades se a aversão às aglomerações e demais contatos corpóreos que configuram o cotidiano urbano perdurarem como uma espécie de efeito residual deste “choque psicótico-viral” (BERARDI, 2020)?  

A CIDADE PÓS-PANDÊMICA: NOVAS DISTÂNCIAS

Caso perdure no mundo pós-pandêmico, o medo da proximidade humana pode provocar uma inflexão duradoura nas maneiras de viver e experimentar os espaços e tempos nas cidades, sinalizando o afloramento de formas de sociabilidade que, fundamentalmente apartadas, podem vir a provocar a atrofia dos espaços públicos. O locus da congregação se tornará irremediavelmente cibernético, bem como o do entretenimento, do ensino e do trabalho. O princípio da gregariedade estará fadado ao declínio na cidade privada de encontros, pois esta irá dissipar as relações de vizinhança e proximidade ao levantar novos muros entre concidadãos. O ritmo das ruas, em sua condição dialética de “unidade na diversidade” (LEFEBVRE & REGULIER, 1985), se tornará cada vez menos heterogêneo, apontando para o surgimento de novas geografias da vida urbana.  

O efeito de abolição do próximo suplanta canais de constituição e sustentação de sociabilidades horizontais, uma vez que o pré-requisito destas é a multitude de relações pessoais e coletivas que são costuradas em espaços de circulação, encontro e convivência nas cidades. As paredes e muros que encerram os espaços privados e as tecnologias de informação que agora mediam a relação de seus habitantes com o mundo exterior tornam-se barreira última contra o terror biológico que espreita nas ruas. Nesse sentido, o espaço privado passa a delimitar os próprios limites físicos da experimentação da vida pelas classes médias e altas. 

Qual será o destino da cidade onde os habitantes rejeitam o contato e o encontro? Praças e parques, por exemplo, constituem-se enquanto importantes pontos de movimentação e organização política na forma de atos e protestos. Bares, restaurantes e cafés — os “coágulos humanos” — também tem papel central no processo histórico de conformação da sociabilidade urbana contemporânea (SENNETT, 2008). Pode-se antever o advento de uma cidade sem ágora, desprovida de elementos pulsantes. Escritórios de design e arquitetura já se debruçam sobre as remodelações que o ambiente construído irá ter de atravessar para que as aglomerações e o contato físico sejam inibidos (HONEY-ROSES et al. 2020), apontando para a operacionalização de novas técnicas de controle sobre a circulação dos corpos nos espaços públicos.  

Tais movimentos suscitam reflexões acerca das disparidades socioespaciais, em especial nos países do capitalismo periférico. A cidade pós-pandêmica pode fazer surgir novos padrões de segregação e precarização das condições de reprodução da vida de grupos já marginalizados. Em um país como o Brasil, onde inexiste consenso transclassista acerca da dignidade humana e a cidadania plena é historicamente negada a uma numerosa massa de trabalhadores, racializados em sua maioria (SOUZA, 2003), essa “ralé estrutural” (pg. 72) terá seu direito à segurança na forma do isolamento negado, pois suas formas de trabalho estarão intimamente ligadas à sustentação da distância social: entregadores de aplicativo, garis e terceirizados, por exemplo, seguirão circulando nas cidades, expostos ao medo biológico do contágio e à insegurança contínua. Este novo ordenamento das dinâmicas de exploração de certos corpos pode fazer aflorar uma nova disposição necropolítica (MBEMBE, 2016), na qual o trabalhador pauperizado, tido como sub-humano pelas classes dominantes, converte-se em uma espécie de máquina de morrer.

Assim, a segregação urbana não se esgotará na distância física entre áreas periféricas e privilegiadas, tampouco na oposição entre enclaves fortificados e aglomerados de exclusão (CALDEIRA, 2000) (HAESBAERT, 2004): a exposição da integridade biológica de populações marginalizados por meio de uma mobilidade servil e compulsória, contraposta aos “luxos” do home-office ou do homeschooling, será fator de sustentação de dinâmicas de controle e distinção socioespacial, baseadas na oposição entre corpos entrincheirados e corpos expostos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo não se propõe a tecer explicações imperativas, posto que produto de reflexões recentes, mas, em que pesem suas limitações, busca levantar provocações acerca dos porvires da vida urbana global. O texto busca antever possíveis rebatimentos espaciais da abolição das relações de gregariedade nas cidades. Caso venham a manifestar-se, entretanto, tais rebatimentos estarão sujeitos a constrições de cunho sociocultural, político-institucional e histórico, o que implica reconhecer que diferentes contextos geográficos apresentarão diferentes trajetórias de inflexão da realidade. Nesse sentido, as lacunas presentes nas reflexões aqui abordadas apontam para a necessidade de investigações empiricamente ancoradas que tratem dos efeitos do surto psicótico-viral em diferentes contextos urbanos. Caso o efeito de abolição do próximo se mantenha e se generalize o que nos aguarda no futuro próximo é uma urbe estéril, desprovida da pulsação da gregariedade. Como um organismo que, ao se defender de um vírus desconhecido, ativa suas defesas e provoca uma inflamação fatal. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, G. Contágio. Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemia, n. 1, abr-2020, pp. 31-35.

BERARDI, F. Crónica de la psicodeflación. Sopa de Wuhan: Pensamiento contemporáneo en tiempos de pandemia, n. 1, abr-2020, pp. 35-55, 2020.

CALDEIRA, T. P. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34, 2000.

 

CAVALETTI, A. Mitología de la Seguridad: la ciudad biopolítica. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2010.

 

HAESBAERT, R. Territórios, redes e aglomerados de exclusão. In: O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, pp. 279-336.

 

HONEY-ROSES, Jordi, et al. “The Impact of COVID-19 on Public Space: A Review of the Emerging Questions.” OSF Preprints, apr-2020.

 

LEFEBVRE, H; RÉGULIER, C. The rhythmanalytical project. Communications, n. 41, 1985, pp. 191-199.

 

MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, n. 32, 2016, pp. 123-151.

 

MOREIRA JUNIOR, O. Cidade Partida: segregação induzida e auto-segregação urbana. Caminhos de Geografia, vol. 11, n. 33, 2010, pp. 1-10.

 

SENNET, R. Individualismo Urbano. In: SENNET, Richard. Carne e Pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: Record, 2008, pp. 259-286.

 

SOUZA, J. (Não) Reconhecimento e subcidadania, ou o que é ''ser gente''?. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 59, 2003, pp. 51-73.


AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

SANTOS, Vicente Brêtas Gomes dos. Pensando a cidade pós-pandemia. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 168-173, maio de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 27/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.


[1] Bacharelando em Geografia da Universidade Federal Fluminense - Niterói, RJ-Brasil.