Jeferson

                                                     

                       

CEARÁ E PANDEMIA DE COVID-19: NOVOS (VELHOS) DESAFIOS DAS REDES DOS SERVIÇOS DE SAÚDE

Jefferson Santos Fernandes[1]

Universidade Federal do Ceará

jefferson.geo.fernandes@gmail.com 

 

José Borzacchiello da Silva[2]

Universidade Federal do Ceará

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 
borzajose@gmail.com

 

Alexsandra Maria Vieira Muniz[3]

Universidade Federal do Ceará
geoalexsandraufc@gmail.com


RESUMO: 

 

A pandemia causada pela Covid-19 trouxe à tona importantes questões sobre a organização do espaço em redes. Neste trabalho, analisamos as redes dos serviços de saúde no estado do Ceará através de estudo bibliográfico, análise estatística e construção de mapas temáticos. O desequilíbrio da rede urbana cearense e a desigualdade socioespacial são fatores agravantes no combate à doença. O momento é de grave crise de saúde pública, econômica e social. 

 

Palavras-chave: Ceará; Redes; Covid-19.


 

INTRODUÇÃO

 

A pandemia causada pelo novo Coronavírus tem nos mostrado que são muitas as variáveis e fatores incidindo sobre o processo de disseminação da doença. É preciso transversalidade no olhar sobre esta crise mundial de saúde. Neste trabalho, analisamos as redes de serviços de saúde no território cearense, no atual contexto de combate à Covid-19, com uma discussão sobre a rede urbana e a organização regional da saúde. Para tanto, realizamos pesquisa bibliográfica, análise estatística dos acontecimentos recentes e construção de mapas temáticos.

Os fatos vêm evidenciando que o avanço da Covid-19 no Brasil tem seguido um padrão espacial hierárquico. As interações na rede urbana explicam a rapidez com que o vírus se espraiou e atingiu, especialmente, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. O Ceará é o terceiro estado com o maior número de casos confirmados e de óbitos. O cenário epidemiológico em Fortaleza, capital do estado, é bastante crítico e o vírus se propaga de forma acelerada para a região metropolitana e cidades do interior. A narrativa agora é do distanciamento social, funcionamento apenas dos serviços essenciais e proteção dos grupos de risco. O Sistema Único de Saúde (SUS), está diante do maior desafio desde a sua criação em 1988. A ciência tenta cruzar a linha de chegada na corrida por uma vacina. São tempos de angústias e incertezas. 

 

O DESVELAR DAS REDES

Somos hoje uma sociedade urbana. Estamos mais concentrados espacialmente e a mobilidade espacial é muito maior do que em períodos anteriores. Especialistas em saúde já alertavam para os riscos de uma pandemia e a rapidez com que os diferentes países do mundo seriam atingidos devido ao intenso fluxo aéreo. A sociedade burocrática de consumo dirigido (LEFEBVRE, 1970), vê atualmente na circulação de pessoas um grave problema. A velocidade da integração econômica aumentou a velocidade da integração biológica, por isso, entender a organização do espaço em redes é peça-chave no atual momento.

Uma rede, de maneira geral, é uma malha constituída de traços e nós em conexão (DIAS, 1995). A rede urbana constitui um tipo particular de rede, sendo um “conjunto de centros urbanos funcionalmente articulados entre si” (CORRÊA, 2006, p. 08). No setor saúde é a rede urbana que articula os serviços e usuários localizados em diferentes pontos do território. 

No Brasil, o acesso aos serviços de saúde sempre foi problemático devido a fatores de ordem física, social e política. As disparidades regionais, resultantes da divisão territorial do trabalho, produzem dialeticamente espaços luminosos e espaços opacos (SANTOS, 1996). A maioria dos municípios brasileiros não dispõem de recursos suficientes para atender a demanda da população, e é nesse cenário que a regionalização ganha destaque, pois consiste na articulação em rede de municípios que compartilham a infraestrutura médico-hospitalar. 

No Ceará, o desequilíbrio da sua rede urbana, marcada pelo domínio da capital Fortaleza e a presença de poucos núcleos urbanos intermediários no interior, explica a distribuição regional dos equipamentos de saúde. Atualmente, o território cearense está dividido em 05 macrorregiões de saúde (Fortaleza, Sobral, Cariri, Sertão Central e Litoral Leste/Jaguaribe) e 22 microrregiões, onde os fluxos convergem para as principais cidades do estado. 

A publicação recente do estudo Região de Influência das Cidades (REGIC), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2020), mostra os deslocamentos para serviços de saúde no Ceará com a nítida hegemonia de Fortaleza (Figura1). A cidade de Sobral, ao norte, e o aglomerado Crajubar (Crato, Jua­zeiro do Norte e Barbalha), na porção sul do estado, polarizam um conjunto de cidades. No entanto, a rede urbana cearense é composta, em sua maioria, por pequenas cidades. Segundo as estimativas do IBGE para 2019, dos 184 municípios cearenses 122 possuem menos de 30.000 habitantes. Nestas cidades, a rede hospitalar de baixa e média complexidade é deficiente e em muitos casos sequer existe, o que provoca expressivos deslocamentos na rede urbana.  

 

Figura 1: Redes de deslocamento para serviços de saúde no estado do Ceará

 

Mapa colorido com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020). Elaboração: Autores 

 

 

A fim reduzir a dependência do interior em relação à Fortaleza, o executivo estadual promoveu, nos últimos anos, uma intensa política de expansão e interiorização dos equipamentos de saúde. Neste sentido, foram construídos o Hospital Regional do Cariri em 2011 (Juazeiro do Norte), o Hospital Regional Norte em 2013 (Sobral) e o Hospital Regional do Sertão Central em 2016 (Quixeramobim)[4]. Os impactos dos hospitais regionais para mitigar os vazios assistenciais nas cidades do interior são significativos, mas ainda persistem enormes desafios.  A concentração da infraestrutura hospitalar na capital, e em poucos centros urbanos intermediários, evidencia uma rede desequilibrada. Em tempos da pandemia causada pelo novo Coronavírus, este é um fator complicador e que preocupa as autoridades sanitárias. 


NEM TUDO QUE PAIRA NO AR É NOVO

“Uma tempestade perfeita”: esta é a expressão usada por epidemiologistas para tratar da expansão da Covid-19 somado aos casos de Dengue, Zika, Chicungunya e Influenza que se intensificam nos meses de março, abril e maio. Tais epidemias que atingem, especialmente, a parcela mais vulnerável da população, agora ganham a companhia de um vírus mais rápido e letal que, inclusive, ameaça a reprodução da vida da “elite do atraso” (SOUZA, 2017). 

Vamos aos números do momento (mesmo sabendo das rápidas mudanças perante o movimento ascendente da curva de contaminação). Segundo o Ministério da Saúde até o dia 04 de maio o Brasil contava com 107.780 infectados e 7.321 óbitos. A maioria dos casos se concentra nos estados de São Paulo (32.87 casos e 2.654 óbitos), Rio de Janeiro (11.721 casos e 1.065 óbitos) e Ceará (11.142 casos e 732 óbitos). Com 10,3% dos casos confirmados e 9,9% dos óbitos do país, no Ceará 78,3% dos infectados estão em Fortaleza (8.724). A letalidade da doença no estado está em 6,6% e Fortaleza registra 326 casos confirmados para cada 100.000 habitantes, a maior taxa entre as capitais brasileiras (BRASIL, 2020). 

A Secretaria de Saúde do Ceará aponta que a taxa de ocupação dos leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da rede pública da capital chegou a 100% e no estado 77%. Todos os 121 bairros da capital cearense possuem pessoas contaminadas e 103 já registraram óbitos. O fenômeno que antes estava concentrado em bairros de classe média e alta como Meireles (263 casos e 9 óbitos) e Aldeota (213 casos e 9 óbitos), com casos importados e seus contatos, agora chega aos bairros de pessoas de baixa renda como Barra do Ceará (88 casos e 15 óbitos) e Vicente Pinzon (96 casos e 12 óbitos). Cais do Porto (38 casos e 10 óbitos) e Granja Lisboa (40 casos e 7 óbitos), apresentam um número significativo de óbitos, sendo desproporcional ao baixo registro de infectados (CEARÁ, 2020). Para além do grave quadro da capital, o vírus vem se propagando rapidamente para a região metropolitana e cidades do interior (Figura 2). 

 

Figura 2: Evolução espaço-temporal dos casos de Covid-19 no Ceará

 

Mapa colorido com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (2020). Elaboração: Autores 

O número acumulado de casos cresce de forma geométrica e até 04 de maio 163 municípios cearenses possuem infectados. Contudo, diferentemente dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, que contam com centros de referência em saúde no interior como Barretos (SP) e Campos do Goytacazes (RJ), no Ceará a infraestrutura hospitalar está concentrada na capital, como mostra a distribuição dos leitos de UTI para tratamento da Covid-19 (Figura 3). 


Figura 3 – Espacialidade dos leitos de UTI aptos para o tratamento da Covid-19 no 

Ceará

 

Mapa colorido com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Secretaria de Saúde do Estado do Ceará (2020). Elaboração: Autores 

As cidades que contam com hospitais regionais como Sobral, Juazeiro do Norte e Quixeramobim têm a missão de atender a grande demanda que se desenha nas cidades do interior. A combinação da alta taxa de contaminação da Covid-19 e a fragilidade do nosso sistema de saúde com uma rede desequilibrada, evidencia que o Ceará vive uma crise de saúde pública, econômica e social.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde os primeiros casos na cidade de Wuhan, na China, em dezembro de 2019 o novo Coronavírus colocou o mundo em alerta. As autoridades brasileiras trataram com leviandade o problema em nome da ordem econômica ultraliberal e perdemos um valioso tempo para planejar ações de enfrentamento. Agora não restam dúvidas que a única maneira de encarar a Covid-19 é no plano coletivo e com ações públicas, especialmente, com políticas sociais voltadas para a população economicamente mais vulnerável. 

No Ceará, terceiro estado mais afetado pela Covid-19, os casos têm crescido de forma geométrica. O investimento em testes rápidos e a centralidade de Fortaleza na rede urbana com um intenso fluxo aéreo e rodoviário, o que facilita a transmissão comunitária, nos ajuda a entender o porquê de tantos casos no estado. O vírus vem se expandindo para as cidades do interior que não têm para onde enviar os pacientes. Na capital, o sistema de saúde está operando com sua capacidade máxima e os bairros da periferia são os que mais sofrem com a crise. A Covid-19 é como uma lupa que faz saltar aos olhos de todos as nossas desigualdades socioespaciais.  

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Ministério da Saúde. Painel Coronavírus. Disponível em: < https://covid.saude.gov.br/>. Acessado em: 04 de maio de 2020.

 

CEARÁ. Secretaria Estadual de Saúde. Indicadores sobre o novo Coronavírus (Covid-19). Disponível em: <https://integrasus.saude.ce.gov.br/>. Acessado em: 04 de maio de 2020.

 

CORRÊA, R. L. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

 

DIAS, L. C. Redes: emergência e organização. In: CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da C.; CORRÊA, R. L. (Org). Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995, p. 141-162. 

 

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Pesquisa região de influência das cidades – informações de deslocamentos para serviços de saúde. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. 

 

LEFEBVRE, H. La revolucion urbaine. Paris: Editions Gallimard, 1970.

 

SANTOS, M. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 1996.

 

SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à lava-jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.


AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

FERNANDES, Jeferson Santos; SILVA, José Borzacchiello da; MUNIZ, Alexsandra Maria Vieira. Ceará e pandemia de COVID-19: novos (velhos) desafios das redes dos serviços de saúde. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 87-93, maio de 2020

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 21/05/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil


[1] Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)

[2] Professor dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)

[3] Professora Adjunta do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC)

[4] Atualmente está em construção o Hospital Regional do Vale do Jaguaribe na cidade de Limoeiro do Norte.