“PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES”[1]

RELATOS GEOGRÁFICOS DE UMA PROFISSIONAL DO MAGISTÉRIO EM TEMPOS DE PANDEMIA

 

Tatiana dos Santos Malheiros[2]

Universidade Federal de Rondônia

tatiana.malheiros@unir.br

 


RESUMO: 

“Pra não dizer que não falei das flores” constitui um breve relato das atividades acadêmicas desenvolvidas por uma profissional do magistério superior na área da Geografia e as correlações dessas com o contexto de excepcionalidade apresentado pela pandemia da Covid-19. 

 

Palavras-chave: Geografia; Educação; Direitos Humanos.


 

Fazer uso de referências musicais para denominar atividades profissionais tem se revelado um hábito, porquanto são referências imediatas. Nesse sentido, “Pra não dizer que não falei das flores” qualifica um breve relato das atividades acadêmicas realizadas nos últimos dois anos no âmbito do Departamento Acadêmico de Geografia de uma instituição federal de ensino superior. 

Escrito em um contexto de pandemia em situação de distanciamento social, a ideia do Pra não dizer... propõe, inicialmente, um diálogo compartilhado de iniciativas científicas e, por analogia, nos relembra da necessidade de pensar em nossas práticas profissionais como ações de resistência, para que outras excepcionalidades não se apropriem do contexto sanitário para se estabelecer. Simultaneamente à redação deste texto, o mundo como até então conhecíamos também se apresenta próximo ao fim. São espaços e tempos conturbados. São espaços e tempos de incerteza e de apreensão coletiva e individual, sobretudo nesse país, que tangencia com o desgoverno, o autoritarismo, a negligência com a vida e a morte, assim como com o Estado Democrático de Direito.

Portanto, urge a nós da e na academia iniciar um movimento ativamente reflexivo em relação a esse contexto extremamente complexo – e fazer uso de nossas ciências e de nossas disciplinas, do nosso trabalho dedicado na universidade, com o objetivo de nos posicionarmos no presente e no futuro em relação ao novo mundo que se aproxima. É nesse sentido que situo e apresento este artigo – um documento sintético que objetiva analisar a lógica e a orientação das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão desenvolvidas no âmbito do Departamento de Geografia de uma instituição federal de ensino superior e as correlações dessas com o contexto de excepcionalidade apresentado pela pandemia de Covid-19. 

Rever as produções recentes para pensar e planejar as ações profissionais presentes: é com esse objetivo que a narrativa se apresentará, destacando a excepcionalidade desse momento e a necessidade de posicionamento para a resistência aos abusos e aos absurdos apresentados nos últimos tempos. Como reafirmo às/aos discentes dos cursos de graduação dessa instituição, é imperativo pensar em estratégias para promover a Educação como Projeto de Presente, porquanto, para muitos, o futuro não se apresentará, infelizmente.

Em consonância com um Projeto de Presente, as práticas profissionais são orientadas por meio de pedagogias específicas fundamentadas nas dimensões objetivas para o ensino da Geografia contidas na Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996). A dimensão objetiva prioritária desse componente curricular é a educação para o exercício da cidadania e para o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. Em relação às pedagogias específicas para o cumprimento dos objetivos anteriores destacamos, a pedagogia histórico-crítica (SAVIANI, 2013), a pedagogia crítico-feminista (HOOKS, 2017) e, sobretudo, a pedagogia decolonial (MIGNOLO, 2008), com a finalidade particular de promover uma educação geográfica antirracista (BRASIL, 2004; 2008), antimachista e antiLGBTfóbica.

Portanto, um processo educativo e um processo de ensino-aprendizagem orientado para a valorização da dignidade humana, da igualdade de direitos, das diferenças e das diversidades, da laicidade do Estado e da democracia em educação, como preconizam as diretrizes fundamentais para a Educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2013). Nada mais atual, presente e necessário no contexto de pandemia vivido por homens e mulheres de todo o mundo – momento que explicita, violentamente, as situações estruturais de desigualdade racial, de gênero e socioespacial que caracterizam as sociedades capitalistas, especialmente as ocidentais e as coloniais, como é o caso brasileiro.

Em 2020, submetemos a editais de seleção um projeto de pesquisa específico para a área de Ensino de Geografia: o projeto Ensino e Educação Decolonial de Professoras(es) de Geografia: Investigações Preliminares (MALHEIROS, 2020), com o objetivo de investigar a articulação entre a legislação reguladora e os documentos prescritivos de currículo na área da Geografia para a educação básica e o ensino superior no estado – ademais, realizada por intermédio da pedagogia decolonial e das diretrizes para a educação em Direitos Humanos, citadas anteriormente.

Na área extensionista, coordenamos, em conjunto com a Profa. Dra. Sheila Castro, e em parceria institucional com o SESC-RO, um projeto de extensão que objetiva aproximar as artes e a cultura da educação, sobretudo a de natureza geográfica, persistindo na perspectiva da decolonialidade. O projeto Pro dia nascer feliz: cinema e educação geográfica para a promoção de uma agenda temática descolonial (MALHEIROS; CASTRO, 2019), foi realizado no Audicine do SESC estadual, com eventos mensais abertos ao público, de fevereiro a novembro de 2019. Para cada temática definida previamente, houve a exibição de um filme, seguida de discussão dialógica com os participantes.

Durante a aplicação da Agenda Descolonial, as discussões realizadas abordaram as seguintes temáticas e suas complexidades espaciais: a educação no Brasil e a ciência geográfica, com os filmes Pro dia nascer feliz (JARDIM, 2007) e Encontro com Milton Santos (TENDLER, 2006); a questão étnico-racial e o racismo, para a promoção de uma educação antirracista, com o filme Vênus Negra (KECHICHE, 2010); a questão de gênero e o machismo, para possibilitar uma educação antimachista, por meio do filme Mulheres Divinas (VOLPE, 2017); a diversidade sexual e a homofobia, para possibilitar uma educação geográfica antiLGBTfóbica, por intermédio do filme Milk – A Voz da Igualdade (SANT, 2008); e a religiosidade não hegemônica, para o combate à invisibilidade e ao preconceito em relação às práticas de matriz africana, por meio do filme Pierre Verger – Mensageiro entre Dois Mundos (HOLANDA, 1999).

Os filmes propiciaram diálogos multidisciplinares com profissionais da Geografia, da Sociologia, da Educação, da Filosofia, da Comunicação Social, da História, do Direito, a quem agradecemos e, sobretudo, com os discentes de turmas finalistas de cursos de licenciatura (Licenciatura em Pedagogia e Licenciatura em Geografia) para a formação/educação inicial de professores e de professoras e a intervenção teórico-prática qualitativa na atividade dos futuros profissionais do magistério no nível da educação básica.

Para o ano de 2020, lançamos a segunda edição do Pro dia nascer feliz (MALHEIROS; CASTRO, 2020). A parceria interinstitucional com o SESC-RO foi prorrogada e propusemos mais um projeto de extensão: trata-se do Projeto Mojubá: Arte, Ciência e Educação Geográfica na Perspectiva Pedagógica Decolonial (MALHEIROS, 2020) – que qualifica uma referência em linguagem Iorubá relativa à saudação específica de um Orixá responsável pela comunicação e o intermédio entre dois mundos, o Orum e o Aiyê. O Orum é caracterizado como o espaço de origem das entidades sagradas da natureza, os Orixás, e o Aiyê é o espaço de manifestação de seus processos e fenômenos associados, lócus onde também residem as sociedades (PRANDI, 2001). Partimos dessa analogia para sugerir algumas questões fundamentais norteadoras do projeto.

A primeira é a de que o projeto se alinha à garantia de direitos presentes na legislação específica (BRASIL, 2008) naquilo em que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura dos africanos, dos afrodescendentes e dos indígenas em todas as dimensões curriculares para a educação básica – o que, portanto, pressupõe a necessidade de processos formativos iniciais de professoras(es) para o cumprimento desse marco legal. A segunda questão é a de que o projeto objetiva realizar uma aproximação entre a legislação reguladora e o currículo de Geografia, a educação básica e o ensino superior, as escolas e a universidade, as artes e as ciências, a ciência moderna e a epistemologia decolonial para a promoção de uma educação geográfica em conformidade com as diretrizes da educação em Direitos Humanos (BRASIL, 2013).

Os projetos extensionistas estão associados ao projeto de ensino e ao de pesquisa analisados anteriormente – mas, sobretudo, a um projeto de constituição de uma outra sociedade como projeto de carreira profissional. Estar na universidade e atuar nas atividades de ensino, pesquisa e extensão são meios importantes de pensar e de agir no sentido de produzir outros sentidos, outros espaços e outras sociedades, mais justas, mais diversas, mais igualitárias e verdadeiramente democráticas, especialmente nesse contexto em que as instituições no país são alvos de manifestações inconstitucionais e antidemocráticas. 

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como proposto e destacado incialmente, essa breve narrativa se pretendia ser objetiva e concisa. Revisitar um processo de atuação profissional no magistério, nesse caso específico em nível superior, é desafiador. Compartilhar com as/os colegas atividades ordinárias de nosso exercício profissional se configura, somente, uma tentativa de compartilhamento agregador em relação à necessidade de atenção ao contexto que se apresenta.

Um texto-artigo que objetiva apresentar as concepções teórico-metodológicas particulares em educação como um Projeto de Presente; um Projeto de Presente que se mantenha em conformidade com as bases jurídico-políticas de um Estado Democrático de Direito, especialmente com os direitos e as garantias fundamentais relativas à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade e à igualdade (BRASIL, 1988).

Para finalizar, reitero a urgente necessidade de posicionamento nesse momento de exceção. A nós, professoras(es), pesquisadoras(es), acadêmicas(os), é chegada a hora do exercício do lugar de fala, mas, sobretudo do lugar de ação, a fim de transformar a nossa prática profissional em oportunidade privilegiada de combate e de resistência, para que outros contextos excepcionais não se sintam autorizados a existir. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acessado em: 24/04/2020. 

 

_______. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acessado em: 24/05/2020.

 

_______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira e Africanas. Brasília, 2004. Disponível em: http://portal.inep.gov.br/informacao-da-publicacao/-/asset_publisher/6JYIsGMAMkW1/document/id/488171. Acessado em: 24/05/2020.

 

_______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, 2008. Disponível emhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm. Acessado em: 24 abr. 2020.

 

_________. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica. Brasília: MEC/SEB/DICEI, 2013. 562 p.

 

ENCONTRO com Milton Santos. Direção de Sílvio Tendler. Rio de Janeiro: Caliban Filmes, 2006. 89 min. (documentário, son., color.). 

 

HOOKS, B. Ensinando a transgredira educação como prática da liberdade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. p. 151-160.

 

MALHEIROS, T. Ensino e educação decolonial de professoras(es) de Geografiaaproximações preliminares. Projeto de Pesquisa – PVN90. Porto Velho: Universidade Federal de Rondônia, 2020.

 

___________. PROJETO MOJUBÁarte, ciência e educação geográfica na perspectiva pedagógica decolonial. Projeto de Extensão – PJ039. Porto Velho: Universidade Federal de Rondônia, 2020.

 

MALHEIROS, T.; CASTRO, S. “Pro dia nascer feliz”cinema e educação geográfica para a promoção de uma agenda temática descolonial. Projeto de Extensão – Certidão de Extensão nº 171. Porto Velho: Universidade Federal de Rondônia, 2019.

 

_________________________. “Pro dia nascer feliz”: cinema e educação geográfica para a promoção de uma agenda temática descolonial - 2ª edição. Projeto de Extensão – PJ059. Porto Velho: Universidade Federal de Rondônia, 2020.

 

MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, p. 287-324, 2008.

 

MILK – A Voz da Igualdade. Direção de Gus Van Sant. EUA: Focus Features
Jinks/Cohen Productions, 2008. 128 min. (son., color.).

 

MULHERES Divinas (Die göttliche Ordnung). Direção de Petra Bodina Volpe. Suíça, 2017. 96 min. (son., color.)

 

PIERRE Verger – Mensageiro entre Dois Mundos. Direção de Lula Buarque de Hollanda. Rio de Janeiro: Conspiração Filmes/Gegê Produções/GNT Globosat, 1999. 82 min. (35 mm., son., color.). 

 

PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

 

PRO DIA nascer feliz. Direção de João Jardim. Rio de Janeiro: Tambellini Filmes, Fogo Azul Filmes, Globofilmes, 2006. 88 min. (son., color.).

 

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2013.

 

VANDRÉ, G. Pra não dizer que não falei das flores. São Paulo: RGE Discos, 1994 [1968].

 

VÊNUS Negra (Vénus Noire). Direção de Abdellatif Kechiche. França: Imovision, 2010. 130 min. (color., son.).

Agradecemos à PROCEA e ao SESC-RO, em especial à Betânia Avelar, técnica do setor de cultura e membro externa do Projeto Interinstitucional de Extensão “Pro dia nascer feliz”.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

MALHEIROS, Tatiana dos Santos. Pra não dizer que não falei das flores: relatos geográficos de uma profissional do magistério em tempos de pandemia. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 161-167, maio de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 25/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil

 


[1] Título de música de autoria de Geraldo Vandré (1968).

[2] Doutora em Geografia pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Professora Adjunta do Departamento Acadêmico de Geografia da Universidade Federal de Rondônia – UNIR – e Coordenadora de Estágio Supervisionado da Licenciatura em Geografia.