FORÇA DE TRABALHO, DELIVERY E A PANDEMIA DE COVID-19: 

DO AVANÇO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS AO ACIRRAMENTO DAS CONTRADIÇÕES

 

Mariana Covas Costa[1]

Universidade Federal Fluminense

marianacovas@id.uff.br 

 


RESUMO: 

O artigo em tela lança um olhar acerca da precarização do trabalho através da utilização de aplicativos como instrumento de prestação de serviços dos motoboys e entregadores-ciclistas que seguem circulando pelas ruas das cidades em meio a pandemia de COVID-19. Busco desmistificar a ideia de autonomia propagandeada pelas plataformas digitais, que, através dessa narrativa, se eximem das responsabilidades perante à segurança do trabalho e ampliam a vulnerabilidade dos trabalhadores. Por fim, procuro apontar alternativas que garantam a proteção dessa categoria. 

 

Palavras-chave: Trabalhadores via aplicativos de delivery; COVID-19; Condições de trabalho.


 

INTRODUÇÃO

 

A rápida difusão espacial do SARS-CoV-2 (novo Coronavírus) abre nossos olhos para uma das possíveis (e perversas) consequências do processo de globalização e, sobretudo, da intensificação da mobilidade internacional: a acelerada disseminação de doenças em escala global (SPOSITO; GUIMARÃES, 2020). A declaração da pandemia de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), no dia 11 de março de 2020, alertou o mundo sobre a urgente necessidade de se pensar alternativas para frear o avanço da doença e evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde. Diante deste cenário, uma das principais medidas recomendadas pela OMS para desacelerar os fluxos do vírus, que tem como principal vetor o ser humano, é o distanciamento social[2]. No Brasil, a quarentena começou a ser adotada pelos estados na primeira quinzena de março de 2020 e, com isso, serviços considerados não-essenciais foram suspensos ou começaram a ser realizados de forma remota[3].

Frente à necessidade do auto isolamento, os aplicativos de delivery (serviços de entrega) se apresentam como uma solução para os consumidores e estabelecimentos por eles assistidos – supermercados, restaurantes, bares e farmácias. Do outro lado, entretanto, os entregadores seguem circulando pelas ruas das cidades em suas motos, bicicletas ou patinetes e sem nenhuma garantia, direito ou estabilidade. 

Imersos em uma sociedade extremamente desigual, submetidos a uma estrutura neoliberal e diante de um Estado suicidiário (SAFATLE, 2020), tais trabalhadores não possuem escolha senão sair de suas casas, acessar o(s) aplicativo(s) e torcer para que consigam um bom número de corridas, um rendimento satisfatório e  voltar para casa, ao final do dia, sem o vírus. 

Nesse sentido, e com base na leitura de autores da Geografia Crítica e da Sociologia do Trabalho, busco lançar um olhar acerca do cotidiano dos trabalhadores de delivery via aplicativos que agora, mais do que nunca, vivem o paradoxo de arriscar suas vidas (e de suas famílias) em virtude da necessidade da obtenção de renda para a garantia da sobrevivência. Procuro, também, discutir algumas alternativas que visam a segurança desses trabalhadores, tendo como ideal a busca por uma outra globalização (SANTOS, 2015).

 

CAMINHOS DA PRECARIZAÇÃO

As transformações que o mundo laboral vem experienciando nas últimas décadas são provenientes do processo de reestruturação produtiva global do capitalismo que ocorre sob égide da cartilha neoliberal e tem na flexibilização seu principal substantivo (HARVEY, 1992). A uberização do trabalho (ABÍLIO, 2020) surge nesse contexto e consiste nas novas formas de organização, gerenciamento e controle, impulsionadas pelo acelerado desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). Apoiadas na retórica da Economia do Compartilhamento (SLEE, 2017)[4], as plataformas digitais vêm ganhando espaço em diversas atividades no setor de serviços, como é o caso das entregas em domicílio.

Os aplicativos de delivery, dos quais IfoodRappiUberEats e Loggi são exemplos no Brasil, se autodefinem como sendo o suporte digital que estabelece o contato entre consumidores e entregadores, os quais são retratados pelas plataformas como prestadores de serviços autônomos. Tal autonomia, no entanto, se realiza apenas como uma narrativa que visa eximir as plataformas de qualquer preocupação com contratos e direitos trabalhistas. As empresas-aplicativo (ABÍLIO, 2020) se livram, dessa forma, de responsabilidades relacionadas à segurança do trabalho e transferem todos os riscos e custos para os trabalhadores. Na prática, em suas rotinas exaustivas, os entregadores carregam nas costas o nome das empresas, que não lhes fornecem liberdade nem sequer para decidir quais corridas realizar.

É importante destacar que a informalidade e o alto nível de exploração não são novidade para um grande contingente de trabalhadores do Sul global (ABÍLIO 2020) que nunca experimentou o “padrão societal típico do Welfare State” (ANTUNES, 2018). No entanto, além de generalizadas, essas características são potencializadas diante do gerenciamento algorítmico do trabalho (ABÍLIO 2020), que concede às empresas mecanismos inéditos de controle da força de trabalho. 

Por efeito da pandemia, a possibilidade da realização de compras por meio dos aplicativos pode surgir como uma solução para as classes privilegiadas. Ao decretar Estado de Emergência, o governador do Rio de Janeiro, afirmou: “A nossa recomendação é que a comida seja comprada através do serviço de entrega [5]. De um lado, as empresas – que já movimentam cerca de R$ 17 bilhões por ano no Brasil[6] – se veem diante da possibilidade de obter lucros ainda maiores. Do outro, a ausência total de regulação recai, de forma ainda mais brutal, sobre os entregadores, os quais são abandonados à própria sorte, tendo que ficar na rua por horas, entrar e sair de estabelecimentos e interagir com diversos funcionários e clientes.

A Justiça do Trabalho determinou, no dia 05 de abril de 2020, que o Ifood deveria  garantir assistência financeira de, no mínimo, um salário mínimo aos entregadores em grupo de risco ou com suspeita de contaminação pelo novo Coronavírus, além de oferecer a todos os trabalhadores álcool em gel e espaços para higienização dos veículos[7]. No entanto, no dia seguinte, após ação movida pelo Ifood, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2) revogou tal decisão sob o argumento da inexistência de vínculo empregatício entre o aplicativo e os entregadores[8]

Diante da insegurança e do desamparo, os trabalhadores têm organizado formas de reivindicar a assistência por parte das empresas. No dia 20 de abril, entregadores de São Paulo realizaram um “buzinaço” em frente à sede do Ifood em Osasco (SP)[9]. Outro exemplo é o do motoboy Paulo Lima, que produziu um vídeo denunciando a situação dos entregadores e organizou uma petição, no início de abril, para cobrar a distribuição do álcool em gel e de alimentação para a categoria. Destaco aqui alguns trechos de seu manifesto:

 

Motoboy também é ser humano (...) A gente tem sonho, a gente chora, a gente tem família. A gente não é só entregador de comida (...). Seguimos fazendo as entregas no meio dessa crise do coronavírus e as empresas não nos fornecem nenhuma medida de proteção, como álcool em gel, máscaras ou luvas. Além disso, estamos trabalhando com fome (...) Não temos condições de comprar álcool em gel e arcar com a alimentação na rua em meio a essa crise do coronavírus (...) Vocês sabem o que é ter que trabalhar o dia inteiro carregando comida para as pessoas, sentindo o cheiro, e estar com fome? Eu e meus colegas sabemos e passamos por isso todos os dias (...). Se eu cair doente, como vai ser? Quem vai levar o sustento para minha família? Ou pior, se eu levar esse vírus para dentro da minha casa e infectar minha avó ou minha filha pequena? (Paulo Lima, motoboy, 2020).[10]

 

Além de humanitária, a proteção aos entregadores é, também, uma questão de saúde pública, pois sua ausência pode resultar em um trágico índice de disseminação do vírus. Dessa forma, ao mesmo tempo em que os donos e acionistas das empresas-aplicativos garantem seus altos lucros, distribuem riscos fatais para trabalhadores periféricos, suas casas e sua vizinhança.

 

A TÍTULO DE CONCLUSÃO: PENSANDO EM ALTERNATIVAS

Dada a gravidade da crise sanitária e humanitária que estamos vivendo e diante da constatação de que é impossível solucionar as consequências de uma pandemia na escala do indivíduo, dois elementos são imprescindíveis: a solidariedade generalizada e uma forte ação do Estado no sentido da garantia de assistência aos mais vulneráveis. Nessa perspectiva, é de fundamental importância a discussão acerca de medidas como uma renda básica – que garanta, verdadeiramente, a reprodução material das famílias assistidas – e a isenção de contas, como as de água, luz e gás. Medidas como essas podem evitar ou, pelo menos, diminuir a exposição dos trabalhadores no período da pandemia, uma vez que ajudam a garantir suas necessidades básicas. Além disso, torna-se urgente a obrigatoriedade e a fiscalização do fornecimento dos itens essenciais para a segurança daqueles que seguem trabalhando, como máscaras, luvas e álcool em gel.

O debate acerca da regulação das novas formas de trabalho aqui discutidas precisa estar na ordem do dia. Embora, no Brasil, a justiça insista em negar o vínculo trabalhista[11] inerente a nova morfologia do trabalho (ANTUNES, 2018), já existem exemplos, ao redor do mundo, de vitórias do movimento organizado dessa categoria de trabalhadores[12]. Como exposto por Antunes e Filgueiras (2020), atingimos um nível no qual, no sentido técnico, nunca foi tão fácil regular o trabalho, já que a quantidade de horas trabalhadas, seu ritmo e intensidade ficam registrados, no entanto, no sentido político, existe uma enorme dificuldade. Dessa forma, precisamos ter no horizonte a possibilidade da apropriação das bases técnicas em nome da construção de um projeto sociopolítico que valorize a real autonomia da classe trabalhadora.

Por garantirem o consumo das classes privilegiadas em meio à pandemia, o trabalho dos entregadores de aplicativos ganha relevância no atual cenário. Talvez, assim, o momento seja propício para que tais trabalhadores se organizem em prol de melhores condições de trabalho e de vida.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ABÍLIO, L. C. Plataformas digitais e uberização: globalização de um Sul administrado? Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. de 2020.

 

ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018.

 

ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Revista Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.

 

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992.

 

SAFATLE, V. Bem-vindo ao estado suicidiário. n-1 edições, 2020.

 

SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2015.

 

SLEE, T. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Editora Elefante, 2017.

 

SPOSITO, M. E. B.; GUIMARÃES, R. B. Por que a circulação de pessoas tem peso na difusão da pandemia. Universidade Estadual Paulista (UNESP), 26 de março de 2020. Disponível em: <https://www2.unesp.br/portal#!/noticia/35626/por-que-a-circulacao-de-pessoas-tem-peso-na-difusao-da-pandemia>. Acessado em: 29 de abril de 2020.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

COSTA, Mariana Covas. Força de trabalho, delivery e pandemia de COVID-19: do avanço das plataformas digitais ao avanço das contradições. Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 75-80, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 03/06/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil                                                                                                                                                

 


[1] Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.

[2] O distanciamento social é uma medida proposta no âmbito do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), vinculado a todos os Estados-membros da OMS.

[3] O Supremo Tribunal Federal reconheceu, em 15 de abril de 2020, a autonomia dos governos estaduais e municipais acerca das medidas para o enfrentamento da COVID-19, incluindo as regras de distanciamento social.

[4] “[...] A Economia do Compartilhamento é uma onda de novos negócios que usam a internet para conectar consumidores com provedores de serviço para trocas no mundo físico” (SLEE, 2017, p.21). Sua promessa era de promover a emancipação dos trabalhadores, no entanto, na prática, o que ocorre é a criação de “[...] um livre mercado inóspito e desregulado em áreas de nossas vidas que antes estavam protegidas” (idem, p.23).

[5] Disponível em: <https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/>. Acessado em: 30 de abril de 2020.

[6] Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/99-vai-entrar-na-disputa-pelo-mercado-de-entrega-de-comida-que-movimenta-17-bi-ao-ano-24093428>. Acessado em: 20 de maio de 2020.

[7]  A decisão foi tomada pelo Processo nº 1000396-28.2020.5.02.0082 da 82ª Vara do Trabalho de São Paulo, após ação civil pública impetrada pelo Ministério Público do Trabalho.

[8] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/ifood-derruba-liminar-que-o-obrigava-a-pagar-entregadores-afastados-por-coronavirus.shtml>. Acessado em: 20 de maio de 2020.

[9] Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/motoboys-fazem-buzinaco-em-sp-por-melhor-condicao-de-trabalho-na-crise-do-coronavirus.shtml>. Acessado em: 30 de abril de 2020.

[10] O texto completo e o vídeo estão disponíveis em: <https://www.change.org/p/ifood-aplicativos-de-entrega-distribuam-alimenta%C3%A7%C3%A3o-e-%C3%A1lcool-em-gel-para-os-motoboys>. Acessado em: 30 de abril de 2020.

[11]Disponível em: <https://exame.abril.com.br/negocios/justica-diz-que-entregadores-nao-tem-vinculo-trabalhista-com-ifood/>. Acessado em: 30 de abril de 2020.

[12] Destaco aqui a condenação da Rappi, na Argentina, pelo bloqueio dos trabalhadores que atuavam na organização de um sindicato e do Deliveroo, na Espanha, após a verificação de que os trabalhadores eram falsamente considerados autônomos.