ESPAÇOS E EMOÇÕES: REFLEXÕES PARA ENTENDER A EXPERIÊNCIA DO ISOLAMENTO SOCIAL NA PANDEMIA DA COVID-19

 

Marcia Alves Soares da Silva[1]

Universidade Federal do Mato Grosso

marciaalvesgeo@gmail.com

 

Bruna Maria Siquinelli Marcílio[2]

Universidade Federal do Mato Grosso 
bms.marcilio@gmail.com

 


RESUMO: 

A relação da casa e do habitar ganha relevante atenção no contexto do isolamento social devido à pandemia da COVID-19. Dentre os caminhos para análise, apontamos um olhar sobre a experiência emocional vivida neste momento. Buscamos um diálogo entre a Geografia das Emoções e a Neuroarquitetura para entender a relação entre os espaços de residência e as emoções e trazemos as percepções de pessoas que estão vivendo o isolamento social.

 

Palavras-chave: Geografia das Emoções; Neuroarquitetura; Casa.


 

A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DO ISOLAMENTO SOCIAL: RELAÇÕES NA CASA, NO CORPO E COM AS EMOÇÕES

 

Estamos vivendo um momento não prontamente imaginado por todas e todos nós. Várias questões preexistentes afetam a maneira como estamos experienciando, de formas muito distintas, o contexto da pandemia da COVID-19. Crise do capitalismo, desigualdade socioespacial, globalização perversa, compressão espaço-tempo, meio técnico-científico-informacional, necropolítica, dentre outras questões amplamente discutidas nas ciências humanas nos fornecem subsídios para entender a conjuntura de uma crise que não se restringe à saúde, mas é uma crise política, ambiental, econômica, cultural, social e do trabalho.

Desde as diferentes escalas de experiências, vivemos o cotidiano comum do  isolamento, privados de nossas liberdades e de nossas interações sociais. Entendemos o contexto como um convite para que a Geografia das Emoções reflita sobre as experiências emocionais, pensando a escala do corpo e da casa num momento em que fomos condicionadas e condicionados a nos adaptarmos nos espaços íntimos. Tal contribuição é um caminho fértil para analisar as espacialidades emocionais construídas na relação com a casa porque as emoções na Geografia podem ser compreendidas numa perspectiva relacional, isto é, na relação espaço e pessoas. Essa mediação emocional é dada pelo corpo, que constrói uma corporeidade na cotidianidade. A corporeidade é a experiência de fazer, sentir, pensar e querer, e é mediante isso que as pessoas apropriam-se do espaço e do tempo que lhes acontecem, transformando-os e atribuindo-lhes um certo valor (BONDI, 2005; LINDÓN, 2012)[3]

 Na cotidianidade estamos imersos nas particularidades da vida e das ações do dia a dia, sendo um desafio chamar, para a consciência, práticas comuns e cotidianas. No momento do isolamento social a atenção às nossas experiências emocionais dentro da casa ganha foco — pensando aqui não só sua dimensão física, mas também a dinâmica do habitar[4]. Isso porque a casa serve como abrigo e proteção: é nosso canto no mundo, nosso primeiro universo (BACHELARD, 1993; BUTTIMER, 2015).

Tal leitura pode ser fortalecida com as reflexões da Arquitetura. Pallasmaa (2011, p. 38) afirma que "Nossos corpos e movimentos estão em constante interação com o ambiente". Para o autor, nosso mundo existencial tem dois focos importantes: a casa e o corpo. Há entre eles um relacionamento dinâmico que pode construir um senso de conectividade ou de afastamento. O corpo, em sua integridade, é o lugar da percepção, do pensamento e da consciência, sendo nosso primeiro meio de comunicação com o mundo: verdadeiro lugar de referência, memória, imaginação e integração. Já a casa é metáfora estrutural, psicológica, metafísica e literária, e determina o significado definitivo de interioridade e exterioridade, familiaridade e estranheza (PALLASMAA, 2013)[5]

Esse interesse é compartilhado pela Neuroarquitetura, que tece um diálogo entre Neurociência e Arquitetura. Para Solís e Herrera (2017), a experiência do ambiente pode influir em nossos estados emocionais e comportamentais, na saúde mental e física, numa intrínseca relação entre o cérebro e o ambiente. Portanto, o entorno arquitetônico pode influir em processos cerebrais que têm a ver com estresse, emoção e memória. Nessa ponte, pensar a questão emocional na Geografia é entender como a casa e os espaços devem ser concebidos em consonância com nosso bem-estar físico e mental, porque, segundo Fuente (2013, p. 77), “A experiência humana está intimamente ligada à experiência espacial, e, portanto, os espaços devem ser projetados para proporcionar emoções positivas”.

Com essas reflexões, vimos a necessidade de analisar o momento da pandemia e do isolamento social, levando em consideração a relação dos espaços de residência e as emoções. Um formulário online na plataforma Google Forms foi organizado no início de abril de 2020 e liberado para respostas autodeclaradas de qualquer pessoa entre os dias 15 e 30 de abril de 2020, sendo sua divulgação realizada por redes sociais como Whatsapp, Facebook Instagram. Foram coletadas 635 respostas de participantes na faixa etária entre 12 e 73 anos, com alcance de experiências de todas as regiões do Brasil e de outros 7 países: Portugal, Alemanha, Colômbia, Estados Unidos, Bélgica, Filipinas e Argentina. 

Na apresentação do formulário constavam informações sobre o objetivo da pesquisa, as pesquisadoras envolvidas, e a declaração de que as respostas seriam única e exclusivamente utilizadas para o projeto de pesquisa "Por uma Geografia das Emoções no/do espaço urbano: reflexões sobre espacialidades emocionais", respeitando os princípios éticos da pesquisa científica. Os participantes foram informados que suas experiências pessoais neste momento poderiam contribuir com reflexões sobre a relação dos espaços e das emoções, e construir ações propositivas no âmbito da Geografia e da Arquitetura.

Visando o diálogo interdisciplinar, o formulário teve 29 perguntas abertas e fechadas com questionamentos sobre o perfil dos participantes (idade, cidade, estado, bairro e gênero), a infraestrutura da casa (número de cômodos, tipo de material), problemas da casa e do entorno (barulho, mau cheiro, ventilação, iluminação, falta de água ou luz), as atividades que estão sendo realizadas no isolamento social, as relações interpessoais no espaço de residência e as emoções experienciadas neste momento. 

Tendo em vista os limites da presente reflexão, vamos nos ater a alguns pontos do questionários, que serão apresentados em forma de “nuvem de palavras” utilizando a plataforma Infogram. Na seção “perguntas abertas”, realizamos as seguintes questões: “Como você se sente na relação com a sua casa nesse momento?” e “Se pudesse descrever uma emoção que está sentindo nesse contexto de isolamento social, qual seria?”. As respostas foram organizadas em nuvem de palavras, conforme figuras 1 e 2, sendo que as maiores palavras são aquelas que apareceram mais vezes nas respostas.

 

 

Tela de celular com texto preto sobre fundo branco

Descrição gerada automaticamente

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

No isolamento social, a casa deveria nos proteger de nosso medos e ansiedades, ou ao menos serem confortáveis para podermos habitá-las. Sobre isso, com relação à residência, percebemos que as palavras que se destacam revelam que uma parte significativa das pessoas sentem-se bem, confortáveis, seguras, felizes, privilegiadas, tranquilas, dentre outras experiências positivas, mesmo que, ao descreverem uma emoção que estão sentindo no momento de isolamento social, elas afirmam estar ansiosas, angustiadas, desesperadas, preocupadas, com medo e com incertezas. Isso nos revela, por um lado, que as moradias estão cumprindo com o papel de abrigo e proteção, proporcionando bem-estar para as pessoas, e possibilitando criar novas relações entre o morador e sua casa. No entanto, vemos contradições da experiência ligada à casa e ao habitar uma vez que entendemos que a experiência da exterioridade — as notícias, por exemplo — impactam significativamente na relação com a interioridade.

O conforto que muitos dos participantes apontou, no entanto, não é a realidade de todas as residências, porque elementos estruturais como iluminação, cheiro, barulhos, dimensões dos ambientes, mobiliário e conforto térmico influenciam em como nos sentimos nos ambientes, nas dinâmicas do habitar e nas relações intersubjetivas, podendo nos deixar mais ansiosos, angustiados e desconfortáveis em nossas casas. Sobre isso, no questionamento “Você considera sua moradia confortável para viver esse momento?”, 541 pessoas responderam que “sim” e 94 responderam que “não”, sendo que essas últimas citaram problemas como “ambiente muito apertado” (27 vezes), “falta de privacidade” (27), “falta de ambientes internos e/ou externos” (26), “entorno barulhento” (22), “iluminação ruim” (17), “muito quente/muito frio” (17), “falta de luz ou água” (7), “outros” (12). 

A infraestrutura física das casas impacta também nas relações intersubjetivas e nas atividades realizadas porque algumas pessoas tiveram, por exemplo, de adaptar espaços e horários: a sala virou escritório, local de atividades físicas ou de estudo, e novos horários de estudos, trabalho e alimentação foram criados. A percepção desses problemas na moradia é aumentada pela permanência mais longa em nossas residências, e soma-se às emoções negativas causadas pelo medo e pela incerteza da situação da pandemia, podendo maximizá-las.  

Nesta breve análise, elucidamos a relevância de entender a influência do espaço nas emoções para demonstrar o quanto a casa e suas múltiplas experiências são importantes para o nosso bem-estar. Com essa reflexão, lançamos a provocação de como a Arquitetura e a Geografia podem entender as formas como as emoções estão ligadas às dimensões físicas e subjetivas do espaço. Diferentes espacialidades e temporalidades são experienciadas no momento do isolamento social, quando podemos questionar como as emoções são mediações das nossas relações espaciais e possibilitam construir espacialidades emocionais no cotidiano. Podemos pensar, por exemplo, desde as dinâmicas que ocorrem num ambiente íntimo, como a casa, até a interação emocional na vida pública, como nos espaços públicos das cidades. A vida privada e pública não serão mais as mesmas. Fiquemos atentas e atentos às nossas emoções e pensemos o momento como um convite para questionar nossas relações na vida cotidiana e imaginar outras formas de (con)viver.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BACHELARD, G. A poética do espaçoSão Paulo: Martins Fontes, 1993.

 

BONDI, L. Making connections and thinking through emotions: between geography and psychotherapy. Institute of Geography, School of Geosciences, University of Edinburgh, 2005.

 

BUTTIMER, A. Lar, horizontes de alcance e o sentido de lugar. Geograficidade, v.5, n.1, Verão de 2015, p. 4-19.

 

FUENTE, J. A. A. de la. O edifício doente: relação entre construção, saúde e bem-estar. Dissertação (Mestrado em Arquitetura). Programa de Pós-Graduação de Arquitetura da Universidade do Minho, Minho, Portugal, 2013.

 

LINDÓN, A. Corporalidades, emociones y espacialidades. Hacia un   renovado  betweenness. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, p. 698-723, dezembro de 2012.

 

LE BRETON, D. Antropologia dos sentidos. Petrópolis: Vozes, 2016.

 

SOLÍS, A. M. E; HERRERA, N. L. R. El espacio físico y la mente: Reflexión sobre la neuroarquitectura. Cuadernos de Arquitectura. Año 07, n°7, p. 41-47, abril de 2017.

 

PALLASMAA, J. Os olhos da pele. Porto Alegre: Bookman, 2011.

 

______. A imagem corporificada: imaginação e imaginário na Arquitetura. Porto Alegre: Bookman, 2013.

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

SILVA, Maria Alves Soares da; MARCÍLIO, Bruna Maria Siquinelli. Espaços e Emoções: reflexões para entender a experiência do isolamento social na pandemia de COVID-19. Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 68-74, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 03/06/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.

 


[1] Professora Adjunta do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) – Campus Cuiabá (MT).

[2] Graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) - Campus Cuiabá (MT).

[3] Sobre isso, destacamos a relevância do debate sobre o conceito de lugar no âmbito da Geografia Humanista, que entende o lugar como centro de valor e de significados, a partir de uma noção de intimidade, proximidade e segurança, carregador, portanto, de um importante valor afetivo, dada pela experiência subjetiva do sujeito.

[4] Observational Practices Lab lançou um desafio chamado The Atlas of Everyday Objects - In the age of global social isolation. Numa prática observacional, pede que as pessoas olhem em volta de seus espaços de isolamento e percebam quais objetos assumiram um novo significado desde o início deste contexto.

[5] Sobre isso, indicamos leituras no âmbito da Antropologia dos Sentidos, como a proposta por David Le Breton (2016) que fala do corpo como profusão do sensível, elemento fundamental da percepção, entendida como  interpretação e projeção de significações sobre o mundo: “O homem vê, ouve, sente, saboreia, toca, experimenta a temperatura ambiente, percebe o murmúrio interior de seu corpo, e assim faz do mundo uma medida de sua experiência, o torna comunicável aos outros, imersos como ele no centro do mesmo sistema de referências sociais e culturais” (p. 16).