O SER HUMANO NÃO É UM VÍRUS: COMPREENDENDO NOSSO PAPEL NO
PLANETA PARA ALÉM DE SUA DESTRUIÇÃO
Lucas Santa Cruz de Assis Brasil
1
Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro
brasilucas@gmail.com
Thomaz de la Rocque Amadeo
2
Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro
thomaz_amadeo@hotmail.com
Alexandro Solórzano
3
Pontifícia Universidade Católica - Rio de Janeiro
alexandrosol@gmail.com
RESUMO:
A ideia do ser humano como rus” se popularizou durante a pandemia do COVID-19, uma
visão generalizante e potencialmente perigosa. Fazemos uma crítica às narrativas
declensionistas, por assumirem destarte que relações naturezas-culturas danificam o ambiente.
Também salientamos a importância de trazer à tona narrativas mais integradoras destas relações
com o meio.
Palavras-chave: narrativas ambientais; relações sociedade-natureza; declensionismo
INTRODUÇÃO
O ser humano é o rus do planeta. Vide a gigantesca capacidade de transformação da
paisagem que nossa espécie alcançou e as subsequentes alterações na composição, estrutura,
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ)
2
Graduando de Geografia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ)
3
Professor do Departamento de em Geografia e Meio Ambiente na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ)
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRASIL, Lucas Santa Cruz de Assis; AMADEO, Thomaz de la Rocque; SOLÓRZANO, Alexandro. O Ser humano não é um vírus:
compreendendo o nosso papel no planeta terra para além da sua destruição. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, 9, p. 112-
117, maio de 2020
Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 20/05/2020
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil
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diversidade e funcionamento dos ecossistemas que se acumulam ao longo dos anos (ELLIS &
RAMANKUTTY, 2008), essa ideia do ser humano como destruidor de sua casa, opositor da
“natureza”
4
, faz bastante sentido e se mostra atraente, no entanto pode ser bem perigosa.
Embora o ser humano seja a espécie na face da Terra que definitivamente mais altera o
habitat a sua volta, ela não o faz da mesma forma, intensidade e intencionalidade ao redor do
globo. A argumentação do “ser humano-vírus” homogeneíza a população humana, dotada de
diversidade linguística, de religiões, tradições, etnias, classes sociais, assim, demonstrando
diversas interações naturezas-culturas
5
. Somos plurais, interagimos com o que nos cerca de
maneiras variadas e, consequentemente, marcamos o planeta de distintas formas, assim como
somos afetados diferentemente por queses socioambientais. Populações com dificuldade de
acesso a serviços públicos básicos, como saúde, educação e saneamento são indubitavelmente
as mais atingidas em momentos de crise (HARVEY, 2006), algo notável no atual contexto de
pandemia do COVID-19 e que se aplica às diversas escalas espaciais.
Tratar o problema com uma populão humana abstrata, uniforme, sem localização, sem
chão, sem paisagem, sem especificidades culturais, sem classes sociais, o faz jus à
complexidade desta crise socioecológica advinda da pandemia. A identificação da espécie
humana em si como a fonte do problema e sua generalização podem abrir espaço para discursos
neomalthusianos e ecofascistas, ambos pautados na ideia da escassez de recursos naturais
frente a crescente população humana. No primeiro caso, o defendidas medidas de controle
populacional que, segundo essa corrente, o elevado número de pessoas é responsável pelo
subdesenvolvimento e pelo estrangulamento dos governos no que tange à garantia de direitos
sociais sicos. Mas qual será a parcela da população que terá sua reprodução no espaço limitada?
Essa pergunta está associada diretamente à narrativa ecofascista na qual existe a relação entre
um discurso ambientalista extremista associado a algum tipo de supremacia
étnica/nacional/cultural - geralmente uma supremacia branca e cristã -, chegando a conclusões
4
A palavra será apresentada sempre entre aspas no texto, uma vez que se compreende que a noção de natureza aqui
empregada é um constructo resultante de uma percepção ocidental e moderna. A interpreta, portanto, como algo
passível de ser compreendido a partir de um movimento mecânico e, por conseguinte, como um recurso suscevel
de ser dominado e utilizado em prol do desenvolvimento material da sociedade, de acordo com Moreira (2006).
5
O conceito aqui adotado faz referência a Latour (1991).
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRASIL, Lucas Santa Cruz de Assis; AMADEO, Thomaz de la Rocqye; SOLÓRZANO, Alexandro. O Ser humano não é um vírus:
compreendendo o nosso papel no planeta terra para além da sua destruição. In : Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, 9, p. 112-
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de que os recursos naturais “restantes” não poder ser apropriados por outros grupos étnico-
culturais. Defendem vilanias como negação de acesso a recursos naturais básicos como água,
floresta e terra, resultando em minorias sem condições de manterem suas formas de existências.
Estas duas correntes de pensamento acabam por permear algumas análises da pandemia
que surgem na internet e a um primeiro momento, podem até se camuflar como atraentes no
contexto atual. Porém são demasiadamente rasas e simplistas e, dessa forma, não dão conta da
complexidade da questão que estamos vivendo. Por conta disso, o respaldo para ideias
perigosas no âmbito socioambiental, e paulatinamente podem ser assimiladas pelo senso
comum e por alguns líderes poticos, podendo mais tarde legitimar ações totalitárias e
promotoras de mais desigualdade.
COMO VEMOS A NÓS MESMOS ?
Cabe nos perguntarmos: somos, inerentemente, destruidores daquilo que nos sustenta?
Será que o ser humano, em última instância, é um destruidor atroz de seu lar? O corpo é lar, a
casa é lar, o planeta é lar. A humanidade vai destruir as fundações da casa para que o teto caia
sobre nossas cabeças? A morada, em todas as escalas, deve ser cuidada, com nosso planeta não
deve ser diferente e a chegada abrupta do novo Corona vírus torna isso bem evidente,
escancarando o tamanho da crise civilizatória que estamos vivenciando. Enquanto não nos
entendermos, enquanto cultura ocidental, diferentemente do que viemos fazendo até o
momento, não alcançaremos relações menos destrutivas com o ambiente. Se partimos do
pressuposto que nossas relações com o que chamamos de “natureza” automaticamente trazem
consequências negativas, nunca sairemos dessa espiral dos últimos 2500 anos de subjugar o
mundo natural com vistas no acúmulo material (LEFF, 2020).
A interpretação de que a humanidade é inerentemente devastadora se origina na própria
separação entre a civilização ocidental judaico-cristã patriarcal e a natureza”. Desenvolvemos
relações com a “natureza” ancoradas na dualidade, na antítese, no confronto, na batalha e na
dominação da mesma, em detrimento do convívio, da cooperação, da harmonia e de um
procuo intercâmbio entre as partes (CAPRA, 2006). A lógica da separação, e por consequência
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da dominação tem imperado no modelo civilizatório ocidental e constitui a maioria das
narrativas sobre como nós mesmos, ocidentais , lidamos com a “natureza”. É indiscutível: a
busca por recursos naturais deixou marcas indeléveis nas paisagens pelo globo (AB’SABER,
2003), as quais são evidentes a olhares e cérebros treinados de cientistas, mas também podem
ser notadas pelo transeunte pouco atento.
A intensa transformação do espaço pelas técnicas e as consequentes mazelas notadas no
meio ajudaram a criar condições para a ascensão de um movimento organizado da sociedade
civil nas décadas de 1960/1970: o ambientalismo, alerta aos desdobramentos de nossas
impensadas atitudes com a biosfera (WORSTER, 1991). O ser humano, de forma genérica, é
identificado como o causador de tais tensões, e por isso, deve ter sua ação limitada e/ou
planejada através de variadas maneiras: mudança de hábitos e padrão de consumos, a interdição
de sua presença em certas áreas e, até mesmo, sua erradicação de certos territórios (DIEGUES,
1996).
Repensar o modo de vida da cultura ocidental hegemônica se faz fundamental no
contexto atual. No entanto, vivemos um momento em que as narrativas declensionistas se
tornaram o discurso científico dominante. Esta narrativa tende por dar uma grande relevância
na decadência dos ecossistemas causada pela ação humana. Em outras palavras, o ser humano
é alçado a uma posição de devorador de recursos naturais, associando fortemente
desenvolvimento humano a destruição do ambiente. No entanto, existem outras narrativas
possíveis: para autores da ecologia histórica e antropologia, por exemplo, o que alguns grupos
indígenas da Amazônia fazem é algo mais próximo de uma domesticação da paisagem do que
propriamente o icio da liquidação do bioma (ERICKSON, 2006). Não uma narrativa única
e verdadeira, não existe apenas uma forma humana de existir, múltiplas formas de lidar com
que nós, no ocidente, chamamos de “natureza”.
Narrativas declensionistas apresentam a tendência a um maniqueísmo que acaba por
ocultar outras possibilidades de interações com a “natureza”. O ser humano, inexoravelmente,
serve para destruir o planeta, o local que habita, o lugar que vive, o território que atua, a
paisagem que cria? O declensionismo nos leva ao risco da generalização em relão à
experiência humana na Terra. Ao assumirmos nossa espécie como intrinsecamente prejudicial,
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BRASIL, Lucas Santa Cruz de Assis; AMADEO, Thomaz de la Rocqye; SOLÓRZANO, Alexandro. O Ser humano não é um vírus:
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identificar formas dela ser benéfica para a paisagem que co-consti torna-se praticamente
impossível. Se não admitirmos que existem outras relações sociedade-natureza possíveis, não
conseguimos vislumbrar esperança para nossa espécie na Terra. Pois o que está em crise não é
o ser humano. O que vemos cada vez mais se aproximar de uma ruína é a civilização ocidental
capitalista globalizada desta forma que está posta. Como um rolo-compressor de biomas em
prol de commodities de exportação, atropelando soberanias e etnias, nguas e saberes,
cosmovisões e crenças. O que precisa ser radicalmente transformado é a visão moderna de
“natureza”, que a percebe como um recurso a ser dominado e usado em prol do nosso
progresso”.
Enquanto isso, povos tradicionais como indígenas, quilombolas, caiçaras, caipiras
dentre outros podem demonstrar relações com o meio distintas daquelas enfatizadas pelo
declensionismo. Estes grupos devem ter seus modos de vida valorizados, tanto como forma de
desmantelar simplificações e generalizações indevidas na ciência, mas também como maneira
de evidenciar que outras relações dos humanos com seu planeta são possíveis e estas relações
perduram através dos séculos, apesar do processo colonial. São povos que entendem,
vivenciam, geram e simbolizam a “natureza” de forma distinta, havendo culturas em que a
palavra “natureza” não existe (KRENAK, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia em que nos encontramos evidencia um grande desequilíbrio da forma pela
qual a sociedade moderna lida com o planeta. A partir disso, surge um grande espaço para se
pensar sobre nosso papel na Terra e muitas narrativas distintas entram em disputa. Acima foi
mostrado o perigo de nos considerarmos o rus, que essa perspectiva pode fomentar ões
autoritárias, genocidas e, em últimas instâncias, suicidas. Narrativas de base diferentes das
declensionistas se fazem fundamentais, uma vez que podem destacar a ação humana com
potencial catalisador de processos da “natureza”, destacando a habilidade humana de co-criar
paisagens. A partir dessas outras formas de nos percebermos será possível dar início a
pensamentos e ações que valorizem mais a vida e menos a lógica de produção e progresso
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material, iluminando caminhos que podem assegurar nossa existência de forma mais integrada
ao meio (LEFF, 2020).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AB'SÁBER, A. Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades paisagísticas. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
CAPRA, F. O Ponto de Mutação. trad. Álvaro Cabral; 26ª reimpressão; São Paulo: Cultrix,
2006.
DIEGUES, A. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec, 1996
ELLIS, E; RAMANKUTTY, N. Putting people in the map: anthropogenic biomes of the world.
Frontiers in Ecology and the Environment, vol. 6, n. 8, 2008, pp. 439-447.
ERICKSON, C. The domesticated landscapes of the Bolivian Amazon. In: BALÉE, W;
ERICKSON, C. (Orgs.). Time and complexity in historical ecology: studies in the
Neotropical lowlands. New York: Columbia University Press, 2006, pp.235-278
HARVEY, D. Spaces of Global Capitalism: towards a theory of uneven geographical
development. New York: Verso, 2006.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. o Paulo: Cia. das Letras, 2019
LEFF, E. A Cada Quien su Virus La Pregunta por la Vida y el Porvenir de una Democracia
Viral. Disponível em: <https://halacsolcha.org/2020Leff.pdf>. Acessado em: 2 de maio de
2020.
MOREIRA, R. Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia Crítica.
São Paulo: Contexto, 2006.
WORSTER, D. Para fazer história ambiental. Revista Estudos Históricos, vol. 4, n. 8, 1991,
pp. 198-215.
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