O QUE CHEIRA À COVID-19?

PAISAGEM E SENSORIALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA
 

 

Gabriela Leal Rios[1]
Universidade Federal do Espírito Santo
gabrielalealriosc@gmail.com


RESUMO: 

Tendo em vista a experiência atual que envolve o novo coronavírus e entendendo principalmente a relação da sensorialidade olfativa com as doenças, busca-se refletir acerca do papel dos aspectos sensoriais na construção social das paisagens em momentos de pandemias, e analisar as marcas olfativas socioespaciais deixadas pelo novo coronavírus nas paisagens e nas experiências de quem vivencia esse contexto.

Palavras-chave: Pandemia de COVID-19; Paisagem; Sensorialidade olfativa.


 

 

A PANDEMIA DE COVID-19 E AS MUDANÇAS NA SENSORIALIDADE OLFATIVA

 

 Sair na rua em tempos de pandemia é uma experiência que não remete a traços comuns do cotidiano. Poucas pessoas nas ruas na maioria dos lugares e, como marca significativa nos corpos, a presença das máscaras. Silêncio aonde antes se ouviam ruídos, ausência de movimento, o medo ao toque e o álcool em gel nas mãos caso o toque encontre resposta. Chegar em casa e retirar todas as roupas; retirar a máscara tomando o cuidado para não encostar nos olhos, boca ou nariz; lavar a máscara e pendurar no sol. Lavar as mãos com sabão fazendo os movimentos indicados, seguindo o que ouviu atentamente nas recomendações de vídeos da internet e reportagens televisivas, que prometem eliminar a sujeira que vem da rua, depois álcool em gel novamente. Lavar todas as embalagens das compras que chegaram do supermercado com água sanitária. Ouve-se o barulho da tosse de algum familiar – a tosse durante a pandemia não soa como uma tosse comum. Máscaras dentro de casa a partir de agora.

 No contexto de pandemia em que vivemos, com a mudança nos modos de experienciar e enxergar os lugares e os próprios sujeitos, entende-se a sensorialidade como algo que se modifica e se constrói a partir da experiência. No espaço público e no ambiente doméstico a mudança sensorial do cotidiano em uma pandemia se tornam quase obrigatórias como medidas de contenção da doença e buscam-se nas paisagens as marcas que possibilitam a compreensão destas mudanças nos estímulos perceptivos e na forma como estes se relacionam com o corpo, uma vez que a paisagem se modifica e com ela os modos com os quais o corpo a percebe. Um profissional da saúde, por exemplo, perde grande parte de sua sensorialidade estando coberto pela proteção necessária para vivenciar o ambiente hospitalar durante uma epidemia. Quem vive atrás das máscaras perde a possibilidade de respirar livremente e um doente atingido pelo novo coronavírus perde a capacidade de sentir cheiros pois o vírus pode trazer impactos ao sistema olfativo – perder essa sensibilidade se torna um fator de medo diante do contexto. Tomando a sensorialidade olfativa como foco, tendo em vista sua relação íntima com a memória e com as emoções e como sendo um componente importante do estudo das paisagens, busca-se observar quais serão as marcas aromáticas que se fazem presentes no contexto atual. 

 Quais são os cheiros que marcam as paisagens da COVID-19? O medo da contaminação que instiga o tornar antisséptico, os mortos nas ruas de Guayaquil, os caminhões-pipa desinfetando as ruas com cloro, as máscaras descartáveis coladas no rosto que contêm o cheirar. O olfato compõe o mundo dos significados e Tuan (1983) já mencionava a existência de um mundo olfativo no qual odores e fragrâncias se arranjam espacialmente de forma organizada e não aleatória. Mas qual será o mundo dos cheiros contidos atrás da máscara? E o mundo olfativo de uma cidade vazia? 

 Nos espaços públicos se sente o cheiro do coronavírus? Se o caminhão passa com seus jatos de solução desinfetante o odor existe (Figura 1). E se ele não passa? Práticas sociais cotidianas exalam seus aromas deixando suas marcas na paisagem, mas com o estado de distanciamento social e as cidades desertas em quarentena, algumas destas deixam de ser cotidianas e passam a ocupar uma posição de ausência no espaço, tornando-se presentes apenas na memória. Mas a memória e o olfato são íntimos, e se tornam ainda mais pela falta de uma linguagem que descreva as notas aromáticas dos cheiros emocionais guardados na nossa mente. Assim como não se esquece o cheiro da barraca de churrasquinho que ocupava todas as noites a esquina da rua, os cheiros que marcam a vivência da pandemia do coronavírus não serão esquecidos tão facilmente. O vazio olfativo de tudo aquilo que estava presente nas paisagens cotidianas foi preenchido pelos cheiros da COVID-19 e suas simbologias.

Figura 1 - Caminhão desinfetando as ruas de Belém com jatos de produto desinfetante


Fonte: Portal eletrônico de notícias do UOL[2]

 

 As experiências ligadas à pandemia atual não se distribuem de maneira uniforme, mas possuem nuances socioespaciais e atuam de formas diversas em diferentes escalas, assim como as formas de sensorialidade que se constroem junto a estas experiências. Na escala doméstica, o ambiente foi tomado pelo cheiro de água sanitária – já presente no cotidiano de funcionários da limpeza, ganhando agora uma constância diferente – na tentativa de eliminar o vírus, ou a falta de água constante pode impedir famílias de sentir o cheiro do sabão nas mãos. Os projetos de higienização urbana e suas medidas e mecanismos radicais de desinfecção falham em chegar às periferias e, em alguns casos, o que ainda prevalece nestes lugares é o cheiro que exala das suas valas de esgoto a céu aberto. Em meio a isto, a favela da Rocinha, por exemplo, ganha o cheiro do produto de limpeza borrifado ao longo de uma tentativa de desinfecção de suas principais vias durante a pandemia. Nas periferias de Guayaquil, epicentro da COVID-19 no Equador, algumas famílias têm que lidar com os cheiros dos mortos dentro de casa, aguardando a chegada do serviço funerário que colapsou. Os corpos, em alguns casos, diante de uma medida desesperada dos familiares, motivada pela putrefação dos corpos e pela força simbólica da dimensão olfativa, acabam sendo lançados nas ruas.

 

ENTRE MIASMAS E ANTISSÉPTICOS

 Historicamente, grandes surtos de doenças são marcados por experiências sensoriais ligadas à mudança dos cheiros e, portanto, culminaram para atribuição de significado a estes – seja pelo cheiro de putrefação dos corpos e das feridas nos doentes, como é o caso da Peste Negra, ou o mau cheiro de esgoto que tomou os ares no Grande Fedor em Londres[3] durante a pandemia de cólera. A ocorrência de doenças causadas por ingestão de água e alimentos contaminados na história antiga das cidades é associada ao próprio mau cheiro que pairava sobre estas, como consequência do despejo de dejetos em locais impróprios e falta de um sistema de esgoto ideal para a salubridade. Era comum pensar, antes do desenvolvimento da teoria microbiana, que a doença era carregada no ar pelos odores pútridos e miasmas, que seriam os ares irrespiráveis, produtos da putrefação dos corpos e da matéria orgânica.

Corbin (1987) aponta que o início de uma investigação olfativa e, principalmente, da busca por uma linguagem olfativa que pudesse definir os odores se dá na medicina e na química dos gases a partir de uma vigilância olfativa, que teria como objetivo principal detectar e descrever os gases e “ares irrespiráveis”, miasmas e venenos, e estudar seus efeitos sobre o corpo – definir o pútrido para entender os mecanismos das infecções. Corbin menciona uma dupla valorização dos odores, uma vez que os antissépticos e os aromas terapêuticos seriam a solução para a fetidez ligada às doenças e aos miasmas, “tanto os sintomas quanto o remédio baseiam-se na olfação” (CORBIN, 1987, p. 27). 

Os sentidos não são meras ferramentas de percepção, a eles são atribuídos significados. “Há muito tempo, que já não se considera a visão apenas um simples registro do estímulo da luz; ela é um processo seletivo e criativo em que os estímulos ambientais são organizados em estruturas fluentes que fornecem sinais significativos ao órgão apropriado” (TUAN, 1983, p. 11). O olfato, tato e paladar, aos quais possuem seus processos cognitivos negligenciados, atuam em papel importante no processo de noção de espaço em conjunto aos outros sentidos. Basta tomar os casos, por exemplo, de pessoas que experienciam o processo de anosmia (perda parcial ou total do olfato), e notar o quanto o odor atua em um papel de oferecer ao corpo noção de entorno. O significado negativo atribuído ao odor pelo desejo histórico de eliminação do mau cheiro acaba por minimizar o potencial olfativo ligado às nossas emoções, memórias e ao poder de nos transportar para momentos vividos marcados por um aroma. 

 

ODORES E MEMÓRIA

 Como o odor e mesmo outros meios de percepção permanecerão na memória em um contexto pós coronavírus? As marcas deixadas nas paisagens pela pandemia vão se diluir ou expandir suas marcas nas cidades de todo o planeta assim como a gripe aviária, que estabeleceu no sudeste asiático as máscaras nos rostos como componentes do cotidiano? Talvez com o tempo a imagem do COVID-19 desapareça, as pessoas deixem de usar as máscaras nas ruas e estas voltem ao seu funcionamento normal. O odor da fumaça do escapamento dos automóveis e os perfumes do cotidiano vão retornar e talvez o cheiro de água sanitária e cloro se limite a poucos momentos. Mas a sensorialidade traça caminhos que farão com que esta pandemia seja marcada na memória de fato por paisagens com notas olfativas.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

CORBIN, A. Saberes e odoreso olfato e o imaginário social dos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

 

HALLIDAY, S. The great stink of London: Sir Joseph Bazalgette and the cleansing of the Victorian metropolisGloucestershire: The History Press, 2009.

 

TUAN, Y. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL, 1983.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

RIOS, Gabriela Leal. O que cheira a covid-19? Paisagem e sensorialidade em tempos de pandemiaRevista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 39-43, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 30/06/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil                                                                                              

 

1

 


[1] Graduanda em Geografia na Universidade Federal do Espírito Santos – Campus Goiabeiras, Vitória (ES).

[2] Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/05/04/ruas-de-belem-sao-pulverizadas-no-combate-ao-coronavirus.htm>. Acessado em: 04 de maio de 2020.

[3] No verão de 1858 em Londres, aonde os excrementos e resíduos industriais viam seu destino final no Rio Tâmisa, também principal fonte de abastecimento de água da capital, o calor incomum acelerou a fermentação dos dejetos no rio, causando o chamado Grande Fedor. Em plena pandemia de cólera e aceitação da teoria dos miasmas – que seriam um tipo de emanação de origem nociva que poderia atacar o corpo humano através do ar, o cheiro que tomou a cidade foi um dos principais motores da aceleração das tomadas de decisão para a implantação de um sistema de escoamento eficaz (HALLIDAY, 2009).