DAS ESCALAS DA CRISE ÀS DIMENSÕES DO GENOCÍDIO:

UM ENSAIO ACERCA DE POSSÍVEIS IMPACTOS DA COVID-19 SOBRE OS TERRITÓRIOS INDÍGENAS NO BRASIL

 

Vinícius Martins da Silva[1]

Universidade Federal Fluminense (UFF)

vinitda.97@gmail.com

 

Pedro Catanzaro da Rocha-Leão[2]

Universidade Federal Fluminense (UFF)

pedroleao0498@gmail.com 

 


RESUMO: 

Este ensaio analisa os potenciais impactos da pandemia da Covid-19 sobre os territórios indígenas, tomando a questão da terra/território como central na dinâmica de acumulação capitalista no campo brasileiro. A partir disso, exploramos a relação entre o aumento da violência contra os povos indígenas e a conformação da Covid-19 enquanto potencial máquina necropolítica à serviço do genocídio e da liberação de ativos para o capital. 

 

Palavras-chave: Covid-19; Territórios Indígenas; Violência.


 

A crise de saúde global desencadeada pela pandemia da Covid-19 abala as estruturas sociais e econômicas que sustentam o modo de vida moderno, colonial e capitalista imposto aos povos do mundo ocidental. Em relação aos povos indígenas, a crise sanitária em tela tem se revelado como uma potencial máquina necropolítica que, nas mãos de um Estado sabidamente genocida e etnocida, ameaça diretamente as existências destes povos. 

A história, havemos de lembrar, oferece-nos variados exemplos acerca do papel desempenhado por grandes epidemias na reorganização de sociedades — seja através de impactos populacionais[3] ou de mudanças na própria forma de compreensão espacial das doenças (BOTELHO & CHALO, 2020). Esta observação reforça que a questão indígena excede em muito os limites do debate indigenista, nos remetendo ao caráter explicitamente civilizatório inscrito nas crises capitalistas. A constatação de tal caráter civilizatório, assinalado nas múltiplas faces da crise — financeira/econômica, política, climática, hídrica, alimentar, energética, sanitária entre outras -carrega consigo a noção de que a crise não se restringe aos limites do capitalismo, mas, isto sim, encerra uma crise no padrão de poder moderno-colonial-capitalista, constituído a partir da invasão europeia sobre as chamadas Índias Ocidentais (PORTO-GONÇALVES, 2006). 

Situando-nos no espaço-tempo Brasil-2020, há de se considerar a potência destrutiva da combinação entre um governo fascista e ultraliberal, uma burguesia predatória e imoral e um vírus contagioso e letal, que segue ceifando muito mais vidas do que estimam os dados oficiais. Os ingredientes político-econômicos desta combinação nos autorizam a remontar até invasão europeia sobre as Américas, a qual originou o sistema mundo moderno-colonial. A partir deste marco, como aponta Quijano (2000), a raça converteu-se no critério fundamental de configuração da estrutura de poder da nova sociedade, criando, nas palavras de Fanon, “zonas do ser e do não-ser”, a partir das quais o poder soberano define “quem importa e quem não importa, quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41). 

Dessa forma, o curso da pandemia tem provado, atravessado pelo recorte étnico-racial imperativo tanto nos centros como nas periferias do sistema-mundo, que mesmo os impactos resultantes de catástrofes biológicas estão circunscritos aos termos da conformação política e econômica da sociedade. Com isso, especificamente no caso dos povos indígenas, é preciso considerar: (1) sua vulnerabilidade às doenças brancas[4]; (2) a instrumentalização histórica dessas doenças enquanto máquinas de morte e extermínio contra os índios; (3) o ataque sistemático sobre a Política Nacional de Saúde Indígena pelo governo Bolsonaro[5]; (4) o processo sistemático de desmonte de direitos territoriais conquistados e inscritos na Constituição Federal de 1988 (CF/88), acentuado sobretudo a partir do período de ruptura política (2015)[6] (PORTO-GONÇALVES et al, 2018)[7]; (5) a posição de front em que hoje se encontram as terras indígenas (TIs) em relação à violenta expansão/invasão da fronteira agromineral sobre a Amazônia[8]

Dentre os fatores listados, destacamos o último deles, que está implicado na incessante busca por novos espaços/novas formas de acumulação pelo capital, o que historicamente impulsionou a expropriação de milhares de hectares de terras de suas gentes. Este processo, o qual Marx denominou por acumulação primitiva, foi e continua sendo dinamizado, sobretudo pelo uso da violência, elemento estruturante da formação territorial brasileira. 

As violências, em suas várias dimensões, fundamentam-se no preconceito e na negação de saberes outros diante dos pressupostos do eurocentrismo, e ocorre incessantemente há pelo menos 500 anos. No tocante à questão indígena, suas justificativas materiais e econômicas residem, sobretudo, na significância e na extensão de seus territórios[9] — dos 850 milhões de ha do território brasileiro, 117 milhões de ha são TIs, o que representa 13,8% do total -, que são encarados pelos capitais agromineral e financeiro como um verdadeiro ‘obstáculo’ ao ‘desenvolvimento’. 

 A partir da ruptura política, o avanço do capital sobre a Amazônia teve seu ritmo consideravelmente acelerado, conforme expressa o aumento das ocorrências de conflito por terra na macrorregião Norte (figura 1), onde localizam-se 98,25% da extensão das TIs no Brasil. Nesse sentido, destacamos dois aspectos fundamentais presentes na atual configuração territorial do espaço agrário brasileiro que orientam nossa análise: a centralidade ocupada pela questão da terra/água/território na dinâmica de acumulação capitalista; e a categoria de povos indígenas como principal alvo da violência contra as populações tradicionais no Brasil.

 

Figura 1 - Ocorrências de Conflitos por Terra na Macrorregião Norte do Brasil

Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno. Elaboração própria, LEMTO-UFF, 2020.

 

A Covid-19 nesse contexto passa a ser concebida por grileiros, fazendeiros, mineradoras e pelo próprio governo federal, como uma potencial máquina necropolítica a ser empregada na intensificação do processo de expropriação e desterritorialização já em curso no campo, e, sobretudo, na Amazônia. Este cenário tem sido incansavelmente denunciado por lideranças e órgãos indígenas e indigenistas, tanto em esfera nacional como internacional. 

Tais denúncias expressam a omissão (ativa) do Estado brasileiro frente à situação crítica enfrentada pelos povos indígenas, que têm se desenrolado através de duas frentes principais: a inação de SESAI e FUNAI que, em virtude de seus desmontes nos últimos anos, têm falhado em prover as condições sanitárias necessárias; e a persistência das invasões em terras indígenas durante o período de isolamento social, munidas de estímulo discursivo e jurídico-político por parte do Estado[10]. Neste cenário, cresce a cada dia o número de mortes pela contaminação da Covid-19 nos indígenas brasileiros, contabilizando, em 12 de maio de 2020, um total de 78 mortes e 371 casos confirmados.[11]

Na esteira dessa dinâmica genocida e etnocida empregada contra os povos indígenas, têm sido desenvolvidas estratégias de r-existência tal como fazem desde a invasão colonial europeia. A construção de redes de ajuda mútua entre os povos tem se mostrado importante no combate a pandemia, por exemplo. A realização da maior mobilização nacional indígena, o Acampamento Terra Livre (ATL), ocorreu virtualmente pela primeira vez na história e contou com forte participação popular, chegando à casa dos 150.000 acessos. Diversas lideranças e movimentos da juventude e das mulheres indígenas estiveram presentes e mostraram as possibilidades que emanam quando tudo parece desmoronar.

Apresentada no último dia do ATL, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, formada por deputados, senadores, organizações/movimentos indígenas e sociedade civil enviou à Organização Mundial de Saúde (OMS) a Carta dos Povos Indígenas de Todo o Mundo solicitando, dentre outras medidas, a 1) recomendação à países a priorização de medidas específicas para garantir a proteção à vida dos povos indígenas; 2) e a criação de um Fundo Emergencial.

Krenak (2020) nos provoca apontando que o futuro é agora e anunciando que o amanhã não está à venda. O que é uma verdade, desde muito antes de 1492, se depender dos povos indígenas e demais grupos com relação tradicional com a terra. A provocação é sobretudo para nós, brancos, entendermos o chamado e somar força às fileiras da resistência em defesa da vida, da dignidade e do território de todas as classes sociais em situação de subalternização.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BOTELHO, M. & CHALO, G. A produção da natureza e o coronavírus. IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, junho de 2020. Disponível em: <http://ippur.ufrj.br/index.php/pt-br/noticias/outros-eventos/713-a-producao-da natureza-e-o-coronavirus?fbclid=IwAR2suMQwZT8sjWDrssbWbtNXI8VO74Dn6LsBZC3PWe35c80K3tUxzF_4Ta8>. Acessado em: 03 de maio de 2020. 

 

BRUM, E. A miliciarização da Amazônia: como o crime vira lei e o criminoso “cidadão de bem” na maior floresta tropical do mundo. Conflitos no campo Brasil, v.1, 2020. 

 

GUAJAJARA, S. Governo Bolsonaro: o retrato da barbárie contra os povos indígenas e a vida. Conflitos no campo Brasil, v.1, p. 182-189, 2020. 

 

INSTITUTO DE PESQUISAS ESPACIAIS. Monitoramento do desmatamento da floresta amazônica brasileira por satélite. Coordenação geral de observação da terra.  Disponível em: <http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes>. Acessado em: 05 de julho de 2020. 

 

KRENAK, A. O amanhã não está à venda. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2020. 

 

MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo. n-1 edições, 2018. 

 

MITIDIERO, M. MARTINS, L. MOIZÉS, B. O Parlamento e o Executivo na luta contra a reforma agrária e a preservação da natureza. Conflitos no campo Brasil, v.1, p. 196-205, 2020. 

 

PAGLIARO, H.; AZEVEDO, M.; SANTOS, R. (Orgs.). Demografia dos povos indígenas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2005.

 

PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

 

PORTO-GONÇALVES, C.W.; CUIN, D. L.; SILVA, M.; ROCHA-LEÃO, P. A ruptura política e a questão agrária no Brasil (2015-2017): da política de terra arrasada à luta pela dignidade. Revista OKARA: Geografia em debate, v.12, n.2, 2018.

 

QUIJANO, A. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, E. (Org.). La colonialidad del saber – eurocentrismo y ciencias sociales – perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Clacso-Unesco, 2000.

 

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

SILVA, Vinícius Martins da; ROCHA-LEÃO, Pedro Catanzaro da. Das escalas da crise às dimensões do genocídio: um ensaio acerca de possíveis impactos da COVID-19 sobre os territórios indígenas no Brasil. Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº10, p. 116-122, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 01/07/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil

 


[1]Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista no Programa de Educação Tutorial (PET) e integrante do Laboratório de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO) e do Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários (GT Agrária), da Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Local Rio de Janeiro e Niterói. 

[2]Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista CNPq no Laboratório de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO) e integrante do Grupo de Trabalho em Assuntos Agrários (GT Agrária), da Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Local Rio de Janeiro e Niterói. 

[3]O genocídio moderno-colonial contra os povos originários é um exemplo pertinente, porém dotado de uma densidade superior à noção de população. Afinal, o decrescimento populacional indígena de 3.000.000 em 1.500 para 817.962 em 2010 (PAGLIARO et al, 2013) exprime a tentativa de um extermínio étnico e civilizacional completo perpetrado por um povo contra centenas de povos, cujos meios não se limitaram à difusão de epidemias, ainda que estas tenham desempenhado papel decisivo. 

[4] Fazemos referência à vulnerabilidade dos corpos indígenas às doenças trazidas pelos europeus, postos que estas eram desconhecidas por seus sistemas imunológicos. Sublinhe-se que tal vulnerabilidade não está restrita apenas à fatores biológicos. Ela também está atrelada à fatores socioculturais que potencializam a transmissão da Covid-19, como o costume de habitação comunitária das malocas (construções em que vivem diversas famílias indígenas). 

[5]A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) vêm sofrendo graves ataques e retrocessos, Tais como “a redução do orçamento, a reestruturação do programa Mais Médicos (que gerou uma perda de 81% do quadro de médicos que atuavam nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas) e a tentativa de extinção da SESAI e consequentemente do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS)” (GUAJAJARA, 2020, p. 187). 

[6]Entre 1990 e 2014 foram apensados 91 Projetos de Lei (PLs) ferindo os direitos dos povos do campo, enquanto entre 2015 e 2019 este número chegou à 111 (MITIDIERO et al, 2020). 

[7]Baseado em PORTO-GONÇALVES et al (2018) entendemos que, por mais que o impeachment de Dilma Rousseff tenha sido em 2016, desde 2015 a aliança entre as classes dominantes para não permitir seu governo anuncia um novo período político nacional com profundas consequências socioespaciais: a ruptura política. A continuidade na maioria das pautas do governo de Temer no atual governo Bolsonaro nos faz incorporar o ano de 2019 ao período da ruptura política.

[8]Em 2019 foram invadidas 67 áreas indígenas, nas quais vivem 26.621 famílias (80% destas na Amazônia Legal, região que foi alvo de 87% das vítimas de assassinato no campo em todo o Brasil em 2019). Os indígenas representaram, ainda, 34,4% das famílias envolvidas em conflito e 28% dos assassinatos no campo no Brasil no mesmo ano (BRUM, 2020).

[9]A intensidade dos desmatamentos em territórios indígenas é prova cabal desta significância. Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), os territórios indígenas tiveram 423,3 km² desmatados entre agosto de 2018 e julho de 2019, um total 74% maior do que o verificado no mesmo período anterior (242,5 km²).

[10]Somada às seguidas tentativas dos ruralistas em votar a MP 910 (conhecida como ‘MP da grilagem’) em plena pandemia, a Funai emitiu, no dia 22 de abril, a Instrução Normativa nº 9 que permite legalizar o crime de grilagem dentro de áreas indígenas. A medida ataca a Constituição Federal, Convenções Internacionais e decisões do Supremo Tribunal Federal (STF). Disponível em: <http://apib.info/2020/05/01/durante-a-pandemia-funai-emite-norma-que-incentiva-invasao-de-terras-indigenas/>. Acessado em: 05 de maio de 2020.  

[11]As informações foram retiradas do boletim semanal da APIB sobre a Covid-19 entre os povos indígenas. Optamos pelos dados da APIB pois, ao contrário da SESAI, a entidade indígena contabiliza o número total de indígenas, e não apenas aqueles que estão aldeados. Disponível em: <http://apib.info/2020/05/13/apib-organiza-comite-para-registrar-avanco-da-covid-19-sobre-povos-indigenas/>. Acessado em: 05 de maio de 2020.