SOCIEDADE, NATUREZA E CORONAVÍRUS

 

 

Bruno Sant’Anna Araújo Luiz[1]

Universidade Federal Fluminense

brunoaraujo@id.uff.br

 


RESUMO: 

O objetivo deste artigo é fazer uma análise teórica dos limites do modelo capitalista de sociedade, cujas contradições e desigualdades ficam mais evidentes no presente momento de difusão global da COVID-19. Esse artigo busca entender as razões pelas quais estamos em uma pandemia e aponta para a ruptura entre sociedade e natureza como a primeira além de refletir sobre as bases que deveriam alicerçar a construção de uma nova relação.

Palavras-chave: Sociedade; Natureza; Coronavírus.


 

UM HISTÓRICO DA RELAÇÃO SOCIEDADE - NATUREZA

A devastação do meio ambiente pela ação humana estressa ecossistemas e diminui as distâncias entre seres humanos e animais. O que impulsiona tal devastação é a compreensão de que a natureza é um recurso a ser explorada, uma ideia que vem sendo construída historicamente que se estabelece a partir de uma ruptura na relação sociedade- natureza.

O desenvolvimento da filosofia pré-socrática (VII ao V A.C.) buscava compreender o funcionamento da natureza a partir de uma racionalização do pensamento, tratando-a como máquina que obedece a comportamentos determinados. Nesse momento o “pensar” sobre a natureza ganhou sentido racional e adquiriu a perspectiva de destrinchar as suas leis para compreendê-la, definindo-a sem considerar a humanidade como sua parte integral. Essa primeira ruptura entre sociedade e natureza “foi uma espécie de corte ao nó górdio da vida que une todos os seres vivos em uma única Mãe Terra. Assim, abriu-se caminho para dominá-la e manipulá-la” (ACOSTA 2016, p. 109). 

Séculos depois essa ruptura foi fortalecida a partir da incorporação de outras. Em 1492 a chegada ibérica em Abya Ayala (que no futuro será renomeada de América) veio acompanhada de uma estratégia de dominação para exploração e uma consequente imposição de um imaginário para legitimar a superioridade europeia que contrapôs o europeu-urbano-comercial (civilizado) ao estrangeiro-selvagem-inferior (primitivo). Como afirma ACOSTA (2016, p. 63), 

Neste ponto emergiram a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a colonialidade do ser, que não são apenas uma recordação do passado: estão vigentes até nossos dias e explicam a organização do mundo, já que é um ponto fundamental na agenda da modernidade.

 

O expansionismo ibérico impulsionou a visão de que o diferente do padrão europeu-urbano-comercial estava passível de sofrer intervenção e Abya Ayala foi palco dessa ação. Caminharam lado a lado a exploração de base escravocrata de seres humanos, primeiro os indígenas e depois os negros sequestrados da África com a exploração violenta das nossas florestas e do nosso solo. A colonialidade se fundou no racismo e no julgamento da natureza como reserva de recursos passíveis de exploração, aprofundando a primeira ruptura entre sociedade e natureza.

Mais a frente, nos séculos XVI e XVII, o iluminismo, que nascia, trazia novamente a razão para a ordem do dia e reforçava o lugar do ser humano como o centro do mundo. Francis Bacon, filósofo e cientista, defendeu que a “[...]ciência torture a natureza assim como faziam os inquisidores do Santo Ofício com seus réus, para conseguir revelar até o último dos seus segredos” (BACON apud ACOSTA, 2016, p. 63). René Descartes considerava o universo como uma máquina submetida a leis e dizia “[...] que o ser humano deve converter-se em dono possuidor da natureza” (DESCARTES apud ACOSTA, 2016, p. 64). Dessa forma, a ruptura é reforçada.

 

SOCIEDADE, A NATUREZA E O VÍRUS

Na metade do século XX, a base filosófica e a cosmovisão que encaram sociedade e natureza como apartados, sustentam a criação do conceito de desenvolvimento como conhecemos hoje, vinculado à intensificação da produção e à velocidade da circulação de capital e mercadorias. Em 20 de janeiro de 1949 ao fazer seu discurso no congresso estadunidense o presidente Harry Truman colocou todos os países do globo em uma hierarquia em que o referencial para determinar suas posições seria os Estados Unidos. Quanto mais urbano-moderno-comercial mais desenvolvido um país seria considerado.

Tal conceito obteve um 

[...] vigor inusitado. Transformou-se em uma meta a ser alcançada por toda a humanidade quase como um destino natural. Converteu-se em uma exigência global que implicava a difusão do modelo de sociedade norte-americano, herdeiro de muitos valores europeus (ACOSTA 2016, p. 53).

 

Desse momento em diante “o mundo se ordenou para alcançar o desenvolvimento”. “Surgiram planos, programas, (...), metodologias e manuais de desenvolvimento, bancos especializados (...) e uma longa lista de eteceteras.” (ACOSTA 2016, p. 54). 

A perspectiva desenvolvimentista se materializa nos dias de hoje através do neoliberalismo e da globalização que são seus vetores político-econômico e territorial. A busca pelo progresso por meio do desenvolvimento está nos discursos políticos, nas falas de empresários, nas justificativas de implementação de projetos que aceleram o desmatamento, que degradam solos, e que des-territorializam comunidades para re-territorializar a partir do progresso e, como vimos, carrega em si séculos de contradições. 

 A separação entre humano e natureza deixa o caminho livre para uma exploração sem limites. O objetivo de alcançar o desenvolvimento se materializa através da “acumulação por despossessão”, conceito apresentado por David Harvey (2003) que significa a incorporação de novos espaços à modernidade e à rede (urbana) do capital dotando-os de capacidade produtiva e de conexões com os territórios centrais - destruindo relações sócias territoriais preexistentes julgadas inferiores.

 Logo, o espaço improdutivo e não conectado ao circuito do capital precisa sofrer intervenção. É com esse argumento que florestas são derrubadas, solos são abertos, o assoalho oceânico é revirado e com isso hábitats são destruídos, ecossistemas são expostos a fragilidades, biomas são devastados e a vida selvagem fica sob estresse. Alguns espaços naturais pelo mundo em Ásia, África e América se tornaram, dessa forma, zonas de sacrifício. Em nome do desenvolvimento avançamos sobre a natureza, no entanto, tal avanço tem “aproximando o ser humano de espécies e animais antes distantes” (VIDAL, 2020), é o que afirma Kate Jones (chefe do departamento de ecologia e biodiversidade do University College London).

 O ecologista Thomas Gillespie (professor associado do Departamento de Ciências Ambientais da Universidade Emory) afirma ao artigo de John Vidal que

 

Em todos os lugares, a vida selvagem está sob mais estresse. As grandes mudanças na paisagem estão fazendo com que os animais percam hábitats, o que significa que as espécies se aglomeram e também têm maior contato com os seres humanos. As espécies que sobrevivem à mudança estão agora se movendo e se misturando com diferentes animais e com seres humanos (VIDAL, 2020).

 

 Conclui-se que a ação antrópica é a razão da entrada do coronavírus na população humana, a partir da alteração dos ciclos biogeoquímicos e do metabolismo de biomas e ecossistemas, provocando uma redução das barreiras naturais entre animais - que podem ser hospedeiros de vírus - e nós.

A continuidade desse padrão de relação sociedade-natureza que diminui os obstáculos entre animais e humanos aponta para uma ameaça crescente para a vida humana já que cerca de 75% das novas doenças que infectam seres humanos se originam em animais, segundo estimativa do Centro de Controle de Prevenção de Doenças dos EUA (VIDAL, 2020).

 

O VÍRUS ESCANCARA AS INJUSTIÇAS

 O vírus encontrou no Brasil uma sociedade frágil, com pessoas que não podem escolher cumprir o isolamento social, pois suas rendas vêm diretamente da sua produtividade (entregadores, trabalhadores informais e motoristas de aplicativos), com habitações sem saneamento básico e acesso à água - item básico de higiene para combater a difusão do vírus - com sistema de saúde incapaz de atender a demanda que cresce e com um sistema de proteção social destruído. Essa fragilidade contribui para que as consequências sejam agravadas desnudando as contradições desse sistema e levantando os véus das injustiças “social, sanitária, ambiental e cognitiva” (FIRPO, 2020) e racial. 

 O acúmulo de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento garantiu a obtenção do lucro de poucos a partir da exploração capitalista da natureza e da apropriação do aparato estatal nos colocando em uma situação de fragilidade social em que apesar do vírus não fazer distinção de raça e de classe social, sabemos que as condições sociais desiguais provocarão impactos também desiguais e sabemos que serão pretas e pretos, pobres e moradores das periferias quem mais sofrerão. 

 

CONCLUINDO: A NECESSIDADE DE RECONECTAR SOCIEDADE E NATUREZA

 É preciso aproveitar o desnudamento das injustiças e apontar as críticas necessárias ao modelo capitalista de sociedade. Mas parar por aí seria um erro, pois a crítica em si não muda a realidade. É tarefa nossa acumular e propor alternativas de sociedade que garantam que a humanidade não passará por um momento como esse e que caso ele aconteça novamente tenhamos condições infraestruturais que mitiguem as desigualdades socioespaciais.

 E não há possibilidade dessas alternativas passarem por dentro das lógicas de desenvolvimento e progresso. Como conclui Carlos Walter (2017, p. 63), nossa crítica não deve se limitar às desigualdades do desenvolvimento, mas ao desenvolvimento enquanto tal, sob pena de o reforçarmos à medida em que a única solução para as superar seria o próprio desenvolvimento. E está nítido para onde esse caminho leva a humanidade. 

Dessa forma, é imperativo pensar em alternativas ao desenvolvimento passando por fora da lógica que opera o sistema moderno-colonial de desenvolvimento, progresso e crescimento econômico e por dentro de uma cosmovisão que reconecta sociedade-natureza, reconhecendo os impactos das ações humanas e buscando as justiças social, sanitária, ambiental, cognitiva e racial. Assim será possível caminhar em outra direção.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACOSTA, A. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundosSão Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.

 

PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

 

HARVEY, D. O novo imperialismo. Oxford: Oxford University Press, 2003.

 

FIRPO, M. Coronavirus e o véu das (in) justiças: crise e vulnerabilidades socioambientaisDisponível em: <https://cee.fiocruz.br/?q=Coronavirus-e-o-veu-das-injusti%C3%A7as-crise-e-vulnerabilidadessocioambientais&fbclid=IwAR1Dscz7strMFdVEY2GLMwRuZQ6DDKsYsP87Rf4zlIRthgZprrweJnwMAjU>Acessado em: 28 de maio de 2020.

 

VIDAL, J. Destruction of habitat and loss of biodiversity are creating the perfect conditions for diseases like COVID-19 to emerge. Disponível em: <https://ensia.com/features/covid-19-coronavirus-biodiversity-planetary-health-zoonoses/>. Acessado em: 26 de abril de 2020.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

LUIZ, Bruno Sant’Anna Araújo. Sociedade, Natureza e Coronavírus. Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 14-19, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 15/06/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.


 


[1] Aluno de Graduação em Geografia na Universidade Federal Fluminense.