HÁ UMA ESCOLA COMO LUGAR EM PERÍODO DE PANDEMIA? 

 

Débora Schardosin Ferreira[1]

SMED – Porto Alegre (RS)

debora.sdf@gmail.com


Ivaine Maria Tonini[2]

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

ivaine@terra.com.br

 


RESUMO: 

O trabalho pretende discutir como a descontextualização dos espaços escolares tem ocorrido neste período de pandemia pelo Covid-19. A partir do aporte teórico de Masschelein e Simons (2017) e Massey (2009), são discutidas as acusações à escola agravadas neste momento de pandemia por desconsiderar suas heterogeneidades. Por fim, propõe-se o espaço escolar como lugar geográfico.

 

Palavras-chave: Escola; Lugar; Ensino Remoto.


 

DEMANDAS ESCOLARES

 

A comunidade escolar - composta por estudantes, responsáveis, professores e funcionários - foi surpreendida por novas demandas neste afastamento devido à pandemia pelo Covid-19. Com o período de isolamento social determinado a partir de meados da última quinzena de março - que tem sido continuamente prorrogado - surgiram enunciados sobre o cumprimento do ano letivo em 2020. Os diferentes sistemas de ensino do país, através dos Conselhos de Educação, orientam a adoção do denominado ensino remoto como uma possibilidade de suprir parte do currículo e/ou manter o vínculo escolar dos estudantes. 

Tal fato serviu para explicitar as desigualdades no país, e não só a diferença de acesso a esta educação entre escolas da rede privada ou pública, mas também as desigualdades internas de cada comunidade escolar. Neste contexto, a escola está cada vez mais distante de uma das suas funções originais - espaço de suspensão para foco no conhecimento (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017), um local que afastava temporariamente os estudantes da sua rotina. Durante este isolamento social a escola, ao tentar ser de forma remota, enfatiza as diferenças socioespaciais dos estudantes no acesso dificultando o direito à educação, o que torna a percepção da escola como lugar com tempo para disponibilidade do conhecimento ainda mais difícil.

Através da argumentação teórica em conexão com medidas governamentais recentes e suas consequências nas ações escolares, pretendemos abordar a relação entre as acusações já existentes à escola, com o contexto atual. Em contrapartida, aponta-se a necessidade de outro olhar para a escola como possibilidade de compartilhamento de conhecimento, defendido por Masschelein e Simons (2017), e também que possa ser vista a partir da ciência geográfica, contextualizando a importância do espaço escolar como lugar a partir da leitura de Massey (2009). 

 

 

COMO SER ESCOLA DIANTE DA PANDEMIA? 

 

 Para responder à questão acima, logo no início do isolamento social, o Conselho Nacional de Educação (CNE) encontrou amparo na própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que prevê parcialmente o ensino à distância como complementação da aprendizagem em situações emergenciais no ensino fundamental[3] e, recentemente, para o ensino médio, a possibilidade de convênios com instituições de ensino à distância[4]. Assim, aproximadamente após um mês da primeira orientação, o mais recente documento do CNE aprova as atividades de forma remota[5], por meio digital ou não, e deixa para que conselhos estaduais e municipais de Educação possam definir como cada localidade seguirá as orientações, dando autonomia às redes e instituições. 

Nesta tentativa do CNE, divulgada na imprensa como “salvamento”[6] do ano letivo, é desconsiderada a heterogeneidade das comunidades escolares no país. Podemos afirmar que, durante a pandemia, agravam-se tanto as desigualdades de consulta digital às atividades, como também do acesso às tais na própria escola. Não só porque permanecer em casa é necessário, ainda acumulando-se às dificuldades pré-existentes de deslocamento dos estudantes até a escola como: distância, segurança, mobilidade, entre outras.

Este descaso com as desigualdades espaciais existentes nas diversas escolas brasileiras é algo que, neste momento, se destaca provando que para além de um excesso de discursos de preocupação com a escola, há pouca consideração com o contexto no qual ela está inserida. Ao nos atentarmos às recentes decisões do CNE, quanto à adoção de atividades de forma remota, há um simplismo tanto nas possibilidades que cada escola tem para disponibilizar este tipo de ensino, como das diferenças internas existentes nas condições de aprendizagem dos estudantes que já são desafios cotidianos na forma presencial.  

 Logo, a partir das reflexões de Masschelein e Simons (2017) encontramos os vieses de acusação à escola que se assemelham às demandas que presenciamos neste período de pandemia. Para “os acusadores”, como denominam os referidos autores, ela é culpada por ensinar artificialmente. Isso porque não aborda assuntos relacionados à realidade, trazendo “alienação”, “desconexão”, como consequência do seu ensino. Por causa disso, há quem defenda até mesmo o fim da instituição. Há uma constante necessidade de atualizá-la, o que se percebe principalmente nesta pandemia quando surgem as demandas por soluções imediatistas, como a compra de sistemas de ensino para reorganizar as redes educacionais emergencialmente, sem considerar as formas de acesso dos estudantes e professores. 

Esta invisibilidade do contexto escolar também se relaciona à acusação de que a escola facilitaria o aprofundamento de desigualdades sociais como instrumento de poder e insistiria em uma suposta autonomia e neutralidade, o que a faz acreditar numa igualdade de oportunidades, ou criar um tratamento desigual (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017).  Não é que a escola negue as desigualdades existentes no seu cotidiano, mas percebemos o motivo desta acusação nas medidas tomadas a partir do parecer do CNE que permite o ensino remoto. As mantenedoras tanto públicas quanto privadas, em sua maioria, o adotaram sem levar em conta as desigualdades que poderiam fomentar. Com este menosprezo pela heterogeneidade particular a cada escola os professores deixam de lado também esta prioridade, pois estão assoberbados, por exemplo, por ter que aprender os sistemas para ensino remoto, continuar planejando atividades, corrigindo-as e ainda lecionar em salas de aula virtuais no mesmo horário das aulas presenciais. 

O desenho que vem se traçando neste período é, mais uma vez, o da diferenciação das comunidades escolares através do mérito individual por uma organização docente e administrativa, já que as suas condições geográficas determinarão o sucesso (ou o fracasso) em relação às demais. Mais uma acusação, segundo Masschelein e Simons (2017) que dará origem às ditas escolas responsáveis que mostram resultados de aprendizagem em detrimento de outras que não reconhecem a necessidade de se organizar para este fim e, por isso, deveriam ser extintas. 

Cabe muito na prática destes acusadores o “professor responsável disposto a basear o seu próprio valor no valor agregado que produz” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p.18). Agora, percebemos que, em suas subjetividades, tanto o professor é agora capturado pelo discurso da sua importante função quanto ao vínculo escolar do estudante com o ensino remoto - e isso o avalia subjetivamente como melhor ou pior na sua profissão - como o próprio estudante pode basear o seu valor no desempenho das atividades, equívoco, pois não se compara com o ensino presencial. Ressalta-se aqui a perspectiva meritocrática que desdenha o contexto escolar e hierarquiza escolas e professores ao atingir metas, ao serem eficientes em rapidez e custos e que têm desempenho por fazer mais com progressiva diminuição das condições de trabalho.  

 

 

PARA VER A ESCOLA COMO UM LUGAR 

A ideia de escola grega como espaço de democratização do tempo livre e não produtivo era “àqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade não tinham direito legítimo de reivindicá-lo” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2017, p. 26). À elite daquela época, esse espaço já não agradava, pois ameaçava seus privilégios e a ordem natural da desigualdade social. Assim, é desde essa feita que a escola causa incômodo por sua prerrogativa do tempo livre para o conhecimento. Hoje ela tende a ser controlada para ser um local como extensão da família e/ou como fim para o mercado de trabalho. E esse embate fica mais evidente nas contradições das distintas iniciativas de um ensino remoto durante a pandemia. Isolados, grande parte dos estudantes não estão presentes naquele local onde, pelo motivo de estarem lá fisicamente, tinham certa igualdade na disponibilidade dos conhecimentos. Tanto este motivo, como o encontro, a criação – é o que caracteriza a escola como um espaço que, em materialidade, pode ser interpretado geograficamente como lugar (FERREIRA, 2019), o que se tem desconsiderado no atual ensino remoto.  

A escola vista como lugar (MASSEY, 2009) abandona um viés cartesiano e cartográfico que ele possa assumir, já que é mais que um ponto que identificamos no mapa, como o local na cidade em que está a escola e suas possíveis representações, como uma simples análise das distribuições na superfície terrestre. É pertinente e necessária a visão heterogênea do espaço escolar a partir de um olhar geográfico, já que percebemos uma representação de forma homogênea, sobretudo durante a pandemia, como se apenas a denominação “escola” condicionasse suas possibilidades. Se a percebermos como lugar, teremos que nos atentarmos para as inter-relações que ali se estabelecem (MASSEY, 2009).

À vista disso, as particularidades do espaço escolar são pistas das várias histórias, trajetórias que estão neste lugar com suas negociações configurando-o em constante mudança. Logo, “se o espaço é simultaneidade de estórias-até-então, lugares são, portanto, coleções destas estórias, articulações dentro das amplas geometrias de poder deste espaço” (MASSEY, 2009, p. 190).  A escola está dentro destas amplas geometrias de poder, que ditam o que é educação, ou como deve ser o ensino neste período, mas por ser um lugar, necessariamente é uma articulação de estórias em dado momento.

Nesse sentido, a escola é o produto de intersecções, que é o entrecruzar dessas estórias e do que é feito com elas em uma constante negociação. Além disso, também conformam o lugar as não intersecções, ou seja, os “não-encontros, desconexões, exclusões, relações não estabelecidas” (MASSEY, 2009, p. 190).

Podemos afirmar, também, que as diversas intersecções que acontecem - ou não - durante a pandemia configuram cada escola, tanto no presente como no futuro. Analisando-a desta forma, com seus encontros e desencontros em constante transformação, sabemos que as práticas de ensino remoto em sua produção de desigualdades modificam consideravelmente as relações que se estabelecem neste espaço. A ideia que a sociedade passa a ter do que representa a escola fica limitada ao currículo como apenas o conteúdo, na forma de linguagem forma e escrita, na via de mão única da transmissão de conhecimento, como parte de um modelo que descaracteriza as peculiaridades de cada escola. 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

FERREIRA, D. S. Cine-geografar a Escola: um currículo geográfico a partir do lugar. 2019. 138p.  Tese (Doutorado em Geografia). Programa de Pós-Graduação em Geografia. Instituto de Geociências. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2019. 

 

MASSCHELEIN, J.; SIMONS, M. Em defesa da escola: uma questão pública. Tradução de Cristina Antunes. 2Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

 

MASSEY, D. Pelo espaço: por uma política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

FERREIRA, Débora Schardosin; TONINI, Ivaine Maria. Há uma escola como lugar em período de pandemia? Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 10, p. 27-32, julho de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 06/07/2020

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil                                                                                              

 


[1] Professora de Geografia na Rede Municipal de Porto Alegre (RS).

[2] Professora Titular da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

[3] Lei 9.394/1996 Art. 32, § 4º 

[4] Lei 9.394/1996 Art. 36, § 11 incluído pela Lei13.415/ 2017

[5] Parecer do (CNE) aprovado em 28/04/2020: Diretrizes para o calendário letivo de 2020 no contexto de enfrentamento da pandemia de COVID-19. Aguarda homologação do Ministério da Educação

[6] Para salvar ano letivo, CNE aprova atividades não presenciais de ensino. Revista Pátio, 28 de abr. de 2020. Disponível em: <https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/parecer-cne-atividades-nao-presenciais/>. Acessado em: abril de 2020.