PANDEMIA E AS ESCALAS GEOGRÁFICAS DA VIDA HUMANA

Ricardo Gilson da Costa Silva[1]

Universidade Federal de Rondônia

rgilson@unir.br

 


 

RESUMO: 

 

Neste ensaio, pretende-se contribuir para o entendimento da geografia das crises do capitalismo global no início do século XXI, no qual a pandemia do novo coronavírus manifesta as escalas geográficas dos impactos humanos. A partir da teoria de Milton Santos, discute-se a globalização como perversidade, ressaltando a crise como processo central do atual período histórico.

 

Palavras-chave: Milton Santos; Globalização; Escala Geográfica.

 


 

O MUNDO, UM PERÍODO EM CRISE

A pandemia do novo coronavírus atinge o mundo com uma velocidade jamais vista nessas últimas décadas do capitalismo global. Pode-se argumentar, a partir de Milton Santos, em “Por uma outra globalização”, à luz desta obra entendemos que trata-se de um período que é em si uma crise, um período composto por sucessivas crises estruturais indissociáveis da vida cotidiana e do lugar como espaço de vida do ser humano em seu encontro com o mundo (SANTOS, 2000).

A densidade política e social desse processo provoca interrogações diversas que obriga a humanidade a pensar em seus desafios existenciais. Em particular, o pensamento científico é levado a perscrutar a multidimensionalidade e multiescalaridade desses acontecimentos globais. Um caminho teórico e metodológico é o diálogo com a totalidade, a totalidade-mundo que nos permite compreender as variáveis, os processos e fatos que produzem a espacialidade do mundo, diferenciando-se nos lugares onde se territorializa tais fenômenos, constituindo, assim, a manifestação empírica do mundo em seu movimento histórico.

A escala geográfica igualmente nos serve como conceito para analisar os eventos (espaço-tempo) que ganham existência nos lugares, revelando as representações espaciais dos sujeitos em suas diversidades e dialéticas. A escala deve ser compreendida como a relação espacial dos sujeitos, Estado e capital, para com o lugar objeto da ação, possibilitando-nos apreender as temporalidades reunidas no espaço como campo de existência e de poder (SANTOS, 1996).

 

GEOGRAFIA DAS CRISES GLOBAIS DO SÉCULO XXI

O início do século XXI está sendo composto por acontecimentos globais que atingem o mundo nas diversas escalas da vida humana. Pode-se afirmar que as crises que modulam o ecúmeno cada vez mais se espraiam como uma espiral que conduz, veicula e introduz forçosamente os fatos como acontecer histórico, permitindo à humanidade sentir e viver o que Milton Santos (1996, 2000) chamou de universalidade empírica, a globalização como perversidade, e o mundo como realidade palpável do acontecer global nas escalas do cotidiano humano.

A geografia das crises globais é complexa no tempo e no espaço, apresentando como potência e como ato um conjunto de colapsos financeiros e sociais que permearam as nações ricas e pobres do planeta, mas sendo, sobretudo, crises de acumulação do capital que levaram milhões de habitantes à miséria absoluta e à erosão da dignidade humana. Na virada de século, a geografia da crise tem na erosão das, até então elogiáveis economias emergentes do sudeste asiático, os chamados tigres asiáticos, o anúncio do que viria a ser uma cartografia das crises globais. Em 1997, Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas foram os países expoentes, atingindo Taiwan, Hong Kong e Coreia do Sul. No ano seguinte, a crise do rublo derreteu o sistema bancário russo, obrigando o FMI a socorrer a segunda potência bélica do mundo – a Federação Russa – para evitar uma ampla contaminação da economia global. De menor impacto, a crise das economias “pontocom” (em 2000) mostrou toda a fragilidade da Nasdaq em ser uma nova prancha de acumulação do capital.

Em 2001, o ataque terrorista às “Torres Gêmeas”, na cidade de Nova York, provocou ações militares americanas no Afeganistão e, especificamente, a invasão do Iraque – sob a falsa justificativa de que este país produzira armas químicas – cuja razão central americana, como ficou comprovado, era o controle geopolítico do petróleo. A crise de alimentos (2007/2008) foi produzida pelo monopólio dos grandes players no controle dos estoques de grãos que alimentam o mundo – soja, milho, arroz e trigo. Foi uma crise gerada pela acumulação de capital das empresas globais, que impuseram miséria e fome aos pobres do planeta, uma crise de fome sem escassez de alimentos.

Contudo, a maior crise do sistema capitalista ocorreu em 2008/2009, quando estoura a bolha imobiliária nos Estados Unidos, levando à bancarrota bancos e empresas do mundo das finanças, e à total miséria milhares de famílias que perderam suas casas e suas economias. O mundo ainda sofre os impactos dessa crise, cuja magnitude levou muitos analistas das diversas matrizes do pensamento a considerar o fim do capitalismo. O mundo mal se recuperara da bancarrota econômica produzida pelas altas finanças do centro do capitalismo, onde muitos países ainda procuram ajustar-se aos caminhos possíveis frente à ampliação da pobreza e das crises sociais dela decorrente. A globalização neoliberal se mostra mais uma vez contundente com a pandemia do novo coronavírus, que se expande em todos os continentes, neste início de 2020, atingindo, sobretudo, os grupos sociais mais vulneráveis. 

 

A PANDEMIA COMO CRISE DO TERRITÓRIO

O novo coronavírus – uma família de vírus que ataca o sistema respiratório, designada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como COVID-19 (SARS-CoV-2), originou-se na China, em novembro de 2019. Em quatro meses produziu grandes impactos sanitários, sociais, econômicos e humanitários, paralisando a economia mundial. A expansão geográfica da pandemia já indicara o seu descontrole e a sua intensidade espacial, decorrente, sobretudo, dos fluxos globais de passageiros e mercadorias que transladam, diariamente, todas as latitudes do planeta.

Sabe-se que a enfermidade é fruto do contato humano com os animais, proveniente da impactada relação homem-natureza. Contudo, a pandemia é socioespacial, produto das relações econômicas globais, e a crise agrava-se com a ação política dos Estados nacionais e das empresas globais, que negam à sociedade qualquer altivez e solidariedade que não passem pela liturgia do mercado (SANTOS, 2000). O capitalismo global paralisou e a incredulidade de governos e dos templos econômicos do mundo corporativo foram, aos poucos, vencidos pelo fenômeno da morte (ARIÈS, 2017), acelerada dia a dia nas cidades afetadas.

No Brasil, pode-se, a priori, analisar a pandemia nas escalas do Estado nacional e dos lugares da vida. A primeira reação do atual governo neoliberal-fascista foi a negação do fato. Ficou famosa a frase do Presidente da República desdenhando que o novo coronavírus tratava-se apenas de “uma gripezinha”. O escárnio é o recurso do autoritarismo para com a dor de milhares de pessoas que, direta e indiretamente, vivenciaram a pandemia ou o seu anúncio, principalmente quando todos os indicadores já informavam a potencial expansão geográfica no território nacional. A defesa da economia, com o jargão “o Brasil não pode parar”, significou que a vida humana não era importante frente aos cifrões do mercado. Para isso, a contra informação foi largamente disseminada pelo executivo federal, contradizendo as orientações do Ministério da Saúde (MS) e da OMS que recomendava, para conter a pandemia, o isolamento social e o investimento na saúde pública.

 

Mapa 1: Brasil – infectados e óbitos com Covid-19 (até 04/05/2020)

 

Uma imagem contendo texto, mapa

Descrição gerada automaticamente

Fonte: Ministério da Saúde (MS). Organização: Autor.

 

Na escala dos lugares, a saúde pública aparece como fenômeno do cotidiano, agravado tanto pela letalidade da Covid-19 (mapa 1) quanto pelas limitações de leitos aos enfermos. O crescimento exponencial dos infectados e os óbitos, diariamente divulgados, aproximou os lugares mais distantes do território brasileiro, relacionando, sobretudo, à calamidade dos postos de saúde e hospitais, instituições públicas há muito fragilizadas. As notícias de que os leitos de Unidades de Tratamento Intensivas (UTI) estavam saturados, e as imagens e convívios com pessoas que não tiveram acesso ou que migravam de hospital em busca de atendimento, permearam a crise e a necessidade de saúde pública como política de Estado.

A pandemia produziu sua cartografia (mapa 1). Em 17 de março de 2020, o MS registrou 291 pessoas infetadas com 01 óbito. Um mês depois, o quadro se agravara, com 33.683 infectados e 2.141 óbitos, atingindo, em 05 de maio, 114.715 infectados e 7.921 mortes, com elevada taxa de letalidade (6,9%). Em termos regionais, para a mesma data, tinha-se os seguintes casos de Covid-19: Norte (15.1%), Nordeste (31,1%), Centro-Oeste (3%), Sudeste (45,6%) e Sul (5,3).

    A cartografia da morte mostra o fluxo da doença expandindo-se em todas as unidades da federação, alcançando grandes e pequenas cidades, dos mais dinâmicos aos mais pacatos munícipios. Significa que a espacialidade dessa patologia segue a mobilidade espacial das pessoas e da economia cada vez mais intensa nas diversas escalas do mundo social. Todavia, os casos confirmados assumem relevo nas grandes cidades e regiões metropolitanas, devido à densidade populacional e a intensidade dos fluxos. Nesses mesmos lugares registra-se a maioria dos óbitos, o que nos permite associar que a adição da densidade populacional com os intensos fluxos mercantis e demográficos necessários ao funcionamento da economia urbana, somada à precária infraestrutura de saneamento básico nas periferias urbanas, convergem à centralidade dos óbitos nessas grandes cidades.

Na escala dos lugares, a pandemia do novo coronavírus evidencia toda a fragilidade humana, principalmente dos grupos sociais vulneráveis, que diariamente precisam arriscar-se ao trabalho para não sucumbir à miséria, enfrentando os riscos de contágios de uma doença, cujo lugar de tratamento a eles estão fechados, revelando-se no sofrimento, na dor e na tragédia humana a política de morte do Estado neoliberal. Se no Sudeste as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro se destacam na mortalidade, no Norte e Nordeste, praticamente todas as regiões metropolitanas estão em situação caótica, com os leitos de UTI praticamente saturados. Recife, Fortaleza e São Luís, no Nordeste, e Manaus e Belém, no Norte, centralizam a crise da saúde pública agravada pela pandemia e pelos parcos investimentos do Estado brasileiro numa área vital à população em sua dignidade humana.

Se pensarmos somente as crises do capitalismo global, iniciado com a agenda neoliberal no final década de 1970, vivemos um mudo permanente em crise. Aliás, crise parece-nos ser a palavra-chave no período contemporâneo (SANTOS, 2000). Todas elas, com intensidades diferentes, alcançaram os continentes, do centro à periferia, os impactos resultantes contaminaram o cotidiano socioeconômico, sempre levando milhões de pessoas à miséria absoluta. Desse modo, a pandemia do novo coronavírus compõe o enredo do mundo globalizado como fluxo de crises, sobretudo, a crise do capitalismo global em sua forma mais anti-humana e totalitária, revelando as faces da globalização como perversidade.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

ARIÈS, P. História da morte no ocidente: da Idade Média aos nossos tempos. Ed. Especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 228 p.

 

SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 308 p.

 

___________. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2000.  174 p.

 

 

 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

SILVA, Ricardo Gilson da Costa. Pandemia e as escalas geográficas da vida humana. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 148-153, maio de 2020

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 19/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ - Brasil



[1]Professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR).