Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
LIMA, Ricardo Everton. Agricultura familiar e identidade cultural: um estudo teórico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13,
pp. 31- 42, jan-abril de 2021.
Submissão em: 11/05/2020. Aceito em: 04/03/2021.
ISSN: 2316-8544
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AGRICULTURA FAMILIAR E IDENTIDADE CULTURAL: um estudo teórico
FAMILY AGRICULTURE AND CULTURAL IDENTITY: a theoretical study
Ricardo Everton Lima
1
Universidade Estadual do Maranhão
ricardo.everton@yahoo.com.br
Resumo
O presente artigo tem por objetivo mor evidenciar a influência que a prática da agricultura familiar exerce no
processo de construção da identidade das pessoas que estão envolvidas na atividade. Para tal, buscamos, através
de revisão de literatura, mostrar que a agricultura familiar atividade que envolve produção, trabalho e família
no seu início, possuía um caráter mais voltado para a subsistência, com pequena produção e com o tempo foi
incorporando novos significados. Como consequência desses novos significados, a identidade elemento tido
como dos mais complexos a estudar e chegar à uma afirmação concreta - dos agentes envolvidos na agricultura
familiar foram colocadas em pé de transformações e/ou de ressignificações, visto que a identidade é algo em
constante construção e leva muito em consideração a cultura algo de muitas variações em todos os âmbitos do
meio em que estão inseridos.
Palavras-chave: Agricultura familiar; Identidade; Cultura.
Abstract
This article aims to highlight te influence that the practice of family agriculture has on the process of building the
identity of the people involved in this activity. For this purpose, we seek through literature review to show that
family agriculture na activity that involves production, work and family initially had a more subsistence
oriented character, with small production and over time was incorporating new meanings. As a consequence of
these new meanings, the indentity one of the most complex elements to be studied and reached to a concrete
statment of the agents involved in family agriculture were placed in the position of transformations and/or
resignification, since identity is something in constant construction and takes great acount of the culture
something of many variations in all contexts of the enviriinment in which they are inserted.
Keywords: Family agriculture; Identity; Culture.
Introdução
Desde a constituição das comunidades primitivas, o ser humano apresentou a
necessidade de dispor dos recursos naturais e, com o passar do tempo, essas necessidades foram
se adequando ao modo de vida. Nesse contexto, os animais começaram a ser criados presos,
iniciando as atividades pecuárias e alguns tipos vegetais começaram a ser cultivados em ciclos
1
Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA); Especialista em Educação Ambiental
pela FACEL; Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Geografia, Natureza e Dinâmica do Espaço pela
Universidade Estadual do Maranhão (PPGEO/UEMA)
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periódicos, constituindo as atividades agrícolas. Tais processos apontam para uma relação
afetiva do ser humano com o território, visto que Flores (2006) defende o território como um
espaço de relações sociais, onde o sentimento de pertencimento associado ao espaço de ações
coletivas, onde são criados laços de solidariedade entre os atores.
A partir do advento das atividades agrícolas, a mesma perpassa por evoluções
constantes, verificadas ao longo dos anos. Entretanto, na grande maioria desses anos, sendo
empregada técnicas mais arcaicas e rudimentares, como na revolução agrícola antiga onde
instrumentos como a pá e enxada eram aplicadas e utilização de arado escarificador; durante a
revolução agrícola da Idade Média, destacou-se a tração pesada através do arado charrua e da
carreta e; na primeira revolução agrícola dos tempos modernos, entre os séculos XIV ao XIX,
figura o uso das forrageiras (OLIVEIRA, 2014).
Contudo, o desenvolvimento intelectual humano aliado ao crescimento das práticas
econômicas fizeram com que as atividades agrícolas sofressem um processo de modernização,
ocorrido em meados do século XX. Segundo Oliveira (2014), essa modernização traz
características de transformação do espaço rural com a implementação de maquinário, uso de
insumos químicos, a transgenia, dentre outros. Com a inserção de tais elementos tecnológicos,
o meio rural sofre uma (re)organização, devido às novidades não estarem à disposição de todos
os produtores. Aqueles que configuravam as pequenas propriedades passaram por um processo
de “marginalização”, no sentido de estarem às margens dos principais investimentos
financeiros. Dessa forma, o espaço rural vai sendo ocupado pelas grandes propriedades que
atuam na agricultura moderna, com presença de algumas pequenas propriedades, resistentes ao
processo de êxodo rural e a expropriação por parte dos latifúndios, praticando a agricultura
familiar.
A agricultura, de modo geral, é uma atividade complexa envolvendo, tanto na moderna
quanto familiar, minimamente uma porcentagem da família. Esse envolvimento subsidia a
construção de um vínculo com o espaço utilizado na realização das atividades, pois o espaço
surge como uma realidade concreta que se realiza diariamente e aparece nas formas de
apropriação, utilização e ocupação de um determinado lugar (CASTILHO; ARENHARDT; LE
BOURLEGAT, 2009). Assim, pode-se inferir que a contínua prática da atividade agrícola entre
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diferentes gerações familiares propicia um sentimento de pertencimento ao local e a construção
de identidade voltada à mesma prática. Contudo, Flores (2006) nos traz que, mesmo a tradição
cultural, não é estática ao tempo e nem se herda geneticamente, a sociedade incorpora parte de
sua vivência local, porém recebe constantes influências externas. Podemos encorpar tal
afirmação ao vermos a classificação de concepções de “identidade” proposta por Hall (2006)
que têm: a identidade do sujeito do Iluminismo um indivíduo mais centrado, sem muita
flexibilização, a identidade era encarada como una do nascimento a por quanto vida o
indivíduo possuísse; a identidade do sujeito sociológico o indivíduo já não se enxerga como
auto-suficiente, vê que sua formação necessita do convívio com outras pessoas e ambientes; e
a identidade do sujeito pós-moderno o indivíduo não possuiria uma identidade e sim várias,
adaptáveis de acordo com o que lhe fosse conveniente. A identidade do sujeito sociológico
aproximou-se muito com o dito por Flores.
A agricultura familiar consiste no pensamento do produtor utilizar seus próprios meios
de produção, trabalhar em seu próprio estabelecimento vinculando “família produção
trabalho” (ABREU; FREITAS, 2012). Ploeg (2014 apud LIMA; SILVA; IWATA, 2019, p. 57)
diz “agricultura familiar representa uma forma pela qual as pessoas cultivam e convivem”. Em
linhas gerais, a agricultura familiar serviria para que o produtor suprisse suas necessidades
primárias básicas, produção para o autoconsumo, com fortalecimento de vínculos sociais.
Porém, as mesmas influências externas que atuam no auxílio da construção da identidade
cultural, atuam na ampliação das atividades e fins da agricultura familiar. Para Buainain (2006
apud OLIVEIRA, 2014, p. 176) a agricultura familiar possui um caráter diversificado,
apresentando variadas características e fatores distintos, como: setor econômico, heranças
culturais, formação histórica de grupos familiares, diferentes meios de acesso e disponibilidade
de recursos naturais e humanos, mercados distintos no qual estão inseridos, etc., além de valores
políticos. Assim, com essa variedade aplicada à agricultura familiar, chegamos ao caráter
heterogêneo onde essa prática passou a obter e a influenciar o modo de como os agricultores a
percebem, promovendo um (re)significado identitário nesses agentes.
Este trabalho surge a partir de um pré-projeto submetido a um edital de mestrado e, do
ponto de vista metodológico, será construído a partir de análises realizadas do levantamento
bibliográfico de obras que abordem os temas: agricultura familiar, identidade e cultura.
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Neste artigo, têm-se o objetivo principal de analisar a influência que a prática da
agricultura familiar exerce na formação da identidade cultural dos indivíduos que a exercem.
Para tal, iniciamos com uma abordagem sobre agricultura familiar” de maneira ampla, seu
processo de construção até a atual conjuntura; versando posteriormente sobre “identidade
cultural”, tentando realizar uma explanação mais sociológica, culminando no foco do nosso
artigo, a relação existente entre agricultura familiar e formação da identidade cultural dos
agentes envolvidos.
Agricultura Familiar no Brasil
As práticas agrícolas estão presentes no território brasileiro concomitante à colonização,
ocorrendo desde o início de forma desigual, com constituições de latifúndios. Assim, os
agricultores familiares sempre foram desprivilegiados pelas políticas públicas nacionais. Costa,
Rimkus e Reydon (2008) nos dizem:
Desde a institucionalização da Lei de Terras, em 1850, as elites dirigentes do Brasil
persuadiram a sociedade de que o caminho do campo só poderia ser um: o da grande
fazenda com assalariados. Ao invés de estimular a constituição de um modelo de
desenvolvimento rural baseado na agricultura familiar, com respaldo teórico de
grande parte da intelectualidade do país, a agricultura de base patronal foi eleita como
vetor do desenvolvimento rural no Brasil (AQUINO et al., 2003 apud COSTA;
RIMKUS; REYDON, 2000, p. 6). Os agricultores familiares tradicionalmente foram
excluídos e apenas começaram a entrar na pauta governamental a partir da reforma da
Constituição em 1987, com a elaboração de uma proposta de Lei Agrícola pelos
movimentos sindicais, que incluía uma política de crédito voltada para eles. A partir
de meados da década de 90, as políticas públicas em prol da agricultura familiar
surgiram no Brasil, em decorrência do contexto macroeconômico da reforma do
Estado. Dois fatores principais motivaram o surgimento dessas políticas públicas: a
crescente necessidade de intervenção estatal frente ao quadro crescente de exclusão
social e o fortalecimento dos movimentos sociais rurais.
Desde o primeiro momento de sua administração em 1995, o presidente Fernando
Henrique Cardoso deu prioridade à reforma agrária. Ele criou o Ministério do
Desenvolvimento Agrário, cuja missão é consolidar o conjunto da agricultura familiar
de modo a promover o desenvolvimento local sustentável por meio da valorização
humana e da negociação política com representantes da sociedade, respeitando os
desejos e anseios das organizações sociais e praticando os princípios da
descentralização, da democracia, da transparência e da parceria, com
responsabilidade. Também em 1995, o governo FHC lançou o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), como uma linha de crédito de
custeio diferenciada para financiar a agricultura familiar. Um ano depois, através do
Decreto Presidencial N.º 1.946, de 28/06/1996, o PRONAF deixou de ser apenas uma
linha de crédito para adquirir o status de programa governamental, assumindo uma
maior abrangência e uma concepção diferente (RIMKUS; REYDON, 2008, p. 6 e 7).
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Segundo Lima, Silva e Iwata (2019, p. 64) o PRONAF foi criado com o objetivo de
“estimular a geração de renda e melhorar o uso da mão de obra familiar, por meio do
financiamento de atividades e serviços rurais agropecuários e não-agropecuários,
desenvolvidos em estabelecimento rural ou em áreas comunitárias próximas”. em 24 de julho
de 2006 é sancionada a Lei N.º 11.326, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política
Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, que em seu Art.
nos diz:
Para os efeitos deste Lei, considera-se agricultor familiar e empreendedor familiar
rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos:
I- não detenha, a qualquer título, área maior do que 4 (quatro) módulos fiscais;
II- utilize predominantemente mão-de-obra da própria família nas atividades
econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento;
III- tenha percentual mínimo de renda familiar originada de atividades econômicas
do seu estabelecimento ou empreendimento, na forma definida pelo Poder Executivo;
IV- dirija seu estabelecimento ou empreendimento com sua família (BRASIL,
2006, p. 1).
Trabalhando a agricultura familiar numericamente, o Censo Agropecuário do ano de
2017 divulgou os seguintes resultados: corresponde a cerca de 3,9 milhões dos estabelecimentos
agropecuários do Brasil; ocupação à 67% dos trabalhadores do setor agropecuário do país,
ou seja, 10,1 milhões de pessoas; gera 107 bilhões de reais, equivalendo à 23% do valor total
da produção agropecuária brasileira; e ocupa 80,9 milhões de hectares do território nacional,
que significa 23% da área de todos os estabelecimentos agropecuários do Brasil (IBGE, 2017).
Com todos esses dados, fica evidente a participação efetiva da agricultura familiar na
composição do PIB brasileiro, podendo ser considerada sobre três vieses: enquanto mecanismo
de controle dos valores internos dos alimentos consumidos no Brasil; quanto ao abastecimento
do mercado interno; e, como forma relevante de ocupação da população na geração de emprego
(LIMA; SILVA; IWATA, 2019). Entretanto, esses dados também corroboram com a realidade
latifundiária do Brasil, quando pegamos a proporção da quantidade dos estabelecimentos
agropecuários familiares com o total da área ocupada pelos mesmos.
Identidade Cultural
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O termo “identidade” é dos mais complexos debatidos pelos pensadores das mais
variadas áreas, pois envolve a construção dos tempos passado, presente e futuro. Aristóteles
(1969, p. 275 apud SANTOS, 2011, p. 143) vem a defender a identidade como “uma unidade
de ser ou unidade de multiplicidade de seres ou, enfim, unidade de um único, tratado como
múltiplo, quando se diz, por exemplo, que uma coisa é idêntica a si mesmo”. Já Giorgis (1993,
p. 5 apud SANTOS, 2011, p. 143) diz que, “uma identidade auto referencial e construída sobre
os princípios de uma lógica abstrata não pode dar conta das mudanças e das diferenças
socioculturais”. A partir dos fragmentos supracitados, pode-se constatar a amplitude do pensar
“identidade”.
Contudo, como o tópico do artigo é dedicado à “identidade cultural”, adotar-seum
pensamento na linha da Giorgis, pois a cultura não é um elemento terminado, é dinâmica e
multifacetada. Nas palavras de Oliveira (2014, p. 183) a cultura possui em seu cerne a ordem
e a desordem” e Bauman (2012, p. 141 apud OLIVEIRA, 2014, p. 184) a define como “a cultura
humana é um sistema de significação e uma de suas funções universalmente admitidas é ordenar
o ambiente humano e padronizar as relações entre os homens”. Dessa forma, não se poderia
encarar a identidade como algo imutável, pois, ao longo da trajetória de vida, o indivíduo
perpassa por variadas situações, condições, lugares e encontros, todos os casos em ambientes
distintos e/ou com divergências ideológicas ou culturais, porém cada situação vivenciada por
esse indivíduo será de valia para a construção identitária. Santos (2011) nos fala da identidade
aberta, aquela construída, de certa maneira, pelas escolhas em partilhar ou não de algo por parte
do indivíduo.
Oliveira (2001, p. 139 apud SANTOS, 2011, p. 144) diz quea identidade cultural seria
uma espécie de sentimento de pertencimento”, assim um indivíduo teria sua identidade imbuída
a todas as características do meio ao qual foi criado, fato que não pode ser negado. Entretanto,
em uma sociedade moderna, vários são os locais onde diferentes práticas e ritos culturais
coexistem, alguns com caracteres totalmente opostos. Tal situação poderia ser fonte de crise de
identidade? De acordo com Santos (2011), não. Pois, para ele, a identidade cultural se faz
através das diferenças, das interações sociais, da dependência do ser humano em relação a
outros seres. A identidade cultural “nasce e se desenvolve na relação com o outro. afirmamos
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quem somos, a que grupos pertencemos, quando existe um não nós e um outro que não faz parte
dos nossos” (SANTOS, 2011, p. 145). Dessa forma, infere-se que identidade e diferença
caminhem juntas, uma vez que a diferença seria uma das condicionantes para a construção da
identidade, esta última, por sua vez deveria ser encarada/analisada com um processo continuo,
dinâmico.
Contudo, os momentos de crises, pelos quais passam o indivíduo, são muito bem aceitos
para a construção/formação da identidade. que, em situações de instabilidade, a identidade
humana pode ser posta à prova. Santos (2011) diz:
São nos momentos de crise, de instabilidade, de insegurança que as identidades
culturais preferencialmente se manifestam e se afirmam. Nos momentos de calmaria
e tranquilidade dificilmente afirmação de identidades, elas só surgem em período
de instabilidade e ameaça interna e externa ao modo de vida tradicional (SANTOS,
2011, p. 146).
No livro A identidade cultural na pós-modernidade, Stuart Hall (2006) diz:
A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao
invés disso, à medida em que os sistemas de significação e representação cultural se
multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante
de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar ao
menos temporariamente (HALL, 2006, p. 13).
O mesmo Hall faz uma crítica àqueles que dão a identidade como pronta e imutável do
nascer ao morrer. Para ele, o indivíduo que tem esse pensamento é um criador de uma estória
sobre si mesmo, ou seja, ao longo da vida vive trajado de um personagem criado de acordo com
conveniências.
Agricultura Familiar e a formação da Identidade Cultural
As atividades realizadas pelos seres humanos junto à natureza sempre permearam a
construção de um vínculo com o local, de acordo com Naves e Mendes (2014, p. 43) a
formação das identidades está relacionada com a vivência dos indivíduos que trabalham com a
terra e que possuem crença, costumes e religiosidade”. Assim, a identidade de cada indivíduo
tem origens junto às atividades e locais por ele conhecidos. Para Featherstone (1993, apud
FLORES, 2006, p. 5), a cultura local se refere às relações sociais existentes em espaços
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delimitados e pequenos, onde se estabelecem formas específicas de representação com códigos
comuns. Assim, a ideia de identidade dá-se da interligação entre os agentes sociais e a
localidade vivenciada. Silva (2011) nos diz:
Nota-se, que a relação com a propriedade é um traço marcante na agricultura familiar,
a noção de propriedade e o pertencimento ao território ou à comunidade é presente no
cotidiano. Geralmente, é nessa mesma unidade produtiva que os antepassados dos
produtores viveram e constituíram suas famílias, o que torna a propriedade carregada
de um sentimento de pertencimento, posse e identificação (valores simbólicos). A
possibilidade de trabalhar a terra, cultivar os produtos que preferir confere aos
agricultores familiares uma sensação de autonomia e uma relação intrínseca com sua
unidade produtiva (SILVA, 2011, p. 31).
Partindo do pressuposto de que a construção da identidade cultural do ser humano está
vinculada às experiências vividas e ao território do qual faz parte, poderíamos inferir que
parcela significativa da população brasileira estaria sob influência dos pensamentos das
atividades agrícolas, dado o fato de o Brasil possuir grandes áreas agricultáveis, divididas em:
agricultura moderna e agricultura familiar. Possuindo a agricultura moderna vieses voltados às
elevadas lucratividades, às extensas áreas de produção, ao elevado emprego de novas
tecnologias, à busca de robustos investimentos e financiamentos, entre outros itens. Já, em
agricultura familiar, pensaríamos em produção em pequenas propriedades, com ausência de alta
tecnologia, sem o aporte financeiro de instituições bancárias, praticando a policultura. Tudo
isso para suprir as necessidades imediatas de seu grupo familiar.
Assim, a prática da agricultura familiar ganhou novos contornos, dado a gama de
informações, conhecimentos e oportunidades que chegam aos agentes envolvidos nesse tipo de
produção, tornando-a heterogênea nos fins desejados pelos produtores. Pode-se lembrar do
sujeito pós-moderno, quebrador de paradigmas e desfragmentado, dada a variedade de sistemas
culturais, os quais o ator adequa sua identidade, mesmo que temporariamente, satisfazendo suas
necessidades mais imediatas (HALL, 2006). A proximidade existente entre o urbano e o rural
é uma das condicionantes para a exposição da agricultura familiar a novos e distintos contextos.
Para Oliveira (2014), o rural está sendo um prolongamento do espaço urbano, visto que, o meio
rural não é mais ocupado somente por práticas agrícolas e pecuárias. Essas atividades agrícolas
familiares já se incorporam às práticas econômicas, objetivando maior lucratividade.
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A atividade agrícola familiar passa a não possuir uma característica de homogeneidade.
A variedade de objetivos desse tipo produtivo, dá-se até mesmo no tamanho das propriedades,
pois através das medidas dos terrenos agricultáveis, poderemos ter indicadores da(s)
finalidade(s) almejada(s) pelos agricultores. Delgado e Bergamasco (2017) defendem a
agricultura familiar como:
[...] um novo sentido analítico e político, pois a agricultura familiar passa a ser
entendida como uma categoria social diversa e heterogênea pelos estudiosos e
cientistas e vista pelos gestores governamentais e os atores e organizações sociais pelo
seu papel estratégico no processo de desenvolvimento social e econômico
(DELGADO; BERGAMASCO, 2017, p. 85).
Nesse contexto, a agricultura familiar deixa de possuir somente a característica do
campesinato para compor a dialética dos organismos internacionais, como movimentos sociais,
sindicatos e cooperativas, partidos políticos, programas e políticas públicas (DELGADO;
BERGAMASCO, 2017). Para todas essas novas esferas que a agricultura familiar passa a
integrar, o seu agente de produção necessita, obrigatoriamente, adequar-se. Em muitos
momentos mediante a incertezas, dúvidas e questionamentos. Contudo, devido a flexibilidade
a que a identidade humana se permite perante novas e/ou desconhecidas realidades, os
paradigmas são quebrados e os mesmos agentes de produção dão conta de suprir as recentes
demandas da agricultura familiar contemporânea.
Um dos vieses adquiridos pela agricultura familiar, é a formação de cooperativas e Pires
et al (2009 apud PIRES, 2010, p. 4) relata que “a relação entre cooperativismo e agricultura
familiar vem permitindo barganhar melhores preços dos produtos ofertados, diversificar a
produção, obter melhores condições de crédito e de eliminar os intermediários”, assim, o
pensamento micro da produção, exclusiva para a subsistência, cede espaço para um pensamento
de mercado, objetivando lucratividade. Fato corroborado por Bialoskorski Neto (2000 apud
PIRES, 2010) quando traz:
Por essas razões admite-se que a missão das cooperativas agrícolas seja a de servir
como uma estrutura intermediária entre as economias dos cooperados e o mercado,
permitindo a integração do produtor na dinâmica produtiva, barateando custos de
produção e comercialização e incrementando os seus negócios (BIALOSKORSKI
NETO, 2000 apud PIRES, 2010, p. 4 e 5).
Quando nos deparamos com a formação de cooperativas por parte dos agricultores
familiares, constatamos que esses agentes estão abandonando a singularidade da produção de
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subsistência para unir-se a um grupo. Dessa forma, assumem, mesmo que por convenção
cultural, uma identidade modificada. Apesar do objetivo continuar o mesmo, espera-se que o
sustento familiar, a forma e a quantidade do retorno recebido pela troca do trabalho, seja
diferente.
Com a variedade conceitual, a qual passou a abranger a agricultura familiar, o
pensamento do sujeito pós-moderno de Hall (2006) tem muita relevância, pois o indivíduo tem
que apresentar comportamentos para diversas situações atuais e permitir que seu “eu” esteja
preparado para mudanças repentinas às quais a lógica de mercado solicite, o que ele batiza de
“celebração móvel da identidade”. O sujeito do Iluminismo, com uma identidade intacta e não
se permitindo à construções e/ou adaptações, com certeza, não teria espaço neste mundo que
prega busca por mudança e inovações. E talvez o sujeito sociológico conseguisse ou não possuir
seu espaço, pois apesar do mesmo pregar uma identidade construída a partir da interação com
o ambiente externo, poderiam ocorrer situações em que o indivíduo não concordasse e tornar-
se-ia duro, semelhante ao sujeito anterior. Assim, o sujeito pós-moderno ganha destaque, que
possuiria comportamentos identitários variados, portando-se em toda e qualquer situação em
que fosse anexado.
Considerações Finais
Este trabalho fez uma análise de como a identidade dos agentes da agricultura familiar
se porta frente às modificações as quais a atividade agrícola está passando. Assim, pudemos
constatar que o ator principal desse cenário tem sua forma de agir, pensar e ser, transformados
por escolhas pessoais ou por condições culturais.
A agricultura familiar, praticada desde o período colonial no Brasil é muito importante,
principalmente para o abastecimento interno no país, somente nos últimos anos adquiriu papel
de destaque no cenário econômico brasileiro. Porém, esta atividade que tem suas origens no
campesinato perpassa por uma transformação, na medida em que os produtores abandonam a
ideia da produção para simples subsistência e adotam um pensamento de mercado, voltado à
aquisição de capital.
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Assim, podemos constatar que a identidade cultural deve ser encarada como algo em
constante formação/transformação, visto que, ao longo da vida, o ser humano é colocado em
situações e locais diversos e seu comportamento será margeado a partir das necessidades
impostas em cada situação.
Em síntese, evidenciamos o termo “dinamicidade” em todos os principais elementos
abordados ao longo deste artigo, tais como: dinamicidade na agricultura familiar, dinamicidade
na construção da identidade humana, dinamicidade cultural, dinamicidade no comportamento
dos indivíduos que praticam a atividade agrícola familiar. Este último, talvez, o de maior
impacto, pois temos o ser humano se reconstruindo após construções, é o agir do homem se
desmistificando e agregando, continuamente, valores e conceitos.
Referências
ABREU, F; FREITAS, A. Agricultura familiar no município de Pinheiro MA: reflexões sobre
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
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