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“UM JUDAS NO POSTE E NÓS NÃO VAMOS MORRER”!
PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA, NECROPOLÍTICA E COVID-19 NA REGIÃO METROPOLITANA DA GRANDE VITÓRIA
Wesley Cândido Zinek[1]
Universidade Federal do Espírito Santo
Henrique de Oliveira Passos[2]
Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO:
O presente ensaio busca a partir de eventos vividos e relatados para os autores na cidade de Vitória - ES, tecer uma discussão a respeito da população em situação de rua e como a mesma tem sido alvo de políticas públicas frente a pandemia de COVID-19. Empregamos do conceito de necropolítica para analisar três eventos e dessa forma refletir a respeito da realidade dessas pessoas e como o Estado tem sido fundamental em tempos de pandemia.
Palavras-chave: População em situação de rua, Necropolítica e Pandemia de COVID-19.
Figura 1: Boneco de Judas em poste no bairro Jardim da penha – Vitória (ES)
Fonte: acervo pessoal dos autores
Na semana da Páscoa, um grupo de pessoas em situação de rua içou um boneco de Judas em uma das principais praças do Jardim da Penha, um dos bairros de maior centralidade da população em situação de rua da cidade de Vitória. O boneco em questão não representava os agentes das forças policiais ou a Associação de moradores do bairro. Pelo contrário, o mesmo segurava uma placa indicando o Prefeito de Vitória e o Coordenador do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua.
Esta ação demonstra claramente uma resposta das pessoas em situação de rua diante da do perverso quadro que envolve o Estado e as políticas sociais. As reivindicações por parte de movimentos e atores que apoiam a causa, não têm sido mais por garantia efetiva de direitos, mas sim, buscando um mínimo de ações que garantam a sobrevivência dessa população frente ao Covid-19. Mesmo assim, os órgãos públicos têm apresentado morosidade, burocratizando pautas urgentes e impondo limitações orçamentárias em um verdadeiro jogo de empurra entre os entes federativos.
Em meio às campanhas do “fiquem em casa” engatilhada pelo avanço da Covid-19 no Brasil nos últimos meses, o paradoxo é simples e direto: e aqueles que não possuem residência? Tal problematização nos leva a pensar no que estaria sendo feito para essas pessoas em meio ao contexto atual.
Diante de uma realidade onde os direitos mais básicos são tidos como mercadorias, aqueles quem não tem poder de compra fica à margem das garantias de direitos. Essa tem sido a grande diferença daqueles que estão mais vulneráveis à Covid-19. Portanto, parece existir os grupos de risco, este que independe de classe social e aqueles que foram jogados na arena para serem devorados pelos leões ou tomando uma leitura Foucaultiana, que são os deixados para morrer.
Trazendo à tona o conceito de necropolítica de Mbembe (2016) é decisivo e quase impossível não pensar em como o Estado tem exercido a soberania para decidir quem pode viver e quem deve morrer em meio ao contexto pandêmico. Nesse sentido, a vida como objeto de poder controlada pelo Estado parece ser o aspecto central nas discussões e ações tomadas frente ao Covid-19. Entendida para uns como direito e, portanto, devendo ser assegurada de todo modo para que não se acabe, para outros, a negação se constitui como a normalidade, ou seja, a exposição diante da morte passa a ser a regra.
O chavão “Fique em Casa”, antes de qualquer coisa, contem em si uma realidade para aqueles que minimamente tiveram condições de “comprar esse direito” frente a todo contexto de especulação imobiliária, ao déficit habitacional. Doutra forma, para quem quer encontrar uma alternativa além do habitar os logradouros públicos, tem encarado uma superlotação nos serviços de acolhimento, albergues e abrigos, evidenciando a perversidade de um quantitativo que é ignorado.
“E quanto ao apelo de não aglomeração? ” Como uma das estratégias de sobrevivência nas ruas, essa população necessita da proximidade dos outros nas relações, na “dormida”, na proteção mútua e nas trocas. “Ok, mas então sem compartilhar objetos pessoais! ” Essa medida para as pessoas estando nas ruas é quase impossível. A partilha é algo próprio nas relações em contextos adversos. Partilhar cobertas, talheres e copos, a água que está no mesmo garrafão, o lanche que já foi comido, o curto cigarro para aliviar o estresse e a cachaça é parte das relações de sociabilidade e existência nas ruas. “Mas a principal prevenção ao vírus é manter-se higienizado!” Na rua, isto é um desafio.
PARA QUE CHUVEIRO?
Localizada em Laranjeiras, bairro comercial da Serra, município da Região Metropolitana da Grande Vitória, está a Praça da Luz. Esta conta com alguns equipamentos como bancos, jardins e também um chafariz. Por estar em uma região comercial, o local usualmente apresenta uma intensa movimentação cotidiana. No entanto, durante a pandemia converteu-se em uma região desértica devido ao isolamento social. O curioso é que anteriormente a pandemia, o chafariz quase sempre estava desligado, porém, nos dias atuais esse chafariz tem estado ativo diariamente como nunca antes, e cabe o questionamento: Ora, se a principal função de chafariz é meramente estética, qual a intenção de acioná-lo de forma tão frequente sem a rotineira movimentação de transeuntes, sobretudo, quando estava quase sempre inoperante?
A resposta veio ao flagrarmos um casal de adultos, negros, que tomavam no local um banho improvisado, porém necessário. Os mesmos realizam as suas higienes portando as suas próprias roupas, pois não poderiam ficar desnudos em público, assim como não haveria local para lavá-las. Dessa forma, unindo o útil ao (des)agradável. Em tempos normais, é proibido tomar banho no chafariz, mas diante a pandemia, torna-se menos custoso (mas não menos cruel) deixar as pessoas realizarem a higiene pessoal em um espaço público, que efetivamente criar estruturas de banheiros e dessa forma envolver obras, licitações etc.
“HOME OFFICE”
Um jovem trabalhador flanelinha em situação de rua, territorializado na Praça Regina Frigeri Furno, ou simplesmente “praça do EPA” em Jardim da Penha, relatou a respeito dos impactos do Covid-19 em seu cotidiano. Ele nos relatou algumas situações (sim, no plural) em que os motoristas simplesmente deixavam o dinheiro no chão, de modo que só poderia pegar após aquele entrar no carro, “Eles acham que nós somos os transmissores do vírus”.
Enquanto uma das medidas de isolamento social foi convertida para uma parte da população, a possibilidade das atividades laborais em suas próprias residências e popularizando o anglicismo Home Office, para as pessoas em situação de rua essa questão tem se configurado como um problema multifacetado. Deste modo, o preconceito e o estigma têm aflorado um movimento criar um inimigo em potencial que poderia estar portando o vírus. Além disso, a ausência do “Home” para essa população, enquanto o “Office” depende diretamente da dinâmica urbana, pois em sua maioria trabalham de modo informal nos espaços públicos. Os trabalhadores em situação de rua têm vivenciado seus faturamentos diminuírem de forma drástica nos últimos meses, levando-os ao desespero por não conseguir mais manter minimamente a fonte de renda de importância vital.
Tal problemática nos leva diretamente às medidas de prevenção implementadas pelo Estado, como por exemplo, o auxílio emergencial ou renda básica de R$ 600,00. Se no início do ensaio a pergunta foi em relação aos que não tem residência, ou seja, endereço, repete-se agora com outra variável: e os que não possuem documentos e nem celular? Parece óbvio, mas não é, grande parte da população em situação de rua não conta com aparelhos celulares e tampouco, informações sobre os seus próprios direitos. Ou seja, uma política emergencial que visava melhorar a condição de milhões de brasileiros e que novamente esqueceram das parcelas mais marginalizadas da sociedade.
INVISÍVEIS NA VIDA, INEXISTENTES NA MORTE
As mortes estão se tornando cada vez mais comuns frente à doença e o cotidiano das pessoas em situação de rua está cada vez mais crítico. Muitas dessas pessoas têm apresentado sintomas e em caso de agravamento, por não possuírem documentos de identificação, tem dado entrada nos serviços de saúde como Pessoas Não Identificadas (PNI). Consequência de muitas limitações na articulação entre Assistência Social e Saúde, essa realidade tem gerado uma série de desinformações a respeito da pessoa em situação de rua que, por ventura, tenha vindo a óbito. Ocorre que esse público geralmente é enquadrado como sendo exclusivo da assistência social. E quando estes são expostos à uma situação de pandemia, ou seja, envolvendo implicações de saúde, são criados critérios e limitações, burocratizando o atendimento/acompanhamento tanto por parte da assistência social, quanto da saúde, em um jogo de “batata quente”.
Se a morte classificada como indigente se tornou uma regra na história do fenômeno, quanto mais agora diante de uma realidade de subnotificação dos óbitos por Covid-19 em geral. Quem possui vínculos familiares têm a possibilidade de cobrar as informações de seus mortos. Mas quem é classificado como PNI, nessa conjuntura, nem para ter seus corpos sem vida como objeto de estudo nas universidades. Tragicamente a história da pessoa em situação de rua se resume à PNV (Pessoa Não Vista) em vida, e PNI (Pessoa Não Identificada) na morte.
Por fim, esses relatos somente foram possíveis devido algumas ações de movimentos e entidades de apoio à essa população, dos quais estamos envolvidos. Pelos becos, ruas e malocas; entre conversas e conflitos, buscamos assisti-los e assisti-las minimamente com alimentação e produtos de higiene. De fato, estamos movimentos não estão sendo como gostaríamos, sem abraços, sem aglomerações, atrás de máscaras e luvas. E ainda que reconheçamos não passar de uma ação assistencialista, temos ouvido frases como: “Provavelmente essa será minha única alimentação do dia”. Está claro para nós que o assistencialismo se faz necessário, quando o Estado não garante o direito. E nesses dias, com essas ações, nosso único objetivo é de lutarmos pelo emergente direito à vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ESPOSITO, R. Bios: Biopolítica e Filosofia. Lisboa: Edições 70, 2010.
FOUCAULT, M. Segurança, Território, População. Curso dado no Collège de France, 1977-1978. São Paulo: Martins Fontes: 2008.
MBEMBE, A. Necropolítica. 3. São Paulo: n-1 edições, 2016.
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ZINEK, Wesley Cândido; PASSOS, Henrique de Oliveira. “UM JUDAS NO PORTE E NÓS NÃO VAMOS MORRER”! Pessoas em situação de rua, necropolítica e COVID-19 na região metropolitana da Grande Vitória. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 174-179, maio de 2020.
Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 26/05/2020.
Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.
[1] Graduado em Serviço Social, militante junto à população de rua e membro do Grupo de Pesquisa em Geografia, Espacialidades e Cotidiano (GESCOT) da Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória, ES- Brasil.
[2] Graduando em Geografia e membro do Grupo de Pesquisa em Geografia, Espacialidades e Cotidiano (GESCOT) da Universidade Federal do Espírito Santo- Vitória, ES- Brasil.