“DEIXADOS NA ESQUINA DA MORTE”

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA, BIO (GEO) POLÍTICA E COVID-19 

 

Igor Martins Medeiros Robaina[1]

Universidade Federal do Espírito Santo

igorobaina@gmail.com


 

RESUMO: 

 

Inúmeras são as questões que afetam o planeta devido a pandemia de COVID-19. Em meio a este complexo turbilhão, a população em situação de rua aparece como um dos segmentos populacionais mais afetados por todas as contradições e paradoxos existentes. Assim, revelam-se novas configurações perversas, mas principalmente, um quadro radicalizado de dispositivos e práticas nefastas já recorrentes na vida cotidiana das pessoas nesta situação.

 

Palavras-chave: População em situação de rua, pandemia de COVID-19 e biopolítica.


 

Mais uma imagem foi lançada nas redes sociais e nela, os corpos de um homem e de um cachorro em situação de rua. Ambos usavam máscaras de proteção individual em um ponto de ônibus vazio[2]. É uma daquelas fotos em que não é possível fazer qualquer referência geográfica sobre a sua possível localização e como isso alteraria os desdobramentos dos fatos. A questão é que a população em situação de rua se constitui como um fenômeno global e os efeitos da COVID-19 trazem à tona a radicalização de uma brutalidade e a perversidade complexa de um quadro já estabelecido.

A emergência desta pandemia disparou inúmeras reflexões a partir da Filosofia e das Ciências Humanas e Sociais. Diferentemente das que buscaram realizar grandes análises sistêmicas sobre o futuro do planeta sob um viés político-econômico, o que trago aqui são breves considerações sobre Geografia, Biopolítica e Geopolítica em uma perspectiva mais ampla, sensível e sobre lógicas multiescalares que afetam cotidianamente a população em situação de rua como um fenômeno socioespacial bastante negligenciado em tempos de injustiça.

Além disso, incluo os aspectos da posicionalidade e da reflexividade, pois enquanto desenvolvo este ensaio e me encontro sentado em um ambiente – por enquanto – protegido e acolhedor, milhões de pessoas em todo planeta lutam pela própria existência contra uma série de dispositivos que se reproduzem de modo impiedoso contra a vida humana. Confesso que possuo algum constrangimento ao realizar este movimento, mesmo reconhecendo que não falo em nome de cada uma destas pessoas ou tento representá-las. No entanto, acredito que estas palavras possam se caracterizar como uma espécie de resposta indignada frente às inequidades socioespaciais, um registro diante de tudo isso que vivemos neste momento. Assim, longe de buscar uma universalidade, este movimento se constitui como uma reflexão em meio a centenas de reportagens que tive acesso - mesmo acreditando que me escapou a maioria delas - bem como, em diálogos com pesquisadores e profissionais da Assistência Social que mantenho relações por meio de redes de pesquisa no Brasil e outros países.

Neste sentido, um primeiro aspecto a ser problematizado emerge em meio ao aparecimento e ao reconhecimento dos riscos da COVID-19 para a População, para o Capital e para os Estados. Este último, tentando defender assimetricamente os outros dois, impôs isolamentos sociais para a população em seus territórios. E assim, entoava-se pelos meios de comunicação o seguinte mantra: permaneçam em casa!

Este estratégia bio(geo)política de restringir os corpos nos espaços residenciais para a não propagação do vírus, incluindo diferentes modos de punições, que vão desde multa, detenção e até “atirar para matar” como decretou o presidente das Filipinas, se justificaria para garantir que os sistemas de saúde não fossem saturados. Estas medidas de punição para aqueles que não estariam dispostos a se sacrificarem por um “bem comum” esconde que muitos países reproduzem por meio dos sistemas de saúde uma forma de gestão do deixar morrer. Não é incomum as imagens de corpos doentes em corredores de hospital, propagandas de ajuda humanitária para serviços médicos que atuam globalmente ou mesmo, processos judiciais contra planos de saúde que se arrastam até a morte dos seus clientes que buscam tratamento. No caso da COVID-19 revelou-se também que áreas ocupadas por milhões de habitantes em diferentes regiões do planeta possuiriam somente dezenas de respiradores mecânicos e a ausência de profissionais capacitados. Entretanto, apesar deste equipamento representar de modo emblemático a pandemia, o quadro que envolve a relação saúde-doença da vida humana em todo o planeta é ainda mais grave.

Em meio a todo este sentimento destruidor de medo que ronda a população, estão as pessoas em situação de rua, em uma configuração ainda mais funesta. É incontestável que nesta pandemia, como em qualquer outro evento adverso, que as diferentes classes sociais e segmentos da população não são afetados do mesmo modo. No caso da população em situação de rua, a ausência de um espaço residencial se configura como um quadro dramático, tendo em vista que se constitui como um referencial bio(geo)político de proteção. A circulação e a permanência nos logradouros e espaços públicos acabaram se tornando territórios de riscos. Basta lembrar todas as orientações técnicas para quando saímos às ruas, como por exemplo, nas condutas em relação aos equipamentos de proteção e as verdadeiras operações de desinfecção dos corpos e produtos quando retornamos para o espaço residencial. Assim, diante deste quadro pandêmico, os espaços públicos se tornaram tema central para as questões de Estado, mas ao mesmo tempo, sempre foi o que restou para esta este segmento populacional ao longo da história.

Como uma resposta moral a tal injustiça, a maioria dos governos reforça os abrigos como uma ação de proteção para este segmento populacional, como se não houvesse alternativa. Estes abrigos, além de superlotados, carregam a desconfiança dos próprios sujeitos, pois sabem que estarão amontoados com dezenas ou até mesmo centenas de outros corpos em um mesmo ambiente. Sobretudo, sabem do expressivo histórico da tuberculose e de outras doenças infecciosas entre o próprio segmento populacional. 

Além disso, os abrigos funcionam no período noturno. As pessoas precisam sair no início de cada manhã e mesmo que fosse autorizada a permanência por 24 horas, grande parte não possuiria infraestrutura para isto, pois fisicamente os abrigos possuem somente espaços para as camas, banheiros e refeitórios. Como medida emergencial, algumas cidades criaram abrigos em espaços improvisados onde foram postos colchões e realizam a distribuição de refeições. Ao mesmo tempo, têm práticas de restrições, como a presença de seus pertences pessoais e dos animais de companhia. Em outros casos, como nos Estados Unidos, foram demarcados brutalmente no próprio chão os perímetros onde os corpos deveriam permanecer “para sua própria segurança” e assim, recebem assistência. Esta é uma imagem demolidora psicologicamente, especialmente, para aqueles submetidos a estas condições.

Diante de um quadro tão adverso, como as pessoas que estão em situação de rua podem construir estratégias de isolamento e de segurança na cidade? Apesar de parecer irônico, eles conhecem muito bem a ideia de isolamento social. Não é incomum que os domiciliados evitem passar por áreas de concentração das pessoas em situação de rua do fenômeno ou se afastem quando eles se aproximem para realizar algum pedido. Por outro lado, parte deste segmento - até mesmo devido a uma questão de segurança física e existencial – opta por permanecer, em determinados períodos, em lugares insólitos, como sobre árvores, dentro de sistemas de esgotos e em buracos feitos em viadutos. A depressão também é uma doença entre as pessoas em situação de rua. 

Neste sentido, não somente os espaços públicos, mas também as cidades, logicamente que de modo radicalizado e paradoxal, se fecharam durante a pandemia. Os comércios, serviços, transportes e, principalmente, pessoas domiciliadas já não estão mais presentes como estavam e a vida cotidiana como se reproduzia deixou de existir. Assim, aspectos fundamentais da vida que já eram conquistados com dificuldades e por meio de estratégias socioespaciais cotidianas já bem definidas simplesmente desapareceram. O comércio de alimentos fechado e os resíduos não consumidos e lançados nas calçadas, não estão mais disponíveis. Até mesmo os grupos de solidariedade sofreram quedas. Aqueles que permaneceram atuando nos espaços públicos se deparam com enormes filas e a impossibilidade de atender a todos os que necessitam.

A cidade também se tornou um ambiente mais árido e não se trata de uma metáfora. Conseguir água já se constituía como um desafio para esta população. A ausência de bebedouros e banheiros públicos força, por exemplo, que muitas pessoas em situação de rua carreguem consigo grandes garrafas pets. Assim, canos perfurados e chafarizes se tornaram verdadeiros oásis em busca de um recurso escasso. O Estado, Igrejas e outras instituições filantrópicas instalaram alguns irrisórios pontos de água para que este segmento populacional realize sua higiene, mas se cartografássemos a relação entre estes pontos, a extensão de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro ou Cidade do México, bem como, a relação entre as diferentes áreas de concentração e a mobilidade da população em situação de rua, o cenário de aridez seria como o de um verdadeiro deserto. Neste sentido, diante da emergência da higiene dos corpos para o combate do vírus e a indisponibilidade de água, a população em situação de rua, mas também milhões de habitantes de favelas e periferias em todo o planeta, estão mais expostas ao vírus e a um conjunto de outras enfermidades relacionadas ao saneamento básico. 

Outras questões atuam de maneira sinistra e dissimulada mas, ao mesmo tempo, jogam com a força e a potência das imagens. Assim ocorre com a distribuição de máscaras individuais – normalmente uma – para cada pessoa em situação de rua. Em muitos países, incluindo os ricos e centrais, até mesmo os profissionais da área da saúde não possuem mais equipamentos de proteção individual e recorrem até mesmo para materiais alternativos, como sacos de lixo. Deste modo, parece no mínimo midiático que estas ações – quase sempre televisionadas – de distribuição esporádica de máscaras, sobretudo, quando se sabe de sua ineficácia depois de algumas horas, bem como, da impossibilidade que envolve o cotidiano destas pessoas em realizar a limpeza das mesmas com produtos químicos específicos e recomendados. Assim, este movimento se constitui mais como uma mensagem simbólica de proteção para toda a população em relação aos cuidados do Estado com os seus cidadãos do que propriamente uma preocupação com as pessoas que estão em situação de rua. 

Diante deste do complexo jogo de escalas que envolvem imagem, exposição, segurança, corpo, população e território, é interessante pensar que enquanto se busca proteger a imagem dos infectados a todo custo, as pessoas em situação de rua estão expostas ao limite, seja individualmente, mas principalmente quando estão em aglomerações. Talvez elas só recebam a opacidade de seus rostos nas reportagens quando estiverem contaminadas oficialmente! Além disso, mesmo com o reconhecimento de que não foram construídas estratégias plausíveis para protegê-los, se faz incessante o pedido de detenção por programas televisivos. É importante lembrar que a população carcerária também está altamente vulnerável ao vírus pela concentração dos seus corpos em celas insalubres, superlotadas e já começam, como na Argentina, a se rebelar. 

Para o caso das pessoas em situação de rua, é preciso lembrar, que estar próximo, apesar do paradoxo que envolve os riscos, também se constitui como uma estratégia bio(geo)política, sobretudo quando o quadro é aterrorizante e de extermínio. Os momentos de crise são propícios para o apontamento de culpados e a materialização do ódio em forma de homicídios ou de chacinas como já aconteceram em momentos anteriores em todo o planeta.

Todos os aspectos levantados me levam a pensar que a população em situação de rua passou a ser problematizada durante a pandemia quando os mesmos foram identificados como potencializadores da transmissão do vírus e não propriamente em relação as suas vidas. Tudo isso demonstra que algumas vidas valem mais que outras em um complexo jogo de relações de poder. No entanto, o caráter invisível do vírus pode ter revelado em escala global o que esta população já sofre historicamente, como o sentido da desconfiança, da proximidade como um risco e do contato como uma impossibilidade.

Assim, os corpos mais do que nunca estão sendo abandonados (ainda vivos ou mortos), bem como, enterrados em covas comuns, sem a presença de amigos ou familiares. A COVID-19 passará e outros vírus provavelmente chegarão, mas o fenômeno das pessoas em situação de rua me parece que permanecerá presente e cada vez mais forte. Talvez, tal como ao invisível vírus, parece que cada um de nós está cada vez mais vulnerável à situação de rua e ao risco de morte, mas ver isso também de modo radicalizado, passa a ser uma questão de perspectiva.

 


 

AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:

ROBAINA, Igor Martins Medeiros. “DEIXADOS NA ESQUINA DA MORTE” POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA, BIO (GEO) POLÍTICA E COVID-19. In: Revista Ensaios de Geografia, Niterói, vol. 5, nº 9, p. 81-86, maio de 2020.

Submissão em: 05/05/2020. Aceite em: 26/05/2020.

Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ – Brasil.



[1] Professor Adjunto no Departamento e no Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Espírito Santo –Vitória, ES- Brasil.

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