Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FERNANDES, Rhuan Muniz Sartore. A epidemia do garimpo ilegal e o avanço da covid-19 na terra indígena Yanomami. Revista
Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 214-226, maio-agosto de 2021.
Submissão em: 11/12/2020. Aceito em: 03/05/2021
ISSN: 2316-8544 214
SEÇÃO ARTIGOS
A EPIDEMIA DO GARIMPO ILEGAL E O AVANÇO DA COVID-19 NA
TERRA INDÍGENA YANOMAMI
1
THE EPIDEMIC OF ARTISANAL AND SMALL-SCALE MINING AND THE
ADVANCE OF COVID-19 IN THE YANOMAMI INDIGENOUS LAND
Rhuan Muniz Sartore Fernandes
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
rhuansartore@gmail.com
Resumo
Durante a pandemia de Covid-19, uma enfermidade mais antiga, a do garimpo ilegal na Terra Indígena
Yanomami, assumiu contornos epidêmicos e conflagrou o conflito entre indígenas e garimpeiros que
persiste há pelo menos quatro décadas na região. Até o dia 08 de setembro de 2020 já eram 8 óbitos e 704
casos confirmados no interior da terra indígena. Assim, o presente trabalho busca entender como a
mineração legal e ilegal são uma ameaça ao território Yanomami e agora um vetor de transmissão da Covid-
19.
Palavras-chave
Conflito; Mineração; Coronavírus.
Abstract
During the Covid-19 pandemic, an older disease, that of Artisanal and Small-Scale Mining (ASM) in the
Yanomami Indigenous Land, took on epidemic contours and conflated the conflict between indigenous and
gold miners that has persisted for at least four decades in the region. As of September 8, 2020, there were
already 8 deaths and 704 confirmed cases in the interior of the indigenous land. Thus, the present work
seeks to understand how legal and illegal mining are a threat to the Yanomami territory and now a
transmission vector for Covid-19.
Keywords
Conflict; Mining; Coronavirus.
Introdução
A pandemia de COVID-19 tornou ainda mais visível à vulnerabilidade dos povos
indígenas brasileiros e de seus territórios, revelando a inadequação da atuação do Estado
1
O trabalho foi apresentado originalmente na II SEMAGEO UFF Niterói, que ocorreu de forma remota
em outubro/2020.
2
Graduando em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ. ORCid:
https://orcid.org/0000-0001-5246-3320
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FERNANDES, Rhuan Muniz Sartore. A epidemia do garimpo ilegal e o avanço da covid-19 na terra indígena Yanomami. Revista
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na garantia de seus direitos fundamentais constitucionais. Os povos indígenas estão entre
os mais vulneráveis à contaminação do novo coronavírus (ROCHA; PORTO, 2020):
dados oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), vinculada ao Ministério
da Saúde, reportam 26.125 casos confirmados e 421 óbitos entre a população indígena
até o dia 16 de setembro de 2020.
3
No entanto, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que
formou em maio um comitê especial integrado por suas organizações de base, o Comitê
Nacional pela Vida e Memória dos Povos Indígenas, esses dados não incluem indígenas
em contexto urbano ou em territórios tradicionais ainda não homologados, o que elevaria
o número de casos confirmados para 32.017 e de óbitos a 808, em 17 de setembro de
2020. A ameaça fica ainda mais clara quando consideramos que mais de 50% dos povos
indígenas foram afetados, sendo a própria SESAI um dos vetores da doença, ao enviar
equipes contaminadas às terras indígenas (APIB, 2020).
A Terra Indígena Yanomami, homologada em 1992 e localizada nos estados de
Roraima e Amazonas, se estendendo até a linha de fronteira com a Venezuela, possui área
de 9.419.108 hectares, tamanho semelhante ao de Portugal, e população estimada de
26.780 indígenas (SESAI, 2019) de 8 etnias diferentes, incluindo 6 povos isolados. Na
Venezuela, os Yanomami vivem na Reserva da Biosfera Alto Orinoco-Casiquiare, de 8,2
milhões de hectares. Juntas, essas regiões formam o maior território indígena coberto por
floresta de todo o mundo. No lado brasileiro, a Terra Indígena (TI) figura constantemente
em boletins disponibilizados pelo Imazon
4
como uma das TIs mais pressionadas da
Amazônia.
Um importante vetor da doença é o garimpo ilegal, uma ameaça recorrente às
terras e aos povos indígenas, com efeitos diretos e indiretos sobre sua existência física,
seja pela violência ou pela degradação do habitat. Na Terra Indígena Yanomami, objeto
de estudo deste trabalho, estima-se que haja mais de vinte mil garimpeiros ilegais
buscando ouro atualmente (ISA, 2020).
3
A Secretaria de Saúde Indígena SESAI atualiza os dados de casos e óbitos diariamente em seu site.
Disponível em: <https://saudeindigena.saude.gov.br/corona>. Acesso em: 16 set. 2020.
4
A Terra Indígena Yanomami aparece com frequência no Top 10 do Ranking de Ameaça e Pressão sobre
TIS como no documento a seguir: Ameaça e Pressão de Desmatamento em Áreas Protegidas: SAD de
fevereiro a abril de 2020. Disponível em: <https://imazon.org.br/publicacoes/ameaca-e-pressao-de-
desmatamento-em-areas-protegidas-sad-de-fevereiro-a-abril-de-2020/>. Acesso em: 20 maio 2020.
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A pressão sistemática dos garimpeiros ilegais sobre a TI Yanomami também
incide sobre outras terras indígenas nas bordas do Escudo Cristalino das Guianas, tais
como as TIs Raposa Serra do Sol (RR) e Alto Rio Negro (AM), ambas também situadas
ao longo do limite político internacional, atravessado pelos garimpeiros em ambos os
sentidos para fugir das forças de segurança. Em tempos de pandemia de Covid-19, o
garimpo ilegal assume tons mais dramáticos e se torna vetor não do desmatamento e
da contaminação dos rios, mas também de contaminação do novo coronavírus, por meio
dos garimpeiros que transitam pelo interior da Terra Indígena Yanomami, tornando-a a
mais vulnerável Terra Indígena de toda a Amazônia Legal à entrada e à propagação do
SARS-CoV-2 (OLIVEIRA et al., 2020).
Para elaborar esta pesquisa e superar os mais de 5 mil quilômetros de distância
que me separam da TI Yanomami, frente à impossibilidade de realizar trabalhos de campo
durante um período de crise econômica e sanitária, realizei o acompanhamento e
levantamento sistemático de notícias relacionadas à Terra Indígena Yanomami por meio
do clipping de notícias do Instituto Socioambiental, além do levantamento e revisão da
literatura acadêmica sobre o tema e a área. Os dados sobre a mineração legal foram
obtidos a partir do Sistema de Informações Geográficas da Mineração (SIGMINE),
vinculado à Agência Nacional de Mineração (ANM). Até a data em que o arquivo dos
processos minerários foi baixado, por meio do site da Agência Nacional de Mineração,
15 de abril de 2020, havia cadastrados 469 processos sobre a TI. Já os dados sobre os
garimpos ilegais ativos em 2020 foram obtidos na página institucional da Rede
Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG). Os dados foram
sistematizados em tabelas e mapas e analisados.
O avanço da mineração no território Yanomami
Os Yanomami mantiveram-se isolados, sem contato permanente com a sociedade até
a década de 1940. Esse quadro começou a mudar drasticamente na década de 1970 quando
não-índios começaram a operar na região com a atividade ilícita do garimpo ilegal. Com
isso, os conflitos foram se intensificando até a homologação da Terra Indígena Yanomami
em 1992, contemplando os povos Yanomami e Ye'kuana, o que não quer dizer que a
atividade ilícita tenha cessado.
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O § do Art. 231 da Constituição Federal de 1988 discorre sobre o usufruto do
subsolo e a mineração em Terras Indígenas, prevendo que a obtenção de um título
autorizativo, que na prática confere o direito de minerar a uma pessoa física, cooperativa
de garimpeiros ou mineradora em TIs deve ser aprovado em várias instâncias da Agência
Nacional de Mineração, além de obter uma autorização prévia do Congresso Nacional.
No entanto, o processo só poderá tramitar se ouvidas as comunidades afetadas, ficando-
lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
Além disso, como é o caso da Terra Indígena Yanomami, cuja totalidade está
sobreposta à Faixa de Fronteira
5
, os processos minerários ativos sobre essa parte do
território assumem contornos específicos de acordo com a lei 6.634/1979,
condicionando o aproveitamento de recursos minerais ao assentimento prévio do
Conselho de Defesa Nacional (CDN). Adicionalmente o § 1º do Art. 176 da Constituição
Federal prevê que a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos
potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa
constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no país, na forma
da lei, que estabelece as condições específicas quando essas atividades se
desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas (redação dada pela Emenda
Constitucional nº 6, de 1995).
Entretanto, ao longo da história podemos perceber que a Terra Indígena Yanomami é
um território conflagrado pelo garimpo ilegal e cobiçado pela mineração legal (Figura 1).
No que concerne à mineração legal, a área é alvo de 464 requerimentos ativos de pesquisa
e lavra garimpeira, em que o requerente detém apenas uma expectativa de direito sobre a
área daquele processo minerário e qualquer atividade minerária de fato nesses locais será
considerada crime ambiental e usurpação do patrimônio público, além de cinco títulos
autorizativos ativos, que incluem autorização de pesquisa e disponibilidade, onde se
pode lavrar ou pesquisar na área requerida (Figura 2).
5
A Faixa de Fronteira brasileira foi estabelecida por meio da lei 6.634, de 2 de maio de 1979, e
regulamentada pelo decreto 85.064, de 26 de agosto de 1980. É estabelecido por lei que a Faixa de
Fronteira é considerada área indispensável à segurança nacional e definida legalmente como a faixa interna
de 150 km de largura desde o limite político internacional para o interior do território brasileiro.
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Figura 1: Processos Minerários ativos sobrepostos a Terra Indígena Yanomami
(1974-2020
6
)
Fonte:SIGMINE ANM, 2020.
Elaboração/GIS: Rhuan Muniz Sartore Fernandes, 2020.
A soma da área de todos os Processos Minerários ativos na Terra Indígena Yanomami
chega a 3.585.706 hectares, o que equivale a 38% de toda a extensão da TI. É importante
mencionar também que há requerimentos sobrepostos uns aos outros no interior da terra
indígena.
Figura 2: Processos Minerários ativos por tipo e fase (1974 2020*)
Fonte: ANM SIGMINE, 2020.
Elaboração: Rhuan Muniz Sartore Fernandes, 2020
6
O download do arquivo com os Processos Minerários ativos foi realizado na data: 15 de abril de 2020.
Portanto, só estão contabilizados os processos até essa data no ano de 2020.
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O ouro é o principal minério a atrair no passado e no presente os garimpeiros ilegais
(DE THEIJE, 2020), transformando essa e outras Terras Indígenas no Arco Norte da Faixa
de Fronteira em uma nova fronteira da exploração mineral. O interesse das grandes
mineradoras é também apreensível pelo número de requerimentos de pesquisa de ouro
que recobrem a TI (Figura 3). A elevada quantidade de requisições pode ser explicada
pela expectativa de “guardar lugar”, que o requerente realiza o pedido visando uma
futura desregulação da mineração em terras indígenas. Interesses minerários, legais e
ilegais, têm sido encorajados pelo discurso recorrente do atual presidente da República,
Jair Bolsonaro, contrário às iniciativas ambientais e indígenas e claramente favorável ao
garimpo e à mineração (WANDERLEY et al., 2020), como tem sido reportado por
diversas organizações indígenas e ambientalistas, além de veículos e agências de notícias
(GONZALES, 2020). Bolsonaro se posicionou favoravelmente à flexibilização da
legislação vigente durante a campanha eleitoral e a promessa ganhou materialidade com
o projeto de lei 191/2020.
Figura 3: Processos Minerários ativas por substância sobrepostos a Terra Indígena
Yanomami (1974-2020*)
Fonte: SIGMINE ANM, 2020.
Elaboração: Rhuan Muniz Sartore Fernandes, 2020.
Uma possível flexibilização da legislação vigente não apenas alimentou a
expectativa de facilitar o requerimento e a aquisição de títulos autorizativos em Terras
Indígenas, como também funcionou como um atrativo para a atuação do garimpo ilegal.
Na TI Yanomami, os vinte mil garimpeiros ilegais ali atuantes ainda encontram
dificuldades de operar na região pela falta de infraestrutura, o que seria facilmente
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resolvido com a chegada de grandes mineradoras. A pressão sobre a TI aumenta, frente
à alta recorde do ouro durante a pandemia de Covid-19, que o ouro é considerado um
ativo seguro em tempos de crise. Importante notar que a escalada recente do fenômeno
não é decorrente apenas da pandemia, ainda que esta o torne mais visível. Uma operação
da Polícia Federal em Roraima no ano passado resultou na descoberta de que o estado
tinha exportado 771 kg de ouro nos três anos anteriores sem que nenhuma mina de ouro
operasse licitamente
7
, um incidente perverso e curioso se considerarmos que a atividade
não gera impostos nem compensações ambientais.
A vulnerabilidade da Terra Indígena Yanomami frente às epidemias de garimpo
ilegal e Covid-19
Em trabalho recente, Oliveira et al. (2020) consideram a Terra Indígena Yanomami
como a TI mais vulnerável da Amazônia e a segunda mais ameaçada pela Covid-19 do
Brasil (Figura 4). Entre os principais fatores apontados pelos autores e pelo Instituto
Socioambiental (ISA, 2020) para corroborar tal afirmação, estão: a fragilidade do sistema
de saúde de todo o estado de Roraima, que possui 0,72 leitos de UTI para cada 10 mil
habitantes (bem menos que a recomendação da OMS de 3 leitos para o mesmo número
de habitantes) e a presença de mais de vinte mil garimpeiros ilegais próximos às aldeias.
Figura 4: Terras Indígenas mais vulneráveis à dispersão da COVID-19.
Fonte: OLIVEIRA et al., 2020.
7
O estado de Roraima exportou 771kg de Ouro sem ter nenhuma mina autorizada em funcionamento.
Disponível em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2019/12/07/sem-nenhum-garimpo-legal-rr-
exportou-771-kg-de-ouro-em-3-anos-vendas-dobraram-nos-ultimos-2-meses.ghtml> Acessado em: 03 de
set de 2020.
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Além disso, a COVID-19 é particularmente mais perigosa para indígenas como
os Yanomami, cuja organização espacial inclui a coabitação em grandes casas comunais,
com até 400 pessoas sob o mesmo teto (ISA, 2020), que ademais também compartilham
alimentos, redes e utensílios. Assim, o estilo de vida coletivo torna o distanciamento
social virtualmente impossível, o que explicaria os mais de 700 casos até então e a
expectativa do um aumento ainda maior, se providências mais incisivas para conter o
garimpo no interior da terra indígena não forem tomadas pelo poder público. Segundo
pesquisa disponibilizada pelo Instituto Socioambiental (2020), mais de cinco mil
indígenas Yanomami e Ye'kuana poderão vir a ser contaminados nos próximos meses.
A previsão é também apoiada pela ocorrência de episódios anteriores, que
documentaram a presença de garimpeiros na TI Yanomami como vetores de
contaminação em outras epidemias, como a Malária
8
, e de atração de outros invasores
associados ao tráfico de drogas e à prostituição.
Atualmente, há pelo menos 98 pontos ativos de garimpagem ilegal de ouro ativos
no interior na Terra Indígena Yanomami, segundo a RAISG (Figura 5). É importante
destacar que a atividade acontece em ambos os lados do limite político internacional
(STEIMAN, 2008).
8
Recentemente, em tentativa desesperada de geração de divisas para superar a crise econômica, a
Venezuela vem apostando na extração de minérios. Com isso, o estado de Bolívar, que faz fronteira com
Brasil, vem sofrendo com intenso desmatamento pela mineração legal e ilegal. E com a floresta sendo
desmatada, os casos de Malária aumentaram entre os garimpeiros venezuelanos. as fêmeas dos mosquitos
Anopheles, vetor da doença, também não respeitam o limite político internacional e contaminam indígenas
no território brasileiro. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/575239-mineracao-na-
amazonia-venezuelana-faz-crescer-desmatamento-e-malaria> Acesso em: 10 set. 2020.
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Figura 5: Pontos de garimpo ilegal no interior da Terra Indígena Yanomami
Fonte: RAISG, 2020.
Elaboração/GIS: Rhuan Muniz Sartore Fernandes, 2020.
O garimpo ilegal é uma grande ameaça aos povos que habitam o interior da Terra
Indígena Yanomami. Além de destruir o ecossistema, com o qual os Yanomamis possuem
não apenas uma ligação espiritual, mas mantém de suporte às condições materiais de sua
existência. A extração ilegal do ouro tem sido a grande responsável pela contaminação
de mercúrio dos rios Uraricoera, o mais extenso do estado de Roraima, e Mucajaí. Com
isso, os peixes presentes nesse ecossistema fluvial também são contaminados pelo
mercúrio e, assim, os Yanomami e Ye'kuana que se alimentam desses animais
consequentemente também são contaminados (LIMA, 2016).
O novo coronavírus representa uma ameaça real à integridade física e étnica dos
povos Yanomami e Ye'kuana que vivem no interior da Terra Indígena Yanomami. Os
garimpeiros que atuam na região há décadas, trazendo caos e desorganização ao habitat,
são agora também os portadores e propagadores do novo coronavírus. Após extensas
viagens pelos afluentes do Rio Amazonas, ao chegar no interior da TI, os garimpeiros
ilegais acabam tendo contato com os indígenas, contaminando-os com a COVID-19. Em
números disponibilizados pela Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, que divergem pouco
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dos disponibilizados pela SESAI, é possível identificar a origem geográfica dos casos
(Figura 6) e perceber que diversos pontos de confluência com locais de garimpagem
ilegal.
Figura 6: Origem geográfica dos casos de COVID-19 na Terra Indígena Yanomami
28 de agosto de 2020.
Fonte: Rede Pró-Yanomami e Ye’kwana, 2020.
Outros incidentes divulgados pela dia ao longo da pandemia mostram os efeitos
da mesma sobre a cultura dos povos indígenas, como é o caso da polêmica sobre os corpos
de bebês Yanomami, vítimas fatais do novo coronavírus. Essas crianças tinham sido
levadas até a capital de Roraima, Boa Vista, para serem atendidas em leitos de UTI. Após
o óbito, seus corpos foram sepultados em cemitério fora da aldeia, como medida sanitária
preventiva, sem autorização das es. A medida vai de encontro com as tradições
ancestrais dos Yanomami, que costumam cremar os corpos e guardar as cinzas por cerca
de um ano, para um ritual funerário posterior (JUCÁ; GORTÁZAR, 2020).
Considerações Finais
Dessa forma, o desenvolvimento do breve estudo permitiu entender que a
vulnerabilidade de contaminação da Covid-19, a qual estão expostos os indígenas da
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Terra Indígena Yanomami, está diretamente ligada a presença dos mais de 20.000
garimpeiros que transitam no interior da TI.
Nesse sentido, entende-se que os locais onde os indígenas da TI Yanomami têm maior
contato com os garimpeiros compreendem a região onde o maior número de casos
entre as populações Yanomami e Ye’kuana. O leito dos rios, local onde há séculos estão
localizadas as aldeias indígenas, agora é alvo da presença dos garimpeiros que, além de
transmitirem o novo coronavírus, são responsáveis por destruir o bioma.
Assim como no restante do território, para se ter um maior controle do avanço da
doença é necessário que o governo federal, ao invés de transferir a responsabilidade para
os governos estaduais, atue com maior vigor, dando assistência a esses povos
marginalizados e que tanto dependem de políticas públicas de fiscalização, controle ao
acesso aos seus territórios e, claro, saúde pública.
Enquanto atuam de forma ilegal e irrestrita em um território onde o garimpo não é
permitido segundo a legislação pertinente, os garimpeiros buscam alinhar seus interesses
aos discursos do atual chefe do governo federal, que, na contramão de ambientalistas e
entidades conservacionistas, se manifesta a favor do garimpo no interior de Terras
Indígenas. Assim, crescem também os números de Requerimentos de Pesquisa no interior
de Terras Indígenas sobrepostas a ricos subsolos, como é o caso da TI abordada, visando
uma flexibilização na legislação.
Para se frear a pandemia de Covid-19 no interior da Terra Indígena, é necessário que
operações de fiscalização ao garimpo ilegal por parte dos órgãos competentes, ICMBio e
IBAMA (órgãos sucateados e esvaziados no atual governo) sejam mais frequentes na
região. assim poderemos conter a propagação do novo coronavírus e evitar mais um
episódio de genocídio indígena entre o povo Yanomami.
Referências
ARTICULAÇÃO POVOS INDÍGENAS DO BRASIL - APIB. Panorama Geral da
COVID-19. 2020. Disponível em: <http://apib.info/>. Acesso em: 17 set. 2020
BRASIL. Lei nº 6.634, de 02 de maio de 1979. Dispõe sobre a Faixa de Fronteira, altera
o Decreto-lei 1.135, de 3 de dezembro de 1970, e outras providências. Disponível
em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6634.htm >. Acesso em: 01 set. 2020
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Submissão em: 11/12/2020. Aceito em: 03/05/2021
ISSN: 2316-8544 225
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Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
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