Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FERNANDES, Rhuan Muniz Sartore; GABRIELLI, Lucas Augusto Gonçalves; MARINHO, Raíssa de Souza. Preservar é re-esxistir:
a luta das comunidades caiçaras da península da Juatinga com a presença e a ausência do turismo durante a pandemia de COVID-19.
Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13, pp. 88-104, janeiro-abril de 2021.
Submissão em: 02/02/2021. Aceito em: 12/04/2021.
ISSN: 2316-8544
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PRESERVAR É RE-EXISTIR: A LUTA DAS COMUNIDADES CAIÇARAS DA
PENÍNSULA DA JUATINGA COM A PRESENÇA E A AUSÊNCIA DO
TURISMO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
1
PRESERVING IS RE-EXISTING: THE STRUGGLE OF THE CAIÇARAS
COMMUNITIES OF THE JUATINGA PENINSULA WITH THE PRESENCE
AND ABSENCE OF TOURISM DURING THE COVID-19 PANDEMIC
Rhuan Muniz Sartore Fernandes
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro
rhuansartore@gmail.com
Lucas Augusto Gonçalves Gabrielli
3
Universidade Federal do Rio de Janeiro
lucasgabrielliufrj@gmail.com
Raíssa de Souza Marinho
4
Universidade Federal do Rio de Janeiro
raissamarinhogeo@gmail.com
Resumo
Durante a pandemia de COVID-19 as comunidades caiçaras da Península da Juatinga viram-se na
necessidade de re-existir para sobreviverem ao perigo de contaminação pelo novo coronavírus. Todavia, os
turistas que no momento são a maior ameaça da propagação do vírus também são a principal fonte de renda
dos comunitários, que viram a necessidade de fechar os seus territórios. Neste sentido, o presente trabalho
busca entender a efetividade da organização comunitária caiçara ao fechar seus territórios e conter a
propagação do SARS-CoV-2 durante o período de isolamento social. Para isso, o acompanhamento do
número de casos através dos boletins epidemiológicos divulgados pela prefeitura de Paraty foi um dos
instrumentos para acompanharmos a evolução da propagação do vírus, além do contato direto com
comunitários. Até o dia 03 de setembro de 2020, eram 982 casos confirmados de COVID-19 no município
de Paraty - RJ. Entretanto, os casos confirmados entre as comunidades caiçaras não passavam de 5% do
total (37), demonstrando a eficácia do isolamento social preconizado por boa parte dos comunitários.
Palavras-chave
Territórios Caiçaras; Turismo de Base Comunitária; COVID-19.
1
O trabalho foi apresentado originalmente na II SEMAGEO UFF: Re-arranjos Geográficos sob a influência
da Pandemia da COVID-19 que ocorreu de forma remota em outubro de 2020
2
Graduando em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
3
Graduando em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
4
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ).
Graduada em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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Submissão em: 02/02/2021. Aceito em: 12/04/2021.
ISSN: 2316-8544
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Abstract
During the COVID-19 pandemic, the caiçaras communities of the Juatinga Peninsula were in need of re-
existence to survive the danger of contamination by the new coronavirus. However, tourists who are
currently the greatest threat to the spread of the virus are also the main source of income for community
members, who saw the need to close their territories. In this sense, the present work seeks to understand the
effectiveness of the Caiçara community organization in closing its territories and containing the spread of
SARS-CoV-2 during the period of social isolation. For this, the monitoring of the number of cases through
epidemiological bulletins released by the city of Paraty was one of the instruments to monitor the evolution
of the spread of the virus in addition to direct contact with community members. As of September 3, 2020,
there were 982 confirmed cases of COVID-19 in the municipality of Paraty - RJ. However, the confirmed
cases among the caiçaras communities did not exceed 5% of the total (37), demonstrating the effectiveness
of the social isolation recommended by a great part of the community members.
Keywords
Caiçaras Territories; Community-based tourism; COVID-19.
Introdução
O município de Paraty, localizado no extremo sul do Estado do Rio de Janeiro,
caracteriza-se por seu território composto majoritariamente por áreas preservadas de Mata
Atlântica, constituindo, junto a diversos municípios do sudeste e sul do Brasil, a maior
faixa contínua do bioma em território nacional. Destaca-se, com grande relevância, a
presença de povos tradicionais indígenas, quilombolas e caiçaras, habitantes da região
muitos séculos e corresponsáveis pelas condições de conservação em que se encontram
as matas, sejam primárias ou, em sua maioria, de reflorestamento, em função dos ciclos
econômicos que ao longo dos séculos XVIII e XIX devastaram o bioma na região.
A construção do trecho Rio-Santos da rodovia BR-101, na década de 1970,
atravessando a Serra da Bocaina, foi responsável pela intensificação do repovoamento e
da urbanização acelerada dos municípios de Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba
(SP), onde diversos núcleos populacionais caiçaras, indígenas e quilombolas. Desde
então, a região é marcada por conflitos e disputas em relação ao sentido, à ocupação e ao
uso dos solos, como a grilagem de terras, a especulação imobiliária e restrições ambientais
impostas, por órgãos públicos, a estes povos.
Na Península da Juatinga, região costeira de Paraty, estas restrições se dão através
dos planos de manejo de duas Unidades de Conservação (UC) vigentes sobre o local: a
Reserva Ecológica Estadual da Juatinga (REEJ), criada em 1992, e a Área de Proteção
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Ambiental Cairuçu, fundada em 1983, que estão sobrepostas entre si sobre o território de
doze comunidades caiçaras da Juatinga, com lógicas de atuação diferentes. As UCs são
de administração do Instituto Estadual do Ambiente - INEA e do Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade - ICMBio, respectivamente, e além disso a REEJ passa
por um longo e conflitante processo de recategorização (CAVALIERI, 2003), para
adequar-se ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação (LEI 9.985/2000).
A localização ambientalmente privilegiada do município de Paraty, situado na
principal faixa remanescente de Mata Atlântica entre as duas maiores capitais do país,
São Paulo e Rio de Janeiro, faz com que a cidade seja um dos principais destinos turísticos
no Estado do Rio de Janeiro. O atual presidente da república, Jair Bolsonaro, enxerga a
região como a potencial “Cancún Brasileira
5
, referindo-se à cidade localizada no caribe
mexicano que recebe milhões de turistas por ano, numa lógica de mercado,
descontextualizada da realidade local.
Após muitas décadas vivendo em relativo isolamento (DIEGUES, 2000), hoje as
comunidades caiçaras de Paraty têm como principal fonte de renda o turismo de sol e
praia, que vem sofrendo um forte processo de expansão desde a década de 1990, muitas
vezes de maneira descontextualizada e de caráter predatório. Muitas comunidades, não
caiçaras, vêm buscando o desenvolvimento do turismo sob a perspectiva do Turismo
de Base Comunitária, o TBC. Um bom exemplo desse processo é o modelo de turismo
proposto pelo Quilombo do Campinho, também em Paraty, que inspirou o movimento na
comunidade caiçara da Praia do Sono, onde esse processo ocorre de forma mais gradual
e recente.
A chegada da pandemia de COVID-19 nos primeiros meses de 2020 revelou uma
realidade inimaginável até então: a necessidade da interrupção da atividade turística em
comunidades caiçaras. Esta ação foi realizada a partir de movimentação comunitária que
se deu de forma mais efetiva e duradoura na Praia do Sono e em Trindade. O turismo
5
Reportagem em que Bolsonaro demonstra interesse em fazer da região uma “Nova Cancún”. Disponível
em: <https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/07/epoca-negocios-me-ajudem-a-fazer-da-
baia-de-angra-uma-cancun-brasileira-diz-bolsonaro.html>. Acesso em: 7 set. 2020.
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nunca havia sido totalmente interrompido desde que a atividade passou a fazer parte da
dinâmica local, o que propiciou radical mudança na forma que tal espaço é produzido.
Tal contexto gerou conflitos de ordem sanitária nas comunidades tradicionais de Paraty,
não obstante, causou também um aprofundamento dos conflitos internos e externos de
ordem econômica e política previamente existentes.
O presente trabalho tem como objetivo mostrar como os e as caiçaras das
comunidades da Península da Juatinga, com enfoque para Trindade e Praia do Sono,
foram impactados pela presença e/ou ausência da atividade turística durante a pandemia
de COVID-19. Comentários e reflexões acerca da atividade turística, que há pelo menos
duas décadas gera impactos sobre os territórios caiçaras, sejam eles positivos ou
negativos, também foram tecidos para esclarecer algumas contradições sobre o uso do
território em análise.
A pandemia de COVID-19 tornou o turismo uma nova ameaça (socio)ambiental
para as comunidades caiçaras que residem na península da Juatinga, (Figura 1) em Paraty.
O uso dos parênteses foi proposital, e é inspirado em abordagem trazida por (SOUZA,
2019) na qual entende-se que há redundância no emprego do termo, já que para o autor,
todo conflito de ordem ambiental é também social. Quando se trata de comunidades
tradicionais, principalmente, as relações de poder engendram territorialidades, que por
sua vez produzem suas formas no ambiente.
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Figura 1: Península da Juatinga e a localização de diversos núcleos populacionais
caiçaras
Fonte: SOUZA, 2017.
Os turistas que visitam a região residem, em sua maioria, nos dois municípios com
maior quantidade de óbitos e casos confirmados de COVID-19 no Brasil: Rio de Janeiro
e São Paulo, o que eleva os riscos de contaminação da população local. Para proteger-se
do avanço da pandemia, que até o dia 03 de setembro de 2020 havia atingido 982
pessoas no município de Paraty, a população caiçara da Juatinga buscou medidas de re-
existência (PORTO-GONÇALVES, 2002), precisando resistir e dar novos sentidos à vida
durante o período de isolamento social e de paralisação do turismo.
A metodologia aplicada para a elaboração do trabalho consistiu no contato diário
com lideranças caiçaras durante os primeiros meses de pandemia e de restrições da
circulação de pessoas. Esta articulação se dava, principalmente, com Jadson dos Santos
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da comunidade da Praia do Sono, parceiro do projeto Raízes e Frutos
6
. Este contato, ainda
que remoto
7
em função da impossibilidade de os autores irem ao território, foi de extrema
importância para a compreensão da dinâmica local e do fluxo de turistas que, a despeito
das regras locais e municipais, tentavam adentrar as comunidades. Além disso, o
acompanhamento dos Boletins Epidemiológicos,
8
disponibilizados pela Secretaria de
Saúde de Paraty, tornou-se essencial para a correlação do número de casos da doença nas
comunidades caiçaras da Juatinga com os fatos narrados pelas lideranças locais,
possibilitando conclusões acerca da eficácia das medidas tomadas localmente. Também
foi realizada revisão bibliográfica de produções pertinentes ao escopo do trabalho,
possibilitando que novos conceitos fossem assimilados à reflexão proposta.
Do turismo predatório ao turismo de base comunitária
Certamente os e as caiçaras que viviam na região não imaginavam, no passado,
que seus territórios seriam alvo de grandes empreendimentos e de um turismo de massa
desordenado. Seus descendentes, contudo, vivem há aproximadamente duas décadas sob
intenso fluxo de turistas e fortes ameaças de desterritorialização (HAESBAERT, 2014) e
descaracterização de sua cultura, como consequência da necessidade de adaptação ao que
se tornou a principal atividade econômica de suas comunidades e, consequentemente, a
sua principal fonte de renda.
O modo de vida destas comunidades, anteriormente marcado pela subsistência
através da pesca, da agricultura, do extrativismo, da caça e do artesanato, vem sendo
6
O projeto Raízes e Frutos atua desde 2007 em parceria com as comunidades tradicionais caiçaras da
península da Juatinga, localizada na faixa costeira do município de Paraty, região sul do Estado do Rio de
Janeiro. O projeto busca valorizar e salvaguardar o patrimônio imaterial caiçara, contribuindo para sua
visibilidade e para seu fortalecimento político autônomo. Através da vivência nas comunidades tradicionais,
busca-se integrar o saber acadêmico aos saberes tradicionais e vernaculares, aproximando visões de mundo
diferentes que, no entanto, são igualmente fundamentais para a preservação do ambiente e da cultura local.
7
Cabe destacar que, além da arrecadação financeira para confecção de máscaras no interior das
comunidades, foi realizada uma live com caiçaras de três comunidades distintas (Trindade, Praia do Sono
e Bananal) durante o período de isolamento social para refletir acerca das novas perspectivas do turismo
durante e após a pandemia de COVID-19.
8
A prefeitura de Paraty-RJ atualiza o número de casos e óbitos diariamente em Boletim Epidemiológico
divulgado através do seu site. Disponível em:
<http://www.paraty.rj.gov.br/exclusivo/BoletimEpidemiologico>. Acesso em: 3 set. 2021.
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alterado e ameaçado pela lógica capitalista, urbana e industrial carregada pela atividade
turística, que subjuga os moradores locais, suas tradições e cultura em função da relação
de poder produzida neste choque. Na esmagadora maioria das vezes o turista que cumpre
este papel não o sabe, por estar radicalmente descontextualizado da realidade local, das
comunidades e da cultura que visita.
Numa sociedade na qual os povos tradicionais, de forma geral, nunca tiveram suas
culturas valorizadas, seus territórios respeitados, suas memórias preservadas e suas
liberdades garantidas, é de se imaginar que o modelo turístico predominante não esteja
adequado aos seus interesses, necessidades e anseios. Caracterizando-se, muito pelo
contrário, por sua face predatória, destrutiva e, até mesmo, colonialista, uma vez que
perpetua a intervenção iniciada séculos atrás, responsável pela desestruturação do modo
de vida tradicional, pautado numa relação de bem viver para com a natureza, na qual o
ser humano se enxerga e vive no espaço como parte dele, parte do todo.
Segundo Mamani (2010), a noção de bem viver
Em termos ideológicos, o conceito implica a reconstituição da identidade
cultural de herança milenária, a recuperação de conhecimentos e saberes
antigos; uma política de soberania e dignidade nacional; a abertura de novas
formas de relação de vida (não individualista senão comunitária), a
recuperação do direito de relação com a Mãe Terra e a substituição da
acumulação ilimitada individual de capital pela recuperação integral do
equilíbrio e a harmonia com a natureza (Mamani, 2010, p.13).
Esta desestruturação do modo de vida tradicional ocorre em diferentes dimensões.
A dimensão espacial tem grande importância, uma vez que a produção dos espaços tem
como objetivo adaptá-los às necessidades do momento. O turismo, nesse sentido, é
atividade responsável pela adoção de outra lógica espacial pela população caiçara, na qual
torna-se necessária a reestruturação das formas, das funções e das estruturas (SANTOS,
2003) existentes para que seja possível exercer a atividade turística, recebendo visitantes
em campings, casas, bares, restaurantes e mercearias. Tal processo foi e é responsável por
uma alteração intensa da paisagem comunitária, que se de forma mais acentuada
conforme o passar dos anos, com cada vez mais estruturas complexas voltadas para servir
e atender o capital turístico.
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Outra dimensão desta desestruturação é a ameaça de abandono de práticas
tradicionais caiçaras, sempre transmitidas de geração em geração, através da educação de
via oral. Mas se a necessidade de tais práticas se torna dispensável para a juventude
caiçara, em função da predominância da atividade turística como fonte de renda, e da
influência do modo e das projeções de vida das grandes cidades, a tendência é que se
tornem raras com o passar dos anos, cenário que é realidade na maioria das
comunidades, sendo indispensável a perspectiva da importância do resgate das técnicas,
práticas e saberes tradicionais. Da Cruz (2009) faz uma ótima leitura da infiltração da
atividade turística em comunidades tradicionais e da característica intrínseca de forte
transformação, em diversos sentidos, associada a chegada da atividade:
O turismo é uma prática social e uma atividade econômica que, no mais das
vezes, se impõe aos lugares, mas ela não se dá sobre uma “tabula rasa”, sobre
espaços vazios e sem donos. Portanto, não são apenas Estado, mercado e
turistas que produzem os espaços relativos aos fazeres turísticos, mas também
as sociedades que vivem nesses lugares, parte delas transformada, por força de
novas contingências, em empreendedores turísticos ou, mesmo, em muitos
casos, atuando como contra-racionalidades às determinações hegemônicas.
(DA CRUZ, 2009, p.98)
Diante de um turismo predatório que se consolida, num curto espaço de tempo,
enquanto principal fonte de renda das comunidades, associam-se à atividade diversos
impactos que vêm alterando a relação entre os comunitários e suas próprias relações com
o território. Impactos esses de caráter ambiental: como a saturação do sistema de fossas
com altos níveis de dejetos e produção de lixo; de cunho social: a infiltração da lógica
capitalista sobre os comunitários através da atividade turística, alterando mesmo o próprio
sentido do fazer coletivo e do pensar comunitário, criando embates políticos e econômicos
internos de diversas ordens, a partir de disputas e individualismos. Ainda que na maioria
das comunidades da REEJ os gestores das atividades turísticas sejam de fato os moradores
locais, tal gestão se materializa mais no trabalho duro, na organização e na oferta de
serviços, do que em uma perspectiva de valorização da cultura e do modo de vida caiçara.
Através da organização no Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos
Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), forte movimento social composto por indígenas,
quilombolas e caiçaras dos três municípios, lideranças passam a tomar conhecimento e
integrar discussões relacionadas ao Turismo de Base Comunitária (TBC). O TBC é uma
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modalidade de turismo que parte de premissas distintas daquelas que configuram o
turismo convencional, como a lógica de mercado, o protagonismo do turista, a submissão
da cultura à atividade econômica, a produção do espaço de acordo com a necessidade de
reprodução do capital e a vulnerabilidade das comunidades tradicionais e do ambiente
frente aos grandes empreendimentos do turismo, como resorts e hotéis de luxo e o
afrouxamento das leis ambientais. A proposta do TBC tem como objetivos principais
inverter os papéis de protagonismo, reservando-os às comunidades e seus acertos
coletivos, valorizar e fortalecer a cultura local, adequando a atividade econômica às
necessidades, desejos e anseios dos moradores, o controle comunitário do turismo,
deliberando sobre o acesso às comunidades e o equilíbrio econômico interno, evitando a
ampliação de desigualdades. Reflexões e análises sobre tais casos estão disponíveis
em Maldonado (2009). Tal processo resultou na criação de um roteiro de TBC próprio na
Praia do Sono, comunidade que recebe o maior número de visitantes na REEJ devido ao
seu fácil acesso através de 1h30 de trilha, frente às outras comunidades onde só se chega
de barco, podendo levar até 2h30 de viagem pelo mar.
Sobre TBC, Irving (2009, p.113) coloca que:
Considerando que o turismo, em qualquer de suas formas de expressão e
intervenção, interfere na dinâmica sócio-ambiental de qualquer destino, o
turismo de base comunitária poderá ser desenvolvido se os protagonistas
deste destino forem sujeitos e não objetos do processo. Neste caso, o sentido
de comunitário transcende a perspectiva clássica das “comunidades de baixa
renda” ou “comunidades tradicionais” para alcançar o sentido de comum, de
coletivo. O turismo de base comunitária, portanto, tende a ser aquele tipo de
turismo que, em tese, favorece a coesão e o laço social e o sentido coletivo de
vida em sociedade, e que por esta via, promove a qualidade de vida, o sentido
de inclusão, a valorização da cultura local e o sentimento de pertencimento.
Ainda que o roteiro de TBC da Praia do Sono receba grupos ao longo do ano, o
turismo de caráter predatório e descontextualizado se dá de forma massificada no
território. Portanto, o TBC desenvolvido na Praia do Sono está longe de conseguir
disputar com o turismo de massa em termos de atração de turistas. No entanto, essa
disputa de sentido da atividade turística no território tradicional trata-se de um processo
fundamental que vem ocorrendo nos últimos anos, fruto de muita reflexão e organização
comunitária referente a tomada de decisões sobre o turismo que se tem e o turismo que
se almeja no território. Através da existência da iniciativa, é trilhado o caminho para que
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o TBC seja expandido e popularizado, atraindo cada vez mais grupos que procuram
conhecer o território através da perspectiva comunitária.
Como é muito bem abordado nas reflexões trazidas por Barros e Rodrigues
(2019), compreende-se a relação entre o fortalecimento da educação diferenciada e o
fortalecimento do TBC, a partir de uma perspectiva de formação escolar que, desde cedo,
promova as reflexões acerca do uso do território e do protagonismo comunitário na
atividade econômica para os jovens que, futuramente, estarão ocupando os espaços na
oferta de serviços ligados ao turismo nas comunidades. Tal reflexão é de suma
importância para pensar os caminhos para superar o abismo de interesses que existe entre
os mais jovens e os mais velhos nas comunidades, tendo as escolas papel fundamental no
processo de criação da valorização da identidade caiçara nas crianças e adolescentes.
O TBC deve ser, portanto, entendido como prática potencial e necessária para a
resolução de graves problemas gerados pelo turismo convencional nas comunidades
locais, uma vez que possui o intuito de viabilizar em seu território um ambiente de bem
viver, de valorização do modo de vida, da ancestralidade e do trabalho de defesa do
território que é realizado por esses povos, para evitar um processo de desterritorialização
da população caiçara da Praia do Sono e de toda a REEJ.
COVID - 19 e organização comunitária nos territórios caiçaras
Após breve apresentação e contextualização da dinâmica de vida das comunidades
da Península da Juatinga, podemos adentrar a questão do enfrentamento da pandemia.
Chegando ao fim da alta temporada do turismo no verão de 2020, a pandemia acometeu
o Brasil, sendo amplamente divulgada e causando muitos rearranjos e modificações nas
dinâmicas de vida da maioria das pessoas ao longo do território brasileiro.
No dia 13 de março de 2020, a prefeitura de Paraty-RJ, que conta com apenas 68
leitos de UTI, decretou o isolamento social no município como medida para frear o
avanço da epidemia de COVID-19, que mais tarde ganharia o status de pandemia. O vírus
foi responsável por levar a óbito dezenas de milhares de pessoas nas duas maiores
metrópoles do país (Rio de Janeiro e São Paulo), às quais Paraty tem sua rede urbana
totalmente integrada e conectada.
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Paraty tem população de 37.533 pessoas (IBGE, 2010), e havia confirmado, até
03 de setembro de 2020, 982 casos de COVID-19 com 34 óbitos. No município
dezenas de comunidades de três povos distintos: caiçaras, indígenas e quilombolas, tidas
como populações de maior vulnerabilidade à contaminação do novo coronavírus.
No interior dos territórios caiçaras da Península da Juatinga já havia nesta data 32
casos, entre suspeitos e confirmados, de infecção por COVID-19 (Figura 2). Os números
não chegavam a 5% dos casos do município, mostrando que de certa maneira o vírus teve
um menor impacto no interior desses territórios.
Figura 2: Boletim Epidemiológico Nº 172 com enfoque para as comunidades
tradicionais - Prefeitura de Paraty (RJ)
Fonte: Secretaria Municipal de Saúde de Paraty (RJ).
Para que o impacto do coronavírus fosse minimizado, as doze comunidades
caiçaras da Península da Juatinga se viram na necessidade de re-existir durante o período
de isolamento social. Além das medidas de isolamento tomadas pelo município de Paraty,
INEA e ICMBio, órgãos gestores da REEJ e da APA Cairuçu, respectivamente, também
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
FERNANDES, Rhuan Muniz Sartore; GABRIELLI, Lucas Augusto Gonçalves; MARINHO, Raíssa de Souza. Preservar é re-esxistir:
a luta das comunidades caiçaras da península da Juatinga com a presença e a ausência do turismo durante a pandemia de COVID-19.
Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 13, pp. 88-104, janeiro-abril de 2021.
Submissão em: 02/02/2021. Aceito em: 12/04/2021.
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tomaram medidas de fechamento baseadas na Portaria do ICMBio 227 do dia 22 de
março de 2020 e na Portaria do INEA Nº 02/2020 de 10 de junho de 2020, que
suspenderam por tempo indeterminado a visitação pública as Unidades de Conservação
federais e estaduais, respectivamente.
Além de decretos e portarias regulamentando medidas de prevenção, algumas
comunidades caiçaras se organizaram internamente para garantir a segurança de seus
territórios (HAESBAERT, 2020). Ainda que o isolamento tivesse sido decretado e
implementado no município, os caiçaras tinham que lidar frequentemente com a presença
de turistas ou mesmo a população paratiense e familiares de comunitários buscando
adentrar as comunidades, desrespeitando regras e ameaçando sua segurança. Dessa
forma, foi reconhecida coletivamente a necessidade de se fechar, literalmente, através de
uma barreira humana territorial. As comunidades de Trindade e Praia do Sono foram as
que implementaram as barreiras com maior afinco, em função de seus históricos de
organização e luta e por serem as comunidades com turismo de massa consolidado e de
mais fácil acesso por terra, sendo consequentemente, as que mais sofriam tentativas de
invasão de turistas durante o momento de interrupção das atividades.
Iniciou-se, então, um denso processo de mobilização e organização comunitária
para impedir a entrada de pessoas de fora das comunidades. Para isso, foram realizadas
vigílias com a participação de membros de diferentes gerações, montadas nos acessos das
comunidades a fim de evitar o ingresso de turistas em seus territórios, levando com eles
a COVID-19. Esse movimento que recebeu o nome de “barreira da vida” ganhou força
nas comunidades que têm acesso ao contexto urbano, como a Praia do Sono próxima ao
Condomínio Laranjeiras
9
e Trindade (Figura 3). Durante esse tempo os voluntários
passaram por muitas dificuldades e situações de exposição ao perigo, como as constantes
ameaças vindo de pessoas de fora que planejavam chegar à comunidade em busca de lazer
9
O condomínio de luxo, que possui um histórico negativo de segregação espacial e outras controvérsias
ligadas ao direito de ir e vir dos caiçaras, é um dos principais epicentros de casos do município com 32
casos confirmados e/ou suspeitos até o dia 03 de Setembro de 2020, segundo a Secretaria Municipal de
Saúde de Paraty. Para saber mais sobre os conflitos entre caiçaras e a administração do condomínio:
Disponível em: <https://apublica.org/colecaoparticular/2017/11/condominio-laranjeiras-segregacao-
ameaca-e-processos-em-paraty/>. Acesso em: 15 set de 2020.
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e se depararam com a barreira, sendo impedidos de entrar. Trindade começou este
movimento no dia 20 de março, perdurando por 147 dias, e teve aproximadamente 590
turnos e 161 voluntários, articulados na defesa de sua comunidade.
Figura 3: Fotos da “Barreira da Vida” na Praia do Sono - Paraty (RJ)
Fonte: Associação dos Moradores Originários da Praia do Sono - AMOSONO
Acesso em: 9 maio 2020.
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O Fórum de Comunidades Tradicionais, organização das comunidades indígenas,
quilombolas e caiçaras de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (SP), foi responsável por
criar e incentivar redes de solidariedade entre as comunidades tradicionais e a sociedade
civil, permitindo que os territórios continuassem fechados, porém abastecidos de
alimentos e itens de proteção individual. Além do FCT participaram do processo de
mobilização ONGs como a Verde Cidadania, Viva Rio, projetos parceiros como o Raízes
e Frutos e movimentos sociais. Além disso, atividades como a roça e a caça, tradicionais
na cultura caiçara, foram resgatadas em alguns casos para garantir a segurança alimentar
das famílias.
Considerações Finais
As questões abordadas aqui permitem que se compreenda a importância e a
urgência da implementação do Turismo de Base Comunitária para a sobrevivência da
cultura caiçara e sua permanência em seus territórios tradicionais. Tal problemática já era
conhecida anteriormente à pandemia, contudo agravou-se após sua chegada, uma vez que
o fluxo turístico, responsável pela desestruturação de seu modo de vida, pela adoção de
outra lógica espacial, pela dependência econômica e pela geração de conflitos internos às
comunidades, tornou-se, além disso, o principal possível vetor de COVID-19.
É possível afirmar que a chamada barreira da vida obteve absoluto sucesso, pois
o número de pessoas que adentrou as comunidades da Praia do Sono e Trindade durante
sua execução é baixo. De forma ainda mais significante, este êxito se revela nos
baixíssimos números relativos à presença do vírus nas comunidades, comprovando sua
eficácia. Além disso, pode-se atribuir à ação das barreiras outras conquistas, como a união
de diferentes gerações de caiçaras, de diferentes gêneros, em um objetivo comum, e a
retomada de práticas tradicionais, como a caça e a maior intensidade no roçado pouco
realizadas até seu fechamento.
As experiências de lutas e as redes criadas ou fortalecidas durante este processo,
podem adiantar a implementação do TBC pós pandemia em algumas comunidades, desejo
dos e das caiçaras que anseiam por outro tipo de turismo anos. Apesar de atualmente
as comunidades estarem abertas para o público, é necessário destacar que a pandemia
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ainda não acabou, pelo contrário, continua se expandindo de forma intensa, assolando
todo o território brasileiro, nos alertando para os perigos que essas comunidades e muitas
outras (caiçaras, indígenas, quilombolas, ribeirinhas etc.) se expõem em função do
turismo. Sem estrutura para manter-se fechadas por tanto tempo sem a entrada de turistas
e, portanto, de renda para a comunidade, estamos diante de um jogo de sorte ou azar, em
que a qualquer momento, reféns da falta de políticas públicas de assistência e garantia
dos direitos básicos em tempos de crise social sanitária, a pandemia pode assolar uma
comunidade inteira, causando muito sofrimento e óbitos, como assistimos indignados em
diversas Terras Indígenas no território brasileiro.
A falta de cuidado com as comunidades tradicionais do nosso país encontra sua
forma máxima no contexto atual, onde, largados à própria sorte, buscam formas de re-
existir e sobreviver às tantas ameaças e mazelas que assombram o planeta no momento
atual. Mais uma vez, iniciativas de resistência coletivas, dentro da ótica do bem viver,
foram responsáveis por salvar comunidades desse possível extermínio, como foi o caso
da Praia do Sono e de Trindade. Mas esses movimentos de resistência, feitos com muita
luta, medo, exposição e suor não podem e não devem ser romantizados e naturalizados,
ressaltando mais uma vez que ocorrem por necessidade mediante a ausência de
acompanhamento e assistência que devem ser colocados à disposição pelo Estado para
grupos marginalizados, como são, infelizmente, os povos tradicionais. Enquanto isso, as
comunidades vão se organizando para implementar um sistema de TBC associado a
medidas de segurança e distanciamento social para seguir com a atividade turística,
regulando a entrada de pessoas, garantindo um equilíbrio na sua distribuição em casas e
campings, bem como no consumo de bares e restaurantes, na busca de proteção e da
redução de desigualdades internas a comunidade.
Este processo, contudo, ainda enfrenta enormes desafios e pode levar tempo para
se consolidar. A conjuntura nacional é gravemente desfavorável aos povos tradicionais,
vide o desmonte de órgãos de Estado como a Fundação Nacional do Índio - FUNAI e
Fundação Palmares, respectivamente responsáveis por políticas públicas dos povos
indígenas e quilombolas, e a constantes ameaças, cada vez mais graves e violentas, contra
seus deres e suas lutas. Caiçaras de Trindade sofreram agressões e ameaças na reabertura
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de seu território, forçada pela prefeitura, ao promover um controle da entrada dos turistas.
Enquanto este artigo era escrito, no dia 12 de setembro, a aldeia indígena de Rio Pequeno
(Paraty), foi invadida por homens, identificados como grileiros da região, fortemente
armados durante uma assembleia de caciques.
Nesse sentido, nota-se que a necessidade constante de organização e luta por
autonomia em seus territórios permanece latente aos caiçaras e aos povos tradicionais.
Contudo, as experiências das barreiras da vida em Trindade e Praia do Sono evidenciam
a força e efetividade que esta luta pode ter, garantindo sua sobrevivência no território e a
construção de outro modelo de turismo, pautado nos seus interesses e desejos coletivos,
através de união, mobilização e muito trabalho.
Referências
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