Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira; COSTA, Mariana Covas; SANTOS, Vicente Brêtas Gomes dos; HENNIG, Victor Monteiro da Silva.
Racionalidade neoliberal e precarização: agravamentos no cenário pandêmico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14,
pp. 227-239, maio-agosto de 2021.
Submissão em: 17/11/2020. Aceito em: 27/05/2021.
ISSN: 2316-8544 227
SEÇÃO ARTIGOS
RACIONALIDADE NEOLIBERAL E PRECARIZAÇÃO:
agravamentos no cenário pandêmico
1
NEOLIBERAL RATIONALITY AND PRECARIZATION:
escalations in a pandemic context
Victoria Ferreira Oliva
2
Universidade Federal Fluminense
victoriafo@id.uff.br
Mariana Covas Costa
3
Universidade Federal Fluminense
marianacovas@id.uff.br
Vicente Brêtas Gomes dos Santos
4
Universidade Federal Fluminense
vicente.bretas@gmail.com
Victor Monteiro da Silva Hennig
5
Universidade Federal Fluminense
victorhennig@id.uff.br
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo analisar e problematizar a circulação de trabalhadores urbanos nas
ruas em um cenário pandêmico cenário em que o presidente, Jair Bolsonaro, em uma política genocida,
cria condições para o avanço da Covid-19 no país, ao mesmo tempo em que nega o luto à população. A
intenção dos autores é de discorrer acerca desses corpos que, em plena pandemia, são compelidos às ruas
como única forma embora contraditória de garantir a reprodução de suas vidas. Para tal, nos apoiamos
em uma pesquisa bibliográfica de autores provenientes de diferentes perspectivas teórico-metodológicas.
1
Artigo apresentado pelos autores na II Semana Acadêmica de Geografia (2020) UFF, Niterói (RJ).
2
Licenciada em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). ORCid: https://orcid.org/0000-
0003-3976-7172
3
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (POSGEO/
UFF). ORCid: https://orcid.org/0000-0003-3887-4558
4
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). ORCid: https://orcid.org/0000-
0003-1136-9447
5
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). ORCid: https://orcid.org/0000-
0003-1506-4704
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
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Racionalidade neoliberal e precarização: agravamentos no cenário pandêmico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14,
pp. 227-239, maio-agosto de 2021.
Submissão em: 17/11/2020. Aceito em: 27/05/2021.
ISSN: 2316-8544 228
Visitamos, neste percurso, leituras oriundas do pensamento descolonial e dos feminismos descoloniais, bem
como da sociologia do trabalho brasileira e da teoria urbana crítica.
Palavras-chave
Corpo; Trabalho; Covid-19.
Abstract
The present work aims to analyze and problematize the circulation of urban workers on the streets in a
pandemic scenario a scenario in which the president, Jair Bolsonaro, in a genocidal policy, creates
conditions for the advance of Covid-19 in Brazil, while denying the mourning to the population. The
authors’ intention is to discuss the condition of these bodies that, in the middle of a pandemic, are compelled
to work on the streets as the only and contradictory way to guarantee their social reproduction. For this
purpose, we rely on a bibliographic search of authors from different theoretical and methodological
perspectives. We visited, along this journey, readings from decolonial thought and decolonial feminisms,
as well as readings from the brazilian sociology of work and critical urban theory.
Keywords
Body; Labour; Covid-19.
Introdução
A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença
reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é
tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como
um esparadrapo arrancado com apenas um gesto (BRUM, 2020)
6
.
Ao usar o trecho do artigo da jornalista Eliane Brum sobre a realidade pandêmica
do Brasil, publicado em setembro de 2020 no jornal El País, optamos por ressaltar a
gramática da morte existente no país. Não é a primeira vez que a autora debate o assunto,
como em seu livro “A vida que ninguém vê” (2006), cuja argumentação é similar no
capítulo “Enterro de pobre”. O argumento da jornalista é claro: “não nada mais triste
do que enterro de pobre (...) porque o pobre começa a ser enterrado em vida” (BRUM,
2006, p. 36).
Em seu artigo, afirma que o vírus alargou a fronteira da precarização dos corpos.
Antes os corpos precarizados eram historicamente caracterizados por serem corpos
negros, pobres, feminizados, porém a pandemia serviu para escancarar e reforçar as
disposições necropolíticas (MBEMBE, 2011) que caracterizam o Estado brasileiro, assim
como dinamizam a precarização de novos corpos.
6
“Os humanos que o vírus descobriu no Brasil”. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-
09-16/os-humanos-que-o-virus-descobriu-no-brasil.html?event=fa&o=cerrbr)>. Acesso em: 10 set. 2020.
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Dessa forma, o presente artigo busca criticar e questionar os rumos tomados para
o controle dos casos de coronavírus. Nesse sentido, o recorte metodológico optado recai
sobre os trabalhadores urbanos, em especial os informais e os trabalhadores de rua, que
necessitam manter-se em circulação para garantir a reprodução de suas vidas. Em um país
onde os índices de desemprego estão cada vez mais altos
7
e o trabalho cada vez mais
precarizado, qual seria a fórmula para garantir saúde, renda e direitos para a classe
trabalhadora?
Para responder questionamentos importantes neste período, como quem são
esses sujeitos?”, e contribuir com dados sobre o cenário de desemprego no país,
contamos, principalmente, com notícias e dados provenientes de pesquisas do IBGE.
Além disso, é válido ressaltar que a pandemia da Covid-19 desencadeou nas ciências um
importante desafio: a necessidade de pensarmos as transformações sociais decorrentes da
atual crise sanitária em conjunto, posto que se tratam de fenômenos articulados e de
grande complexidade. Dessa forma, este artigo contou com o exercício de buscar
contribuições de linhas teórico-metodológicas distintas.
Os debates acerca do corpo e do trabalho, sobretudo, vêm recebendo novas
nuances a partir de diferentes vertentes epistemológicas, como os feminismos
descoloniais, que colocam a escala do corpo em questão, além das discussões acerca das
novas modalidades de trabalho que estão sendo expandidas com a uberização da vida.
Entendemos, além disso, que o fenômeno de precarização dos corpos que está sendo
apontado neste artigo tem seu substrato no espaço urbano brasileiro e nas contradições
inerentes ao mesmo.
O próprio espaço metropolitano brasileiro põe em xeque as possibilidades de
mitigação face às grandes crises sanitárias, como a atual. Tendo isso em vista, a chamada
“urbanização com baixos salários” (MARICATO, 1996), que caracterizou o crescimento
das grandes metrópoles nacionais ao longo do século XX, levou a um cenário
contraditório de concentração espacial da riqueza, dos equipamentos infraestruturais e
7
O cenário de desemprego no país é alarmante. Segundo dados fornecidos pelo IBGE em 6 de agosto de
2020, o país perdeu 8,9 milhões de postos de trabalho durante os três primeiros meses de pandemia, e o
número de ocupados no Brasil atinge menor nível da série histórica. Em junho, o desemprego havia subido
13,3%. Para mais informações: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/08/06/desemprego-sobe-
para-133percent-em-junho-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 11 out. 2020 .
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dos postos de trabalho formais, ao passo que a maior parte do contingente populacional,
empobrecido e impossibilitado de garantir habitação perto das áreas economicamente
dinamizadas, assentou-se nas periferias urbanas áreas pouco cobertas pelas estruturas
básicas de reprodução da vida (equipamentos médico-hospitalares ou de mobilidade, por
exemplo).
Seus habitantes são, dessa maneira, impelidos a uma rotina baseada em
deslocamentos extenuantes. Não que tal fenômeno seja novidade no cotidiano nacional.
Ocorre, entretanto, que é justamente nessas situações-limite que as engrenagens do
sistema demonstram sua implacabilidade, oferecendo perspectivas para reflexão acerca
do momento que enfrentamos e dos caminhos civilizatórios alternativos. Este artigo se
propõe a isso.
Corpos em precarização
A juízo da autora Isabell Lorey (2018), a banalização da precarização é um traço
cada vez mais fundante da sociedade contemporânea, sendo intrinsecamente relativo à
necessidade de reprodução da vida a qualquer custo. Isso quer dizer que, no atual modo
de produção capitalista, a racionalidade neoliberal, o binômio inseguridade e liberdade, e
a governabilidade se articulam, tornando a precarização uma técnica de governo cada vez
mais normalizada. Lorey, baseada na dimensão sócio-ontológica da vida e dos corpos
8
,
afirma que, quando se adota a condição precária enquanto referencial, não se refere “a
uma constante antropológica, a nenhum estado trans-histórico do humano, mas a uma
circunstância que é passível de ser atribuída a seres vivos humanos e não humanos”
(LOREY, 2019, p. 29. Traduzido pelos autores).
Nesse cenário, a autora denuncia os entramados de vidas precarizadas que existem
e que foram atribuídos aos sujeitos, apontando a grande heterogeneidade existente entre
os sujeitos precarizados. Nesse sentido, a autora também aponta o rompimento da
seguridade da nossa sociedade, em que a agressividade do neoliberalismo contemporâneo
fragiliza a fronteira entre a classe média e os sujeitos precarizados. A classe média que,
8
Veja BUTLER, J. Frames of War: When Is Life Grievable? London /New York, 2009.
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nessa perspectiva, suporia certas condições de reprodução, se encontra cada vez mais
próxima à condição de sujeitos precarizados.
De certa forma, o neoliberalismo reinseriu o trabalho na análise econômica sob
ponto de vista do indivíduo. Segundo Foucault (2008), a noção de economia no
neoliberalismo transcende a análise clássica do trabalho e evidencia o comportamento
humano e sua racionalidade. Assim, o indivíduo não é mais figurante nos processos de
troca, mas se torna empresário de si mesmo ou seja, ele é o seu próprio capital, seu
produtor e sua fonte de renda.
O debate sobre a circulação de trabalhadores (em especial os informais) nas ruas
durante a pandemia cabe a essa perspectiva. Portanto, como ponto inicial, tomemos a
escala do corpo, um nível decisivo nas relações de poder (QUIJANO, 2010). Ao
observarmos os deslocamentos de corpos pela cidade durante a pandemia, torna-se
evidente o ponto do autor, que coloca a racionalidade política sobre o uso e o consumo
de corpos em evidência e nos leva a questionar: quem são esses corpos que estão na rua?
Por que esses sujeitos foram coagidos a colocar seus corpos à prova?
Pode-se atribuir como resposta à segunda pergunta o que Federici (2017) coloca
em seu livro, “Calibã e a Bruxa”, como o nascimento do corpo. Olhando para trás, a autora
afirma que o corpo, no século XVII, nasce e morre. Isto é, o corpo, enquanto relação
orgânica e específica, se tornaria “um significante das relações de classe e das fronteiras
movediças, continuadamente redesenhadas, que essas relações produzem no mapa da
exploração humana (FEDERICI, 2017, p. 284). Desse ponto em diante, segundo a
autora, a racionalidade cartesiana da época tratou de difundir no corpo social um poder
descentralizado baseado no autocontrole sobre si, o que proporcionou um discurso
legitimador do adestramento dos corpos a favor do trabalho.
O atual desenho da fronteira no mapa da exploração humana é caracterizado por
algo que vai além do autocontrole, mergulhando no empresariamento de si. A
racionalidade neoliberal, tanto em forma de subjetividade quanto em forma de
governabilidade, torna os sujeitos e consequentemente seus corpos seu próprio capital
humano. Foucault, ao formular essa noção do empresariamento de si, responde a nossa
questão ao afirmar que:
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O homo economicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa
coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que
fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo economicus
parceiro da troca por um homo economicus empresário de si mesmo, sendo ele
próprio seu capital, sendo para si mesmo a fonte de sua renda (FOUCAULT,
2008, p. 311).
Sendo assim, explica-se a formação de um apanhado de sujeitos que, para se
inserirem nessa lógica brutal de competição e produtividade, necessitam expor seus
corpos a uma pandemia. Além disso, para Gago (2020), as formas ampliadas de
extrativismo popular são formas dedicadas à extração da vitalidade popular por meio do
endividamento massivo em territórios urbanos e suburbanos. Esse conceito colabora na
compreensão da articulação existente entre o trabalho e a dívida, resultando na exposição
de trabalhadores nas ruas.
Ao transcorrer sobre como a financeirização da vida interfere nos corpos, Gago
(2020) refere-se também ao modo no qual as finanças e as novas formas de violência se
veem articuladas, com os corpos vulnerabilizados na rua tornando-se mão-de-obra de uma
nova modalidade de exploração. Para isso, além do prisma do endividamento, a autora
introduz a análise do trabalho por uma perspectiva feminista, em que orienta a
necessidade de pensarmos em outras formas de trabalho como o trabalho do cuidado, o
trabalho reprodutivo não remunerado e as diversas formas de trabalho não assalariado.
Sendo assim, o endividamento sobretudo dos trabalhadores não assalariados se torna
um dos fatores que elucida a presença de tantos corpos nas ruas e consolida a dívida
enquanto “dispositivo privilegiado de extração de valor no capitalismo” (GAGO, 2020).
Gago (2020), portanto, começa a responder a primeira pergunta: quem são esses
corpos? Como os dados apontam, grande parte desses corpos são trabalhadores não
assalariados que necessitam correr para prover as condições básicas para reprodução de
suas vidas e a de suas famílias. São diversos sujeitos, sobretudo trabalhadores e
trabalhadoras não assalariados, mães, corpos feminizados, negros e pouco qualificados
que se apresentam como maiores protagonistas dessa situação, assim como figuras mais
vulneráveis ao contágio da Covid-19. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra
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de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2018, realizada pelo IBGE
9
, os pretos ou
pardos são 7% desses brasileiros, enquanto as mulheres brancas solteiras com filhos
representam 8% e as negras 12%. Os dados ainda traçam uma comparação de acordo com
a qualificação dos sujeitos, sendo maior entre sujeitos com o fundamental incompleto
(6,8%).
Articula-se a isso, também, suas condições de habitação. A pesquisa afirma que a
superlotação das habitações é uma realidade comum entre os brasileiros, estando 11,5
milhões de brasileiros morando em casas superlotadas. Os dados sobre a habitação
endossam a dificuldade de alguns indivíduos se protegerem da pandemia via isolamento
social e trabalho remoto. São esses mesmos sujeitos que, em maioria, apresentaram
dificuldades de gerar renda o suficiente para sua família dentro desse cenário.
Quando pensamos nos moradores de favela, de acordo com a pesquisa Data
Favela/Instituto Locomotiva
10
, divulgada em março de 2020, o trabalho é fonte de renda
para 71% dos moradores, porém esse trabalho majoritariamente (47%) é feito por conta
própria ou por profissionais liberais, dando vida ao conceito de empresariamento de si.
Além disso, os dados apontam para 10% de desemprego e 8% de trabalhadores sem
carteira assinada, com somente 19% dos moradores de favela com contrato de trabalho
formal. Ou seja, a precarização, enquanto forma de governo, se demonstra intensificada
durante a pandemia, em que a ausência de seguridade estatal para com esses profissionais
se torna ainda mais problemática.
Dessa forma, são criadas configurações espaciais de inclusão precária, em que o
mapa da exploração humana se traduz de forma prática no espaço urbano brasileiro.
Enquanto existem espaços da cidade em que a ausência de corpos nas ruas demonstra a
condição de trabalho, habitação e aporte financeiro de seus moradores (no caso,
moradores com alguma seguridade, provavelmente assalariados em regime de home
office), existem outros espaços onde a necessidade de alimentar suas famílias não permitiu
que alguns corpos se resguardassem.
9
Mais dados da pesquisa estão disponíveis em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/03/115-
milhoes-de-brasileiros-moram-em-casas-cheias-em-meio-a-pandemia-de-covid-19.shtml>. Acesso em: 11
out. 2020.
10
Para maiores informações, acessar: <https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-03-28/sem-acoes-
especificas-86-dos-moradores-de-favelas-vao-passar-fome-por-causa-do-coronavirus.html>. Acesso em:
11 out. 2020.
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A pandemia e o “pandemônio”
“Antes da pandemia nós vivíamos o pandemônio, a pandemia intensificou
o pandemônio (...) todos são pelo fim da pandemia, mas nem todos querem o
fim do pandemônio” (GALO, 2020)
11
.
A fala de Galo, motoboy e entregador antifascista, revela a brutal realidade da
maior parte da população brasileira que, desde muito antes da pandemia, já estava
submetida a um cotidiano marcado pela ausência de proteção social, pelas formas
precarizadas de trabalho e pela batalha diária para a reprodução da vida social e material.
No livro “A Cruel Pedagogia do Vírus”, Boaventura de Souza Santos (2020) traça
uma análise a partir daqueles que estão ao Sul da quarentena
12
, lançando um olhar sobre
os sujeitos que, por serem vítimas de múltiplos processos de dominação inerentes ao
sistema capitalista e à sociedade neoliberal, estão na ponta de lança de mais uma
hecatombe: agora de origem viral.
O autor aponta para a necessidade de prestarmos muita atenção aos grupos
situados nas sombras da visibilidade ou seja, aos grupos que historicamente sofrem
com os processos de invisibilidade e apagamento. Segundo ele, momentos de crise
intensificam tais sombras de forma que “as zonas de invisibilidade poderão multiplicar-
se em muitas outras regiões do mundo, e talvez mesmo aqui, bem perto de cada um de
nós. Talvez baste abrir a janela” (SANTOS, 2020, p. 9).
Nesse contexto, Boaventura elenca uma lista de grupos sociais que se localizam a
sul da quarentena e que viviam o “pandemônio” , apontando para sujeitos que, de
diferentes formas e escalas, experimentam intensamente as cruéis consequências do
isolamento social e/ou da impossibilidade de praticá-lo. Entre esses grupos, destacamos
aqui dois: “os trabalhadores informais, precários, ditos autônomos” (SANTOS, 2020, p.
16) e “os trabalhadores da rua” (SANTOS, 2020, p. 17), que se incorporam, por exemplo,
11
Entrevista concedida ao Portal Carta Maior. Disponível em:
<https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/Entregadores-antifascistas-os-trabalhadores-de-
aplicativo-se-organizaram-e-prometem-abalar-as-estruturas-neoliberais-/47/47959>. Acesso em: 21 set.
2020.
12
Segundo as palavras do próprio autor, “O Sul não designa um espaço geográfico. Designa um espaço-
tempo político, social e cultural. É a metáfora do sofrimento humano injusto causado pela exploração
capitalista, pela discriminação racial e pela discriminação sexual” (SANTOS, 2020, p. 15)
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aos trabalhadores de aplicativos de transporte e entrega, aos vendedores ambulantes, aos
mototaxistas, aos feirantes, entre outros.
O trabalho informal precarizado sempre foi uma realidade em países do Sul
global, no entanto, no contexto de reformas neoliberais, a corrosão dos direitos ganha um
caráter institucional e passa a ser legalizada (ANTUNES, 2018). Segundo a PNAD
Contínua, referente aos meses de janeiro, fevereiro e março de 2020, antes da pandemia
ganhar os drásticos contornos brasileiros, a taxa de desocupação no país era de 11,6%
(12,3 milhões de pessoas) e, entre os brasileiros ocupados, 40,6% encontravam-se na
informalidade (38 milhões de pessoas)
13
. Tais dados são reveladores da situação de um
país onde a classe trabalhadora, além de hiperexplorada, sofre cotidianamente com a
espoliação de direitos básicos por ela conquistados, tornando-se, obrigatoriamente,
empresária de si e arcando com todos os riscos e custos envolvidos nessa dinâmica de
sobrevivência.
O outro grupo aqui destacado, os trabalhadores da rua, que corresponde aos
sujeitos que dependem do espaço da rua para gerarem sua renda e garantirem a
reprodução de suas vidas e famílias. Diante da necessidade de praticar um isolamento
social, tais trabalhadores encontram-se diante de um dilema: se expor ao risco de contágio
pelo vírus na rua ou morrer de fome?
A impossibilidade de praticar o isolamento social é a realidade de grande parte da
classe trabalhadora brasileira, que não teve o direito de se proteger do iminente risco de
contágio. Sendo o isolamento a forma mais eficaz de proteção contra o vírus
14
, as pessoas
que precisam trabalhar nas ruas ou pegar transporte público lotado para chegarem aos
seus locais de trabalho encontram-se diante do brutal paradoxo que é sair de casa e
trabalhar, expostos ao vírus, para garantir sua sobrevivência e de sua família, bem como
da sociedade no geral, que depende do trabalho dos sujeitos que se encontram na linha de
frente e que garantem a produção, a distribuição, o atendimento aos doentes, o transporte
público, entre outros serviços essenciais para a reprodução da vida de todos.
13
Dados disponíveis em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9173-pesquisa-nacional-
por-amostra-de-domicilios- continua-trimestral.html?t=quadro-sintetico>. Acesso em: 26 set. 2020.
14
CAZARRÉ, M. Opas defende o isolamento social como melhor opção de combate à covid-19. Agência
Brasil, 31 mar. 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/opas-
isolamento-e-melhor-opcao-para-evitar-consequencias-graves>. Acesso em: 28 mar. 2021.
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Realizando um esforço de exemplificação, podemos pensar nos entregadores de
aplicativos digitais como um grupo laboral especialmente afetado. São, simultaneamente,
trabalhadores de rua e trabalhadores informais, que podem ser vistos como o protótipo do
trabalho precário, vulnerável e sem proteção.
O cotidiano e a luta dos entregadores de aplicativos ganharam muita visibilidade
durante a pandemia. Apesar do trabalho desses sujeitos ser extremamente perverso desde
sua origem, a pandemia escancarou e agravou tais perversidades. A rotina desses
trabalhadores é marcada por dezenas de quilômetros de deslocamentos diários, sobre uma
moto ou bicicleta, em busca de pedidos por entregas que podem ou não aparecer. Esses
trabalhadores estão expostos não apenas ao vírus, mas a todas as consequências de um
trabalho extremamente exaustivo, de uma mobilidade urbana precária e da falta de
garantia e direitos.
Segundo relatório da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista,
gerado a partir de uma pesquisa feita com 270 entregadores que trabalhavam nos
aplicativos antes da pandemia e continuam trabalhando nesse momento, geralmente os
entregadores têm trabalhado mais durante a pandemia (passado uma maior quantidade de
horas na rua) e ganhando menos por isso. Entre os entregadores que participaram da
pesquisa, 62% estão trabalhando mais de 9 horas diárias e 78,1% trabalham 6 ou 7 dias
por semana
15
. Com base nessa pesquisa, podemos rapidamente entender a lógica do
grande capital e das novas empresas-aplicativos que dele se originam, que é a de garantir
seus lucros crescentes em cima de uma redução constante do preço da força de trabalho.
Não é novidade para ninguém que o capitalismo, sobretudo na atual fase de
contornos neoliberais e flexibilização de tudo, tem como seu foco principal o aumento de
seus lucros. Quando o lucro é priorizado em detrimento da vida, a classe-que-vive-do-
trabalho (ANTUNES, 1999) é a primeira a sentir a precarização de seus corpos, o descaso
com a vida e a iminência da morte. No entanto, quando as contradições são percebidas, a
organização dos trabalhadores e a luta de classes ocorre quase que de forma orgânica
como está acontecendo agora com a categoria dos entregadores.
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Os resultados da pesquisa foram publicados no artigo Condições de trabalho de entregadores via
plataforma digital durante a COVID-19, na Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento, disponível em:
<http://revistatdh.org/index.php/Revista-TDH/article/view/74>. Acesso em: 26 set. 2020
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira; COSTA, Mariana Covas; SANTOS, Vicente Brêtas Gomes dos; HENNIG, Victor Monteiro da Silva.
Racionalidade neoliberal e precarização: agravamentos no cenário pandêmico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14,
pp. 227-239, maio-agosto de 2021.
Submissão em: 17/11/2020. Aceito em: 27/05/2021.
ISSN: 2316-8544 237
Nesse sentido, pensar em outra sociedade e em outras formas de vida é urgente e
vai muito além da pandemia. Se o pandemônio era uma realidade antes da pandemia,
ele também é responsável por seu agravamento. A inseguridade proveniente tanto da
ausência de proteção social quanto da impossibilidade de alguns sujeitos se protegerem
do vírus pela necessidade de estarem presentes nas ruas para a garantia da sobrevivência
, além das precárias condições de moradia e saneamento básico em muitas periferias
brasileiras, foi, sem dúvidas, um fator de grande influência na tragédia vivida no Brasil
durante a pandemia de Covid-19.
Considerações finais
Como assinalado por Eliane Brum (2006; 2020), a banalização da morte na
sociedade brasileira pode ser apreendida em sua profundidade se considerarmos que
há também uma generalização de processos de abuso e de precarização da vida. A crítica
das formas de violência (sejam materiais ou simbólicas), aponta Butler (2009), deve
começar com a questão da representação da vida como tal.
Neste artigo, consideramos que as bases fundamentais da sociedade brasileira se
estruturam em torno de concessões seletivas de reconhecimento da condição de ser vivo,
o que implica também uma distribuição seletiva do luto e das capacidades de defesa em
face ao perigo: se as classes médias e altas podem se encastelar em seus apartamentos e
condomínios, protegidas da transmissão do vírus, ao mesmo tempo em que uma parcela
significativa da população circula em transportes lotados, é porque, no final das contas, a
vida dessa população tem valor meramente funcional na visão dominante.
O capitalismo em especial sua face periférica realiza-se a partir da atualização
das formas de animalização da força de trabalho, produzindo sempre novos aspectos da
precarização. Se a condição de humanidade não se estende à totalidade do corpo social,
as condições mínimas de bem-estar social são, também, incipientes. A arquitetura
histórica do capital no Brasil, somada ao ativo desdém por parte do Executivo Federal no
contexto da pandemia de 2020, produziu, para todos os efeitos, uma apoteose viral. Uma
carnificina silenciosa, contra a qual poucos m o direito de ao menos tentarem se
defender.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira; COSTA, Mariana Covas; SANTOS, Vicente Brêtas Gomes dos; HENNIG, Victor Monteiro da Silva.
Racionalidade neoliberal e precarização: agravamentos no cenário pandêmico. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14,
pp. 227-239, maio-agosto de 2021.
Submissão em: 17/11/2020. Aceito em: 27/05/2021.
ISSN: 2316-8544 238
O que o vírus revelou foi uma cesura no corpo social brasileiro, uma fenda abissal
que parece ser justamente o terceiro reino entre a vida e a morte do qual fala Agamben
(2008), no qual os súditos não se encontram nem exatamente vivos, nem totalmente
mortos uma inscrição da vida em uma zona morta e da morte em uma zona viva. É
justamente nesse reino da indistinção, governado pela racionalidade capitalista em sua
versão neoliberal, que os corpos vulnerabilizados, em busca de sustento, se veem
obrigados a atravessar a cidade em meio à maior crise sanitária de nossos tempos. Talvez
seja esse o aspecto mais fúnebre do vírus.
Referências
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ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 1999.
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