Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
Submissão em: 27/01/2021. Aceito em:18/05/2021.
ISSN: 2316-8544 192
SEÇÃO ARTIGOS
VIOLÊNCIA NO CAMPO BRASILEIRO EM TEMPOS DE PANDEMIA
12
:
reflexões preliminares
BRAZILIAN COUNTRYSIDE’S VIOLENCE IN PANDEMIC TIMES:
preliminary reflections
Amanda Guarniere Ribeiro
3
Universidade Federal Fluminense
aguarniere@id.uff.br
Pedro Catanzaro da Rocha Leão
4
Universidade Federal Fluminense
pedroleao0498@gmail.com
Vinícius Martins da Silva
5
Universidade Federal Fluminense
vinitda.97@gmail.com
Resumo
Neste artigo são apresentados os resultados preliminares sobre a violência no campo brasileiro durante a
pandemia da Covid-19. Foram levantadas informações sobre diversos tipos de violência nos conflitos por
terra e território, registrados nos sites das principais entidades implicadas na luta pela terra entre março e
agosto de 2020. Para isso, primeiramente, analisamos o contexto de continuidade-descontinuidade da
dinâmica de acumulação capitalista no espaço agrário. Seguimos com os primeiros resultados de pesquisa
sobre as violências no campo, caracterização de suas principais formas e grupos sociais envolvidos, e com
a espacialização dos registros das ocorrências.
Palavras-chave
Conflitos; Acumulação; Território.
1
Este trabalho foi apresentado na II Semana Acadêmica de Geografia UFF Niterói, 2020.
2
Aqui os autores referem-se à pandemia da Covid-19.
3
Graduanda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e bolsista FAPERJ no Laboratório de
Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades - LEMTO-UFF. ORCid: https://orcid.org/0000-0003-
2059-5163
4
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e bolsista CNPq no Laboratório de
Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades - LEMTO-UFF. ORCid: https://orcid.org/0000-0003-
3523-3229
5
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e bolsista CNPq no Laboratório de
Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades - LEMTO-UFF. ORCid: https://orcid.org/0000-0001-
7814-6382
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
Submissão em: 27/01/2021. Aceito em:18/05/2021.
ISSN: 2316-8544 193
Abstract
This article presents preliminary reflections about brazilian countryside’s violence during the Covid-19
pandemic. Information was gathered on various types of violence in conflicts over land and territory,
registered on the websites of the main entities involved in the struggle for land and territory between march
and august of 2020. For this, we’ve discussed the context of continuity-discontinuity of the capitalist
accumulation dynamics in the agrarian space. Then, we present the first results of our research on violence
in the countryside and characterization of its main forms and social groups involved. Also, is presented a
spatialization of the complaints, showing the unequal and combined movement in the country’s geography.
Keywords
Conflicts; Accumulation; Territory.
Introdução
Enquanto o ano de 2020 caminha para o fim e a pandemia parece ter sido
normalizada ainda que em um alto patamar de óbitos (cerca de 182.799 em 16 de
dezembro de 2020) , tornando banal um cotidiano de morte e sofrimento na sociedade
brasileira, nos parece importante empreender uma análise de conjuntura sobre a questão
agrária no país histórico campo de disputas territoriais que escancara desigualdades e
violências seculares contra a natureza e suas gentes. Ao contrário do que se esperava no
início da pandemia no Brasil, não houve paralisação da atividade econômica. A dinâmica
de acumulação capitalista no espaço agrário brasileiro, cuja atividade predominante é a
produção de commodities para exportação, seguiu funcionando a todo vapor
(MALHEIRO et al., 2020). E, como veremos, simultaneamente toma forma sua
consequência mais perversa, que, ao mesmo tempo, é sua condição: a violência
empregada nos conflitos por terra e território.
As crescentes cifras do agronegócio em 2020
6
o poderiam nos transmitir um
recado mais claro por parte das elites e do governo brasileiro a respeito de milhares de
mortes diárias em decorrência da pandemia. Esse recado, sintetizado pelo presidente Jair
Bolsonaro ao responder “E daí? aos questionamentos sobre as mortes por Covid-19,
6
O mês de agosto de 2020, em comparação ao mesmo mês em 2019, apresentou um aumento de 11,58 t na
produção de grãos do agronegócio e de 2,6 milhões ha em sua área total de cultivo (ABAG, 2020). Ainda,
segundo levantamento da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), os valores
brutos da produção de soja, de carne bovina e de milho cresceram em R$20,7, R$22,77 e R$22,46 bilhões
respectivamente entre maio/2019 e maio/2020. Disponível em:
<https://www.cnabrasil.org.br/cna/panorama-do-agro>. Acesso em: 17 dez. 2020.
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deixa implícita uma ironia nefasta: são os causadores da tragédia seus maiores
beneficiários: o impulso auto expansivo e ad infinitum da acumulação capitalista
7
contra
diferentes ecossistemas em escala global é o que origina a maior parte dos novos
patógenos no séc. XXI, dos quais derivam doenças como a Gripe Aviária (H5N1), o vírus
Ebola, a Gripe H1N1 e a Síndrome Respiratória Aguda (SARS) (BOTELHO et al., 2020).
Não olvidemos que, numa formação social capitalista periférica e dependente, a
dinâmica de expansão/invasão do capital por meios extra econômicos é condição precípua
à manutenção da acumulação ampliada e, conforme Harvey (2003) assinalou, a
acumulação por espoliação ganha ainda maior centralidade em períodos de crise cíclica
do capitalismo. No Brasil, essa dinâmica se dá, sobretudo, por meio do latifúndio
monocultor, da extração de minérios em grande escala e da criação industrial de animais,
que avançam sobre a natureza e seus povos, vistos como se fossem obstáculos à sua
reprodução (PEREIRA, 2018). Nessa direção, a violência é o principal instrumento
empregado pelos agentes dominantes na disputa desigual pelo controle da terra e dos
recursos territoriais, por meio dos quais (des)envolvem indivíduos de seus povos e
comunidades de sua base primária de produção e reprodução da vida (PORTO-
GONÇALVES et al., 2018).
Nesse contexto, somos constantemente bombardeados com notícias que
denunciam desmatamentos criminosos e diversos tipos de conflitos no campo, assim
como de violações de direitos. Tais notícias comunicam não só a continuidade do
emprego da violência enquanto modus operandi da expansão territorial capitalista no
espaço agrário brasileiro, mas também nos trazem características específicas à atual
dinâmica de dominação/espoliação/exploração no campo brasileiro à sombra da
conjunção perversa entre Covid-19 e governo Bolsonaro.
Tudo indica que a pandemia imprime novas grafias na geografia dos conflitos
sociais no campo. Nossa análise, feita enquanto o próprio vírus vai escrevendo sua
história e geografia, apresenta, como não poderia deixar de ser, resultados preliminares
que indicam tendências. Ainda assim, é possível dizermos que o ano de 2020 escancara
7
Disponível em: <http://afita.com.br/outras-fitas-contagio-social-coronavirus-china-capitalismo-tardio-e-
o-mundo-natural/>. Acesso em: 23 set. 2020.
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ainda mais a realidade desigual, conflitiva e violenta da sociedade brasileira. Sublinhe-
se que, a partir do campo, das periferias urbanas e dos espaços de fronteira do capitalismo,
essa situação vem sendo vivida e denunciada há muito tempo.
Isso posto, nos propomos a identificar, nos conflitos sociais no campo brasileiro
durante o período em que o surto de Covid-19 foi deflagrado, elementos que
possivelmente seriam característicos ao período da pandemia. A pesquisa se baseou no
levantamento de notícias envolvendo conflitos e distintas violações de direitos e
violências. Para tanto, recorremos às principais plataformas de divulgação de alguns dos
movimentos sociais do campo e entidades implicadas na luta pela terra e pelo território
com atuação em escala nacional: a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o
Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) e o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI).
Para isso, utilizamos uma contextualização do cenário violento e conflituoso que
caracteriza o campo brasileiro a partir da Ruptura Política
8
(2015-2019). Em seguida,
debateremos a continuidade da dinâmica de acumulação capitalista e da violência no
campo durante a pandemia e, em um último momento, apresentaremos os resultados da
pesquisa sobre violências e violações de direitos nesse período. Aqui, serão caracterizadas
as principais formas de violência noticiadas, os principais grupos sociais envolvidos, bem
como sistematizada uma espacialização das denúncias, mostrando o movimento desigual
e combinado na geografia do país.
A violência no campo é anterior à pandemia: conflitos e violência na Ruptura
Política (2015-2019)
Longe de encerrar a discussão sobre as dinâmicas conflitivas do espaço agrário
neste período corrente de pandemia no Brasil, a pesquisa aponta que o emprego da
8
A noção de Ruptura Política advém da crise política que se torna explícita em 2015, quando as forças
conservadoras resolvem desrespeitar o resultado das eleições de 2014, iniciando o processo que culminaria
no impeachment formal da presidente legitimamente eleita Dilma Rousseff, em agosto de 2016, e na prisão
do ex-presidente Lula da Silva, em abril de 2018 (Porto-Gonçalves et al., 2018). Poder-se-ia ainda incluir
como parte desse processo de ruptura política o próprio fato da então Presidente eleita nomear como seu
Ministro da Fazenda o Sr. Levy, que fizera parte da campanha do candidato derrotado que professava ideias
contra as quais a própria Presidenta eleita havia se pronunciado em sua campanha.
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violência na expansão das fronteiras do capitalismo por meio de mecanismos como
grilagem, despejos, expulsões, ameaças e invasões segue amplamente utilizado pelas
categorias sociais em situação de dominação vinculadas aos interesses do agro e outros
negócios. Elemento estrutural no processo em curso de configuração das relações sociais
e de poder no Brasil, a violência atravessa nossa história e conforma nossas geografias,
sendo empregada sobretudo nas disputas pelo controle da terra, desde a invasão colonial
europeia até o atual processo expropriatório que sustenta as frentes de expansão do
capitalismo que são, na verdade, “frentes de invasão” (CASANOVA, 2007).
Com isso, chamamos atenção ao fato de que as notícias que denunciam os
conflitos no campo e o uso da violência física e simbólica neste período pandêmico
nos chocam, mas não nos surpreendem. Elas confirmam que as oligarquias regionais,
elites locais, agentes privados internacionais e seus grileiros, jagunços etc. vêm contando,
sobretudo nos últimos anos, com apoio explícito de sucessivos governos para avançar
sobre territórios tradicionalmente ocupados, unidades de conservação, matas, rios, enfim,
a natureza e seus guardiões e guardiãs, que são os povos que nela vivem e dela
sobrevivem.
É o que podemos identificar no Gráfico 1, por meio dos dados de ocorrências de
conflitos por terra no Brasil. Os sete anos que vão de 2007 a 2014 tiveram registros abaixo
da média de todo o período de 2002 a 2019. Dois subperíodos, o de 2003 a 2007 e o de
2015 a 2019, foram os de maior conflitividade entre 2003 e 2019. Contudo, no subperíodo
de 2003 a 2007, a curva é descendente, enquanto no subperíodo de 2015 a 2019 é
ascendente. O primeiro desses subperíodos, de 2003 a 2007, tem uma média anual de
1402 ocorrências de conflitos e o último subperíodo, de 2015 a 2019, uma média anual
de 1536 ocorrências de conflitos: um aumento de 9,6% na média anual de conflitos.
(PORTO-GONÇALVES; LEÃO, 2020).
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RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
Submissão em: 27/01/2021. Aceito em:18/05/2021.
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Gráfico 1: Ocorrências de Conflitos por Terra no Brasil 2003-2019
Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno. Elaboração própria. LEMTO-UFF, 2020.
Assim, podemos afirmar que, no período em curso da Ruptura Política (2015-2019),
estamos no momento de maior conflitividade no campo brasileiro na série histórica
considerada. Em 2019, no primeiro ano de mandato do atual governo, tivemos o maior
número de ocorrências de conflitos por terra no Brasil desde 2003. Os dados referentes à
extensão de terras em conflito são alarmantes: de 2014 para 2015, a extensão de terras
implicada em conflitos no Brasil teve um aumento de 168%! De 2015 para 2019, quando
atingiu seu máximo histórico, esse aumento alcançou 249%! Nesse último ano foram 53
milhões e 313 mil hectares de terra, ou seja, mais de 6% do território nacional foi objeto
de disputa conflitiva. (PORTO-GONÇALVES; LEÃO, 2020).
Gráfico 2: Extensão de Terras em Conflito no Campo no Brasil - 2008-2019 (1000
hectares)
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RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
Submissão em: 27/01/2021. Aceito em:18/05/2021.
ISSN: 2316-8544 198
Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno. Elaboração própria. LEMTO-UFF, 2020.
Outra característica importante aponta para uma reconfiguração da questão (da
reforma) agrária no Brasil, com a predominância do envolvimento dos Povos e
Comunidades Tradicionais
9
nos conflitos no campo. O Gráfico 3 aponta que, entre 2003
e 2008, a média anual de conflitos no campo envolvendo os Assentados foi de 13%, com
os Povos e Comunidades Tradicionais alcançando 40% e os Sem-terra com 47%. entre
2009 e 2014, a participação dos Assentados caiu para 10% e dos Sem-terra para 27%. Em
contrapartida, os Povos e Comunidades Tradicionais atingem 63,34% dos conflitos por
terra/ano. No período atual de ruptura política, a participação dos Povos e Comunidades
Tradicionais chega a 70% dos conflitos! Esse movimento revela a emergência dos
Novos/Velhos (CRUZ, 2008) sujeitos, os povos tradicionais, na ponta de lança da luta
pela permanência na terra e o avanço evidente das fronteiras do capitalismo sobre seus
territórios. Considere-se que uma característica dos diversos povos e comunidades
tradicionais é o fato de estarem em posse real de uso da terra em seus territórios e, assim,
o fato de se encontrarem implicados em conflitos geralmente se por serem alvo de
processos de expulsão, espoliação, despojo, enfim, desterritorialização. Ou seja, é um
processo que, na realidade, produz sem-terra, peões disponíveis para obras de
9
Por Povos e Comunidades Tradicionais, segundo a sistematização de Cruz (2012), entendemos: os povos
indígenas; quilombolas; populações agroextrativistas seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco
babaçu; grupos vinculados aos rios ou ao mar ribeirinhos, pescadores artesanais, caiçaras, varjeiros,
jangadeiros, marisqueiros; grupos associados a ecossistemas específicos pantaneiros, caatingueiros,
vazanteiros, geraizeiros, chapadeiros; grupos associados à agricultura ou à pecuária faxinais, sertanejos,
caipiras, sitiantes campeiros, fundos de pasto, vaqueiros. (CRUZ, 2012). Em nossa análise, soma-se a essa
vasta gama de identidades a categoria dos posseiros, que recobre diversas modalidades campesinas que têm
em comum o fato de não serem reconhecidas como proprietárias privadas da terra.
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infraestrutura, migrantes para novos fronts e populações que aumentam as periferias
urbanas cada vez mais precarizadas.
Gráfico 3: Conflitos no Campo no Brasil (2003-2018) de acordo com as Categorias
Sociais em Situação de Subalternização envolvidas
Fonte: CEDOC Dom Tomás Balduíno. Elaboração própria. LEMTO-UFF, 2020.
Nesse sentido, analisamos que o atual momento de pandemia vem expressando um
processo violento que estava em curso. Em particular, o ano de 2019 assinala as muitas
ações do governo que caminham na direção oposta da resolução dos conflitos. Pelo
contrário, o governo federal tem incentivado o desmatamento e a grilagem de terras,
sobretudo na Amazônia, ignorando e atacando os direitos dos Povos e Comunidades
Tradicionais (rompendo o pacto constituinte), criminalizando movimentos sociais e mais
uma miríade de ações que acirram o cenário conflitivo no campo, como liberação
intensiva de uso de agrotóxicos, flexibilização da legislação ambiental, corte de
orçamento para agricultura familiar e camponesa, programas de educação e reforma
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agrária, enfim, uma agenda de políticas de caráter liberal-conservador alimentada por um
discurso autoritário por meio da narrativa do ódio que legitima as ações violentas por
parte de ruralistas e grileiros.
Acumulação capitalista no campo brasileiro em tempos de pandemia
Os setores do agro-minero-negócio
10
brasileiro, diante da queda nos preços das
commodities no mercado internacional sobretudo entre 2012 e 2016
11
-, optaram por
uma reconfiguração política e econômica que assegurasse a ofensiva sistemática contra
políticas de reforma agrária, movimentos sociais, direitos territoriais de comunidades
tradicionais, órgãos de proteção ambiental etc. tudo a serviço da dinâmica de
reprodução do capital. Com os grupos/classes em situação de subalternização “pagando
as contas” da crise em curso, os representantes da autodenominada “indústria riqueza do
Brasil” puderam redirecionar o processo de acumulação e dar sequência às suas frentes
prioritárias: a rapina das condições materiais de reprodução da vida e a superexploração
da força de trabalho para a apropriação da renda junto com a mais-valia, enfim, uma fusão
do capital com a propriedade fundiária.
Assim sendo, o processo de acumulação por espoliação toma um ritmo ainda mais
veloz no campo brasileiro ao longo do período 2015-2019, intensificando um processo
pelo qual “os detentores dos meios de coerção redistribuem de forma transparente os
ativos de uma classe para outra” (LEVIEN, 2014, p. 35). Os Gráficos 1 e 2, trazidos na
seção anterior, esclarecem o quanto o ajuste de classe foi central no avanço do capital
contra as condições materiais de reprodução da vida dos povos do campo ou seja, na
prática da espoliação dos povos e na territorialização do capital. Somente em relação às
ocorrências de conflitos por terra, entre 2015 e 2019, houve um aumento de 1.215 para
1.744 conflitos 43,5% em quatro anos! Simultaneamente, a pauta primário-exportadora
nunca teve maior participação nas exportações brasileiras, atingindo a marca de 57,3%
do total no ano de 2019 (BRASIL, 2020). O Gráfico 3, por sua vez, nos indica
indiretamente a centralidade ocupada pela Amazônia neste sistema desigual e
contraditório de destruição e violência, posto que a região abarca 98,25% da extensão de
10
O termo refere-se aos setores que compreendem e atuam para a agroindústria e a indústria mineral,
respectivamente.
11
Disponível em: <https://www.worldbank.org/>. Acesso em: 23 set. 2020.
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todas as Terras Indígenas do país, que estão inscritas significativamente nos 70% das
ocorrências de conflito envolvendo povos e comunidades tradicionais em 2019.
Entretanto, ainda que a intensificação do cenário conflitivo no campo seja uma
tendência que tem se acentuado nos últimos anos, em 2020 essa conjuntura é atravessada
pela irrupção da pandemia do novo coronavírus que afunda ainda mais o conjunto da
sociedade brasileira, imersa nas várias facetas da crise. A despeito de, num primeiro
momento, diversos setores apostarem que haveria, senão uma paralisação, ao menos um
arrefecimento das atividades econômicas durante o período de pandemia, tal expectativa
rapidamente desmantelou-se, pelo menos quando analisamos a situação a partir do
campo. O governo federal apresentou à sociedade uma falsa escolha: ou a economia ou a
saúde. Todavia, como era de se esperar, a verdadeira escolha foi imposta pelo Estado
brasileiro, que reafirmou suas raízes oligárquicas e genocidas ao escolher a bolsa sobre a
vida
12
. Na verdade, diante da situação que afligia sobretudo as regiões urbanas, onde se
encontra cerca de 80% da população brasileira, o governo se viu obrigado a disponibilizar
um auxílio emergencial que alcançou cerca de 65 milhões de brasileiros, ainda que sua
iniciativa tenha sido de um pagamento mínimo de R$ 200 e que o Congresso Nacional
obrigou a que fosse maior, de cerca de R$ 600, que é pouco mais da metade do salário
mínimo.
Em tempo, tal escolha efetivamente significou a ratificação dos setores do agro-
hidro-minero-negócio enquanto polo dinâmico da economia brasileira. No mês de abril
de 2020, por exemplo, o valor mensal do total das exportações de produtos básicos pelo
Brasil atingiu a impressionante marca de US$ 12 bilhões, o que configura um aumento
de 16,9% em relação ao mesmo mês do ano anterior
13
(MALHEIRO et al., 2020). No
caso do agronegócio, segundo o último levantamento da Companhia Nacional de
12
O termo faz referência à obra “A bolsa ou a vida” (2002), do cientista político Eric Toussaint (1954-), na
qual se discute a ofensiva neoliberal e a crise da dívida no Sul global. Tal expressão retorna com força
notável no período em que vivemos, que, frente à crise sanitária gerada pela Covid-19, os governantes
impuseram à população brasileira uma escolha forçada que, de fato, sequer é uma escolha entre
economia e saúde.
13
É importante frisar que o desempenho de ambos os setores no ano de 2020 dá continuidade à tendência
de crescimento verificada pelo menos nos últimos vinte anos (CEPEA, 2019), e não necessariamente guarda
uma relação direta com o fenômeno da pandemia.
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Abastecimento (Conab), foi registrada uma safra-recorde de grãos
14
. Calcula-se, ainda,
que, no semestre de 2020, o setor mineral foi responsável por aproximadamente 50%
do saldo comercial do Brasil
15
. Isto é, mesmo com o revés do coronavírus, a mineração é
capaz de manter, e até ampliar, sua produção e seus lucros.
Além disso, no âmbito da exploração da força de trabalho, a pandemia escancara
a desigualdade que estrutura nossa sociedade. A continuidade das atividades consideradas
essenciais pelo Estado tem resultado num cenário de acumulação para o agro e outros
negócios e, para os trabalhadores, restou o campo, a aglomeração em minas, abatedouros,
frigorífico etc., que, não raramente, resulta na contaminação em massa de trabalhadores
e comunidades, demonstrando que os efeitos da máxima “a bolsa ou a vida” afetam
principalmente os grupos/classes em situação de opressão/exploração/subalternização.
Logo, como não poderia deixar de ser em uma ordem social contraditória, o
desenvolvimento geográfico desigual oferece vantagens e lucros para uns e, de outro
lado, malefícios, destruição e violência para outros. A potência destrutiva que emerge da
combinação entre um governo protofascista e ultraliberal, uma elite predatória e um vírus
contagioso nos afunda ainda mais no lamaçal do processo civilizatório moderno-colonial-
patriarcal (PORTO-GONÇALVES et al., 2018). E a pandemia torna até a lama mais
transparente, como nos alerta o sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2020), ao falar de
uma “trágica transparência do vírus”. Aqui, o que chamamos “transparência” nada mais
é do que a explicitação e o aprofundamento das assimetrias de poder que se fazem sentir
nas relações sociais e de poder, seja no campo ou na cidade, cujas dinâmicas de
dominação/opressão/exploração estruturam-se a partir das categorias de gênero, raça e
classe.
Tais considerações ajudam-nos a descortinar o que em comum entre a
manutenção das operações policiais em favelas e a continuidade da violência do Estado,
de latifundiários e de outros agentes contra os povos do campo mesmo durante a
14
A safra de grãos brasileira do período 2019-2020 atingiu o registro de 257,8 milhões de toneladas. Dentre
os produtos, destacam-se a soja, o milho e o algodão, que aumentaram sua produção em 11 milhões de
toneladas em comparação à última safra. (BRASIL, 2020)
15
A mineração responde por 50% do saldo comercial brasileiro no semestre de 2020. IBRAM, 2020.
Disponível em: <http://portaldamineracao.com.br/ibram/mineracao-responde-por-50-do-saldo-comercial-
brasileiro-no-1o-semestre/>. Acesso em: 20 set. 2020.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
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ISSN: 2316-8544 203
pandemia
16
: a negação do estatuto ontológico de determinados corpos e grupos/classes
sociais. Como dito, na presente conjuntura, a perversidade por detrás da dinâmica de
dominação/expropriação/opressão se faz ainda mais transparente, que os grupos/classes
sociais em situação de subalternização se veem obrigados não só a re-existirem frente às
violências e violações permanentes, mas também a sobreviverem ao coronavírus.
Esse cenário, ao mesmo tempo em que traz, na combinação entre espoliação,
violência e pandemia, um novo desafio à luta dos povos e movimentos sociais pela vida
e pelo território, também expõe que a crise econômica e a crise ecológica advêm de uma
mesma raiz, quer seja, um sistema que transforma as condições materiais de reprodução
da vida em mercadoria e não reconhece outro critério senão a expansão de si próprio e de
seus lucros (LÖWY, 2013). Dessa forma, a irrupção da crise do coronavírus em escala
global resulta não da integração dos fluxos de pessoas e mercadorias proporcionada
pelo desenvolvimento tecnológico, mas tem sua origem na fratura metabólica que é
marca dos processos de territorialização do capital e que hoje se evidencia nas mudanças
estruturais nos sistemas biogeofísicos da Terra a partir da aceleração da atividade
capitalista em todo o mundo (BARCELOS, 2018).
Portanto, o conceito de metabolismo social é chave na compreensão da forma pela
qual a territorialidade capitalista constantemente produz natureza à sua maneira enquanto,
a um só tempo, destrói naturezas outras. Atualmente, a crise sanitária e epidêmica soma-
se ao rol de crises que se anunciam na ecologia planetária e ao metabolismo sempre
expansivo e de grande impacto com suas transformações qualitativas em matéria e energia
promovidas pela atividade capitalista em sua sanha autodestrutiva de acumulação
ampliada. Nesse processo, se a fratura metabólica é a natureza visível do modo capitalista
de organização material da vida (BARCELOS, 2018), o emprego da violência e da
espoliação no (des)envolvimento das populações de seus meios de existência é
mecanismo estrutural do capital, em que a acumulação primitiva é irmã-gêmea da
acumulação civilizada.
16
Em tempo, as operações policiais em favelas e as ações de reintegração de posse foram respectivamente
suspensas no estado do Rio de Janeiro, pelo MPF, e no estado de São Paulo, pelo MPSP. Em ambos os
casos, as ordens judiciais não foram cumpridas. Disponível em: <http://www.global.org.br>. Acesso em:
24 set. 2020.
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tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
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Violências no campo em 2020: primeiros resultados de pesquisa
Por meio do levantamento sistemático das informações colhidas junto às
organizações implicadas na luta pela terra no Brasil no ano de 2020 no período entre
março e agosto, foi possível sistematizar as principais formas de violência e violações de
direitos denunciadas pelos movimentos sociais aos quais recorremos na pesquisa. Entre
esses meses, as ocorrências mais recorrentes são referentes a: grilagem de terras; despejos
e ameaças de despejo; expulsão e ameaças de expulsão; invasão de territórios; garimpos
ilegais, além de outras formas de violência
17
.
Como se vê na Tabela 1, de um total de 55
18
registros de ocorrências de violências
diversas detectadas, as categorias sociais envolvidas evidenciadas foram especialmente
os povos e comunidades tradicionais, envolvidos em 37 ocorrências, seguidos pelas
comunidades rurais que praticam agricultura familiar (9), por assentados (4), acampados
(4) e trabalhadores e trabalhadoras sem-terra (3). Esse panorama demonstra que a
dinâmica de violência contra os povos e comunidades tradicionais no avanço do
capitalismo moderno-colonial no espaço agrário brasileiro seguiu funcionando em 2020.
Tabela 1: Sistematização das Violências por Categorias Sociais Envolvidas
Elaborado por: LEMTO-UFF, 2020, a partir de dados levantados nessa pesquisa.
Em contrapartida, podemos categorizar essas violências no campo a partir dos agentes
que as protagonizaram, que, na maioria dos casos, estão articulados entre si. Os registros
apontam violências empregadas por (1) atores ilegais (pistoleiros, garimpeiros ilegais,
17
Foram encontrados também registros de ocorrências que denunciavam outras formas de violência, como
pistolagem, extração ilegal de recursos naturais (sobretudo de madeira), assassinatos, invasão de territórios
por jagunços e agentes do Estado, contaminações induzidas.
18
Foram detectados 55 registros de ocorrências. No entanto, em três delas foram identificadas mais de uma
categoria social envolvida, contabilizando um total de 58 para os dados das categorias sociais envolvidas
em denúncias de violência.
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etc.) que, tudo indica, radicalizaram suas ações e se destacam no contexto atual; (2) atores
formais que não pararam, inclusive foram considerados essenciais, e que, em sua
dinâmica de acumulação, alimentaram o cenário de violência no campo (agronegócio,
mineração, setor de infraestrutura, geração de energia, etc.); e (3) pelo próprio Estado,
como ator que produziu durante a pandemia a continuidade da dinâmica de violação de
direitos no campo, exarando ordens de despejos e não atendimento a serviços e
contaminações induzidas, por exemplo.
Ainda, como mostra a Tabela 2, podemos categorizar as ocorrências de violências
variadas encontradas a partir da espacialização dos fenômenos, o que qualifica a análise.
Desses registros, 19 ocorreram na região Norte, 13 no Nordeste, 10 no Sudeste, 8 no Sul
e 5 no Centro-Oeste. Desse modo, 60% das denúncias detectadas de violências no campo
brasileiro no período da pesquisa (março - agosto/2020) ocorreram nas regiões Norte e
Nordeste. Contudo, as ocorrências do estado do Maranhão e do Mato Grosso, que
conformam em grande parte a Amazônia Legal, somadas às da região Norte, contabilizam
25 ocorrências, ou seja, cerca de 44% das denúncias de violências detectadas e registradas
se deram na Amazônia Legal.
Tabela 2: Sistematização das Violências por macrorregião no Brasil
Elaborado por: LEMTO-UFF, 2020, a partir de dados levantados nessa pesquisa.
É significativo que a região amazônica venha sendo cenário de diversas ações de
pistolagem, invasões, assassinatos e desmatamento. Além do governo, os principais
agentes do setor agromineral extrativista não escondem seu interesse em superar os
“obstáculos” que os impedem de explorar zonas até então preservadas ou
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tradicionalmente ocupadas. Na Amazônia Legal, das 23 violências registradas,
18 envolveram povos e comunidades tradicionais. Dentre as denúncias analisadas, as
violências e violações de direitos contra povos e comunidades tradicionais e seus
territórios chamaram atenção por sua intensidade e quantidade. Contudo, das 37
ocorrências envolvendo esses grupos no Brasil, 28 tangiam especificamente os povos
indígenas, ou seja, 75,6% do total.
O alto índice de conflitos envolvendo povos e comunidades tradicionais, em
particular os povos indígenas, indica a relevância da raça como critério fundamental de
configuração da estrutura de poder da sociedade (QUIJANO, 2005), que cria, nas palavras
de Fanon (2008), “zonas do ser e do não-ser”, e essa clivagem decide “quem importa e
quem não importa, quem é descartável e quem não é” (MBEMBE, 2018, p. 41).
Assim, a sensação de insegurança que atravessa o cotidiano de inúmeros povos
pode ser materializada em ações violentas que apontam claramente para a articulação
entre os atores legais, ilegais e o próprio Estado na produção dos conflitos e da violência
no campo. No caso do assassinato da liderança Ari Uru-Eu-Wau-Wau
19
, em Rondônia,
os agentes responsáveis pela investigação puseram dúvidas sobre a causa da morte, apesar
das marcas de pancadas no corpo da vítima. Considerando que a terra pertence à maior
Unidade de Conservação de uma região fortemente visada pelo agronegócio, convém
refletir, mais uma vez, sobre a vontade ou não dos agentes do Estado em proteger povos,
corpos e territórios em situação de subalternização. Vale ressaltar que o crime ocorreu
apenas 20 dias depois da morte, no Maranhão, de Zezico Guajajara
20
, também líder
indígena, muito conhecido justamente por lutar ao lado do povo Tenetehar/Guajajara
contra os diversos tipos de exploração de invasores em suas terras, com denúncias de
garimpos ilegais durante a pandemia.
Seguindo a desafortunada tendência de violência contra povos indígenas, os
Guajajara (MA) vêm sofrendo ataques e vendo seu território ser invadido e desmatado de
forma mais intensa desde meados de 2019. Ações desse tipo se mantiveram durante a
pandemia, revelando um novo tipo de risco, para além da iminência da
19
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/04/foi-assassinato-nao-foi-acidente-diz-familia-de-ari-uru-eu-
wau-wau-morto-em-rondonia/>. Acesso em: 20 set. 2020.
20
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/03/nota-solidariedade-cimi-regional-maranhao-familiares-
zezico-guajajara/>. Acesso em: 20 set. 2020.
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desterritorialização: a contaminação pelo novo coronavírus. De acordo com o missionário
Gilderlan Rodrigues da Silva, em entrevista para o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI)
21
(2020): “[...] não saúde adequada para atender a população como um todo,
menos ainda os povos indígenas. Então eles estãoprotegidos e de repente se deparam
com invasores perto das aldeias”. Casos de contaminação em aldeias têm sido
constantemente relatados, e diversos povos vêm construindo barreiras sanitárias. Esses
casos denunciam como as ações do próprio Estado impulsionam violências contra os
povos do campo durante a pandemia
22
. Sendo assim, ao nos depararmos com notícias
como a ação policial, aparentemente motivada por vingança, que resultou em mortes de
indígenas dos povos Munduruku e Maraguá (AM)
23
ou a iminência de invasão do
território Karipuna (RO)
24
, devido à diminuição de monitoramento e fiscalização durante
a pandemia, restam poucas dúvidas sobre o significado político da atuação/inação do
Estado.
Dentre as denúncias analisadas, as violências e violações de direitos contra povos
e comunidades tradicionais e seus territórios chamaram atenção por sua intensidade e
quantidade. Como exposto anteriormente, casos de violências e conflitos envolvendo
esses grupos vinham crescendo desde os anos 2010 e aumentaram significativamente
durante o período de Ruptura Política, em que os direitos vêm sendo constantemente
postos à prova e ações criminosas visando sua desterritorialização e a espoliação de seus
territórios são legitimadas.
Uma das muitas terras indígenas que sofreram invasões com risco de
contaminação foi a TI Vale do Javari, localizada no Amazonas. Desde o início da
21
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/05/povo-guajajara-denuncia-a-presenca-cada-vez-maior-de-
madeireiros-na-ti-urucu-jurua/>. Acesso em: 20 set. 2020.
22
Segundo a Coordenação da Articulação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas
(CONAQ), até o dia 11 de novembro de 2020, 4.635 quilombolas foram infectados pelo vírus e 168
perderam a vida por causa dele. Nos territórios indígenas, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas
do Brasil (APIB), até o dia 23 de novembro de 2020, 39.826 indígenas, de 161 povos, foram infectados
pelo vírus e 880 indígenas morreram em decorrência dele. Disponível em
<https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/5467-2020-o-ano-do-fim-do-mundo-como-o-
conhecemos>. Acesso em: 17 dez. 2020.
23
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/08/movimentos-sociais-pedem-apuracao-de-acao-da-pm-
contra-ribeirinhos-e-indigenas-no-amazonas/>. Acesso em 20 set. 2020.
24
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/04/em-meio-pandemia-grileiros-invasores-aproximam-aldeia-
karipuna/>. Acesso em: 20 set. 2020.
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pandemia, povos isolados que vivem nessa área se depararam com diferentes tipos de
invasores, que vão desde caçadores de animais silvestres
25
até um missionário norte-
americano
26
. O trânsito desses indivíduos, por si só problemático, põe em risco as muitas
vidas que ali existem, fazendo com que lideranças de povos envolvidos acionem, muitas
vezes sem sucesso, órgãos como a Funai, o MPF e a Polícia Federal. A negligência do
Estado nessa situação é capaz de gerar danos irreparáveis à dinâmica de vida e
territorialização dos povos em questão. Só no estado do Acre, de acordo com o CIMI, em
ocorrência do dia 31 de agosto de 2020
27
, das 53 terras indígenas monitoradas, 30
registraram a presença da Covid-19. Sendo assim, como dito anteriormente, é possível
relacionar diretamente o sucateamento de órgãos indigenistas e de conservação ambiental
e os conflitos por terra envolvendo violações de direitos de povos e comunidades
tradicionais como um mecanismo necropolítico (MBEMBE, 2018) junto à pandemia em
curso.
Ao sul do país, mais precisamente no oeste do Paraná, mesmo antes dos
desdobramentos da epidemia da Covid-19, relatos de violência contra o povo Avá-
Guarani eram constantes. Das ocorrências registradas pelo CIMI referentes a conflitos na
região sul, todas envolviam os Avá-Guarani, levantando a necessidade de destaque do
povo em nossa sistematização de parte das violências e violações sofridas no recorte
temporal escolhido. Lideranças do povo Avá-Guarani acreditam que, apesar do histórico
de violência, as agressões em 2020 tenham sido legitimadas pela anulação da demarcação
de seu território, inscrito nos municípios de Guaíra e Terra Roxa (PR). no mês de
junho, em menos de uma semana, foram registradas duas ações de pistolagem na TI
Tekoha Guasu Guavirá
28
.
A contaminação causada por agentes externos também é uma forma de violência
presente, pois acredita-se que o principal vetor do coronavírus nas aldeias seja a atividade
25
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/04/em-meio-a-pandemia-invasores-sao-detidos-na-ti-vale-do-
javari-em-regiao-de-isolados/>. Acesso em: 20 set. 2020.
26
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/03/indigenas-temem-proliferacao-de-coronavirus-com-
entrada-ilegal-de-evangelicos-na-ti-vale-do-javari/>. Acesso em: 20 set. 2020.
27
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/08/o-estado-se-ausenta-as-invasoes-e-pandemia-avancam-
entre-os-povos-indigenas-no-acre/>. Acesso em: 20 set 2020.
28
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/06/ate-quando-vamos-continuar-resistindo-e-existindo-afirma-
lideranca-apos-tekoha-sofrer-ataques/>. Acesso em: 20 set. 2020.
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RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
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dos frigoríficos da região que, ao empregar indígenas e geralmente se localizarem
próximos a seus territórios, não paralisaram suas atividades durante a pandemia. Se por
um lado, como forma de proteção, os Avá-Guarani construíram uma barreira sanitária
29
,
enquanto forma de manter o isolamento da comunidade, por outro lado o crescimento da
atividade agropecuária nesse período, em detrimento da saúde de povos vulnerabilizados,
traz à tona, mais uma vez, a discussão acerca da ganância envolvida na dinâmica
capitalista de acumulação, que seguiu prosperamente nos últimos meses.
Contudo, sabemos que a violência protagonizada pelos “de cima” é empregada
também contra outras categorias sociais em luta pelo acesso à terra ou pela permanência
em seus territórios, dependendo dos interesses de territorialização do agronegócio ou
expansão de diversos tipos de atividades extrativistas. Em relação aos acampados, por
exemplo, segundo o MST, a vulnerabilidade das famílias acampadas que aguardam
movimentações do INCRA e que vivem sob constante ameaça de despejo se torna mais
evidente no contexto da pandemia
30
.
Durante a pandemia, umarie de ações autorizadas pela justiça estadual geraram
aglomerações no território e aumentaram os riscos de contaminação. Essa realidade se
materializou no Acampamento Quilombo Campo Grande
31
, no sul de Minas Gerais, onde
sua gente foi exposta de múltiplas maneiras à contaminação por meio das diversas
iniciativas de desterritorialização às quais foi submetida. As cerca de 450 famílias, que
vivem mais de 20 anos na localidade e possuem uma ampla produção de alimentos
agroecológicos, vêm enfrentando uma série de ameaças e ações de pistoleiros e jagunços
atrelados às elites locais e aos antigos donos da usina desativada que havia na área. Os
empresários desta usina são atualmente os maiores interessados na remoção dos
acampados, segundo o MST. Junto a isso, no mês de agosto, 14 famílias foram despejadas
em uma ação violenta e criminosa da Polícia Militar de Minas Gerais, que levou 150
29
Disponível em: <https://cimi.org.br/2020/06/covid-19-chega-aos-ava-guarani-da-ti-ocoy-tendo-
frigorifico-como-vetor-barreira-sanitaria-e-atacada/>. Acesso em: 20 set. 2020.
30
Disponível em: <https://mst.org.br/2020/04/29/vulnerabilidade-de-acampados-frente-a-despejos-
aumenta-com-covid-19/.> Acesso em: 10 out. 2020.
31
Disponível em: <https://mst.org.br/2020/08/12/policia-age-com-truculencia-durante-despejo-no-
acampamento-quilombo-campo-grande/>. Acesso em: 10 out. 2020.
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RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
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agentes para a ação, destruindo casas e lavouras, despejando acampados em meio à
pandemia e causando aglomeração e contaminação.
Desse modo, o emprego da violência no campo tomou várias formas e seguiu
atuante mesmo durante a pandemia, se dando, sobretudo, contra os povos tradicionais,
com destaque aos indígenas o que evidencia o avanço sobre regiões nas quais o capital
encontra recursos territoriais e bens da natureza em abundância para sua reprodução, em
especial os territórios tradicionalmente ocupados, e não só na Amazônia, como vimos no
caso dos guaranis no sul do país e dos quilombolas em Minas Gerais.
Essas violências por meio de despejos, ameaças, invasões, pistolagens e outras
ações também se deram em áreas ocupadas por outras categorias sociais, como
acampados, assentados e diversas comunidades rurais, evidenciando as fricções nas
fronteiras internas do capitalismo e mostrando que os conflitos por terra/território seguem
ocorrendo em larga escala no espaço agrário nacional.
Conclusão
Conforme demonstramos neste artigo, mesmo sob a influência da Covid-19, o
setor do agro-hidro-minero-negócio foi capaz de manter, e até ampliar, sua produção e
seus lucros, tendo o Estado brasileiro como importante associado. Nesse cenário, salta
aos olhos o número de registros envolvendo violência e conflitos no campo brasileiro. Ou
seja, ainda que o ano de 2020 não tivesse chegado ao fim, a análise nos dá mais um sinal
da centralidade adquirida pela acumulação por espoliação em tempos de crise do capital
(HARVEY, 2005) e da posição central ocupada pela questão da terra na dinâmica de
expansão territorial capitalista.
Ainda, é notório que a região amazônica e a categoria dos povos e comunidades
tradicionais sigam concentrando grande parte dos conflitos por terra, com destaque para
os conflitos envolvendo povos indígenas
32
. Além dessa continuidade, a crise sanitária
provocada pela pandemia também desencadeia novos fenômenos na dinâmica de
32
A Amazônia concentra 98,25% do total da extensão de terras indígenas no Brasil. Disponível em:
<https://ipam.org.br/wp-
content/uploads/2015/12/terras_ind%C3%ADgenas_na_amaz%C3%B4nia_brasileira_.pdf>. Acesso em:
25 set. 2020.
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RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
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violência contra os povos do campo e da natureza, com destaque para a presença de um
novo mecanismo de uma política de morte o coronavírus.
Dessa forma, para além das denúncias, o momento enseja terreno para que outras
formas de r-existência e solidariedade tomem corpo, principalmente a partir dos
movimentos sociais, dos povos e comunidades tradicionais e dos territórios periféricos de
maneira geral. É o caso das iniciativas do MST, que até o presente momento doou 3.400
toneladas de alimento durante a pandemia
33
, e das iniciativas de autogestão e autonomia
territorial que se traduzem, no caso dos povos indígenas, quilombolas e outras
comunidades tradicionais, na organização das barreiras sanitárias e no acionamento da
solidariedade em territórios-rede
34
. Essas e outras ações urgem serem entendidas não
como casos isolados, mas como indicativos de outros horizontes de sentido para a vida,
que se opõem a uma sociedade que determina um aumento nos preços dos alimentos em
pleno cenário de desemprego, fome e caos social. Ecoemos as palavras de Krenak (2020),
que, mesmo em tempos de “descolamento da vida”, aposta na recriação do mundo como
um evento possível o tempo inteiro.
Referências
ABAG. Informativo Abag. Associação Brasileira do Agronegócio. 116 - Ano 21,
Nov e Dez/2019 Jan a Ago/2020, São Paulo, 2020.
BARCELOS, E. Geografia e Grandes Projetos: ecologia, política e economia no
capitalismo de fronteira. Tese (Doutorado em Geografia) - Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2018.
BOTELHO, M.; CHALO, G. A produção da natureza e o coronavírus. IPPUR/UFRJ,
Rio de Janeiro, junho de 2020. Disponível em: <http://ippur.ufrj.br/index.php/pt-
33
Disponível em: <https://mst.org.br/2020/09/09/desde-o-inicio-da-pandemia-mst-ja-doou-3400-
toneladas-de-alimentos/>. Acesso em: 24 jan. 2021.
34
Durante a pandemia, muitas comunidades fizeram barreiras sanitárias, buscando impedir invasores e, a
partir disso, também, o vírus. Em 2020, foram registradas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) 267
ocorrências de barreiras sanitárias no Brasil, envolvendo 48.562 famílias. Dessas, cerca de 84% das
barreiras sanitárias foram feitas em territórios indígenas. Disponível em:
<https://www.cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque/5467-2020-o-ano-do-fim-do-mundo-como-o-
conhecemos>. Acesso em: 17 dez. 2020.
Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
RIBEIRO, Amanda Guarniere; LEÃO, Pedro Catanzaro da Rocha; SILVA, Vinícius Martins da. Violência no campo brasileiro em
tempos de pandemia: reflexões preliminares. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 7, nº 14, pp. 192-213, maio-agosto de
2021.
Submissão em: 27/01/2021. Aceito em:18/05/2021.
ISSN: 2316-8544 212
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