Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 13/10/2021. Aceito em: 02/03/2022.
ISSN: 2316-8544
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SEÇÃO ARTIGOS
EXPLORANDO MEMÓRIAS DE LUGAR E LUGARES DE MEMÓRIA ATRAVÉS
DE HISTÓRIAS DE VIDA DE IDOSOS RESIDENTES NA SERRA DE PIABAS,
SITUADA NO PARQUE ESTADUAL DA PEDRA BRANCA, CIDADE DO RIO DE
JANEIRO-RJ
EXPLORING MEMORIES OF PLACE AND PLACES OF MEMORY THROUGH
LIFE STORIES OF ELDERS RESIDENTS AT SERRA DE PIABAS, PEDRA
BRANCA STATE PARK, IN THE CITY OF RIO DE JANEIRO-RJ
EXPLORANDO MEMORIAS DE LUGAR Y LUGARES DE MEMORIA A TRAVÉS
DE HISTORIAS DE VIDA DE ANCIANOS RESIDENTES EN LA SERRA DE
PIABAS, UBICADA EN EL PARQUE ESTATAL DE PEDRA BRANCA, CIUDAD DE
RIO DE JANEIRO-RJ
Jean Lucas da Silva Brum
1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
Rio de Janeiro, Brasil
E-mail: jeanbrum@id.uff.br
Resumo
Este breve ensaio tem como objetivo discutir os diferentes modos a partir dos quais memória e lugar podem se
articular em meio à experiência de mundo através da análise e interpretação de histórias de vida de idosos
residentes na Serra de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, na cidade do Rio de Janeiro RJ. Este
estudo examina como estes sujeitos narram as suas experiências/vivências, através da representação de seu passado
pela memória, bem como a articulação destas memórias na construção de sentidos de lugar e o papel do lugar na
evocação destas memórias. O fio condutor deste trabalho aponta na direção da construção de um profundo
sentimento de pertencimento e apego ao lugar, ancorado na experiência narrativa das memórias como estratégia
de permanência destes sujeitos no contexto de mediação e negociação de sua presença em uma Unidade de
Conservação de Proteção Integral.
Palavras-chave
Parque Estadual da Pedra Branca; Memória; Histórias de Vida; Lugar.
1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, campus
Maracanã.
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BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
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Abstract
This brief essay aims to discuss the different ways in which memory and place can be articulated through the
experiencing of the world through the analysis and interpretation of life stories of the elders living in Serra de
Piabas, at the State Park of Pedra Branca, Rio de Janeiro - RJ. This study examines how these subjects narrate
their living experiences through the representation of their past by memory, as well as the articulation of these
memories in the construction of senses of place and the role of place in the evocation of these memories. The
guiding thread of this work points to the construction of a deep sense of belonging and attachment to place,
anchored in the narrative of memories as a strategy of permanence for these subjects in the context of mediation
and negotiation of their presence in a full protection conservation unit.
Keywords
Pedra Branca State Park; Memory; Life Stories; Place.
Resumen
Este breve ensayo tiene como objetivo discutir las diferentes formas en que la memoria y el lugar pueden ser
articulados en medio de la experiencia del mundo a través del análisis e interpretación de historias de vida de
personas mayores que viven en la Serra de Piabas, ubicada en el Parque Estatal de Pedra Branca, en la ciudad de
Río de Janeiro RJ. Este estudio examina cómo estos sujetos narran sus experiencias, a través de la representación
de su pasado a través de la memoria, así como la articulación de estos recuerdos en la construcción de sentidos de
lugar y el papel del lugar en la evocación de estos recuerdos. El hilo conductor de este trabajo apunta hacia la
construcción de un profundo sentimiento de pertenencia y apego al lugar, anclado en la experiencia narrativa de
las memorias como estrategia de permanencia de estos sujetos en el contexto de mediación y negociación de su
presencia en una Unidad de Conservación de Protección Integral.
Palabras clave
Parque Estatal de Pedra Branca; Memoria; Historias de Vida; Lugar.
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Introdução
“O passado está em todo lugar” (LOWENTHAL, 1985b, p. XV). É com esta célebre
frase que o geógrafo David Lowenthal inicia sua obra The Past is a Foreign Country”, um
clássico nos estudos acerca das múltiplas expressões e manifestações do passado no âmbito da
Geografia. O passado nos circunda e confere sentido ao mundo ao nosso redor, de modo que a
sua constatação se torna essencial para nosso bem-estar, bem como na compreensão de nossa
existência. “O passado nos cerca e nos preenche; cada cenário, cada declaração, cada ação
conserva um conteúdo residual de tempos pretéritos” (LOWENTHAL, 1998, p. 64).
Seja querido ou rejeitado, celebrado ou apagado, rememorado ou esquecido, o passado
está sempre conosco, atuando como base de nossas experiências e compreensões presentes.
“Toda consciência atual se funda em percepções do passado; reconhecemos uma pessoa, uma
árvore, um café da manhã, uma tarefa, porque os vimos ou experimentamos”
(LOWENTHAL, 1998, p.64). O passado é parte indissociável de nossa existência e da
compreensão de nossas identidades subjetivas e/ou coletivas. O passado está em todo o lugar,
como Lowenthal (1985b) sugere, pois se manifesta e expressa em e por meio de lugares
particulares, compondo a nossa geograficidade, em outros termos, o constante existir em um
envolvimento profundo e inextricável com a Terra como nosso lar e morada (DARDEL, 2011).
Ainda que se manifeste nos lugares e relações tecidas em nosso constante presente, o
passado se expressa como residual e fugidio; dele captamos acontecimentos fragmentados,
muitas vezes seletivos, efêmeros e/ou marcados por um caráter nostálgico, de modo que
dificilmente o compreenderemos tão bem quanto o nosso presente (CORRÊA, 2018).
Embora não consigamos apreender o passado em sua totalidade, como aquilo que de
fato foi, existem pontes ou elos que nos remetem a ele; resíduos criados em tempos pretéritos
(LOWENTHAL, 1985b). Se o passado é um país estrangeiro, como supõe o título da obra de
Lowenthal (1985b), existem maneiras de se conseguir um visto para nele adentrarmos, ou, ao
menos, tentarmos adentrar.
Dentre as muitas formas de acesso ao passado, a memória se inscreve como uma
evocação presente de lembranças e esquecimentos de vivências pretéritas, servindo como base
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nas investigações sobre esta dimensão de nossa existência. A memória, em linhas gerais, trata-
se do passado vivido, reelaborado e representado na instância de um sujeito ou grupo (LE
GOFF, 2003). Embora possa ser tratada como um fenômeno social bastante abstrato e subjetivo,
a memória pode se encontrar ancorada em lugares (SEEMANN, 2003). Assim, “lugares
concretos, onde se realizam eventos, acontecimentos históricos ou práticas cotidianas [...]
podem servir como possíveis referenciais espaciais para a memória” (SEEMANN, 2003, p. 44).
Tal qual a memória pode ser entendida como o passado vivido, o lugar também pode
ser compreendido como o espaço apreendido em e por meio de nossas experiências
intersubjetivas (MARANDOLA JR., 2012; TUAN, 2013). Lugar, na perspectiva da Geografia
Cultural-Humanista, não se refere apenas a uma mera localização, mas a uma parcela do espaço
dotada de valor para as pessoas que desenvolvem com e por este um elo de pertencimento
(RELPH, 1976; TUAN, 2011; 2013). Lugar e memória guardam uma estreita relação entre si,
e é exatamente esta relação que o presente artigo procura discutir.
O objetivo deste trabalho é investigar as relações entre lugar e memória a partir de um
viés cultural-humanista em Geografia, estabelecendo como campo de estudos o registro e
interpretação de histórias de vida de idosos residentes em uma Unidade de Conservação de
Proteção Integral situada na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Parque Estadual da
Pedra Branca (PEPB). Procuramos examinar neste trabalho como, através da narrativa das
histórias de vida dos idosos, construídas por meio da evocação de suas memórias, é possível
descortinar múltiplas experiências e sentidos de lugar que emergem como facetas do passado
re-vivido e re-elaborado. Pretendemos, de tal forma, apontar em direção ao caráter espacial das
memórias como inscrito a partir da construção e manifestação de sentidos de lugar dos idosos
residentes no PEPB.
Para tanto, no primeiro e segundo tópicos deste artigo buscamos discutir a
compreensão dos conceitos de memória e lugar no âmbito da Geografia Cultural-Humanista,
enquadrando-os como elementos indissociáveis de nossa experiência de mundo e
geograficidade. Reservamos um terceiro tópico para a exploração da reconstrução das histórias
de vida de idosos residentes no PEPB, e o papel destas em um estudo de caráter geográfico. No
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quarto tópico deste artigo, propomos um debate a respeito do modo como as relações entre
lugar e memória são tecidas no contexto das experiências dos idosos residentes do PEPB,
apontando para a mobilização de memórias de/do lugar como estratégia de permanência destes
sujeitos no contexto das mediações afetivas-políticas acerca de seus elos de pertencimento a
uma Unidade de Conservação de Proteção Integral.
Lugar e memória na perspectiva da experiência
Vivemos em um mundo marcado pela presença de lugares significativos (RELPH,
1976). A forma como edificamos nossas identidades, como nos relacionamos com as pessoas
ao nosso redor, bem como compreendemos a nossa própria existência permanece implicada
com o entendimento dos lugares que habitamos, percorremos, imaginamos, sonhamos ou
desejamos conhecer (TUAN, 2013). A palavra lugar, embora tratada a partir do senso comum
enquanto sinônimo de local ou localização, trata-se de um dos conceitos centrais da abordagem
geográfica, tendo sido objeto de debate por meio de diferentes perspectivas no âmbito deste
campo do saber (CRESSWELL, 2004).
Dentre as numerosas definições propostas para o termo, lugar pode ser compreendido
como um centro de significados construído em e por meio da experiência intersubjetiva de
mundo (RELPH, 1976; TUAN, 2011, 2013, 2018). Tal definição, atribuída pela perspectiva
cultural-humanista em Geografia, alça o lugar como mais que simplesmente sinônimo de local,
um ponto abstrato identificável em um mapa. Enquanto um centro de significados, o lugar é
“conhecido não apenas através dos olhos da mente, mas também através dos modos de
experiência mais passivos e diretos, os quais resistem a objetificação” (TUAN, 2018, p. 5-6).
Nesta visão, o lugar manifesta-se como uma parcela do espaço geográfico que tenha significado
para uma pessoa ou grupo. De acordo com Tuan (2011, 2013), é a partir da experiência que
vertemos o espaço indiferenciado em lugar significado. A experiência é a base da construção
de sentidos de lugar (OLIVEIRA, 2012; TUAN, 2013). De acordo com Tuan,
A experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência.
Experienciar é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O dado não
pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser conhecido é uma realidade que é
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um constructo da experiência, uma criação de sentimento e pensamento (TUAN,
2013, p. 18).
De acordo com o geógrafo Edward Relph (1976), por encarnarem os sentimentos, as
vivências, as aspirações e experiências humanas mais profundas, os lugares aos quais nos
sentimos pertencer se apresentam enquanto elementos indispensáveis em nossa apreensão de
mundo e na construção de nossa identidade. Nas palavras do autor, “ser humano é viver em um
mundo cercado de lugares significativos: ser humano é ter e conhecer seu lugar” (RELPH, 1976,
p. 1).
Nesta perspectiva, o lugar é entendido a partir de um envolvimento profundo com a
existência humana, posto que existir significa ter um lugar, uma base a partir da qual se funda
um sentido de “si-mesmo” e o próprio lugar passa a ser definido em relação aos sujeitos que se
sentem pertencer a ele (CASEY, 2001). Segundo Relph:
Os lugares são expressões fundamentais do envolvimento humano no mundo, e,
portanto, confere significado ao espaço [...] Lugares são, de fato, o alicerce da
existência humana, providenciando não apenas o contexto de todas as atividades
humanas, mas também segurança e identidade para o indivíduo ou grupo (RELPH,
1973, p. 62 apud ENTRIKIN, 1976, p. 626).
De acordo com Relph (1979), conhecemos e habitamos o mundo, mesmo de um modo
pré-consciente, “através dos lugares nos quais vivemos ou temos vivido, lugares que clamam
nossas afeições e obrigações” (RELPH, 1979, p. 16). Neste contexto, os “lugares o
existenciais e uma fonte de auto-conhecimento e de responsabilidade social” (RELPH, 1979, p.
16).
Adotar tal perspectiva nos permite argumentar que o lugar se manifesta e se expressa
como dimensão existencial de nosso ser-estar no mundo, envolvendo, de tal forma, aquilo que
o geógrafo Eric Dardel (2011) propôs enquanto “geograficidade”, qual seja, uma relação
concreta que liga o homem à Terra como modo próprio de sua existência. Neste sentido, é no
lugar que o homem encontraria o ponto central de referência existencial a partir do qual
descortinaria o mundo ao redor. É no lugar e por meio deste que a “geograficidade” é vivida
em sua plenitude, incorporando um elo visceral entre o homem e a Terra. O lugar seria, na
compreensão de Dardel (2011), um suporte para o nosso ser, refúgio ou base onde se assenta
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nossa existência, de forma que a realidade geográfica seria para o ser humano os lugares que
participam de sua vida. Nas palavras de Dardel:
É desse “lugar”, base de nossa existência, que, despertando, tomamos consciência
do mundo e saímos ao seu encontro, audaciosos ou circunspectos, para trabalhá-lo
[...] Existir é para nós partir de lá, do que é mais profundo em nossa consciência, do
que é “fundamental”, para destacar no mundo circundante “objetos” aos quais se
reportarão nossos cuidados e nossos projetos. Elemento não abstrato ou conceitual,
mas concreto. Antes de toda escolha, existe esse “lugar” que não pudemos escolher,
onde ocorre a “fundação” de nossa existência terrestre e de nossa condição humana.
Podemos mudar de lugar, nos desalojarmos, mas ainda é a procura de um lugar; nos
é necessária uma base para assentar o Ser e realizar nossas possibilidades, um aqui
de onde se descobre o mundo, um lá para onde iremos (DARDEL, 2011, p. 40-41).
Como dimensão de nossa geograficidade, lugar implica tanto nossa existência situada
em sua espacialidade, quanto em sua temporalidade. Como defende Dardel (2011, p. 33), “toda
espacialização geográfica, porque é concreta e atualiza o próprio homem em sua existência e
porque nela o homem se supera e se evade, comporta também uma temporalização, uma
história, um acontecimento”. Em nossas experiências de lugar situamos nossa existência em
projetos futuros, mas também invocamos recordações e lembranças, ligando-nos ao nosso
passado como fonte de autoconhecimento e identificação. Lugar, portanto, incorpora o espaço
como vivido, e tempo como apreendido pela memória, de modo que a relação entre estas
dimensões se torna fundamental para compreensão de nossa existência em sua imbricação com
o mundo.
De acordo com Lowenthal (1985b), a noção de memória remete à faculdade de
conservar e lembrar acontecimentos e experiências adquiridas em tempos pretéritos. Por meio
da memória, recordamos experiências passadas, nos ligando a uma noção “si-mesmo” anterior,
de modo que recordar o passado se torna crucial para construção de um sentido de continuidade
(LOWENTHAL, 1985b). Todavia, embora possa ser considerada como uma faculdade mental
associada à capacidade de reter informações passadas, a memória também se trata de um
fenômeno por meio do qual o ser humano vivencia e re-apresenta experiências sobre aquilo que
compreende como sendo o seu passado (LE GOFF, 2003).
Em linhas gerais, portanto, podemos considerar que a memória implica uma presença
do passado (ROUSSO, 2006), de modo que se torne possível afirmar que “toda consciência do
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passado está fundada na memória” (LOWENTHAL, 1998, p. 75). As lembranças que compõem
a memória são fontes importantes para se conhecer e investigar o passado, atuando, também,
na forma como estruturamos um sentido presente de mundo.
De maneira contrária ao que o senso comum por vezes faz crer, a memória não é uma
imagem exata do passado. Por meio da memória não emulamos o passado como aquilo que ele
foi, mas sim, sua reconstrução a luz de experiências, vivências e interpretações presentes, bem
como, neste movimento, recordamos a nós mesmos nos atualizando através da vivência do
passado (BOSI, 1979; SOKOLOWSKI, 2012).
Tais argumentos não implicam, todavia, em defender que a memória se resume única
e exclusivamente a um fenômeno temporal ou como simples faculdade abstrata situada na
mente do sujeito recordante. Assim, como um sentido de existência é indissociável de nossa
compreensão do passado e, de forma mais ampla, da temporalidade de nosso ser, este também
se encontra intrinsicamente conectado à compreensão de nossa espacialidade (LOWENTHAL,
1985b).
Segundo Malpas (2018), as memórias, em especial aquelas que possuem um forte
componente pessoal e autobiográfico, se encontram atreladas a lugares específicos. Nas
palavras do autor, “o fato de muitas vezes nos lembrarmos de pessoas em relação a lugares e
seus arredores específicos, em poses ou estados de espírito característicos que implicam uma
determinada situação, exemplifica este fenômeno mais geral” (MALPAS, 2018, p. 180). Isto
posto, as memórias, sejam elas individuais ou coletivas, são frequentemente associadas a
lugares (MALPAS, 2018), de maneira que a sua manutenção e evocação dependem, muitas
vezes, de referenciais espaciais onde se realizaram acontecimentos históricos ou mesmo
eventos cotidianos, nas palavras de Pierre Nora (1993), lugares de memória que clamam nossa
atenção.
Como destaca Lowenthal (1975), a existência de lugares de densidade mnemônica é
um elemento importante para a manutenção de um sentimento de segurança e continuidade.
Dependemos das memórias para a construção de um sentido de existência, assim como
dependemos da presença de lugares envoltos de memória, em outros termos, dependemos de
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lugares de memória, como pontos de referência para edificação e comunicação de memórias
coletivas e/ou individuais, tanto quanto os lugares também são edificados por meio de memórias
que os envolvem em significados.
O caráter geográfico das histórias de vida
Dentre as variadas maneiras pelas quais é possível investigar aspectos a respeito das
memórias de uma pessoa ou grupo social, a história de vida se destaca como um método e/ou
abordagem privilegiada nos estudos que elencam esta expressão do passado como objeto de
interesse.
De acordo com Blunt (2003, p. 71), “o termo ‘história de vida’ é deliberadamente
amplo e abrange o estudo das pessoas em suas próprias palavras”, utilizando-se, para isto, de
recursos textuais como diários, cartas, relatos de viagem, ou mesmo através do contato pessoal,
por meio de entrevistas individuais ou em grupo, pesquisas etnográficas, conversas informais,
entre outros. Neste contexto, a história de vida pode ser considerada como um método de
pesquisa centrado no registro da biografia de um indivíduo/grupo a partir da forma como este
a procura narrar (JACKSON; RUSSELL, 2010).
Contudo, mais que uma ferramenta para o registro de acontecimentos, a história de
vida tem sido utilizada como estratégia para compreender e interpretar experiências e memórias
como narradas pelas pessoas, sejam estas figuras públicas ou sujeitos cujas vidas poderiam
permanecer marginalizadas ou até mesmo invisíveis (BLUNT, 2003). Portanto, tal método
permite um levantamento de registros íntimos, que não constam em uma história ou narrativa
oficial, o que possibilita um mergulho naquilo que Blunt (2003) denominou “histórias
escondidas” (hidden histories), qual seja, registros apagados ou suprimidos, de forma
intencional ou não, servindo como ferramenta para conferir voz e vez a grupos subalternizados
narrarem suas próprias histórias. Tratam-se de narrativas de fatos cotidianos, como das relações
com a família e a vizinhança, das atividades laborais e de lazer, dos objetos e pessoas que
constituem um acervo de lembranças individuais em grande parte, embora articuladas com
eventos e contextos sociais e históricos mais amplos.
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No entanto, mais do que permitir um mergulho em uma “história escondida”, como
argumenta Blunt (2003), atendendo aos projetos típicos do campo de estudos da história oral, a
utilização das entrevistas em história de vida possibilita o acesso e aprofundamento a vivências
e experiências passadas, reconstruídas e reelaboradas através das narrativas de lembranças de
fatos que competiam ao cotidiano dos sujeitos recordantes. Tratam-se, mais do que narrativas
situadas em um tempo histórico, no resgate da memória introjetada nos lugares vividos,
revelando a geograficidade destes sujeitos e a construção de suas identidades edificadas e
comunicadas nesta relação indissociável com os lugares.
Desta forma, por enfocar as experiências e memórias das pessoas da forma como estas
a procuram comunicar através da reconstrução de suas trajetórias de vida, a história de vida
apresenta um enorme potencial de exploração a partir de pesquisas em Geografia Cultural-
Humanista, uma vez que esta se preocupa com os aspectos subjetivos, os significados, os afetos
que emergem da espacialidade humana (MELLO, 1990; HOLZER, 2012). Como defende
Lowenthal (1985a), as abordagens culturais e humanistas redirecionam o olhar da geografia
para os saberes dos próprios sujeitos observados, entendendo-os como geógrafos informais e,
portanto, os mais adequados para enunciarem seus sentimentos, valores, significados e
entendimento a respeito do(s) lugar(es).
Embora este método possibilite a exploração de uma miríade de temas, a partir de
diversas abordagens, neste trabalho, empenhamo-nos em utilizar a história de vida para
compreender as articulações entre lugar e memória na experiência de residentes na comunidade
da Serra de Piabas, uma localidade situada dentro dos limites do Parque Estadual da Pedra
Branca, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, em especial os sujeitos idosos.
Como moradores mais antigos da localidade, os idosos são verdadeiros registros vivos
da história e ocupação do lugar, tendo presenciado e vivido suas transformações ao longo do
tempo. Tal qual narradores, estes, por meio da transmissão de suas lembranças acerca do lugar,
contribuem para a manifestação e reprodução de uma memória viva, em movimento.
Do ponto de vista societário, os idosos cumprem um papel fundamental, o de recordar.
Para a socióloga Ecléa Bosi (1979), ao lembrar o passado, o idoso “não está descansando, por
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um instante, das lides cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele
está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua
vida” (BOSI, 1979, p. 60). A exploração da narrativa da trajetória de vida destes idosos nos
permite, portanto, não apenas tentar retraçar uma história local como apreendida por estes
sujeitos, mas entender as próprias articulações entre memória e lugar como modo próprio de
sua geograficidade.
Memórias de lugar e lugares de memória do PEPB
Situado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, o Parque Estadual da Pedra Branca
compreende todas as áreas acima da cota altimétrica de 100 metros de altitude do Maciço da
Pedra Branca e seus contrafortes, estendendo-se sobre 17 bairros cariocas - Jacarepaguá,
Taquara, Camorim, Vargem Pequena, Vargem Grande, Recreio dos Bandeirantes, Grumari,
Jardim Sulacap, Realengo, Padre Miguel, Bangu, Senador Camará, Santíssimo, Campo Grande,
Senador Vasconcelos, Guaratiba e Barra de Guaratiba.
A localidade na qual este estudo se desenvolve compreende uma pequena comunidade,
denominada por seus moradores como “Serra de Piabas” ou “Morro de Piabas”, encravada na
vertente sul do PEPB, entre os bairros do Recreio dos Bandeirantes e do Grumari. De acordo
com a população local, o topônimo é atribuído em referência ao rio Piabas, que drena as
vertentes do maciço da Pedra Branca na localidade, sendo principal responsável pelo
abastecimento de água dos residentes, caracterizado, em tempos pretéritos, pela abundância do
peixe Piaba (leporinus obtusidens).
A Serra de Piabas abriga 18 famílias, a maioria já estabelecida na localidade antes de
sua inclusão dentro dos limites do PEPB, nos anos 1970, ou compostas por descentes de
residentes anteriores ao parque. A localidade pode ser acessada através da Estrada do Grumari,
logradouro que liga os bairros do Recreio dos Bandeirantes, iniciando-se na altura da Estrada
do Pontal, ao bairro de Guaratiba.
A partir de uma perspectiva centrada em sua composição paisagística, a Serra de
Piabas compreende um fragmento remanescente do bioma Mata Atlântica, apresentando áreas
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
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em bom estado de conservação entremeadas por áreas recobertas por cultivos agrícolas, em
especial, a banana, principal marca da ruralidade que caracteriza o habitar da população local.
A localidade conta ainda com alguns córregos e mirantes naturais, tornando-a destino de
práticas de lazer, como caminhadas e desfrute da paisagem por parte da população dos bairros
adjacentes, bem como lócus de disputas a respeito de sua apropriação e das representações
construídas e veiculadas por diversos atores sociais.
A comunidade apresenta fortes traços rurais, tanto da presença de atividades de caráter
agrícola para a subsistência e reprodução socioeconômica dos moradores, em especial a lavoura
de banana, quanto das relações sociais que se estabelecem na escala local. Seu processo de
ocupação remonta ao período em que a localidade integrava a zona rural da municipalidade do
Rio de Janeiro, marcada, consequentemente, pela presença de uma população de perfil rural
“com forte relação de dependência dos recursos naturais locais na garantia de seu sustento e
reprodução social” (FERNANDEZ, 2016, p. 132).
Uma parcela significativa das memórias reconstruídas através das narrativas em
histórias de vida dos idosos residentes no que hoje compreende o PEPB são direcionadas
justamente ao reconhecimento das práticas rurais como elemento de um caráter distintivo do
lugar frente aos bairros adjacentes, o que reflete, fortemente, esta condição rural na edificação
dos sentidos de lugar por estes sujeitos. Mais do que simplesmente fonte de subsistência, estas
práticas, como o cultivo da banana e o trabalho no roçado de milho, aipim e café, a criação de
animais, como galinhas, cabras e porcos, bem como o leque de atividades por estas envolvidas,
quais sejam, a produção de farinha artesanal e os processos de separação, secagem, torrefação
e pilagem do café, compõem o acervo de recordações dos idosos residentes na Serra das Piabas,
tornando-se, desde modo, elemento na construção da experiência de lugar. Tal compreensão se
exemplifica na fala de M. (mulher de 70 anos de idade), que, ao narrar as recordações de sua
infância vivida na Serra de Piabas, assevera o trabalho na lavoura como parte de seu cotidiano.
A gente trabalhava muito né. Meu pai tinha ceva de porco. Usava também muita carne
de porco. Criava muita galinha. Meu pai fazia farinha e distribuía para as pessoas.
Fazia farinha. Ele era lavrador. Meu pai fazia muita farinha. Aí, juntava os vizinhos
todos pra poder fazer a “meia” [divisão] né. Cada um, depois que acabasse, levava um
pouco pra casa. E era trabalho. Eu sei que s trabalhamos muito. Todo mundo.
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Era fogão de lenha. Tinha que pegar lenha. Era burro pra cuidar. Pegar capim. Era
muita coisa que a gente fazia. E eu acho que antigamente era muito mais proveitoso
do que hoje em dia. [....] Aqui era roça pura. Meu pai tinha de tudo. Era café. Era cana.
Tudo quanto é tipo de fruta que vopuder imaginar. Mas não vendia nada. a
banana. vendia a banana. Muita banana. Banana prata, banana d’água, banana
maçã. vendia banana. Que o restante tudo era pra gente e pra dividir com os
vizinhos que ajudavam (M.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 03/10/2021).
A partir do fragmento exposto, convém destacar que, por se referir à existência
humana, o lugar não se constitui apenas do conjunto de objetos materiais localizados no espaço,
mas, também, das práticas sociais ativas que mantém com o lugar uma relação de co-produção
e dos significados que a ele são atribuídos (ENTRIKIN, 1976; RELPH, 1976; CRESSWELL,
2009). Nas palavras de Relph (1976, p. 141), os lugares englobam uma ordem natural e humana,
são “centros significativos de nossas experiências imediatas de mundo”. Desta forma, os
lugares não são meramente abstrações ou conceitos, mas “fenômenos experimentados
diretamente do mundo vivido e, portanto, estão repletos de significados, de objetos reais e de
atividades em andamento” (RELPH, 1976, p. 141).
Mais do que uma descrição pura e objetiva do lugar e de seu passado, as histórias de
vida dos idosos nos permitem desvelar a dimensão sensível na apreensão do parque enquanto
lar e morada, despertando sensações e sentimentos que estão na base da experiência de lugar
como manifestada pela memória. Como argumenta Dardel, “a cor, o modelado, os odores do
solo, o arranjo vegetal se misturam às lembranças, com todos os estados afetivos, com as ideias,
mesmo com aquelas que acreditamos serem as mais independentes” (DARDEL, 2011, p. 34).
As lembranças narradas nos revelam texturas, sons, odores e sabores como elementos
introjetados nas experiências de lugar dos sujeitos recordantes, de modo que as memórias do
lugar são para estes “o canto dos passarinhos, barulho de grilo a noite, bicho no mato, tudo isso
a gente ouve aqui no lugar”, como nas palavras de S. (homem de 93 anos de idade), “aquele
cheirinho de lenha queimando, no fogão de lenha.”, como narra J. (homem de 60 anos de idade),
ou “o leite de cabra, café e a farinha. Esse era meu café da manhã. Farinha feita aqui. Como era
gostosa aquela farinha”, como descrito por M.
De acordo com o filósofo Paul Ricouer (2007, p. 53), “não nos lembramos somente de
nós, vendo, experimentando, aprendendo, mas das situações do mundo, nas quais vimos,
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experimentamos, aprendemos”. Estas situações, discorre o autor, “implicam o próprio corpo e
o corpo dos outros, o espaço onde se viveu, enfim, o horizonte do mundo e dos mundos, sob o
qual alguma coisa aconteceu” (RICOUER, 2007, p. 53). Isto é, a memória envolve o lugar não
apenas em um sentido estreito de localização, de maneira que as memórias ocorram ou remetam
a um local específico, mas em uma dimensão mais profunda e sensível, do lugar como base na
qual se assenta nossa existência. Nas palavras do autor:
Lembro-me de ter gozado e sofrido em minha carne, neste ou naquele período de
minha vida passada; lembro-me de ter, por muito tempo, morado naquela casa daquela
cidade, de ter viajado para aquela parte do mundo, e é aqui que eu evoco todos esses
lás onde eu estava. Lembro-me da extensão daquela paisagem marinha que me dava
o sentimento de imensidão do mundo. E, quando da visita àquele sítio arqueológico,
eu evocava o mundo cultural desaparecido ao qual aquelas ruínas remetiam
tristemente. (RICOUER, 2007, p. 57).
Nesta seara, a casa de infância destaca-se como palco privilegiado das histórias de vida
narradas pelos idosos, tornando-se, em vista disto, um lugar de memória (NORA, 1993), veículo
responsável pelo adensamento das memórias que transformam o lugar mais do que o ponto de
morada, mas sim, lócus onde se desenrola a experiência e vivência de mundo, lar onde se funda
a compreensão de ser. De acordo com Mello (2012), a casa da infância se destaca como o
cenário dos dramas da vida, “revestida de sua originalidade, solidez e encantamento por um
desfile de festas de aniversário, casamentos, celebrações natalinas, bem como toques, cheiros,
pinturas, ora vibrantes, ora esmaecidos e mapas íntimos” (MELLO, 2012, p. 59), se inscreve
em nós como reservatório de recordações. Neste sentido, a casa de infância é o lugar onde se
desenrola uma parcela significativa das relações e acontecimentos que figuram na narrativa dos
sujeitos recordantes, como expressam os relatos de S. e B. (mulher de 81 anos de idade):
Eu vivia na casa do meu avô. Tião, meu filho, estava roçando o bananal e eu acho que
ele já passou da cava [alicerce] da casa. Deve estar limpo lá. Tem uma jaqueira e logo
acima tem a entrada da casa. Não sei como está aquilo hoje, já tem tempo que eu não
vou lá. Mas era tudo calçadinho de pedra, até em cima no lugar onde ficava a casa.
Havia um baldrame, assim, um muro dessa altura mais próximo do caminho. E a casa
era pra cima daquele muro. Uma casa grande. Tinha três quartos e uma sala de dançar,
onde faziam os bailes. Uma sala grande de dançar. A cozinha era separada da casa.
Era cozinha de lenha, onde fazia as comidas. E do outro lado ficava o trem de farinha.
A casa tinha uma roda de ralar a mandioca e, onde tem um monte de pedra, era o forno
de mexer farinha. A casa era de estuque. Acabei desmanchando a casa e plantei banana
por cima. Mas era uma casa muito bonita. Lembro direitinho dela (S.; ENTREVISTA
CONCEDIDA EM 30/04/2018).
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Eu me lembro quando morava lá pra cima, na casa lá de cima. Perto de A. e de E. Era
tão bom. Era tão divertido. A gente brincava até a noite. As vezes anoitecia e a gente
estava brincando. Pulava corda, brincava de balanço, brincava de roda. Mas era muito
bom. Era divertido. Eu gostava à beça. Às vezes, eu fico assim pensando que tudo se
acaba. Tudo se acaba. Depois que a gente cresce, se casa, um vai para um lado, o outro
vai pra outro. Aí, vai se acabando. Acabando. Entristece à beça. [...] Muita gente saiu.
Sabe, eu fico tão triste. onde minha mãe morou eu não vou mais. Agora eu
vejo mato onde era a casa. Não vejo mais nada. Aquele fogãozinho de lenha. Chegava
e ela fazia o cafezinho pra gente. Era tão bom. Eu chegava lá e ela fazia o cafezinho.
Botava no fogo. Cafezinho de lenha. Cafezinho tão gostoso. A gente se lembra de
tudo. Era tudo limpo. O meu pai cavava aquele caminho lá de baixo. De de baixo
até lá em cima no alto. Ele cavava e tirava a terra todinha. Não ficava um só mato. Só
trabalhava no sítio dele. Então aquilo era limpinho até em cima. Dava gosto de
andar (B.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 22/04/2018).
Em ambos os relatos é possível entrever o peso da casa de infância na reconstrução
das memórias como um núcleo de significado e valor, animado pelas recordações das pessoas
que ali viveram ou visitaram, das celebrações e bailes que por ocorreram, das brincadeiras
que se desenrolavam, dos cheiros e sabores dos cafés preparados e compartilhados, de sua
estrutura que, embora transformada no decorrer do tempo, resiste na memória. De acordo com
Tuan (2013), tais acontecimentos, embora denotem a simplicidade da vida cotidiana, com o
tempo podem se transformar em um profundo sentimento de afeição e pertencimento pelo lugar.
Recorrendo a Tuan (2013), podemos compreender, no caso dos relatos destacados, a casa de
infância como um lugar íntimo, qual seja, o lugar no qual se desenrolam experiências privadas
e trocas que se manifestam na intimidade entre as pessoas. Para o autor, tais lugares “podem
ficar gravados no mais profundo da memória e, cada vez que são lembrados, produzem intensa
satisfação” (TUAN, 2013, p. 173).
Neste sentido, a apreensão do desaparecimento concreto da casa de infância frente ao
avanço da cobertura vegetal, nas palavras de B., a invasão da casa pelo “mato”, reveste o lugar
por um sentimento de tristeza decorrente de sua perda, expressa no relato destacado por frases
como “tudo se acaba”, “Aí, vai se acabando” e “Entristece à beça”. Esta compreensão, longe
de ser um dado isolado, carrega consigo uma perspectiva nostálgica como elemento comum nas
recordações narradas pelos idosos da Serra de Piabas.
De acordo com Lowenthal (1975), a nostalgia, mais do que um sentimento de apego a
um passado seletivo, edificado por meio de recordações positivas frente às transformações
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impostas pelo tempo presente, se refere a uma das facetas pelas quais o ser humano se relaciona
com o seu passado, tornando-se elemento importante na edificação das experiências de lugar.
Desta forma, o caráter nostálgico a partir do qual se estruturam as memórias de lugar dos idosos
da Serra das Piabas não remete de forma simples a uma comparação ingênua entre um passado
iluminado por recordações que denotam um sentimento topofílico, para se utilizar do termo
cunhado por Tuan (2012), e um presente obscurecido pelas transformações concretas e
simbólicas do lugar, mas também como uma resposta as reconfigurações impostas quanto da
transformação de seu lar e morada em uma área de proteção ambiental, representada pela figura
institucional do parque. Neste sentido, a memória se torna uma ferramenta nos processos de
contestação política à figura institucional do parque, bem como elemento de resistência
cotidiana dos residentes.
Desta forma, a transição de parte da antiga zona rural para Unidade de Conservação
de Proteção Integral implicou na criação e imposição de uma série de normas e regras como
base nos processos de apropriação do lugar, tornando, inclusive, a presença de residentes como
uma condição de divergência com o que determina o ordenamento no qual a categoria parque
se insere.
Neste sentido, a constituição do PEPB impôs formas de uso divergentes daquelas
localmente realizadas, se sobrepondo a dinâmicas sociais pré-existentes. Ainda que a criação
do PEPB tenha se destacado como uma importante estratégia ambiental diante do avanço da
urbanização via especulação imobiliária, atuando como um instrumento na proteção dos
recursos naturais ali presentes (FERNANDEZ, 2009), sua implementação representou para a
população residente a incidência de um conjunto de regras e normas de caráter restritivo às suas
formas históricas de reprodução socioeconômica e cultural, modificando significativamente sua
relação com o/no lugar, além de se apresentar enquanto um elemento de ameaça à sua
permanência dentro dos limites oficiais do parque.
No ato de sua criação, através da promulgação da Lei Estadual 2.377, de 28 de junho
de 1974, se previa a desapropriação de toda a área abrangida pelo PEPB, reforçando sua
consideração enquanto um espaço de posse e uso públicos, de forma que as ocupações
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anteriores ao seu estabelecimento deveriam ser cadastradas a fim de promover a regularização
de sua situação fundiária mediante sua remoção ou realocação fora dos limites do parque.
Afora a tensão sobre o direito de permanência, a instituição de um conjunto de normas
no processo de edificação do PEPB, quando não inviabilizaram as formas de reprodução
econômica e social da população residente, fizeram com que esta tivesse que se adaptar aos
novos usos. Uma vez incluído no grupo de Unidades de Conservação de Proteção Integral,
como definido pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), é permitido apenas
o uso indireto de atributos naturais, sendo vetado o consumo, coleta, dano ou destruição dos
recursos ambientais (BRASIL, 2000) inseridos dentro dos limites do PEPB, o que, a título de
exemplo, impossibilitaria a captação de água para consumo e uso doméstico, ou mesmo o uso
de recursos minerais ou florestais para a realização de reparos nas trilhas ou residências
existentes.
Dentre as normas gerais de uso do PEPB, presentes em seu plano de manejo, destacam-
se a proibição da realização de quaisquer atividades ou ações que venham a impactar o meio
ambiente no interior desta Unidade de Conservação; da retirada total ou parcial de qualquer
planta, exemplar de fauna ou amostra mineral sem a autorização expressa dos órgãos gestores;
da introdução ou da reintrodução de espécies de flora e/ou fauna silvestre quando não
autorizadas pelo setor responsável do Instituto Estadual do Ambiente (INEA)
2
; da construção
de quaisquer obras de engenharia que não sejam de interesse direto dos órgãos gestores; da
entrada, uso e criação de animais domésticos ou de plantios agrícolas nas unidades, salvo nas
propriedades rurais não desapropriadas, quando permitido pelo setor responsável do INEA; da
introdução de espécies de fauna ou flora exóticas no interior da Unidade de Conservação.
Em meio à narrativa de suas memórias, J. destaca que a criação do PEPB se apresenta
como um dos motivos pelos quais uma parcela significativa dos antigos moradores da Serra das
Piabas resolveu abandonar a localidade. Tendo atuado na lavoura durante sua juventude e início
da vida adulta, J. assevera que, embora a criação do parque tenha acarretado benefícios
2
Órgão responsável pela administração e gestão do Parque Estadual da Pedra Branca.
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ambientais, esta, também provocou uma série de transformações das práticas locais, levando a
uma reconfiguração da própria compreensão e experiência deste frente ao lugar.
Hoje você não tem mais a oportunidade de trabalhar como se trabalhava.
Antigamente, falecido papai abriu, dentro dessa mata aí, uma roça. Dentro dessa mata.
[...] A evolução traz benefícios, mas tira também muita coisa do pessoal que é da roça.
Pra quem é da roça, a evolução tira muita coisa. Você vê? Naquele tempo você podia
chegar e fazer uma derrubada e fazer uma lavoura, pra plantar um aipim, um milho,
um feijão. Até mesmo pra você sobreviver ou vender mesmo, que o pessoal aqui
vendia. Hoje você não pode fazer. Não pode. Como vai fazer? Tem que deixar virar
mata. Floresta. Tá virando floresta. E vem cada vez tomando conta de tudo. As coisas
vão brotando e você não pode derrubar. Mas, também é benefício, não é? Porque a
gente tem um ar puro, um oxigênio bom. Aqui em cima geralmente não tem poluição.
(J.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 05/01/2019).
Isto posto, afora o caráter afetivo, as memórias de lugar como evocadas pelos idosos
residentes no PEPB são envoltas por um sentido político, expresso tanto na incerteza em relação
à permanência destes sujeitos no contexto de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral
quanto aos limites impostos sobre as suas práticas e atividades de reprodução socioeconômica
e cultural. De acordo com Blunt (2003), por meio das histórias de vida as pessoas expressam
seus sentimentos e transmitem as condições de sua vida material, mas também as relações e
mecanismos de poder que permeiam os processos de construção e apreensão de seu lugar. As
memórias que emergem de tais narrativas, entendidas por Pollak (1989) como “memórias
subterrâneas”, qual seja, memórias de contestação diante do apagamento da história de grupos
subalternizados, atuam como elemento na construção de um sentido político de lugar por meio
da história de vida dos idosos do PEPB.
Nesta seara, tais memórias tornam-se ferramenta de contestação por parte dos
residentes, sendo mobilizadas em meio ao que o Scott (2013) denominou enquanto “discursos
ocultos de resistência”. De acordo com Scott (2013), o processo de resistência de grupos
subordinados ocorre não apenas através do enfrentamento direto ou da contestação na arena
pública, mas, por vezes, se manifesta em “microepisódios” da vida cotidiana, numa esfera
privada, constituindo discursos ocultos. Para o autor, tais discursos se revelam através de
tradições e expressões culturais que desafiam simbolicamente as estruturas de poder dominante
sem fazê-lo de forma pública e aberta. Deste modo, cada grupo subordinado elabora, a partir de
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sua experiência, um discurso oculto que se apresenta enquanto uma crítica ao discurso dos
grupos dominantes.
No contexto dos residentes do Parque Estadual da Pedra Branca, em especial os idosos,
a defesa de sua permanência nos limites de uma Unidade de Conservação de Proteção Integral
é permeada por discursos ocultos de resistência, recorrendo à memória como ferramenta de
legitimação de sua presença e como forma de contestação simbólica aos limites impostos pela
criação do parque, como revela a fala de C. (homem de 62 anos).
Meu pai já me falava de quando o pai dele morava aqui, e o avô dele também. Eu me
lembro de todas as histórias. De como veio morar aqui, do que plantava, de quem
morava aqui no lugar. A gente estava aqui antes do parque. Hoje em dia já não pode
fazer muita coisa. Ninguém mais quer continuar plantando, porque, com o parque fica
mais difícil. Daí a gente que continua aqui, que depende disso, tem que fazer quase
que escondido (C.; ENTREVISTA CONCEDIDA EM 10/05/2019).
Desta forma, ao lado do discurso oficial que eleva a localidade à categoria de Unidade
de Conservação de Proteção Integral, emergem discursos ocultos de resistência, enfatizando a
memória como elemento de identificação e coesão com o lugar, entendido, de tal forma, tanto
em uma dimensão afetiva, como centro de significados dotado de valor, quanto de uma
dimensão política, como condição de reprodução social do grupo em questão.
As histórias de vidas de idosos, portanto, dão conta não apenas de uma descrição
objetiva do que entendem como seu passado, mas revelam traços de sua própria geograficidade
(DARDEL, 2011), expressa, sobretudo, pelo desenvolvimento de um profundo elo de
pertencimento ao lugar, desenvolvendo-se no contexto de mediações que são ao mesmo tempo
afetivas, denotando laços topofílicos, mas também políticas, uma vez que coloca
constantemente o direito de permanecer em meio a uma Unidade de Conservação de Proteção
Integral.
Considerações finais
Procuramos demonstrar ao longo deste breve ensaio diferentes modos a partir dos
quais memória e lugar podem se articular em meio a experiência de mundo, tomando como
referência de análise e interpretação histórias de vida de idosos residentes no contexto de uma
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Unidade de Conservação do Proteção Integral, o Parque Estadual da Pedra Branca. Mais do que
simplesmente um espaço territorial e os recursos ambientais nele contidos, como o termo
Unidade de Conservação é definido pelo SNUC (BRASIL, 2000), o PEPB se revela como local
de vida e morada de diversas famílias nele estabelecidas e, no contexto dos idosos situados na
Serra de Piabas, como um lugar, um centro de significados edificado pela experiência, como
defendem os autores da Geografia Cultural-Humanista (RELPH, 1976; TUAN, 2011; 2013).
Segundo Ricouer (2007, p. 59), “os lugares habitados são, por excelência memoráveis.
Por estar a lembrança ligada a eles, a memória declarativa se compraz em evocá-los e descrevê-
los”. Isto posto, a memória se torna um elemento central de referência na edificação de sentidos
de lugar por parte dos idosos residentes no PEPB, de modo que sua evocação coloca em jogo o
complexo processo de apropriação simbólico-afetiva e política que é tecido na escala do lugar.
Nossas experiências do passado, reconstruídas através da memória, podem, portanto,
fornecer a base a para o desenvolvimento de uma profunda relação com o lugar (TUAN, 2013).
Como argumenta Marandola Jr. (2012, p. 228), “é pelo lugar que nos identificamos, ou nos
lembramos, constituindo assim a base de nossa experiência no mundo”. A construção de um
íntimo elo afetivo com o lugar é adensada por lembranças de pessoas ou eventos, servindo como
base para a construção da própria geograficidade. Portanto, a memória é a experiência vivida
que confere significado ao lugar (MARANDOLA JR, 2012).
Neste sentido, a memória torna-se, ao mesmo tempo, veículo na fruição e comunicação
do envolvimento dos sujeitos recordantes com o seu lugar, estando na base da edificação das
experiências de lugar e dos significados a este atribuídos, como também o lugar se revela como
palco privilegiado na evocação destas memórias, servindo como suporte para sua reprodução.
Assim, é por meio do lugar que os idosos residentes no PEPB lembram de eventos
significativos de sua existência, construindo a base da experiência de mundo (MARANDOLA
JR, 2012) e sua própria geograficidade. Deste modo, as experiências passadas, reconstruídas
por meio da evocação da memória, tornam o PEPB um rico centro de significados para estes
sujeitos, denotando sentimentos de pertencimento, afeição e apego, mas, também, sendo motivo
gerador de incertezas quanto à sua permanência.
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BRUM, Jean Lucas da Silva. Explorando memórias de lugar e lugares de memória através de histórias de vida de idosos residentes na Serra
de Piabas, situada no Parque Estadual da Pedra Branca, Cidade do Rio de Janeiro -RJ. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 16,
pp. 75-97, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 13/10/2021. Aceito em: 02/03/2022.
ISSN: 2316-8544
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