Ensaios de Geografia
Essays of Geography | POSGEO-UFF
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOMBRA, Daniel; RODRIGUES, Gilberto Pereira; PINHO, Danilo do Rosário. Cartografia participativa como diálogo entre saberes:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº
16, pp. 45-74, janeiro-abril de 2022.
Submissão em: 28/12/2021. Aceito em: 10/04/2022
ISSN: 2316-8544
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SEÇÃO ARTIGOS
CARTOGRAFIA PARTICIPATIVA COMO DIÁLOGO ENTRE SABERES:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento
PARTICIPATORY CARTOGRAPHY AS A DIALOGUE BETWEEN
INTELLIGENCES:
ontology, epistemology, methodology and applications in the social construction of
knowledge
LA CARTOGRAFÍA PARTICIPATIVA COMO DIÁLOGO ENTRE SABERES:
ontología, epistemología, metodología y aplicaciones en la construcción social del
conocimiento
Daniel Sombra1
Universidade Federal do Pará
(UFPA), Pará, Brasil
E-mail: dsombra@ufpa.br
Gilberto Pereira Rodrigues2
Secretaria Municipal de Educação
de São João da Ponta, Pará, Brasil
E-mail: gprgiba@gmail.com
Danilo do Rosário Pinho3
Secretaria Municipal de Educação
de São João da Ponta, Pará, Brasil
E-mail: pinhodanilo@yahoo.com
Resumo
Este artigo se caracteriza como um ensaio, e objetiva ilustrar a especificidade da cartografia participativa no âmbito
da cartografia em geral, marcando-a como uma proposição de objeto intermediário para o uso da ciência com fins
contra-hegemônicos. Para isso, é realizada uma diferenciação entre cartografia participativa (definida como uma
linguagem espacial construída a partir do diálogo entre saberes, ciência e saberes locais) e cartografia social (auto-
cartografia dos povos a partir dos saberes locais), definindo a ontologia, a epistemologia, a metodologia e as
principais aplicações da cartografia participativa. A fim de demonstrar a possibilidade da proposta, parte-se de
uma digressão do uso da ciência e da técnica na educação e na construção de projetos contra-hegemônicos, projetos
de empoderamento social. Para materializar a proposta, foi escolhida a aplicação do campo do ensino, a partir de
uma oficina de cartografia participativa em três etapas realizadas no município de São João da Ponta (estado do
Pará, Brasil).
Palavras-chave
Cartografia Participativa; diálogo de saberes; ontologia; epistemologia; contra-hegemonia; empoderamento social.
1
Professor do Programa de Pós-Graduação em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local da
Amazônia (PPGEDAM / NUMA / UFPA). Doutor em Geografia pela UFPA. Mestre em Geografia pela UFPA.
Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
2
Professor da Secretaria Municipal de Educação de São João da Ponta-PA. Especialista em Ensino de Geografia
na Amazônia pela UEPA. Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
3
Professor da Secretaria Municipal de Educação de São João da Ponta-PA. Mestrando em Geografia pela UPFA.
Bacharel e Licenciado em Geografia pela UFPA.
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Abstract
This paper may be characterized as an essay, and aims to illustrate the specificity of participatory cartography
within cartography in general, marking it as an intermediary object proposition for the use of science with counter-
hegemonic purposes. To this end, we differentiate between participatory cartography (defined as a spatial language
built from the dialogue between intelligences, science and local intelligences) and social cartography (auto-
cartography of peoples from local intelligences), defining ontology, epistemology, methodology and the main
applications of participatory cartography. In order to demonstrate the possibility of the proposal, we point out the
use of science and technique in education and construction of counter-hegemonic projects, projects of social
empowerment. To materialize the proposal, we chose to apply it to the field of education, from a participatory
cartography workshop in three stages held in the municipality of São João da Ponta (state of Pará, Brazil).
Keywords
Participatory Cartography; dialogue of knowledges; ontology; epistemology; counter-hegemony; social
empowerment.
Resumen
Este artículo se caracteriza como un ensayo, y tiene como objetivo ilustrar la especificidad de la cartografía
participativa en el campo de la cartografía en general, marcándola como una proposición de objeto intermediario
para el uso de la ciencia con fines contra-hegemónicos. Para ello, diferenciamos entre la cartografía participativa
(definida como un lenguaje espacial construido a partir del diálogo entre el conocimiento, la ciencia y el
conocimiento local) y la cartografía social (auto-cartografía de pueblos basada en el conocimiento local),
definiendo la ontología, la epistemología, la metodología y las principales aplicaciones de la cartografía
participativa. Para demostrar la posibilidad de la propuesta, realizamos un recorrido por el uso de la ciencia y la
técnica en la educación y en la construcción de proyectos contra-hegemónicos, proyectos de empoderamiento
social. Para materializar la propuesta, optamos por la aplicación del campo de la educación, a partir de un taller de
cartografía participativa en tres etapas realizado en el municipio de São João da Ponta (estado de Pará, Brasil).
Palabras-clave
Cartografía participativa; diálogo de saberes; ontología; epistemología; contra-hegemonía; empoderamiento
social.
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Introdução
A cartografia historicamente está ligada aos modos diversos de representar os
ambientes nos quais as sociedades vivem. De acordo com as particularidades dos ambientes,
bem como das formas diversas de adaptação, e, principalmente, de construção de artifícios e
mecanismos para responder às necessidades sociais em cada lugar específico, em cada
momento dado, as sociedades desenvolveram cartografias diversas (SILVA, 2020).
Em muitos aspectos, as representações cartográficas particulares de cada sociedade
eram uma forma de expressão artística. Cada sociedade desenvolveu uma cartografia própria
às suas necessidades sociais, e, sobretudo nas comunidades primitivas, cabe destacar que as
representações cartográficas integram um pensamento (ou conhecimento) comum sobre o
mundo e as pessoas do mundo, não sendo exatamente possível distinguir em que ponto essa
forma de conhecimento e representação do conhecimento se separa do que nos termos
contemporâneos se concebe como a linguagem escrita, a linguagem matemática etc. (SOARES
et al., 2018).
Em todo caso, se for feita uma separação estrita, utilizando para isso os critérios atuais
das ciências parcelares, cabe notar que muitas sociedades não desenvolveram a escrita
propriamente dita, mas quase todas as sociedades estudadas desenvolveram algum tipo de
representação espacial (SILVA, 2013). Com a constituição de uma geografia do espaço mundial
unificada e a emergência dos modos de produção totalizantes ou seja, o modo de produção
capitalista e as alternativas que se contrapõem, no intuito de superá-lo, como a proposta
socialista a cartografia, ora tida como caudatária própria à geografia (JOLY, 2008), ora como
um campo transdisciplinar de conhecimentos (RAIZ, 1959), foi convertida em uma linguagem
unificada com códigos padronizados, passíveis de serem lidos independente dos idiomas
escritos e falados (MARTINELLI, 2013).
Em um mundo normatizado a partir dos imperialismos dos grandes Estados nacionais
(SOARES; LEITE; LOBATO, 2016) e dos monopólios das grandes corporações econômicas
(LACOSTE, 1993), e apresentando técnica, tempo e motor (a mais-valia global que alimenta a
economia) unificadas (SANTOS, 2009), a cartografia também se tornou um elemento
homogeneizado e imposto a todos os lugares do mundo em processo de globalização (SOARES
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et al., 2018). Isso não significou uma mudança do seu uso preferencialmente por classes, grupos
ou estruturas hegemônicas (GIRARDI, 2011).
Se nos períodos de supremacia dos diversos modos de produção tributários sejam os
imperfeitos, como o feudalismo europeu ou japonês, ou os clássicos, como os impérios
tributários na China, Índia, Egito, Pérsia, Palestina, Mali, Congo, Etiópia, México ou Peru
(AMIN, 1976) a cartografia se tornou uma arma secreta, sempre usada para táticas e
estratégias de dominação, de ataque e defesa dos impérios, estratégica para os domínios dos
reis e deuses (ou seja, de seus ditos representantes no mundo terreno); no período de hegemonia
capitalista a cartografia sistematizada (a exemplo do que ocorreu grosso modo com toda a
ciência derivada do projeto burguês renascentista/iluminista/positivista) serviu em primazia aos
interesses dos Estados maiores e das grandes corporações capitalistas (LACOSTE, 1993).
Este artigo se caracteriza como um ensaio, e objetiva ilustrar a especificidade da
cartografia participativa no âmbito da cartografia em geral, marcando-a como uma proposição
de objeto intermediário para o uso da ciência com fins contra-hegemônicos. Para isso, é
realizada uma diferenciação entre cartografia participativa (definida como uma linguagem
espacial construída a partir do diálogo entre saberes, ciência e saberes locais) e cartografia
social (auto-cartografia dos povos a partir dos saberes locais), definindo a ontologia, a
epistemologia, a metodologia e as principais aplicações da cartografia participativa.
Uma cartografia para o empoderamento social
Em contraposição a esses projetos, na ciência em geral, e também na geografia e na
cartografia, se manifestaram propostas de constructos contra-hegemônicos. É de particular
relevância o amplo espectro de práticas que ficou conhecido como “cartografia social” (LIMA,
2017). Os defensores desta assim chamada cartografia social não propõem evidentemente
imputar à cartografia técnica o adjetivo de “antissocial”, mas sim chamar atenção a qual das
instâncias sociais é predominante em cada tipo de representação cartográfica.
Se muitas vezes, como no caso das cartografias das bases geoespaciais sistemáticas na
escala de 1:100.000 ou de 1:250.000, a diversidade de sujeitos, comunidades, culturas e
identidades é suprimida em favor de critérios político-administrativos, ou, em outros casos, a
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totalidade orgânica e sistêmica dos ambientes é seccionada em recursos naturais (geologia e
recursos minerais, biodiversidade, hidrografia etc.) em nome de uma lógica mais mercantil, o
que se pretende ao chamar de social a cartografia social é enfatizar que nesse campo valem
mais os critérios próprios da instância cultural em detrimento das questões políticas e
econômicas.
O Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (International Fund for
Agricultural Development IFAD) utiliza a expressão “mapeamento participativo”. Para o
IFAD (2009), critérios para o reconhecimento de mapas participativos e comunitários.
Assim, o mapeamento participativo pode ser definido pelo: a) processo de produção, no qual
os mapas participativos são planejados com um objetivo comum e a participação da
comunidade em um processo aberto e inclusivo é uma estratégia facilitadora do processo, pois
com a participação de todos os membros da comunidade de estudo o resultado final torna-se
mais benéfico por representar a experiência coletiva do grupo; b) pelo produto que representa
a comunidade, sendo realizada uma seleção que mostra quais elementos serão relevantes para
as necessidades e utilização da comunidade a ser representada; e, por fim, c) pelo conteúdo dos
mapas que retrata locais de conhecimento e informação, sendo, que, nesse caso, os mapas
devem conter os nomes, símbolos, escalas e características baseadas no conhecimento local
(IFAD, 2009).
Para o IFAD (2009), o mapeamento participativo não pode ser definido pelo nível de
cumprimento das convenções cartográficas formais. Os mapas participativos não
necessariamente podem ser incorporados a sofisticados sistemas de informações geográficas.
Devem ser vistos como uma ferramenta eficaz de comunicação considerando que os mapas
regulares buscam uma conformidade e diversidade na apresentação dos conteúdos.
Percebe-se, assim, que na conceituação do IFAD (2009) estão inclusos tanto mapas e
produtos que se encaixam em representações cartográficas com o uso de parâmetros técnicos
seja no aspecto do caso brasileiro (IBGE, 2013; CONCAR, 2017), ou em casos internacionais
(EPA, 2020; ISO, 2020) , como também produtos cartográficos os quais, de acordo com
abordagens consolidadas de tipologias cartográficas, seja do ponto de vista da cartografia
geográfica ou das abordagens transdisciplinares em cartografia (RAISZ, 1959; JOLY, 2008;
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MARTINELLI, 2013) estariam classificados como croquis. Em termos de alfabetização
cartográfica, pode-se dizer que esses, em alguns casos, não atingem em primazia a dimensão
do olhar vertical, havendo casos de representações com o olhar obliquo, uma síntese entre olhar
vertical com dimensões do olhar horizontal (CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015).
No caso específico do Brasil, faz-se necessário destacar a grande contribuição ao
debate do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, sobre o qual Lima (2017) realiza uma
ampla análise acerca da relevância e o impacto nas diversas dias. Com representações
cartográficas que valorizam a dimensão simbólica, e, em alguns casos, artística, por vezes esses
produtos prescindem de referenciais espaciais, ou, ao menos, minimizam as questões das
projeções e escalas, e, embora sejam sempre cuidadosos com as legendas, também não estão
atinentes a uma simbologia de caráter monossêmico (CASTRO, 2019).
Na realidade, o mais comum é que cada carta social apresente uma notória diversidade
de iconografias muito próprias das singularidades de cada comunidade. Essa dimensão termina
por ser representativa da riqueza inerente aos conhecimentos locais espraiados pelos lugares.
Considerando a abrangência que tal abordagem tem tido tanto no caso brasileiro (ACSELRAD;
COLI, 2008), como no âmbito mundial (LÉVY, 2008), com particular relevância para o
contexto latino-americano (CÁCERES, 2012), parece-nos que cartografia social se torna uma
sinonímia, ou, melhor ainda, uma síntese de croquis, cartas e mapas que representam as
dimensões mais relevantes dos ambientes para as comunidades, sem necessariamente se ater às
dimensões daquilo que se convencionou chamar de espaço absoluto.
Em suma, as dimensões do espaço absoluto são aquelas da lógica mecânica
cartesiana/newtoniana, com as três dimensões (comprimento, largura e profundidade) e que,
portanto, implicam, na representação, as noções cartográficas básicas de escala e projeção
(transposição da realidade tridimensional para uma representação bidimensional). As
dimensões do chamado espaço relativo, de forma sintética, são aquelas pertinentes aos fluxos,
aos movimentos, aos acessos e bloqueios de qualquer natureza (às três dimensões se dá o
acréscimo de uma quarta dimensão: o tempo). E há, por fim, as dimensões do chamado espaço
relacional, as quais dizem respeito, sobretudo, às relações sociais mediadas pelo espaço, pelo
meio ambiente (HARVEY, 2015).
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Ou seja, se no espaço absoluto e relativo predominam as representações dos territórios,
no espaço relacional predominam as representações das territorialidades
4
. Se nos mapas para
fins hegemônicos políticos dos Estados maiores, ou econômicos dos grandes trustes e
monopólios internacionais (LACOSTE, 1993), faz-se uso predominante do espaço absoluto (e,
em menor medida, do espaço relativo), para os mapas sociais as dimensões do espaço relacional
são as que importam, e, por isso, são valorizadas.
Cartografia Social e Cartografia Participativa
Assim, no limite extremo, a cartografia social não se propõe a ser científica. Com isso
não se quer dizer que não se faça ciência (geografia, antropologia etc.) a partir dela, mas o que
está em tela na proposta original de Almeida (1993) é valorizar os conhecimentos locais. Mais
do que levar a ciência em sua forma clássica ocidental (parte de um projeto burguês) para as
comunidades, o que realmente interessa é fornecer o momento, o tempo, o espaço, enfim, os
meios para que as outras matrizes de saberes possam se expressar.
é consenso que uma diversidade de inteligências para além da inteligência lógica-
matemática, dimensão historicamente valorizada pela civilização ocidental sob a égide do modo
de produção capitalista (GARDNER, 2013). Igualmente, há uma diversidade de saberes muito
maior do que o se convencionou classificar em categorias estanques de conhecimento, em
quatro etapas ou conjuntos históricos: conhecimento empírico, conhecimento teológico,
conhecimento filosófico e conhecimento científico (JAPIASSU, 1991).
O saber e o conhecimento não são invenções europeias (SANTOS, 2018). Pelo
contrário, a diversidade de civilizações, sociedades e comunidades históricas ilustra muito bem
como há várias formas de saber que fogem ao enquadramento arbitrário de classificar todos os
conhecimentos históricos do mundo em quatro compartimentos evolutivos. O assim chamado
conhecimento empírico, às vezes referido (de forma, inclusive, pejorativa) de “senso comum”
acaba sendo tido como o patamar inferior e vulgar do conhecimento. Nessa pretensa
“classificação”, toda a tradição de conhecimentos de civilizações tais como as da China, Índia,
4
Sombra et al (2021) expõem de forma mais ampla as relações entre o que se concebe como espaço absoluto,
espaço relativo e espaço relacional, e a metodologia da cartografia temática e, em especial, a metodologia da
cartografia participativa.
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Pérsia, Mesopotâmia, Arábia, Palestina, Turquia, Egito, Líbia, Núbia, Etiópia, Mali, Congo,
Indonésia, Polinésia, Peru, México etc. ficam “classificadas” como intermediárias entre religião
(ou teologia) e filosofia, quase pré-filosóficas.
À ciência cabe “o lugar mais alto do pódio”. E por ciência, deixe-se claro, sempre se
refere ao conjunto normatizado de conhecimentos, técnicas e metodologias criados a partir do
projeto burguês de mundo, parido no Renascimento, amadurecido no Iluminismo e castrado no
Positivismo (KUHN, 1978; JAPIASSU, 1991; FOUREZ, 1995). Resta aos demais (incontáveis)
saberes a alcunha de “senso comum”. Que a ciência seja fruto de um projeto da classe burguesa,
de lugar europeu (e, portanto, de cor branca, e gênero masculino), parece fora de dúvida. Se o
seu uso se limita sempre à dominação pelo fato de ter sido assim parida, com o objetivo de ser
usada em prol da dominação, é outra questão, a qual será tratada adiante neste ensaio. Não
obstante, está fora de dúvida também que se trata de uma arrogância etnocêntrica o
enquadramento de todos os saberes não europeus como conhecimentos empíricos, como se não
fossem frutos de pensamento ou reflexão (como se o pensamento fosse habilidade
exclusivamente europeia).
Tratam-se, isso sim, de outras epistemologias. São saberes construídos social e
historicamente a partir de outras matrizes de explicação. Com outros códigos de validação.
Esses conhecimentos possuem também outros olhares acerca do mundo, e são, portanto, não
apenas outras epistemologias. São, também, outras ontologias, com outras interpretações do
ser, do mundo, do tempo e do nada. E aqui reside uma grande contribuição latino-americana,
com destaque para o Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (LIMA, 2017), ao debate
amplo do “mapeamento participativo” nos termos do IFAD (2009). É necessário asseverar que
a cartografia social desmonta o mito do “senso comum”. O enquadramento dos conhecimentos
não europeus como “senso comum” (ou religiosos, ou pré-religiosos/mitológicos, ou
filosóficos, ou pré-filosóficos) obedece à mesma lógica colonial impositiva e desumanizante
que classifica todos os povos não europeus como indígenas ou aborígenes. A cartografia social
expressa não somente as epistemologias, mas as ontologias dos conhecimentos locais diversos
e distintos. E o faz de uma forma espacial e territorial (do espaço absoluto ao espaço relacional).
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Dito isto, aqui parece o ponto para expressar uma proposição. Não se trata de
enquadramento, mas de olhares acerca dos conjuntos de saberes e dos diálogos entre os saberes.
Cabe afirmar que uma distinção entre o que se consolidou chamar de cartografia social e
outras dimensões do mapeamento participativo, as quais constituem o que será nomeado
doravante de cartografia participativa. Por cartografia participativa não se deve entender
qualquer tipo de tentativa de validação pela ciência dos conhecimentos locais, mas se trata de
disponibilizar o instrumental da cartografia técnica e científica (geográfica ou interdisciplinar)
para que as comunidades se apropriem desta linguagem, do olhar vertical, das técnicas e
tecnologias, e que, a partir dessa apropriação da ciência, possam expressar suas territorialidades,
os seus usos, a importância material e simbólica dos ambientes, e também os conflitos, os
interditos, os ataques sofridos, e, enfim, os seus desafios sociais e comunitários para o futuro.
Não necessariamente a cartografia social prescinde das geotecnologias. Não é uma
questão do uso dos sistemas de posicionamento global, de técnicas de sensoriamento remoto ou
de geoprocessamento que vai distinguir a proposição da cartografia participativa da
consolidada cartografia social. Trata-se muito mais do objetivo. A cartografia social possui
como principal objetivo dar ensejo à auto-cartografia dos povos e comunidades tradicionais.
Trata-se de um instrumento para o fortalecimento dos movimentos sociais e das comunidades
locais (LIMA, 2017). As cartas sociais são, ao fim, manifestações de identidades coletivas,
referidas a situações sociais peculiares e territorializadas.
A cartografia participativa, por seu turno, objetiva muito mais disponibilizar as
técnicas de cartografia científica para o empoderamento dos movimentos sociais e das
comunidades locais. A aprendizagem da linguagem cartográfica técnica, a mesma
historicamente utilizada pelos agentes hegemônicos para subjugar as comunidades locais,
aparece aqui como um passo fundamental para empoderar as lutas sociais no âmbito da
expansão de territorialidades hegemônicas predatórias. A cartografia participativa está
preocupada em referenciar no espaço absoluto e no espaço relativo a existência concreta,
material e simbólica das territorialidades e seus usos. Para isso, o uso dos sistemas de
posicionamento global, dos sistemas de informação geográfica e das imagens de sensores
remotos são deveras úteis. Assim, enquanto a cartografia social expressa em sua totalidade o
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vigor dos saberes locais, a cartografia participativa resulta do diálogo dos saberes locais com a
ciência, mediada pelas técnicas e instrumental científicos.
Cartografia participativa: ciência e técnica para fins contra-hegemônicos
Ao conceber por cartografia participativa o uso da cartografia científica pelas
comunidades locais para expressar suas territorialidades, impõe-se, logo, uma questão de ordem
ou de princípio. Pode a ciência burguesa servir ao propósito contra-hegemônico? Na tradição
da crítica materialista histórica e dialética, esse debate foi expresso para a dimensão mais geral
da técnica (e da tecnologia). É conhecida a polêmica entre Lênin (1965) e Luxemburgo (1970)
acerca do que fazer com a técnica derivada do modo de produção capitalista (no âmbito dos
debates de superação desse modo de produção em prol de uma proposta socialista).
Para o primeiro, as técnicas e os objetos em geral são apenas meios e deveriam ser
apropriados para os fins de negação do capital, ou seja, na construção de uma outra lógica de
reprodução social que o a capitalista. Para a última, porém, as técnicas desenvolvidas a partir
da exploração da força de trabalho assalariada constituem em si o trabalho cristalizado, ou
melhor ainda, o mais-valor expropriado dos trabalhadores pelo sistema do capital, sendo, ao
fim e ao cabo, impossível o seu uso contra-hegemônico. Para Luxemburgo (1970), a despeito
de sua natureza de meio, a técnica e os objetos são meios que condicionam os fins e a
reprodução social.
Essa questão aparece diversas vezes na filosofia e nas ciências humanas, em geral, e
na geografia, em particular. De acordo com Moreira (2012), a geografia crítica, corrente de
pensamento com forte influência marxista, apresentou cinco grandes eixos de interpretação do
espaço geográfico: a) o espaço como formação e instância social (Milton Santos); b) o espaço
como condição de reprodução das relações de produção (Lefebvre); c) o espaço como mediação
das relações de dominação de classes e de poder (Lacoste); d) o espaço como estrutura de
valorização do capital (Harvey); e, e) a sociedade como natureza socializada e história
naturalizada (Quaini) (MOREIRA, 2012). As duas primeiras dialogam diretamente (e as demais
indiretamente) com a noção de prático-inerte de Sartre (1963).
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Aqui, o meio não é apenas um palco para os fenômenos sociais, pois, ao mesmo tempo,
o meio, ou seja, o espaço (os objetos espaciais, os ambientes, enfim, o espaço absoluto, relativo
e relacional) é produto e condição de reprodução da sociedade, interferindo diretamente na
forma e nas relações sociais. Não se trata de forma alguma de dar margem a qualquer tipo de
materialismo vulgar determinista, ao torque de Ratzel ou Montesquieu. Também não se trata
do olhar funcionalista do positivismo, que reconhece uma “força inerte do meio”, mas como
condição dos fatos sociais mecânicos (DURKHEIM, 2004).
Embora se concorde com a ideia de que uma “força inerte do meio” como disse
Durkheim (2004), essa força é dialética, resulta do trabalho cristalizado nas paisagens, trazendo
ao espaço geográfico certa “inércia dinâmica” (SANTOS, 2008). Trata-se, afinal, de
reconhecer, isso sim, que “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de
livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela
é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25).
Ademais, é preciso reconhecer que a técnica, ou melhor, o sistema técnico se converteu no
maior instrumento de controle social da sociedade capitalista (MOTA, 2016).
Cabe notar, porém, que se de todo fosse impossível o uso de técnicas e da própria
ciência burguesa, forjados a partir da exploração dos povos e trabalhadores, e objetivando a
reprodução da mesma, a própria construção de alternativas ao capitalismo a partir da
maximização e socialização radical das forças produtivas seria impossível. Como bem coloca
Engels (1971), o socialismo científico faz uso dos princípios científicos, e necessita da ciência
para a sua reprodução. Esimplícito aí o uso da ciência para fins contra-hegemônicos. Para tal
o papel do intelectual está justamente em disponibilizar o conhecimento e os arcabouços
teóricos, metodológicos e técnicos da ciência para os oprimidos a utilizarem em suas lutas
contra-hegemônicas (GRAMSCI, 1982).
Para isso, faz-necessário que o professor troque conhecimentos com os alunos, que o
professor não apenas ensine, mas aprenda com os alunos para construir um diálogo de saberes
contra a dominação (MARIÁTEGUI, 2010). Assim, constrói-se uma pedagogia em favor da
libertação e contra a opressão. Os intelectuais precisam descobrir seu papel e seu imperativo
ético para com o mundo, para com a libertação, solidarizando-se sempre com os oprimidos e
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
SOMBRA, Daniel; RODRIGUES, Gilberto Pereira; PINHO, Danilo do Rosário. Cartografia participativa como diálogo entre saberes:
ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8,
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auxiliando-os a perceber a opressão para lutar contra ela (FREIRE, 2015). O papel da vanguarda
é utilizar o máximo da ciência, da técnica e da tecnologia para a conscientização da exploração
e para a transformação de classe em si, alienada, para a classe para si, consciente de seu papel
e de seu protagonismo na reprodução do mundo (LÊNIN, 2015).
É claro que o esclarecimento é condição pétrea de qualquer ação social. Reconhecer
que esses conhecimentos, que a ciência em geral, e suas técnicas, foram construídos para a
reprodução da hegemonia é condição sine qua non para o uso contra-hegemônico (GRAMSCI,
1987). Novamente, o papel dos cientistas, dos intelectuais, dos professores é fundamental. Uma
vez que percebam o uso hegemônico da ciência e das técnicas em favor da dominação e
consigam, a partir dessa percepção e de seu acúmulo teórico-prático, saltar da condição de
classe em si para a condição de classe para si mesmo que muitas vezes, ao fazê-lo, tenham
que se reconhecer como parte do bloco opressor devem, de imediato, colocar todo o seu saber
acumulado em favor da libertação e do empoderamento social (LÊNIN, 2015; FREIRE, 2015).
O projeto societário maior da humanidade persiste sendo a libertação (FROMM,
1981), ainda que tal projeto seja vilipendiado toda vez que determinado grupo ou classe social
imponha um ordenamento hegemônico baseado na opressão dos demais, na opressão da
maioria. O ser humano está condicionado a lutar para ser mais (FREIRE, 2015). O ser humano
está condenado a lutar de forma irremediável por sua libertação (SARTRE, 1963). O ser
humano é, pois, essencialmente, um ser social coletivo (MARX; ENGELS, 2007). E, assim,
todos os materiais, todas as técnicas, todos os produtos, todos os meios foram construídos a
partir da relação entre as pessoas, a partir dos elementos dos ambientes, através do processo
social do trabalho, mediado pelas técnicas. Todos os conhecimentos são frutos da comunhão
entre as pessoas. Então, ironicamente, ao fim e ao cabo, todo conhecimento não deixa de ser
um senso comum, não no sentido pejorativo de conhecimento vulgar, mas no sentido de
conhecimento coletivo.
Não é à toa que a teleologia separe o pior tecelão da melhor abelha e o pior artesão da
melhor formiga (MARX, 2013). O ser humano enquanto ser social coletivo modifica o meio e
recondiciona o seu papel modelador. A teleologia é um constructo coletivo (MARX, 2008).
Que as relações sociais (ou socioespaciais, pois que sempre mediadas pelo meio, pela natureza,
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pelas próteses) fundamentais de primeira ordem (alimentação, habitação, remédios, cultura,
enfim, as necessidades humanas fundamentais) terminem nuançadas pelas relações de segunda
ordem (aquelas que fundamentam a produção do valor de troca e a extração do mais-valor) é
algo próprio ao contexto de hegemonia da burguesia (MÉSZÁROS, 2007).
Essa hegemonia se manifesta em práticas cotidianas que inviabilizam as necessidades
humanas fundamentais. Nesse contexto, os oprimidos se expressam, se contextualizam, se
situam e se explicam pelos termos da opressão, e se enxergam nos seres dos opressores. Sem
consciência de classe, o sonho do oprimido é se tornar o opressor (FREIRE, 2015). Mas a
aprendizagem é uma habilidade do ser social. Uma criança em fase de alfabetização abandonada
pelas pessoas em um ambiente não social pode, por ventura, conseguir sobreviver (embora o
mais provável seja a morte). casos diversos registrados de sobrevivência de pessoas nessa
situação (BALL, 1994; ROUX; SMITH, 1998; WHETTEN et al., 2009; NELSON, 2014;
RYGAARD, 2020). Porém, esses casos mostram como as pessoas conseguem sobreviver
enquanto um indivíduo da espécie Homo sapiens, mas sem reproduzir (ou produzir nesse caso)
cultura, fala, e no limite, sequer pensamento.
Isto porque a cultura é uma construção material. O conhecimento é construído em
estágios materiais, nos quais os passos em construção são sempre basilares e supostos dos
seguintes (PIAGET; INHELDER, 1989). O conhecimento não é apenas uma construção
material, mas também é uma construção social. A depender do meio social, cria-se uma zona
de desenvolvimento potencial para a aprendizagem (VIGOTSKY, 1987), isto é, para a
construção de conhecimentos, seja esse conhecimento estruturado em conteúdos cognitivos, ou
procedimentais, ou atitudinais (ZABALA, 1998). Essa zona de desenvolvimento potencial se
torna uma zona de desenvolvimento proximal quando interação entre as pessoas
(VIGOTSKY, 1987). Essa é base da construção do conhecimento: a comunhão. Nas condições
ideais, quando se a zona de desenvolvimento proximal, os sujeitos em aprendizagem,
educandos, se convertem, se transformam nos sujeitos da construção social do conhecimento,
reconstruindo o saber ensinado ao lado do professor, do educador, do intelectual da ciência,
igualmente sujeito do processo (FREIRE, 1996). O conhecimento e a cultura são construções
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sociais, tal como todo aprendizado teórico e todo constructo material, incluindo o próprio
espaço geográfico (MOREIRA, 2012).
É por isso que a coetaneidade é a propriedade mais importante do espaço geográfico
(MASSEY, 2009). Apesar dos muros, sempre contornamentos territoriais (HAESBAERT,
2014). O espaço geográfico, isso é, o meio ambiente, os sistemas naturais, mais as próteses e
as atividades humanas um conjunto indissociável de sistemas de ações e sistemas de objetos
(SANTOS, 2009), uma síntese entre modus operandi e modus vivendi (MOTA, 2006) uma
síntese entre trabalho em ato e trabalho cristalizado (SOARES, 2016) que une a todos, ricos e
pobres, brancos e negros, homens e mulheres, jovens e maduros. As consequências das ações
humanas e os desastres são sempre seletivas por classe, gênero etc., mas sempre em um segundo
momento, pois no momento inicial todos são atingidos, como ilustrou de forma cabal a
pandemia da COVID-19, durante os anos de 2020 e 2021.
No limite, porém, por mais muros e espaços seletivos que se possa construir, o planeta
em que a vida é possível é apenas um (GONÇALVES, 2011). A origem da cultura, do
conhecimento é a comunhão com os outros. Não vida sem diversidade social. E é por isso
que uma educação voltada ao máximo do humano é uma educação voltada para a libertação,
para a construção do ser mais (FREIRE, 2015). A educação para a libertação necessita de temas
geradores, e esses temas geradores até podem ser gerados pela própria ciência, mas é importante
que na maior parte das vezes sejam gerados a partir da diversidade de conhecimentos locais, de
conhecimentos empíricos (FREIRE, 1996).
Cabe aos conhecimentos cotidianos, os ancestrais, e também os gerados pelos
trabalhadores oprimidos, pela população urbana periférica, por todas as dimensões humanas
que são exteriores ao sistema do capital (DUSSEL, 2012), e que se unem construindo
contraespaços hegemônicos (SOARES, 2021). E, assim, o que mais cabe à ciência é gerar os
“temas dobradiças” (FREIRE, 2015), ou seja, os conteúdos sejam cognitivos, procedimentais
ou atitudinais (ZABALA, 1998) que auxiliam no diálogo entre ciência e saberes locais, na
construção de conhecimento voltado à libertação e não à dominação. E para isso é fundamental
que o professor aprenda com o aluno (FREIRE, 2015). Que a ciência aprenda com o objeto e
entenda que, ao fim e ao cabo, este é sujeito de sua própria existência (LUKÁCS, 2013). Que,
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enfim, a universidade entenda que a extensão não é caridade, mas sobretudo, diálogo de saberes
e trocas de experiências, com aprendizagem mútua para todos os lados envolvidos
(MARIÁTEGUI, 2010). São essas as condições para o uso da ciência e da técnica para fins
contra-hegemônicos.
Cartografia participativa: um objeto intermediário para o diálogo de saberes
A cartografia participativa, como construção de diálogo de saberes, como proposição
de levar às comunidades o instrumental da cartografia e das geotecnologias (sensoriamento
remoto, geoprocessamento etc.) possibilita a construção de objetos intermediários (ROJAS-
BERMÚDEZ, 1967), instrumentos facilitadores de diálogos que possibilitam que os sujeitos
reconheçam a si e suas relações (conflituosas, afetivas etc.) com os outros.
O geoprocessamento e a disseminação da cartografia por uma diversidade de
aplicativos, inclusos os presentes nos aparelhos celulares, auxilia também uma cartografia
voltada à codificação de usos, conflitos, das relações de poder, de trabalho e culturais
produzidas a partir e no espaço geográfico. No Brasil, a cartografia participativa tem sido usada
desde os anos 1980 em projetos de desenvolvimento dos espaços rurais, dando preferência para
o incentivo do conhecimento local, desenvolvendo e facilitando a comunicação entre os
habitantes (ARAÚJO; ANJOS; ROCHA FILHO, 2020).
A partir dos anos 1990, com a maior difusão das geotecnologias, passou-se à utilização
de sistemas de informações geográficas (SIG), sistemas de posicionamento global (GPS) e uso
de imagens de satélites para auxiliar as técnicas de mapeamento. Para Araújo, Anjos e Rocha
Filho (2020), o mapeamento participativo constitui abordagem interativa baseada nos
conhecimentos das populações locais, permitindo aos participantes desse processo criar seus
mapas representando os elementos mais significativos para essa população.
Para Silva e Verbicaro (2016), a cartografia participativa apoiada na tecnologia
computacional constitui uma importante ferramenta para analisar as diversas territorialidades
do espaço geográfico baseadas no cotidiano dos sujeitos locais. Para os autores, a cartografia
participativa é uma metodologia de análise do território. Para Tomaz (2020), também é indicada
para a análise ambiental. A cartografia participativa utiliza as dimensões de diversidade,
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proporcionalidade e ordem (CASTRO; SOARES; QUARESMA, 2015), e se assenta na
produção do olhar vertical sobre os espaços em detrimento do olhar horizontal sobre as
paisagens (SOARES et al., 2018). Esses últimos são utilizados para, em um primeiro momento,
fornecer os “temas dobradiças” (FREIRE, 2015), que constituem a identificação do espaço
absoluto e relativo, para que, uma vez alfabetizados com esta codificação, e de forma cada vez
mais participativa e autônoma, os sujeitos locais se apropriem dessas ferramentas e as utilizem
como forma de representação de suas territorialidades, de seu espaço relacional.
O empoderamento social é útil à governança (não se trata de encaixar a sociedade
civil na burocracia estatal, mas de fazer a burocracia estatal se dobrar ao diálogo com os saberes
locais), à participação da sociedade civil e dos movimentos sociais também na gestão dos
territórios, como é o caso particular das unidades de conservação (CANTO et al., 2018). A
Cartografia Participativa, por ser uma metodologia de compreensão social, espacial e territorial
que necessariamente envolve a participação das comunidades, possibilita subsídios à gestão das
unidades de conservação de forma participativa, envolvendo comunidades, Conselho Gestor e
técnicos dos órgãos institucionais de cada unidade de conservação.
A cartografia participativa, portanto, pode ser uma ferramenta voltada tanto para o
ensino sobretudo, o ensino fora da educação sistemática, conforme indica Freire (2015) ,
como para a pesquisa, mas seu uso é eminentemente voltado para a materialização da extensão.
A materialização de produtos e serviços voltados à significação social, com o uso efetivo da
ciência. O produto, o mapa participativo, permite a identificação de usos, territorialidades,
conflitos e problemas socioambientais a serem dirimidos. Assim, tem-se uma contribuição
concreta à percepção dos comunitários acerca do seu território. Em cada um dos casos, o mapa
participativo foi feito a partir das iconografias construídas sobre um mapa de localização de
base pelos comunitários e usuários da unidade de conservação.
Esse mapa de localização de base é um mapa que possui apenas os referenciais de
espaço absoluto essenciais para a localização (sobretudo hidrografia e malha viária),
complementado pelo uso de uma imagem de satélite. No decorrer da elaboração de oficinas
para a construção desse produto, uma vez que os comunitários se reconhecem, com o domínio
do olhar vertical em diálogo com o olhar horizontal (CASTRO; SOARES; QUARESMA,
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2015), eles podem registrar informações sobre os aspectos estruturais, culturais e sociais de
cada população advindas de suas histórias narradas oralmente em grupo, saindo da dimensão
espacial e adentrando de fato na dimensão territorial.
Uma vez registradas as territorialidades e os usos feitos sobre e a partir do território, a
segunda etapa se constitui na transformação dessa informação cartografada em informação
vetorial, disponibilizada em um banco de dados digitais, para a elaboração do layout final. Silva
(2017) ilustrou o uso da cartografia participativa em comunidades quilombolas no Arquipélago
do Marajó no estado do Pará como um projeto de pesquisa-ação. A cartografia participativa e
sua efetivação na direção do empoderamento social é abordada em uma série de outros
trabalhos.
Ranieri (2018) relata o uso da cartografia participativa na localidade de Ajuruteua, no
município de Bragança, no limite da RESEX Marinha Caeté-Taperaçu. O objetivo do uso desse
produto foi o de identificar os usos e significados de cada territorialidade dentro desse espaço
geográfico, para, a partir de então, construir com os moradores uma agenda de ações para
enfrentar o problema da erosão costeira que assola a vila. Em seu trabalho, Ranieri (2018)
ilustra como a Cartografia Participativa é um instrumento que auxilia na participação como
fundamento da ação social como foco de resolução de um problema específico.
O trabalho de Ramos (2020) objetiva subsidiar a construção do plano de manejo da
RESEX Ipaú-Anilzinho, situada no município de Baião, na Região de Integração do Baixo
Tocantins. Para isso, Ramos (2020) elaborou oficinas de Cartografia Participativa em todas as
comunidades existentes, e ao final, com o apoio da equipe do LARC, sistematizou o mapa
participativo da RESEX Ipaú-Anilzinho. O objetivo de Ramos (2020) ao identificar junto aos
usuários da RESEX os usos dos territórios e os principais conflitos socioambientais e desafios
coletivos foi auxiliar na construção do Plano de Manejo, que no caso da Reserva Extrativista
Ipaú-Anilzinho ainda não foi elaborado. Outrossim, esta metodologia e seu produto auxiliam
também como uma ferramenta mediadora e conciliadora para outros entraves existentes na
RESEX, como a falta de delimitação dos espaços naturais de uso comum, a resolução sobre a
presença de fazendeiros ocupando boa parte da RESEX, as vendas ilegais de terras, etc.
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O mapa participativo é, portanto, um objeto intermediário para a gestão comunitária
sobre o território. Para Ramos (2020), o diferencial da proposição do Produto de Pesquisa com
a construção da Cartografia Participativa se constituiu também em identificar os pequenos
povoados da Ipaú-Anilzinho, incluindo os não reconhecidos nos estudos técnicos para a criação
da RESEX em 2005.
A elaboração do produto não se propôs a alterar as normas ou lei que criou a unidade de
conservação, mas sim indicar ao poder público e demais sujeitos da RESEX os espaços e
populações existentes na área como documento formal oriundo de pesquisa científica. Além de
registrar o modo de ocupação das comunidades, a distribuição das terras em tempos passados,
a criação da RESEX e o sentimento de pertencimento às áreas em que produzem suas
sobrevivências.
O trabalho de Lobato (2020) também fez uso da Cartografia Participativa como
metodologia de aquisição de dados, de análise, e de construção de instrumentos de gestão para
os comunitários de territórios quilombolas. Lobato (2020) fez seu trabalho no Território
Quilombola Estadual Ramal do Piratuba, no município de Abaetetuba, na Região de Integração
do Baixo Tocantins. Primeiramente, as informações fornecidas pelos comunitários nas oficinas
de Cartografia Participativa realizadas por Lobato (2020) foram úteis para construir um
zoneamento participativo dos usos da terra no referido território quilombola.
Sendo a aprendizagem cartográfica um processo de aprendizagem social e
aprendizagem territorial, também cabe seu uso no próprio campo do ensino. Esta proposição se
mostrou acertada em trabalho elaborado por Rodrigues (2019), abordado na próxima sessão.
Cartografia participativa e construção do conhecimento dialógico no campo do ensino:
uma oficina no município de São João da Ponta-PA
Para a aplicação de uma oficina de cartografia participativa no campo particular do
ensino, foi escolhida a comunidade de Deolândia, localizada no município de São João da
Ponta, no nordeste do estado do Pará. Mais precisamente na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Prof. Raul Rodrigues Lagoia. Em três sessões, foram escolhidos como “temas
dobradiças” os conceitos de espaço, território, paisagem e lugar para, a partir de então, discutir
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os aspectos mais relevantes quanto ao uso dos territórios e das territorialidades, da construção
social do espaço geográfico e do uso comum dos recursos naturais.
A oficina foi realizada com o apoio do Laboratório de Análise Ambiental e
Representação Cartográfica (LARC), do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA), da Universidade
Federal do Pará. Após a construção dos temas geradores, referentes aos principais usos do
território na comunidade por parte dos alunos, estes foram apoiados pelos “temas dobradiças”
propostos, ao que se passou à etapa de construção do olhar vertical a partir de uma planta base
contendo apenas alguns referenciais do espaço absoluto (estradas e rios). Também se fez uso
de uma carta-imagem da localidade. Os alunos, cerca de 20, foram divididos em quatro grupos
de cinco (Figura 1). Na figura, os rostos dos alunos estão cobertos por se tratarem de menores
de idade.
Figura 1: Grupos durante a oficina de cartografia participativa na E. M. E. F. Raul
Rodrigues Lagoia (Deolândia, São João da Ponta-PA).
Fonte: RODRIGUES, 2019.
Após uma metodologia para apoiar a percepção do olhar vertical, e em domínio da
imagem dos seus territórios, os discentes começam a pontuar os temas geradores destacados na
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etapa anterior no mapa, identificando seus pontos de referência. A cada ponto escolhido, cada
lugar, cada significação, criava-se uma sinergia coletiva que ao mesmo tempo permitia diálogos
em cada grupo. As noções de escala e projeção foram abordadas, além de outros temas, como
características dos rios e igarapés, da vegetação etc.
Os temas gerados foram de utilidade não somente para o ensino da disciplina
geografia, mas também para a disciplina de estudos amazônicos. Ao final, as cartas separadas
foram estilizadas no LARC e sintetizadas em uma única carta. Em uma última etapa da oficina,
posterior, foi realizada a apresentação da carta participativa final para correção, mudanças,
acréscimos, sugestões de layout, legenda, etc. Após essa última etapa, confeccionou-se, também
no LARC, a carta participativa final (Figura 2).
Figura 2: Carta participativa de Deolândia (São João da Ponta-PA)
Fonte: RODRIGUES (2019).
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Rodrigues (2019) registrou que a atividade foi positiva para as disciplinas Geografia e
Estudos Amazônicos, e apresentou relatos dos docentes e discentes acerca do que cada um
achou da atividade. Para tal, fez uso de entrevistas com os quatro grupos de alunos em dois
momentos: imediatamente após a finalização da carta participativa e dois meses após a
realização da mesma. As entrevistas, semiestruturadas, apresentavam perguntas acerca das
dificuldades em conteúdos com a cartografia e acerca da compreensão dos conceitos de espaço
e territórios (os “temas dobradiças” escolhidos em parceria com os docentes das disciplinas.
O trabalho de Rodrigues (2019) acompanha o desempenho dos alunos e os relatos dos
docentes das disciplinas Geografia e Estudos Amazônicos sobre o aumento do interesse dos
discentes, além da repetição de oficinas similares, sem a participação da equipe de
pesquisadores que levou a oficina pela primeira vez à unidade escolar. Destaca-se o depoimento
de um dos alunos, que aponta o seguinte:
Eu não gostava de geografia, e nem de estudos amazônicos, pois achava
que eram matérias chatas. [...] Mas depois dessa coisa da oficina, ficou
mais fácil ver como o nosso lugar está conectado a outros espaços, e
como a gente usa o espaço [...]. (Aluno, em entrevista oral apud
Rodrigues, 2019).
É necessário ressaltar que as dificuldades em reconhecer os espaços vividos a partir do
olhar vertical foram rapidamente dirimidas no decorrer da metodologia. Notou-se em todos os
quatro grupos que uma vez reconhecidos os lugares referenciais da coetaneidade cotidiana, os
alunos rapidamente dominaram o olhar vertical e se sentiram à vontade no reconhecimento de
seus espaços.
Rodrigues (2019) também pontua em seu trabalho que o uso dos mapas auxiliares de
situação, posicionando a comunidade de Deolândia no contexto espacial da Reserva Extrativista
de São João da Ponta, auxiliou os alunos na compreensão de um olhar de totalidade acerca dessa
unidade de conversação. Trata-se de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável com um
histórico de militância e ativismo em torno da causa ambiental e dos conhecimentos
tradicionais, sendo um caso de êxito no diálogo entre o saber institucional jurídico e científico
e o respeito aos saberes locais que normatizam os usos dos recursos naturais (TELES;
PIMENTEL, 2018).
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ontologia, epistemologia, metodologia e aplicações na construção social do conhecimento. Revista Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8,
16, pp. 45-74, janeiro-abril de 2022.
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A RESEX de São João da Ponta apresenta relevantes indicadores de sustentabilidade
(PINEDO; PIMENTEL, 2021), e possui entre seus maiores desafios, no que tange às questões
ambientais, o avanço dos vetores da agricultura e da urbanização, resultado na diminuição da
área dos principais ecossistemas locais, os manguezais (FERNANDES; PIMENTEL, 2019).
Assim, o diálogo com os docentes das disciplinas Geografia e Estudos Amazônicos
possibilitou a conclusão de que a oficina colaborou para o empoderamento dos alunos, mais
conscientes da totalidade da unidade RESEX, da situação de seus lugares vividos diante dessa
unidade espacial e do mundo. Como mostrou Rodrigues (2019), também houve melhora no
desempenho dos alunos nas duas disciplinas.
Destacamos este caso particular, pois (como citado anteriormente) uma plêiade
de trabalhos utilizando a cartografia participativa nos campos da pesquisa e da extensão. Com
o uso da cartografia participativa no ensino, ainda que no nível da educação formal e, portanto,
considerados todos os limites de enquadramentos de currículo, avaliação e forma que essa
possui (FREIRE, 2015) , pretende-se fazer no próprio espaço escolar, sede do conhecimento
formal, um local de troca de saberes entre conhecimento científico e conhecimentos locais.
Considerações Finais
Este artigo se caracteriza, como expresso na introdução, como um ensaio que pretende
discutir como a cartografia participativa pode ser utilizada como um objeto intermediário, a fim
de realizar o diálogo entre os saberes locais e a ciência formal. O objetivo não é outro que não
o empoderamento social; o uso da cartografia e de suas técnicas, historicamente utilizadas pelos
agentes hegemônicos para a opressão, dessa vez para a libertação. Para que as pessoas
conheçam as técnicas, e utilizem essa linguagem para expressar seus conhecimentos e suas
territorialidades.
Para tal, realizamos uma proposição inicial da especificidade da cartografia
participativa no âmbito da cartografia em geral, marcando-a como uma proposta de diálogo
entre saberes, e assim, delimitando-a ao lado da consolidada cartografia social, essa uma
proposição que está interessada também no empoderamento social, mas a partir, primariamente,
da auto-cartografia dos povos, e, portanto, da essência epistemológica e ontológica dos
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conhecimentos locais, e de suas próprias formas de validação, as quais, em nada precisam da
ciência.
A especificidade da cartografia participativa está em objetivar o uso da ciência,
técnica, geografia e cartografia hegemônicas pelas comunidades locais. É sabido que, diante do
processo de totalização do capital (KOSIK, 1963) um processo totalitário, e, por isso mesmo,
globalitário (SANTOS, 2003) haverá necessariamente momentos de enfrentamento. Se a
geografia e cartografia sempre serviram para fazer a guerra, mostramos que para a guerra é
possível sim utilizar a ciência para fins contra-hegemônicos.
Agradecimentos
Os autores do artigo agradecem em especial aos professores das disciplinas Geografia
e Estudos Amazônicos e à direção da E. M. E. F. Raul Rodrigues Lagoia pela autorização e
colaboração para a realização da atividade de Cartografia Participativa de Rodrigues (2019),
utilizada como exemplo nesse artigo. Nesse ínterim, também os autores agradecem ao apoio
disponibilizado pela Coordenação e corpo técnico do Curso de Especialização em Ensino de
Geografia da Amazônia da Universidade do Estado do Pará (UEPA), casa que originou o
trabalho de Rodrigues (2019).
Também cabe-nos agradecer ao Laboratório de Análise Ambiental e Representação
Cartográfica (LARC), do Núcleo de Meio Ambiente (NUMA) da Universidade Federal do Pará
(UFPA), pelo apoio técnico no material cartográfico utilizado. Agradecemos, por fim, ao corpo
de revisores da Revista Ensaios e à edição geral, pelo profícuo diálogo estabelecido por meio
da revisão de pares, e às sugestões efetuadas para mudanças, as quais contribuíram para
melhorar a redação final do texto.
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