AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
PORTELLA, Luíza Oliveira; TORRES, Manuela Phebo; OLIVA, Victoria Ferreira. Toda quarta-feira tem: capoeira de rua e a certeza
do encontro. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, nº 17, pp. 216-220, jul. 2022.
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SEÇÃO
DOSSIÊ
TODA QUARTA-FEIRA TEM:
Capoeira de rua e a certeza do encontro
EVERY WEDNESDAY HAS:
Street’s capoeira and the certainty of the encounter
TODOS LOS MIÉRCOLES:
capoeira en la calle y la certeza de un encuentro
Luiza Oliveira Portella
1
Universidade Federal Fluminense
(UFF),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: luportella@id.uff.br
Manuela Phebo Torres
2
Universidade Federal Fluminense
(UFF),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: manuelaphebo@id.uff.br
Victoria Ferreira Oliva
3
Universidade Federal Fluminense
(UFF),
Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: victoriafo@id.uff.br
1
Licenciada em Geografia pela Universidade Federal Fluminense. Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET-
Geografia UFF), onde participa do Núcleo de Etnografias Urbanas, realizando a pesquisa "O avesso do mesmo lugar:
às margens da cidade". Estagiária da Eletronuclear na parte de gestão ambiental.
2
Graduada em Licenciatura em Geografia pela Universidade Federal Fluminense e em curso do Bacharel. Membro do
grupo PET do núcleo Etnografias Urbanas, realizando a pesquisa "O avesso do mesmo lugar: às margens da cidade".
3
Mestranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, onde é bolsista pela CAPES. Licenciada e
bacharelanda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF - Niterói). Durante a graduação, foi bolsista
do Programa de Educação Tutorial (PET-Geografia UFF), onde participa do Núcleo de Etnografias Urbanas. Integrante
do Núcleo de Estudos sobre Território, Ações Coletivas e Justiça (NETAJ-UFF). Cursou Geografia e História em
período de Mobilidade Internacional na Universidad de Jaén, Espanha (2020.1).
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PORTELLA, Luíza Oliveira; TORRES, Manuela Phebo; OLIVA, Victoria Ferreira. Toda quarta-feira tem: capoeira de rua e a certeza
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Almas vibrantes em corpos orgulhosos (mesmo quando
mutilados) andamos de cabeça para baixo. Põem a cabeça no
chão, emparafusam-se nas coisas (conhecendo-as por dentro)
e no giro, vão dando ideias subterrâneas, que servem de guias
para gente transformar e encarar o mundo. (CANJIQUINHA,
s/d apud SIMAS)
4
Às quartas-feiras ocorre o projeto Capoeira de Rua
5
na praça São Salvador, no
bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro. Alice Fatorelli, professora do grupo cerca de três
anos, afirma que por mais que a pandemia tenha trazido dificuldades para o projeto,
atualmente a única certeza das pessoas em situação de rua que se juntam na roda, é que
toda quarta haverá capoeira na praça. Na última aula que fomos, um novo rapaz chegou
junto de nós. Os olhos de Elson brilhavam, comunicavam um encanto que parecia não
caber em palavras. Na roda, Alice distribui instrumentos para quem quiser se aventurar,
e o do rapaz foi o pandeiro.
Pam, pam, pam.
Pam, pam, pam.
Tá ouvindo o ritmo?
Pam, pam, pam.
Agora vai lá, tem que acompanhar o berimbau.
Enquanto seu toque dava origem ao batuque, seus olhares impressionados
seguiam fitando o grupo. A inclusão que encontrou naquela praça despertou no rapaz uma
emoção chamativa, todos notávamos.
Quarta-feira que vem tô de volta. ele afirmava enquanto tomava um café.
Então, às quartas a vida vem daqueles que cultivam e afetam/são afetados pela
rua, não obstante moram nela. Muitos ainda se sentem tímidos de participar, começam
observando, hesitando em se juntar. Por mais que exista uma rotatividade grande entre os
participantes, alguns sujeitos marcam presença no cotidiano da praça: Lázaro, Paulista,
Alexander.
Na roda, todos são cativantes, pegam os instrumentos e se divertem encantando a
rua. E nesse espaço, nesse momento de ressignificação da praça, a emoção que é
despertada em seus corpos é a sensação de que, naquele momento, estão sendo localizados
na sociedade de outra forma. Os afetos e as trocas são diferentes daqueles convencionais,
4
Trecho retirado do livro: Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas/ Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino. - 1.
ed. - Rio de Janeiro: Mórula, 2018.
5
O projeto de capoeira de rua é um projeto independente, que tem algumas parcerias, como o Comida de Rua, o Projeto
Voar, a Casa Nem e a Yoga de Rua.
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parecem mais íntimos, no sentido de encontrar um espaço comum em tanta diversidade.
O ponto de conexão é a diferença. São histórias que não se repetem.
Todo dia pode haver um novo Lázaro ou um novo Paulista, novas narrativas
acerca de suas vidas. Afinal, estar na rua é sobre se reinventar. No primeiro momento,
para nós que estamos tão enrijecidos com a norma vigente, pode soar como loucura, mas
no segundo plano, pode soar até como uma certa lucidez. Estar vivo é sobre reconstruir e
construir novas formas de ser.
O ritual da capoeira é canalizado nos corpos. Em todos os corpos. Naqueles que
passam e se afetam. Naqueles que param e observam e principalmente, naqueles que a
produzem. O corpo é assentamento de saberes, construído pelas práticas cotidianas e que
apresentam diversas formas de estar no mundo. Citando Luiz Antonio Simas (2018), a
capoeira de rua possibilita “a partir de suas potências, sabedorias encarnadas nos
esquemas corporais, recriar mundos e encantar as mais variadas formas de vida. Essa
dinâmica é possível por meio do corpo, suporte de saber e memória, que nos ritos
reinventa a vida e ressalta suas potências.” (Ibid., p. 49).
A música e o “gingado” revitalizam a praça com aqueles que moram nela. Parece
que a rua e as suas formas brincam com o berimbau mesclando a fantasia e o real. Nessa
encruzilhada, a capoeira se apresenta como um campo de possibilidades. Ela rompe
constâncias e preenche o vazio com os toques, palmas e cantos. Para muito mais do que
rabos-de-arraias e negativas, ela tece, através do olhar atento uns para os outros, uma rede
de troca e de afeto.
Essas trocas e afetos trazem a sensação de fazer parte de uma experiência coletiva,
rompem uma barreira que isola esses sujeitos em um extremo de vulnerabilidade e
imobilidade. No espaço-tempo da roda, as pessoas em situação de rua, a classe média do
bairro de Laranjeiras e os outros ao redor são tocados pelo mesmo ritual que rompe
barreiras sociais. Os marginalizados e desterritorializados, geralmente excluídos da
dinâmica socioespacial, são inseridos no território ao prover laços afetivos/simbólicos
com o local.
Trata-se de pessoas que estão, na maior parte de seu tempo, fora do sistema. Alice
comentou conosco um exemplo marcante: um de seus alunos estava impossibilitado de
tirar a Carteira de Trabalho, visto que agora esse documento é virtual, não existindo mais
a modalidade física. Para acessá-lo, então, é necessário um computador, ou um celular;
internet; uma senha que ninguém parece saber como fornecer e documentos que, muitas
vezes, as pessoas em situação de rua não têm acesso.
Ou seja, aqueles que desejam sair da rua mediante ao trabalho, tem esse direito
inviabilizado. A verdade é que, em geral, o acesso a qualquer direito é dificultado para
esses sujeitos. Isso ocorre porque a lógica do poder imprime significados sobre esses
corpos, que são considerados improdutivos por não gerarem valor de troca e assim, vivem
às margens, à parte da sociedade. São marcadores que limitam a mobilidade social e
espacial de determinados corpos.
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Algumas características, portanto, possibilitam que os corpos pertençam a quase
qualquer lugar na sociedade, como ser homem, branco, heterossexual, classe alta/média,
etc. Outras limitam e dificultam a experiência urbana. Mas, como Alicia Lindón afirma,
toda experiência espacial é também emocional e corpórea, e o espaço de sociabilidade
que a Capoeira de Rua promove, traz novas emoções a esses corpos e uma nova forma de
se posicionar no urbano.
Essa experiência nos lembrou de um importante bordão do Simas, em que o
historiador aponta a necessidade de festejar em momentos de crise. Em suas redes sociais
e em seus livros, o autor constantemente reafirma: a gente não brinca e festeja porque a
vida é mole, a gente faz isso porque a vida é dura. É a vida que pede um repouso nas
alegrias, porque se não, ninguém segura o rojão.
No caso, o rojão é um espaço vivido limitado pelos marcadores impostos aos seus
corpos pelo poder, pela cultura e pela grande desigualdade social. Em cidades de
transeuntes apressados e de incorporadores imobiliários, o desrespeito ao direito à cidade
inviabiliza que esses sujeitos, de fato, vivam a cidade. À eles está restrito viver na cidade.
Então, eles vivem na cidade. E nesse processo inventam outras formas de existir,
inventam múltiplas narrativas para as suas vidas, e os espaços onde eles se sentem
incluídos, promovem emoções que são como frestas, festas e escapes dessa experiência
urbana tão… imobilizante. E assim vão vivendo na cidade.
E com a certeza de que toda quarta-feira é dia de capoeira de rua.
Adeus povo bom adeus
Adeus eu ja vou me embora
Pelas ondas do mar eu vim
Pelas ondas do mar
eu vou me embora
Referências bibliográficas
LINDÓN, Alicia. Corporalidades, emociones y espacialidades: hacia um renovado
betweenness. RBSE Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, pp.
698-723, Dezembro de 2012. ISSN 1676-8965. Disponível em:
<http://www.cchla.ufpb.br/rbse/AliciaLindonDos.pdf>. Acesso em: 02 out. 2021.
SIMAS, Luiz Antonio. Vagabundos no Batente. Jornal O Dia - Rio de Janeiro, 02 de
fev. de 2016. Disponível em: <https://odia.ig.com.br/noticia/opiniao/2016-02-03/luiz-
antonio-simas-vagabundos-no-batente.html>. Acesso em: 02 out. 2021
SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: A ciência encantada das
macumbas - 1. ed. - Rio de Janeiro: Mórula, 2018.