De mãos dadas descemos a rua do país estrangeiro. O centro daquela cidade se
parecia com todos os outros, todos os outros dois que já havíamos ido, ou assim indicavam
meus olhos. Tinha um rio, um centro histórico, um museu, um memorial, uma parte
gentrificada. Meu corpo pendia um pouco para baixo para que sua mão alcançasse a
minha, tu havia insistido em andar no chão, o que me fazia arrastar o passo para que
acompanhasse sua marcha infantil. Cantarolamos em um inglês fajuto uma música dos
Beatles que você aprendeu na escola. Há dez anos você havia entrado na minha vida e só
esta semana pronunciara meu nome com o acento no lugar correto, sem abreviar. Agora,
insistia em andar a pé em um país de língua espanhola cantando música em inglês. O meu
inglês aprendido em horas e horas de jogatina nos Nintendos acompanhada de dicionário,
o seu esculpido nos espaços da nova escola bilíngue. Um não devia nada ao outro. Os
dois ruins demais. Você me olhava séria quando eu adiantava o refrão tentando acelerar
o passo e, de birra, arrastava ainda mais a língua no céu da boca ao pronunciar o ‘Llllove’
no final da frase. Com nossos sotaques carregados, atravessávamos a encruzilhada,
rasgando aos quatro ventos a língua da Rainha. A música conhecida demais para passar
despercebida aos ouvidos desatentos, fazia eco na boca dos passantes.
O ciclista que vinha na contramão, com sorriso aberto, imita um trompete com a
boca fazendo ‘thuru-ru-ru-ru’ para te acompanhar. Dois minutos depois, uma senhora
carregando um chihuahua no colo desce a rua na nossa direção murmurando a mesma
música, bem na hora que você tentava encadear o ‘learn’ com o ‘How’ sem engolir ar ou
engasgar fonemas. Ela te sorriu e completou a frase com um sotaque próprio. ‘To be you
in time’. Eu não tive escolha a não ser finalizar o coro com ‘It's easy’.
Você olha para mim, assombrada. Uma ida à padaria virou uma versão latina de
um musical romântico ruim. Pelo menos não é Almodóvar. Você não gosta de musicais
em coro, mas os passantes não se importam e seguem ecoando a música que você puxou
duas esquinas atrás. Tentei retomar o dueto, mudar de faixa para qualquer canção na
língua que é nossa. Arranho um refrão te convidando com os olhos a me acompanhar.
Mas você nega, conhece a língua, mas não sabe a letra. Prefere insistir na música
estrangeira. Desta vez consegue pronunciar a frase inteira, sozinha e sem titubear.
‘Nothing you can do, but you can learn how to be you in time. It's easy’.
Chegamos a casa antes do final da canção. Porta adentro, você se prostra em frente
a TV atrás de outra distração; passeia pelos canais, incendio forestal, muda canal, joven
muerto a tiros, muda de canal, alcalde intenta evitar la circulación de libros en..., muda
de canal, compra cinco cuchillos y gana…, muda de canal, los nuevos participantes del
reality show…, muda de canal, el botín del dictador será… muda de canal. Na ante-sala,
eu brigo com os cadarços desse sapato feito para o clima frio, escuto o ruído das notícias,
e são todas parecidas demais com aquelas dos anos passados, todas parecidas demais com
as veiculadas no país que deixamos para trás, tanto que, por um momento, me sinto em
casa, por um momento, sinto mais de mil vidas entrecruzadas nesta casa.
Você finalmente acha o canal de desenhos e sorri, encantada pelas imagens
animadas onde, diferente dos noticiários, a lição moral a ser transmitida é evidente,