AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ROCHA, Laís Bronzi. APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS: anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade
em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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SEÇÃO
DOSSIÊ
APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS:
Anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade em uma
perspectiva decolonial
1
APUNTAMOS A LAS GEOGRAFÍAS INTERSECCIONALES:
Anarco(trans)feminismo, cuerpo y corporeidad en una
perspectiva decolonial
PONTING TO INTERSECTIONAL GEOGRAPHIES:
Anarc(trans)feminism, body and corporeality in a decolonial
perspective
Laís Bronzi Rocha
23
Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil
bronzi_rocha@id.uff.br
1
Agradeço as e aos colegas do NUREG/UFF, querides nuaregues, pelo encorajamento ao desenvolvimento
do texto aqui apresentado. Por intermédio das telas, vide a peste hostil que ceifou a vida de 666 mil
brasileiras/os, no seio carinhoso de nosso grupo de estudos tive o apoio emocional e acadêmico para
escrita.
2
Graduando em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Bolsista no Programa de Educação
Tutorial (PET) Geografia UFF. Estagiário e integrante do Núcleo de Estudos Território e Resistência na
Globalização (NUREG/UFF) e do Artesanias Geográficas e Educacionais (AGE/UFF).
3
Assino com meu nome morto por questões burocráticas, para resguardar a autoria como legítima ao
meu Cadastro de Pessoa Física. No entanto, me (re)conheça e me chame pelo meu nome: Bê Bronzi Rocha
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Resumo
Compreendemos que a interseccionalidade enquanto marco conceitual e proposta política, tem um
potencial em desvelar marcadores sociais sobrepujados, garantindo singularidade para a pluralidade de
existências de sujeitos-coletivizados. Propomos aqui neste ensaio capturar nas teorizações
anarco(trans)feministas outros matizes da interseccionalidade que sirvam para fazermos geografias
(críticas) decoloniais e feministas, para tanto, elegemos o anarquismo como ideologia e corpo e
corporeidade como categorias geográficas para nossa discussão. A despeito de como desenhamos este
texto, é em uma metodologia cartográfica, neste sentido, somos guiados e perturbados pelas várias vozes
de autoras/es que aqui ecoam. Por fim, ensaiamos construir traços e esboços entre as interseccionalidades
anarquistas, a decolonialidade em Vergueiro (2018) e a(s) Geografia(s) do corpo e corporeidades.
Palavras-chave
Geografias Feministas; Anarquismo; Cisgeneridade
Resumen
Entendemos que la interseccionalidad como marco conceptual y propuesta política, tiene un potencial
para develar marcadores sociales sobrepujados, asegurando la singularidad para la pluralidad de
existencias de los sujetos-colectivizados. Nos proponemos aquí en este ensayo captar en las teorizaciones
anarco(trans)feministas otros matices de interseccionalidad que sirvan para hacer geografías (críticas)
decoloniales y feministas, para lo cual hemos elegido el anarquismo como ideología y el cuerpo y la
corporeidad como categorías geográficas para discusión. El diseño de este texto se enmarca en una
metodología cartográfica, en este sentido, nos guiamos e inquietamos por las distintas voces de autores
que aquí resuenan. Finalmente, ensayamos para construir trazos y esbozos entre las interseccionalidades
anarquistas, la decolonialidad en Viviane Vergueiro (2018) y la(s) Geografía(s) del cuerpo y las
corporeidades.
Palabras-clave
Geografías feministas; Anarquismo; Cisgeneridad.
Abstract
We understand that intersectionality, as a conceptual framework and political proposal, has the potential
to unveil oversized social markers, ensuring singularity for the plurality of existences of collectivized
beings. We propose here in this essay to capture in anarc(trans)feminist theorizations other nuances of
intersectionality that serve to make (critique) decolonial and feminist geographies, for which we have
chosen anarchism as an ideology and the body and corporeality as geographical categories for our
discussion. The design of this text is framed in a cartographic methodology, in this regard, we are guided
and concerned by the different voices of authors that resonate here. Finally, we seek to build traces
between anarchist intersectionalities, decoloniality in Viviane Vergueiro (2018) and the Geography(s) of the
body and corporealities.
Keywords
Feminist Geographies; Anarchism; Cisgenderism.
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Introdução
Não pretendemos exaustivamente alongar-nos na discussão da
genealogia da interseccionalidade, que isso foi abordado com muito mais
propriedade em outros textos (COLLINS, 2017, 2021; RIBEIRO, 2016; KYRILLOS,
2020; para citar alguns). Se faz necessário, de todo modo, pontuar que vai ser
com Kimberly Crenshaw uma intelectual, jurista e professora afro-
estadunidense, do movimento feminista negro que a interseccionalidade
tem sua originalidade dentro do âmbito acadêmico-intelectual como uma
proposta política, isso no início dos anos 1990.
No contexto dos movimentos das lutas sociais, as relações
interseccionais entre raça/classe/gênero e outros marcadores sociais da
diferença vinham sendo problematizados, principalmente por sujeitos-
coletivizados submetidos às desvantagens das desigualdades sociais, na sua
pluralidade de contextos, como mulheres negras,
people of colour
,
queer
/transviades e travestis. Também nos movimentos anarquistas,
especialmente nos movimentos sociais anti-colonialistas e (auto-
)emancipatórios, anterior ao termo interseccionalidade ter sido concebido
como perspectiva conceitual e proposta política no âmbito acadêmico, na
prática também despontavam críticas aos múltiplos sistemas de
opressão/dominação que opera(va)m em conjunto para submeter, de forma
sistemática, o prejuízo de uns aos benefícios de outros.
A interseccionalidade, como guia na condução dos olhares, permeia as
discussões que tensionam e complexificam as análises sociais, de forma a
compreender as múltiplas configurações das relações sociais, que são também
relações espaciais, portanto, socioespaciais.
Atualmente, com a incitação dos estudos inter- e transdisciplinares,
surgem entrelaçamentos, e podemos observar que outros/as conceitos e
propostas político-epistemológicas desenhadas por outros/as autores/as se
conectam com a ideia interseccional. Podemos citar a confluência-transfluência
em Nego Bispo (2015), a pedagogia das encruzilhadas de Luiz Ruffino (2019), a
interculturalidade de Catherine Walsh (2009). Além disso, outras pesquisadoras
negras brasileiras também vinham discutindo a complexidade social a partir de
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uma abordagem interseccional, como a autora negra brasileira Lélia Gonzalez
em diversos trabalhos
4
.
A interseccionalidade como uma perspectiva para os estudos é antes “un
marco conceptual desde el cual pensar estas luchas como complementarias y
no en competición entre ellas” (RODÓ-ZÁRATE, 2021, p. 123). Recorremos, assim,
à explicação do que seria um marco teórico e um marco conceitual
oportunamente em outro campo de estudos. Carraro busca no campo da
enfermagem as definições de marco conceitual para organização e
sistematização das práticas e investigação. Sendo assim, define que o marco
conceitual é “uma construção mental logicamente organizada, que serve para
dirigir o processo de investigação e da ação” (CARRARO, 1998, p. 106), ou ainda,
“conjunto de conceitos e proposições abstratas e gerais, intimamente
relacionadas”. Diferindo-se, portanto, de um marco teórico, qual seria mais
amplo, este seria uma teoria ou um grupo de teorias que propõe uma matriz
de conceitos para o foco das investigações (ibidem).
Propomos aqui neste ensaio capturar nas teorizações
anarco(trans)feministas outros matizes da interseccionalidade que sirvam para
fazermos geografias (críticas ) decoloniais e feministas. Para atingir tal captura
se fará preciso: a) constituir um solo teórico anarquista, e, especificamente em
autorias anarco(trans)feministas sobre a interseccionalidade; b) evidenciar o
corpo e a corporeidade como categoria geográfica privilegiada no âmbito
deste trabalho, e, discuti-las nas Geografias (críticas
5
) decoloniais e feministas,
em autoras/es como Joseli Silva (2013), Alex Ratts (2016) e de Milton Santos
(1996). Haja visto a interseccionalidade ser um marco conceitual que direciona
os processos de investigação e ação, elegemos o anarquismo como ideologia
e corpo e corporeidade como categorias geográficas para nossa discussão.
A despeito de como desenhamos este texto, é em uma metodologia
cartográfica (em que o adjetivo reforça o caráter processual da escrita e
4
Ver, por exemplo, no conjunto de trabalhos de Lélia Gonzalez reunidos no livro Por um feminismo afro-
latino-americano (2020). Inclusive, Angela Davis em um congresso no Brasil questionou a tamanha
popularidade dela própria nacionalmente, sendo ela afro-estadunidense, enquanto nós tínhamos os
estudos e pesquisas produzidas por Lélia.
5
No vídeo “Geografias Críticas” da websérie Conceitos em Película do PET Geografia UFF, o Professor
Doutor Sergio Nunes afirma que a corrente da Geografia Crítica tem a partir do final dos anos 1980 uma
pulverização de suas correntes, configurando então as Geografias Críticas, no plural. Disponível em:
<https://youtu.be/Y6q9bRgR95c>. Acesso em: 27 maio 2022.
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conexões aqui feitas). Cássio Fernandes Lemos e Andréia Machado Oliveira
dirão que "os fluxos de ideias e pensamentos também podem ser mapeados"
(2017, p. 45), neste sentido, somos guiados e perturbados pelas várias vozes de
autoras/es que aqui ecoam, ensaiamos construir traços e esboços entre a(s)
Geografia(s) do corpo e o anarquismo.
Alertamos, fundamentados na metodologia cartográfica, que “ao
investigar um objeto de estudo amplo, aberto, irrigado de subjetividade”
(LEMOS; OLIVEIRA, 2017, p. 49) tal qual os apresentados aqui:
interseccionalidades (na perspectiva anarquista), o corpo e corporeidade nas
Geografias, e decolonização dessas categorias em Viviane Vergueiro (2018) - “o
pesquisador pode seguir de maneira não-linear a sua verificação” (LEMOS;
OLIVEIRA, 2017, p. 49). Portanto, neste ensaio o processo tenderá a se desdobrar
e assumir “dimensões que levam a pesquisa para novos lugares” (ibidem).
Desse modo, ensejamos contribuir com o debate em voga do corpo na
constelação de conceitos da Geografia (HAESBAERT, 2014), insistindo na
virtuosa renovação somática das reflexões geográficas. Estamos convencidos
de que fazer uma Geografia interseccional se aproxima da proposta de se
pensar as multiterritorialidades do professor Rogério Haesbaert (2007),
discutiremos isso no decorrer do texto.
Assim, como na constelação de conceitos de Rogério Haesbaert (2014)
conferindo a centralidade solar do ‘espaço’ na Geografia, inserimos o corpo e a
corporeidade neste quadro, sustentados pelas geografias feministas. Além
disso, ao falar de corpo e corporeidade indiscutivelmente retomamos a
interseccionalizar, já que os corpos serão apropriados e dotados de significado
de diferentes formas, conforme diferentes contextos sociais. E, por dizer corpo
(e não ‘o homem’ ou ‘a humanidade’), fazemos o movimento de requalificá-lo
perante as identidades e identificações
6
forjadas historicamente que hão de
significá-los socialmente.
6
Falamos de identidade/identificação fazendo jus ao caráter processual e relacional do reconhecimento
(autônomo e heterônomo) dos sujeitos, contrapondo com a ideia de que a identidade seria imutável ou
(auto-)evidente. Aqui fomos influenciados por Silvia Cusicanqui, quem utiliza
identificación
, para enfatizar
o movimento de se precisar “com o que(m) nos identificamos?”. Assim,
‘identificarse es un proceso, en
cambio identidad es como una camiseta o un tatuaje que uno no se lo puede quitar’. A lo largo de la vida
estamos atravesados por diferentes identificaciones, algunas más fuertes que otras. En relación a los dos
conceptos, Rivera Cusicanqui se ‘identifica’ como una ‘mestiza que busca una descolonización de su propia
subjetividad’.” (Cusicanqui, 2016).
Disponível em:
<http://anarquiacoronada.blogspot.com/2016/09/entrevista-silvia-rivera-cusicanqui.html>. Acesso em:
30 maio 2022.
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Compreendemos que a interseccionalidade enquanto marco conceitual
e proposta política, tem um potencial em desvelar marcadores sociais
sobrepujados, garantindo singularidade para a pluralidade de existências de
sujeitos, estes, por sua vez, coletivizados
7
em identidades/identificações.
Este texto-ensaio se estrutura em dois momentos. Na primeira e segunda
seções, indicamos algumas noções anarquistas a respeito da abordagem
interseccional, capturando em textos de anarco(trans)feministas. No segundo
momento, entramos no debate do corpo e corporeidades desde a colonialidade
do poder, reunindo autores das Geografias Feministas com autoras/es da
decolonialidade, e aqueles/as na intersecção entre as duas correntes. Para
discutir a interseccionalidade com maior propriedade, neste texto assentamos
a discussão entorno de nossa própria intersecção enquanto corp(a)
trans
danger
8
, por isso, recorremos à cisgeneridade enquanto possibilidade
decolonial (VERGUEIRO, 2018). O interesse de nossa discussão reside em como
tanto as abordagens interseccionais e as ideias anarquistas podem contribuir
para as (G)geografias que se movimentam com propostas políticas e críticas
comprometidas com a complexidade da realidade social.
Iniciando os traçados: anarquismo e interseccionalidade
Recorremos a alguns textos de pessoas que teorizam o anarquismo e se
entendem enquanto tais para entender a proposta da interseccionalidade sob
a ótica da teoria anarquista. Cabe, antes, uma explanação de como neste texto
entendemos por anarquismo. O anarquismo trata-se de uma ideologia
orientada por um horizonte de autonomia, acreditando que liberdade é
indivisível, portanto, se você não é livre, tampouco sou eu.
O anarquismo se desenvolve através das revoltas contra as injustiças
sociais (MALATESTA, 2009). Existem diversas correntes anarquistas quanto
existem culturas e grupos atuantes. O anarquista negro Lorenzo Kom’boa Ervin
define que “o Anarquismo é uma forma de Socialismo sem governo” (ERVIN,
2015, p. 122).
7
Entendemos a coletividade como uma forma de afeição de vera semelhança entre sujeitos, em que as
similares experiências sociais formam conscientes (ou não) vínculos políticos, culturais e econômicos.
8
Conceito capturado da Dodi Leal, no curta ‘Tenho receio de teorias que não dançam’ (dir. Gau Saraiva).
Assistido em: <https://mostratiradentes.com.br/filme/tenho-receio-de-teorias-que-nao-dancam/>.
Acesso em: 24 jan. 2022.
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A Federação Anarquista do Rio de Janeiro (FARJ) entende o anarquismo
como “um conjunto de ideias, motivações, aspirações, valores, estrutura ou
sistema de conceitos que possuem uma conexão direta com a ação”
(FEDERAÇÃO ANARQUISTA DO RIO DE JANEIRO, 2008, p. 8 [mantida a grafia]).
a anarquia, em seus termos, é a derrubada de organismos autoritários que
se imponham sobre a vida e modos de existência, entendendo que a autoridade
não é uma prerrogativa para formas de organização social. As formas de
organização da vida na ideologia anarquista estariam abertas às associações
livres e à capacidade de agência no seio das próprias coletividades, forjadas e
pautadas pela solidariedade e apoio mútuo entre os sujeitos.
Entendemos o anarquismo como uma ideologia que fornece
orientação para a ação no sentido de substituir o capitalismo, o Estado
e suas instituições, pelo socialismo libertário sistema baseado na
autogestão e no federalismo , sem quaisquer pretensões científicas
ou proféticas. (FEDERAÇÃO ANARQUISTA DO RIO DE JANEIRO, 2008,
p. 8)
Mas, queremos saber o que vem discutindo a respeito e através da
interseccionalidade, as teóricas anarquistas. Para isso, buscamos no arquivo
Biblioteca Anarquista Lusófona
9
textos sobre intereseccionalidade de
anarco(trans)feministas
10
, isto é, de autores/as que tenham considerado a
desenssencialização do feminismo e desnaturalização da binariedade do
gênero, considerando, portanto, as existências e experiências de corpos de
pessoas trans e travestis. Selecionamos três textos disponíveis no site da
Biblioteca Anarquista:
queer
no Brasil resistência e empoderamento na
(re/a)presentação de si”, de Claudia Mayer; “Recusando-se a esperar
Anarquismo e Interseccionalidade”, de Deric Shannon e J. Rogue; e “Uma leitura
anarquista da interseccionalidade”, de Coletivo Planètes.
Na pesquisa, terminamos por estender a discussão a leituras
complementares também realizadas no cartografar virtual, tendo apoiado as
9
Disponível em: <https://bibliotecaanarquista.org/special/index>. Acesso em: 13 out. 2021.
10
Para compreensão do transfeminismo indicamos a leitura do Manifesto Transfeminista de Emi Koyama,
traduzido para o português e com notas da autora muito interessantes que apontam para o movimento
de estar sempre revisitando nossas antigas noções, assumindo a contingência das nossas reflexões
políticas, tendo a honestidade de bancar as transformações sociais e particulares do pensamento, para
que ele se mantenha (auto) crítico. Disponível em:
<https://bookblocrda.files.wordpress.com/2014/06/manifesto-transfeminista.pdf>. Acesso em: 15 mar.
2022.
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reflexões em mais três textos: “Insurreições nas intersecções: feminismo,
interseccionalidade e anarquismo”, de J. Rogue e Abbey Volcano, traduzido
para o português e disponível no blog Não Me Kahlo; “Desessencialização do
feminismo anarquista: lições do movimento transfeminista”, por J. Rogue,
traduzido para o português e disponibilizado no site do Instituto de Estudos
Libertários; e “Corpos no plural: rumo a um manifesto anarcofeminista”, de
Chiara Bottici, este último traduzido e publicado pela Psicologia em Revista.
Notas do cartógrafo: as interseccionalidades anarquizadas
Como mencionado anteriormente, a seleção de textos sobre
intereseccionalidade anarquistas parte desde posicionamentos
anarco(trans)feministas. Ou seja, partimos de autores/as que tenham
considerado a desessencialização do feminismo e desnaturalização da
binariedade do gênero, considerando, portanto, as existências e experiências
de corpos de pessoas trans e travestis.
A crítica anarco(trans)feminista de J. Rogue (2021 [2012]), por exemplo,
defende em crítica as correntes do feminismo marxista que, ao definirem uma
batalha primária ao capitalismo, terminaria assim por desconsiderar as
multitudes de mulheridades, feminilidades interseccionadas, e (re)formuladas
por outros sistemas de opressão, como a branquitude e a
(cis)heteronormatividade. Assim, a autora aponta que "utilizando um enfoque
interseccional para analisar e organizar em torno à opressão, como defendido
pelo feminismo multirracial e pelo transfeminismo, podemos discutir estas
diferenças em lugar de descartá-las" (ROGUE, 2021 [2012], s.p.). Neste sentido,
ao propor uma desessencialização do feminismo anarquista, J. Rogue
complexifica a ótica feminista e a luta do movimento, ao passo que com
clareza indica caminhos, em um jogo de luz e contraluz (que é de todo
indispensável).
Contrapondo o anarquismo às concepções marxistas da opressão, o
Coletivo Planètes dirá que anarquistas no século XIX enxergavam que “a
opressão fluía não somente do controle dos meios de produção, mas também
do controle dos meios de coerção física em outras palavras, o
Estado era um
centro de poder cujos interesses não eram totalmente redutíveis àqueles do
‘capital’” (COLETIVO PLANÈTES, 2019, s.p.).
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Enquanto isso, em “Recusando-se a esperar”, Shanonn e Rogue (2009) se
concentram em dissecar os aparelhos opressivos do Estado, se aproximando
das análises foucaultianas da biopolítica enquanto gestão da vida centrada no
corpo para o controle de fenômenos sociais (natalidade, mortalidade,
morbidade etc). Elas apontam que práticas contra hierarquização e dominação
que pouco refletem a respeito dos atravessamentos de múltiplos marcadores
da diferença, quando as lutas sociais se concentram em apenas uma categoria
‘essencial’, “tende[m] a refletir os interesses dos membros mais privilegiados de
uma categoria social” (SHANONN; ROGUE, 2009, p. 11). Elus
11
encerram o texto
fazendo um clamado:
(...) é de nossa esperança que mais pessoas de grupos marginalizados
recusem-se a esperar, assim é que reconhecemos o valor de todas as
lutas contra a injustiça e a hierarquia no aqui e agora e que nós
construamos uma prática reflexiva baseada na solidariedade e [apoio]
mútuo ao invés de prescrições divisivas sobre quais lutas são
“primárias” e quais, por extensão, são “secundárias” ou “periféricas”.
Antes, elas estão todas relacionadas e nós temos boa razão para nos
recusar a esperar até depois “da revolução” para que possamos
consigná-las. (SHANON; ROGUE, 2009, p. 16)
Portanto, quando clamam por um olhar interseccional,
anarco(trans)feministas estão despontando acusações sobre as relações de
poder gerem um todo social, não a despeito das identidades em si, coisificadas.
Trata-se do uso da interseccionalidade para compreensão de uma forma
(social) de vida que regula e normatiza corpos de um modo hierárquico e
desvantajoso. Assim, desvelam que através das identificações dos marcadores
sociais da diferença, organizam-se as opressões. E, com isso, não deixam de
apontar também para uma solidariedade entre sujeitos-coletivizados em
situações de desvantagem nas relações de poder, isto é, de solidariedade entre
as lutas.
Trata-se, portanto, de “mover as margens para o centro das nossas
análises para evitar as propensões do privilégio que têm historicamente levado
a tantas divisões”, escapando do desnecessário ‘ranqueamento’ de opressões
(SHANONN; ROGUE, 2009, p. 11). Ainda assim, reconhecer as múltiplas fontes de
coerção também não se trata, como observa o Coletivo Planètes (2019, p. 9), de
‘horizontalizar’ todas as ‘fontes’ de opressão.
11
Aqui preferiu-se usar o pronome neutro visto que ambas autorias têm relações com o queer.
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Neste sentido, duas críticas comuns encontradas nesses escritos
anarquistas: 1) crítica ao que seria um uso liberal das interseccionalidades; e, 2)
a clareza de que classe’ não é uma categoria de análise interseccional como as
demais (racialidade, gênero, sexualidade etc), e, portanto, o termo classismo’
cairia em um vazio explanatório, visto que não explicaria a fonte da exploração.
Assim, “porque essas ‘identidades’ são definidas por exclusão e por
opressão, se assumirmos que a classe social é uma identidade, precisamos
defini-la também por exclusão e opressão, e a experiência da classe fica
reduzida ao “classismo” (COLETIVO PLANÈTES, 2019, p. 11). Isso fica evidente na
passagem:
(...) reduzir a classe a uma relação de opressão econômica pela
pobreza é reduzir a vida econômica ao consumo. Nada surpreendente
se considerarmos a “utopia” (distopia?) da “inclusão pelo consumo”.
No entanto, se reduzirmos classe a pobreza, o conceito de classe
perde sua relação com a exploração, a produção de mais-valia e a
sobrevalorização do capital (...) (COLETIVO PLANÈTES, 2019, p. 11)
Estas intersecções dos marcadores sociais da diferença estão, portanto,
lugarizadas nos corpos
12
, e, não organizam as relações hierárquicas de poder
entre sujeitos, como operam sobre a distribuição de violências, desejos,
condições (possíveis) de existência. Neste sentido, “processos marginalizatórios
se cruzam, formando intersecções isto é, no encontro entre dois eixos de
marginalização, por exemplo ‘gênero’ e ‘raça’ existe um local de encontro sobre
o qual muitas vezes não se fala” (MAYER, 2019, p. 2).
A interseccionalidade proposta por J. Rogue e Abbey Volcano visa
“entender como a vida cotidiana das pessoas pode ser usada para falar sobre
as formas em que estruturas e instituições se interseccionam e interagem”
(ROGUE; VOLCANO, 2016 [2012], s.p.). Ou seja, elas frisam o cerne da
interseccionalidade para a análise de sistemas e instituições, e alertam para a
tendência de se utilizar a interseccionalidade com enfoques individualizantes.
Nesta esteira, por isso a preocupação em afirmar os sujeitos-coletivizados. Em
seu entendimento anarquista, “a gama de relações sociais arranjadas por
hierarquias são singulares em sua própria forma”, e esse olhar é posicionado
comprometido em “apontar [as] qualidades únicas” das singularidades
12
“Meu corpo é o contrário de uma utopia, é o que jamais se encontra sob outro céu, lugar absoluto, pequeno
fragmento de espaço com o qual, no sentido estrito, faço corpo.” (FOUCAULT, 2013, p. 7)
AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
ROCHA, Laís Bronzi. APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS: anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade
em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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conferidas aos sujeitos-coletivizados “ao invés de nivelar todas essas relações
sociais no mesmo quadro” (ibidem).
Para estas autoras, devem ser empreendidos esforços no sentido de
desvelar as similaridades de diferentes sistemas de opressão, como a
branquitude ou (cis)heteronormatividade, e, dessa forma, a compreender como
atuam para (re)formular opressões umas às outras. Por exemplo, como atua a
(cis)heteronormatividade em contextos e situações racializadas?
O olhar anarquista de J. Rogue e Abbey Volcano mira no Estado, e afirma
que este enquanto instituição “sempre teve um interesse velado em manter
controle sobre a reprodução social e, em particular, nas formas pelas quais os
povos colonizados se reproduziam ou não” (2016 [2012], s.p.). Mas, esta
discussão travaremos na próxima seção. É relevante, por fim, dar cabo de que
a interseccionalidade na perspectiva anarquista destas autoras
não centraliza nenhuma estrutura ou instituição acima da outra,
exceto por contexto. Essas estruturas e instituições operam para
(re)produzir umas às outras. Elas são uma a outra. Vistas dessa forma,
uma estrutura opressiva ou exploradora que seja central ou primária
simplesmente não faz sentido. Pelo contrário, essas relações sociais
não podem ser separadas uma da outra e declaradas “centrais”
enquanto as outras são “periféricas”. E elas são interseccionais. (...)
(ROGUE; VOLCANO, 2016 [2012] , s.p.)
Intersecção: decolonialidade, Geografia e o corpo
Os sistemas de opressão têm ontologias
13
diferentes, portanto, as
desigualdades têm suas coordenadas configuradas de formas distintas, e no
seu entrecruzamento manifestam singularidades interseccionadas. A
complexidade da teia de interação entre diferentes sistemas de opressão, a
distribuição das desvantagens e privilégios, sobretudo no contexto latino-
americano, e brasileiro são orquestrados através da colonialidade(-
modernidade).
13
Aqui defendemos o uso do termo, mesmo compreendendo seu peso enquanto questão filosófica. A
captura da 'ontologia' se deu na reunião de 7 de outubro de 2021, no encontro do grupo de estudos
NUREG/UFF de uma fala do professor e coordenador do grupo Rogério Haesbaert. Estávamos discutindo,
justamente, a interseccionalidade em uma apresentação de um dos capítulos do livro de Maria Rodó-
Zarate (2021) conduzidos pelo autor do ensaio em tela.
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ROCHA, Laís Bronzi. APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS: anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade
em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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Entendemos a colonialidade aqui como uma ontologia dominante que
se impôs historicamente, neste contexto, sobre as outras ontologias:
(...)
a colonialidade do poder, do poder, do ser e da natureza
não é
uma forma de dominação que usa exclusivamente os meios
coercitivos para o exercício do poder; não se trata apenas de reprimir
os dominados, mas também da instituição e
naturalização
do
imaginário cultural europeu como
única forma de relacionamento
com a natureza, com o mundo social e com a própria subjetividade
.
(CRUZ, 2017, p. 16, grifos do autor)
Neste sentido, por exemplo, se tratando do caso dos estudos de gênero
e sexualidade, com o qual possuímos maior intimidade, recorremos a Viviane
Vergueiro (2018) para discutir a cisgeneridade em uma perspectiva decolonial.
A cisgeneridade, enquanto norma naturalizada socialmente, constitui-se em um
sistema de dominação que também constitui e é constituída pelo sistema
(moderno-)colonial.
Para compreender o regime
14
(cis)heteronormativo é necessário
entender o funcionamento de sua (re)produção com suas particularidades de
formação socioespacial em relação à colonização, seguida de uma
modernização distópica improvisada/imposta aos territórios e territorialidades.
Para Viviane Vergueiro, a crítica decolonial busca “utilizar categorias na
medida em que elas são úteis e potentes na produção (discursiva, material,
cultural) de resistências” (VERGUEIRO, 2018, p. 28). Neste sentido, a autora irá
questionar os cânones de uma ciência moderna altamente contaminada por
ideologias cristãs, eurocêntricas, androcêntricas etc instituída como “campo
epistemológico hegemônico” do(s) saber(es) (ibidem).
Portanto, os demais grupos produtores de saberes, feitos alheios ou
marginalizados por sujeitos-coletivizados com intersecções restritas sem
hierarquias em torno disso, mas, por exemplo, o homem cis branco
heterossexual histórica e simbolicamente representando dos valores coloniais
, para terem seus saberes ou existências, ou condições de existência
legitimados, devem também se submeter e passar pelo crivo dos cânones dessa
(também) instituição, Ciência.
14
Utilizamos o termo regime para indicar algo ou aquilo que se constitui rigidamente por regras e
restrições prescritivas.
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em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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Para recapitularmos a perspectiva anarquista e não cairmos em um
paradoxal negacionismo científico vigente, recorremos a Eliseé Reclus em um
escrito ao final do século XIX. Ele, um geógrafo, anarquista, francês, afirma que
a primeira condição de libertação é livrar-se da ignorância, no sentido de que
ao se organizar não se deve deixar passar nenhum dos recursos de que se pode
dispor, inclusive do conhecimento. Assim, apontará para a solidariedade entre
os povos, entre os oprimidos das mais variadas formas, além da chave para
anarquizarmo-nos: o horizonte da auto-emancipação. Eliseé Reclus diz que “é
portanto, a nós mesmos que incumbe libertar-nos”, e “para combater, é preciso
saber”, assim “preparar cientificamente a vitória que nos dará paz social”
(RECLUS, 2002 [1984], p. 51).
Retomando a discussão, Viviane Vergueiro parte da problematização da
cisgeneridade para uma crítica à colonialidade do poder para apontar
resistências, não à toa que o título do texto livro a que recorremos aqui é “sou
travestis”, neste sentido, “sou travestis” desvela a cisnorma
15
. Entendendo que,
como outros/as autores/as, cisgeneridade e heterossexualidade estão
entrelaçadas como parte do projeto moderno-colonial.
Viviane Vergueiro (2018), aponta, ainda, para três traços analíticos da
cisgeneridade como possibilidade para os estudos decoloniais, sendo eles: 1) a
pré-discursividade, 2) a binariedade e 3) a permanência. Aqui não nos
alongaremos na discussão desses traços analíticos, apenas usamos como
intercessores para chegar na produção social dos corpos e corporeidades, e,
assim, dos marcadores sociais da diferença.
No ponto 0: corpo e corporeidade
O corpo como vocativo de sexo, raça-etnia, gênero, é como sinônimo de
coisa que deve ser econômica-político-culturalmente normatizada, regulada,
disciplinada. Contra os imperativos ao corpo, “os estudos feministas e
queer
,
produziram um movimento de desconstrução dessa ideia, evidenciando que a
anatomia não poderia ser considerada como um destino inexorável para a
classificação de corpos” (SILVA, 2013, p. 31). Já a corporeidade emerge de
15
Cabe aqui uma definição antagônica entre cis e trans, cis quer dizer “para cá”, enquanto trans quer dizer
“para além”, assim o que estaria dentro e fora da norma de congruência (cis)genera de alinhavar genitália-
gênero, respectivamente.
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em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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(...) reflexões em torno do desmantelamento da dicotomia corpo-
mente, [que] além de possibilitar estudos sobre a representação
cultural dos corpos em diferentes contextos, também permitiu a
emergência das ideias de instabilidade e fluidez das identidades
corporais, ultrapassando a ideia de corpo, entendido tradicionalmente
como algo fixo, para a ideia de corporeidade, a fim de produzir a
perspectiva de mutabilidade e movimento. (SILVA, 2013, p. 31)
Esses movimentos do resgate do corpo, na concepção de que somos
corpo, se no interior e a partir de demandas sociais, de grupos
marginalizados que se organizam em suas coletividades movimentos
feministas, negro, feministas negras,
people of color
,
queers
, LGBTI ,
tensionando uma matriz social dominante de produção do conhecimento
supostamente ‘neutra’.
Neste sentido, compartilhamos com Silva de que “fazer ciência é também
fazer política, [e] a geografia, como todas as outras formas de aliança entre
saber e poder é um suporte epistemológico de múltiplos interesses, resultante
de poderes próprios de sujeitos, rearranjados no tempo e espaço” (SILVA, 2013,
p. 32).
Assim, aventuramo-nos a esquadrinhar uma breve noção de espaço em
Doreen Massey, havendo “a necessidade
mútua
de tempo e espaço” para a
liveliness
16
do mundo (MASSEY, 2008, p. 90). Tantos são os saberes grafados no
espaço, que assim, se faz premente direcionar os sentidos e interpretar as geo-
grafias, corpo-grafias, e suas respectivas (re)produções, para isso podemos ter
as lentes de nossa ótica geográfica sensíveis e aguçadas para fazer jus a
complexidade e dinâmica mutável do espaço.
(...) Enquanto o olhar geográfico se estenderia mais sobre o mundo
em sua coexistência ou simultaneidade (a condição de estar lado a
lado”, de conviver ou, como enfatiza Massey [2008a], de ser coetâneo),
o olhar histórico enfatizaria o caráter consecutivo ou sequencial dos
fenômenos (a condição de estar “um depois do outro”). (...)
(HAESBAERT, 2014, p. 36).
Se direcionamos em nossos processos de investig-ação
17
comprometidos com a complexidade dinâmica, fazendo jus aos
16
Traduzindo a cabo do inglês se teria a ‘vivacidade’ do espaço.
17
Justificamos a licença poética e gráfica dessa escrita na nossa atuação junto a coletivos/grupos de
pesquisaação. Também remetendo a definição de marco conceitual em Carraro, como “uma construção
mental logicamente organizada, que serve para dirigir o processo de investigação e da ação” (1998, p. 106).
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atravessamentos de diferentes estruturas de poder que incidem tanto sobre o
espaço quanto sobre os corpos, passamos a compreender que estes
movimentos são produtores de corporeidades. Assim, adentramos um campo
transdisciplinar, que não renuncia a sua geograficidade.
Os “marcadores da diferença” podem ser vistos e discutidos tendo o
corpo e a corporeidade como categorias de pensamento sociais,
espaciais e culturais, antropológicas, geográficas e históricas , (...)
agregando aspectos das ausências, presenças, barreiras, recusas,
discriminações etc. (RATTS, 2016, p. 125).
Deste modo, revisitamos a professora Heloisa Buarque de Almeida, que
esteve na mesa ‘Cidade e território a partir da interseccionalidade’ do I
Seminário Geografias desobedientes: gênero, sexualidade e racialidade. Ela nos
propõe um deslocamento: deixar de situar as desigualdades no corpo-forma,
indo além, mirando que ele é constituído e se constitui enquanto fenômeno
social, como "sub-produtos" de dilemas políticos e processos históricos, e aqui
podemos resgatar o que Joseli Silva nos falava a respeito da corporeidade de
modo a pensar a “representação cultural dos corpos em diferentes contextos”
(SILVA, 2013, p. 31). Logo,
(...) o corpo não passa de carne, se não for apropriado e significado
por uma sociedade/cultura. Nesse sentido, [se] questiona se o corpo
é uma base sólida para a inscrição do gênero e dos sistemas se
sexualidade ou se o corpo é, ele mesmo, modelado por forças políticas
para mantê-lo limitado e constituído por marcadores sexuais. (...)
(SILVA, 2013, p. 34).
Consequentemente, podemos pensar que os sistemas de
dominação/opressão ou à(s) Norma(s) que se impõem sobre as
subjetividades e corpos, como o racismo, cissexismo, heterossexualidade
compulsória, uniformização da diversidade funcional e corporal, entre outros,
‘possuem’ esses corpos, se apropriam de suas qualidades transformando-as em
propriedades, e, jurídico-politicamente quando não através da coerção física
prescrevem e inscrevem os usos e desusos.
O próprio célebre geógrafo Milton Santos falará da ideia da
corporalidade
18
, essa daria conta além das objetividades, também das
18
Neste texto ele atém corporeidade e corporalidade como sinônimos. Não entraremos nessa discussão, em
breve comentário indicamos que, para alguns autores, corporeidade e corporalidade são conceitos distintos.
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“virtualidades de educação, de riqueza, da minha capacidade de mobilidade, da
minha localidade, da minha lugaridade, dimensões que não são objetivas,
mas subjetivas” (SANTOS, 1996, p. 10). Milton Santos segue afirmando que essa
corporeidade teria a ver com a consciência ao nível da individualidade, e,
também com as relações e interações sociais, no grau de uma
transindividualidade, curioso que é justamente na seção sobre o cotidiano em
que ele faz essa reflexão, nos remetendo a proposição de corpos no plural e
transindividualidade da filósofa anarquista Chiara Bottici (2020),
(...) causalidade não deve ser entendida no sentido de uma sucessão
linear de eventos, mas sim como uma multiplicidade de conexões de
elos causais entre indivíduos, que são feitos de indivíduos mais
simples e mais complexos, todos relacionados causalmente (...) é para
traduzir essa complexidade que, segundo Balibar, a individualidade
deve ser entendida como uma transindividualidade. (BOTTICI, 2020, p.
308).
Chiara Bottici discorrendo sobre a ideia de transidividualidade e corpos
no plural em uma perspectiva anarco(trans)feminista com foco no corpo
feminino e na opressão das mulheres irá desenvolver a ideia de uma forma de
feminismo sem ascendência corroborando com isso o prefixado ‘anarco’.
Enquanto, ao mesmo passo que expressa a ascendência ao feminismo
anarquista, se questiona em como fazer esse movimento sem incorrer aos
essencialismos, transgredindo e defendendo as especificidades e
singularidades da(s) feminilidade(s) (BOTTICI, 2020, p. 305-306).
Neste sentido, reiterando Joseli Silva, de que a respeito de ter sido uma
“pretensa naturalidade captada nas características materiais dos corpos, [se]
constituiu as justificativas para a manutenção dos privilégios [d]e alguns e a
marginalização e subordinação de outros” (SILVA, 2013, p. 32). A referente
autora fala de dentro do campo dos estudos de gênero com influências pós-
estruturalistas e butlerianas
19
, neste sentido, na “concepção performativa de
gênero de uma pessoa [que] assume, se apropria e adota uma norma corporal,
não como algo à que deve se submeter, mas como um processo em que o
sujeito se constitui em virtude de passar por uma trajetória de assumir um sexo”
(SILVA, 2013, p. 34), defendendo que “o corpo não passa de carne, se não for
apropriado e significado” (ibidem), e isso é contingente.
19
Ver a autora Judith Butler em Problemas de Gênero (2003[1990]), por exemplo.
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Na noção de transindividualidade de Chiara Bottici (2020) e na noção de
corpo de Joseli Silva (2013) rezam intersecções para abertura de um feminismo,
ou mesmo sustentações teóricas para as Geografias (trans)Feministas, que se
proponha a desessencialização e desnaturalização das condições dos corpos
referindo aos três traços analíticos de Viviane Vergueiro (2018) da cisgeneridade
como possibilidade para os estudos decoloniais, sendo eles: 1) a pré-
discursividade, 2) a binariedade e 3) a permanência.
Compreende-se em uma análise pluri-sistêmica que o corpo, tido como
vocativo de sexo, raça, gênero e sexualidade, é sinônimo de coisa que deve ser
econômica-político-culturalmente normatizada, regulada, disciplinada nos
interesses de dominação, tendo fins coercitivos aos sujeitos-coletivizados. A
ideia de corporeidade, reforçando a mutabilidade e movimento de apropriação
e dotação de significado dos corpos, é oportuna para pensar que se, para
aqueles ou aquele, em termos anarquistas, o Estado que exercem a
dominação jurídico-política (aqui entendo legitimação por/através de meios
institucionais) ou através do terror/do medo, passam a “inspirar identificação
(positiva) e a efetiva apropriação” (HAESBAERT, 2007, p. 20), por outro lado, para
aqueles e aquelas que se concentram no outro pólo desse exercício (do poder),
isto é, o das resistências, criar-ão formas criativas de também se apropriar do
espaço/corpo.
A multidimensionalidade de opressões se apropriam dos corpos em suas
diferenças, e, juridicamente, legislativamente, punitivamente, disciplinarmente
tentam normatizá-los para inserir/excluir de uma economia/epistemologia
política de exploração/espoliação. Ou seja, os compreendemos, neste sentido,
o corpo como espaço apropriado e significado em relações de poder, como
corp(a)s-territórios.
Como afirma Rogério Haesbaert (2007) existe uma complexidade de
territorializações, neste sentido, múltiplas territorialidades que se interpõem,
seja por justaposição ou por sobreposição. Assim, no movimento, essa
complexa teia de territórios/territorialidades não acontece no estático e inerte,
mas inter-agem em movimento. Até mesmo porque a territorialização é um
processo. Assim, esse movimento e multiplicidade “inclui a vivência
concomitante de diversos territórios - configurando uma multiterritorialidade,
ou mesmo a construção de uma territorialização no e pelo movimento”
(HAESBAERT, 2007, p. 20).
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ROCHA, Laís Bronzi. APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS: anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade
em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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E, se o corpo se constitui como uma categoria geográfica e a
corporeidade confere qualidades mutáveis e transitórias para ele, no que
podem se transformar as geografias do corpo quando grupos oprimidos de
todos os eixos/intersecções apontam para seu caráter de território-existencial
clamando por autonomia?
Tecendo algumas considerações...
A interseccionalidade, enquanto marco conceitual, isto é, “construção
mental logicamente organizada, que serve para dirigir o processo de
investigação e da ação” (CARRARO, 1998, p. 106), põe em evidência a construção
de um espaço desigual, mas também, se considerarmos as geografias que
tratam do corpo/corporeidades, a própria produção de corpos e corporalidades
tem uma dimensão imposta pelas regulações dos territórios e do espaço.
As interseccionalidades anarquistas nos textos anarco(trans)feministas
aqui apresentados, clamam por um olhar interseccional da luta, despontando
acusações sobre as relações de poder que gerem um todo social, não a despeito
das identidades em si, coisificadas. As autorias dos textos estiveram
defendendo o uso da interseccionalidade para compreensão de uma forma
(social) de vida que regula e normatiza corpos de um modo hierárquico e
desvantajoso em suas ltiplas nuances, e acreditam que o potencial da
interseccionalidade é a partir do reconhecimento das singularidades de
sujeitos-coletivizados possam se criar horizontes de autonomia possível que
não se atropelem.
Portanto, as intersecções do que aqui chamamos, como em Ratts (2016),
de marcadores sociais da diferença estão lugarizadas nos corpos, e, não
organizam as relações hierárquicas de poder entre sujeitos, como operam sobre
a distribuição de violências, desejos, condições (possíveis) de existência.
Dessa forma, no final do texto, compreendemos o corpo como espaço
apropriado e significado em relações de poder, como corp(a)s-territórios, para
evidenciar que as relações sociais são produtoras historicamente de
identidades/identificações ou marcadores sociais da diferença dos
corpos/corporeidades interseccionalizadas , culminando na máxima de
que a multidimensionalidade de opressões se apropriam dos corpos em suas
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diferenças, geográfico-historicamente contextualizadas. Assim, por fim,
defendemos que
(...) o corpo não é algo que pertence ao ser humano, mas é o próprio
ser, que ganha existência social por meio da experiência corpórea. O
corpo é também lugar onde um ser humano desenvolve a noção de
limite com os outros seres e a forma que esse corpo se apresenta e ao
mesmo tempo é percebido pelos outros, varia de acordo com o
espaço e o tempo que o compõem. (...) (SILVA, 2013, p. 35).
Este ensaio empreendeu a partir da proposta das interseccionalidades
anarquistas, discutir algumas ideias acerca das noções de decolonialidade,
corpo e corporeidade na Geografia atrelados com as ideias da cisgeneridade
como proposta analítica para a decolonialidade em Viviane Vergueiro (2018),
enquanto trouxe provocações para pensar possibilidades inventivas de
resistências residentes nos corpos interseccionalizados e complexamente
constituídos.
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ROCHA, Laís Bronzi. APONTAMOS PARA GEOGRAFIAS INTERSECCIONAIS: anarco(trans)feminismo, corpo e corporeidade
em uma perspectiva decolonial. Ensaios de Geografia. Niterói, vol. 8, n.17, pp. 94-115, jul. 2022.
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