AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira. DO CORPO-ESPAÇO AO CORPO-TERRITÓRIO: o que a Geografia Feminista tem a dizer?. Ensaios de
Geografia. Niterói, vol. 8, n. 17, pp. 165-187, jul. 2022.
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SEÇÃO
DOSSIÊ
DO CORPO-ESPAÇO AO CORPO-TERRITÓRIO:
O que a Geografia Feminista tem a dizer?
DEL CUERPO-ESPACIO AL CUERPO-TERRITORIO:
¿qué está diciendo la Geografía Feminista?
FROM BODY-SPACE TO BODY-TERRITORY:
what does feminist geography have to say?
Victoria Ferreira Oliva
1
Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, Brasil
victoriafo@id.uff.br
Resumo
O presente artigo visa discutir sobre a renovação de conceitos e categorias centrais para a Geografia a partir de uma
perspectiva que não seja somente feminista, mas também descolonial. Para isso, foi traçado um caminho que começa
na crítica feminista à criação de um conhecimento não situado e universal. Alcança o debate sobre o corpo-espaço, que
é trabalhado como uma primeira rodada de percepção entre a relação entre corpo e espaço em uma perspectiva
1
Mestranda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense, onde é bolsista pela CAPES. Licenciada e
bacharelanda em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF - Niterói). Durante a graduação, foi bolsista
do Programa de Educação Tutorial (PET-Geografia UFF), onde participa do Núcleo de Etnografias Urbanas. Integrante
do Núcleo de Estudos sobre Território, Ações Coletivas e Justiça (NETAJ-UFF). Cursou Geografia e História em
período de Mobilidade Internacional na Universidad de Jaén, Espanha (2020.1).
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feminista. Em seguida, um “giro descolonial” é proposto, apontando para uma relação coletiva entre o corpo e o
território: o corpo-território, insígnia de feministas de base comunitária. Para isso, foi necessário realizar um denso
levantamento bibliogfico sobre os conceitos de espaço, território e sobre a escala do corpo em suas epistemes, além
das abordagens feministas, tanto as mais tradicionais, quanto as comunitárias (e outras dissidências).
Palavras-chave
Corpo; espaço; território; epistemologias feministas; corpo-território.
Abstract
The present article aims to discuss the renewal of concepts and categories central to Geography from a perspective that
is not only feminist, but also decolonial. To this end, a path was traced that begins with the feminist critique of the
creation of a non-situated and universal knowledge. It reaches the body-space debate, which is worked as a first round
of insight into the relationship between body and space from a feminist perspective. Then, a "decolonial turn" is
proposed, pointing to a collective relationship between body and territory: the body-territory, insignia of community-
based feminists. To do so, it was necessary to conduct a dense bibliographical survey on the concepts of space, territory,
and on the scale of the body in their epistemes, in addition to feminist approaches, both traditional and community-
based (and other dissidences).
Keywords
Body; space; territory; feminist epistemologies; body-territory.
Resumen
El presente artículo pretende discutir la renovación de conceptos y categorías centrales de la Geografía desde una
perspectiva no sólo feminista, sino también decolonial. Para ello, se ha trazado un camino que parte de la crítica
feminista a la creación de un conocimiento no situado y universal. Llega al debate cuerpo-espacio, que se trabaja como
una primera ronda de percepción entre la relación entre cuerpo y espacio en una perspectiva feminista. A continuación,
se propone un "giro decolonial" que apunta a una relación colectiva entre cuerpo y territorio: el cuerpo-territorio,
insignia de las feministas comunitarias. Para ello, fue necesario realizar un denso estudio bibliográfico sobre los
conceptos de espacio, territorio y sobre la escala del cuerpo en sus epistemes, además de los enfoques feministas, tanto
los más tradicionales como los comunitarios (y otras disidencias).
Palabras-clave
Cuerpo; espacio; territorio; epistemologías feministas; cuerpo-territorio.
Introdução: o caminho para pensar no feminino
O presente trabalho tem como intenção proporcionar uma reflexão sobre como a
escala do corpo vem sendo trabalhada na ciência geográfica, sobretudo a partir das
contribuições das epistemologias feministas e descoloniais. Levando em consideração
uma leitura da Geografia que seja situada a partir de corpos femininos, as análises
bibliográficas realizadas durante a etapa de pesquisa ofereceram um certo padrão: o corpo
entra no debate geográfico sendo articulado com a categoria de espaço, análise
fundamentada, sobretudo, por geógrafas anglo-saxônicas
2
. Por sua vez, na América
2
Nesse contexto, destacam-se autoras como Linda McDowell e Doreen Massey.
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Latina, o debate sobre o corpo vem sendo articulado com as reivindicações pela defesa
de territórios, e, por isso, o conceito de território é fundamental para essa vertente.
Dessa forma, conceitos e categorias fundamentais da Geografia foram
mobilizados para dar origem a esse artigo. Porém, antes de começar a aprofundar o
debate, algumas hipóteses devem ser pontuadas: I) existe uma epistemologia por trás dos
conceitos. O conceito, ao longo da história de sua episteme, já foi considerado desde um
ponto de vista empirista ou seja, o conceito como um retrato fiel da realidade até
um ponto de vista mais idealista, que considera o conceito um produto da nossa
capacidade reflexiva. Sobre esse debate, compartilho do ponto de vista de Haesbaert
(2014), que considera que o conceito reapresenta a vida, a sintetiza e a recria sobre novas
bases.
Por isso, II) os conceitos nascem a partir de problematizações e da elaboração de
questionamentos. Porém, como o autor (HAESBAERT, 2014) sinaliza, a percepção, a
reflexão e a constituição de um problema são sempre geo-historicamente situadas. Não é,
portanto, um sujeito abstrato, a-histórico e a-geográfico que formula as questões que
criam e recriam os conceitos. Na verdade, são sujeitos situados, localizados espacial e
temporalmente e com marcadores específicos em seus corpos. Sendo assim, os conceitos
são fruto de sujeitos distintos e, em consequência, têm um caráter mutável ao longo de
sua história.
Isso nos leva ao terceiro pressuposto: III) essa propriedade de mutação dos
conceitos é a matéria-prima das ciências, inclusive da Geografia. A epistemologia da
ciência geográfica é fundamentada sob um sistema de conceitos e um permanente retorno
crítico a cada um deles. Dessa forma, até esse ponto, podemos inferir que os sujeitos,
situados em seus contextos, se indagam sobre algum conceito e o atualizam a partir de
um novo ponto de vista.
A perspectiva adotada nesta pesquisa é a do corpo feminino. Segundo as
epistemólogas feministas, como Donna Haraway e Joseli Silva, as categorias e os
conceitos que regem as ciências não são de gênero neutro. Pelo contrário, essa é uma
estratégia concebida para construir uma pretensa objetividade não-situada que possa se
reivindicar como universal. Como afirma Rose (1993), a gênese do pensamento moderno
está no racionalismo, que define a razão como um conhecimento que independe da
posição social do indivíduo que o produz. Esse processo é caracterizado por Le Doeuff
(1991) como uma exaustividade das reivindicações masculinas ao conhecimento, que
identificou a racionalidade com a masculinidade e a feminilidade com o Outro, o não
racional.
Assim sendo, o pressuposto IV) é que, em linhas gerais, o conhecimento que
interiorizamos como universal é concebido a partir do lugar que um homem, branco,
heterossexual e cisgênero ocupa na sociedade. O mesmo se aplica para a Geografia, como
Rose (1993) pontua. Com isso, temos o pressuposto V) nosso campo científico foi criado
e sustentado por homens que olhavam o mundo de forma não-problematizada. Haraway
(1988), sobre o tema, afirma que o conhecimento de um ponto de vista não situado é
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distorcido e irracional. Para a autora, a única posição onde a objetividade não pode
possivelmente ser praticada é através do ponto de vista do master, como é colocado pela
autora (1988). A história do nosso conhecimento científico, portanto, é marcada por essa
suposta objetividade ao ser desenvolvida a partir da posição de um sujeito masculino na
sociedade.
Até mesmo porque, como afirma Rose (1993),na década de 1970 passou a se
tornar aceitável cunhar um pensamento geográfico no feminino dentro dos parâmetros da
Geografia. Ou seja, pensar no feminino não era bem aceito dentro da academia (e ainda
não é totalmente). O ônus da produção dessa geografia masculinista, nos termos de Le
Douff (1991), é o apagamento ativo da existência e as preocupações das mulheres,
inclusive em termos espaciais.
É por isso que um grupo de geógrafas feministas vem deslocando o foco de suas
pesquisas da esfera da produção, que geralmente é trabalhada pela Geografia, para a
esfera da reprodução social. Rose (1993) afirma que a interconexão existente entre as
duas esferas torna essa articulação central para elaboração de uma Geografia plenamente
humana, que reconhece as mulheres como sujeitos sociais. Isto posto, pode-se dizer que
o pressuposto VI) é que essa pesquisa se centra na reprodução social da vida.
O sétimo e último pressuposto: as pensadoras e geógrafas feministas contribuíram
muito para o debate que está sendo tecido neste trabalho. Entretanto, o pensamento
situado (HARAWAY, 1988) e/ou o lócus de enunciação (GROSFOGUEL, 2009) das
autoras que mobilizaram o corpo para pensar o espaço, é em termos gerais do Norte
global. Trata-se da experiência de mulheres que são marginalizadas pelo sistema de
hierarquias do pensamento racional, mas que não são implicadas diretamente pelo sistema
moderno-colonial. Diante disso, não basta a epistemologia ser feminista. Os estudos
feministas dentro da Geografia também devem mobilizar uma crítica epistemológica ao
sistema-mundo patriarcal, colonial e moderno.
Nesse sentido, alguns questionamentos fundamentais foram tecidos por Heloisa
Buarque de Hollanda (2020) para alargar o cânone do pensamento ocidental:
Como construir um feminismo sem levar em consideração as
epistemologias originárias? Sem absorver as gramáticas de lutas e os levantes
emancipatórios que acompanham nossas histórias? Como podemos
reconsiderar as fontes e conceitos do feminismo ocidental? Uma nova história,
novas solidariedades, novos territórios epistêmicos impõem urgência em ser
sonhados. (HOLLANDA, 2020, n.p.).
Essas provocações, quando trazidas para o campo da Geografia, podem se
transformar nos seguintes questionamentos: como podemos reconsiderar as fontes da
ciência geográfica a partir da experiência das mulheres latino-americanas? De que forma
é possível feminizar e descolonizar as categorias e conceitos que fundamentam as teorias
do nosso campo? As análises realizadas nas seções seguintes são alguns levantamentos e
sínteses de uma pesquisa ainda em curso que pretende encontrar algumas pistas para essas
indagações.
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Para isso, esse artigo busca compreender, inicialmente, como o corpo é
tradicionalmente trabalhado na Geografia. A hipótese é a seguinte: através do estudo de
escalas, como em Neil Smith (2000) e/ou através das influências da fenomenologia de
Merleau-Ponty. Há ainda as contribuições ainda pouco exploradas, segundo Silva, Ornat
e Junior (2019) da concepção de corporeidade em Lefebvre. Em sequência, o corpo-
espaço é debatido através de uma dedução básica, que recentemente foi formulada de
maneira muito cristalina, em aula, pelo professor Carlos Walter Porto-Gonçalves: do
espaço não dá para tirar o corpo fora. Sendo assim, se faz necessário mostrar como essa
relação foi tecida pelas geografias feministas, queer, a Nova Geografia Cultural e a
fenomenologia. Nesse caso, as abordagens investigadas são produzidas por geógrafas
feministas de matriz anglo-saxônica, como Linda McDowell e Doreen Massey.
No entanto, como não basta pensar no feminino, o debate sobre o corpo-território
é apresentado, mostrando o potencial geográfico desse conceito que nasceu no seio das
lutas de mulheres originárias e camponesas e depois ingressou no mundo acadêmico.
Dessa forma, a partir da experiência situada dessas mulheres latino-americanas, podemos
dar novas camadas ao conceito de território, tendo em vista a construção de uma
Geografia feminista e descolonial.
Mobilizando o conceito de escala para trabalhar o corpo
A escala do corpo não vem sendo tradicionalmente mobilizada pela Geografia,
sobretudo porque a corporeidade ainda é encarada a partir de certo estranhamento e
associada à filosofia, antropologia, psicologia e demais áreas das ciências humanas.
Contraditoriamente, essa escala é essencial para o conhecimento geográfico posto que é
a partir desse recorte que o sujeito é colocado no centro da reprodução espacial, na
cocriação entre o espaço e a sociedade.
É importante inferirmos que, quando falamos sobre sociedade, não estamos
falando de um bloco homogêneo, abstrato e universal, que produz um espaço (também
abstrato e universal). O significado de sociedade é, segundo o Dicionário Escolar da
Língua Portuguesa (2006, p. 731), um conjunto heterogêneo de indivíduos (de ambos ou
sexos e idades) que possuem um contrato consensual para serem capazes de realizar ações
conjuntas e cumprir com objetivos em comum. Ou seja, vários corpos são requeridos para
formar uma sociedade e cada um desses corpos apresenta uma espacialidade pessoal e
significa o mundo à sua própria maneira. Geo-grafar sem corpo, então, é desumanizar os
espaços.
Tendo isso em vista, um breve debate sobre escalas deve ser construído. Por quê?
Primeiro porque a escala é uma ferramenta teórico-metodológica. Portanto, ela é
responsável pela estratégia de recorte intelectual que responde a um “por quê?”
(desenvolve a teoria) e a um “como?” (elabora o método). Além disso, a escala tem um
componente de poder, como afirma Smith (2000). Isso quer dizer que a escala é produzida
através das atividades sociais e que a política funciona também enquanto um operador de
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escalas. Quando percebemos, portanto, esse componente das escalas, podemos notar que
o desinteresse pela escala também é, até certo ponto, político.
Smith (2000) é um dos geógrafos que afirma a importância de se analisar a
Geografia mediante a escala do corpo. Para o autor, o corpo é o local físico da identidade
pessoal, que é socialmente construída. Ele também considera que o corpo marca a
fronteira entre o Eu e o Outro, o que envolve a criação de um “espaço pessoal”, além de
uma limitação física definida fisiologicamente esse aspecto também é mobilizado pelas
feministas de base comunitária, que consideram o seu corpo o seu primeiro território, uma
fronteira inicial entre o Eu e o Outro.
Além disso, para Smith (2000), o cuidado com o corpo, o acesso físico ao” e
“pelo” corpo, e o controle sobre o corpo são as vias centrais da contestação da escala
corporal. Esse apontamento, por sua vez, é influenciado pela obra de Foucault, que é um
dos grandes filósofos que subsidiam o debate sobre o corpo na ciência geográfica.
Foucault (1984) compreende o corpo enquanto a superfície de inscrição dos
acontecimentos, sendo marcado por elementos práticos e discursivos através de
dispositivos de controle como a cultura, os costumes e a política de determinado espaço-
tempo.
Smith (2000) também considera temáticas como políticas de escalas e o salto de
escalas. A segunda diz respeito a estratégia política de burlar a estrutura (hierarquizada e
congelada) de escalas para que os grupos em desvantagem em uma escala possam atingir
os seus objetivos recorrendo a atores ou instituições em escalas diferentes. O próprio
slogan feminista “o pessoal é político”, das décadas de 1960/1970, é um grande exemplo
da conexão direta entre a experiência pessoal e as estruturas sociais e políticas em escala
maior. Esse slogan enfatiza a necessidade de pensar politicamente a experiência pessoal
(ou seja, corporal). Nesse sentido, Rich (1984) afirma que
Os corpos são atravessados por poderes de outras escalas como as políticas de
maternidade, do aborto, da heterossexualidade compulsória, da política do
estupro, da esterilização forçada, da política do racismo e assim por diante. A
reivindicação do direito sobre o corpo faz dele um espaço de luta social. O
corpo é uma escala espacial ativamente produzida “em” e “através” das
relações de interação espaciais (RICH, 1994 apud SILVA, 2020, p. 106).
Isso significa dizer que os corpos são “geopoliticamente localizados, na medida
que uma mesma característica pode ganhar um sentido diferente, dependendo de sua
localização e, portanto, das relações escalares” (SILVA, 2020, p. 105). Essas
características são atribuídas aos corpos através de discursos e classificações que são
anteriores aos corpos (BUTLER, 2002) e fazem parte de um jogo de forças que
constituem o saber e o poder sob as marcas físicas dos corpos, suas significações e
sentidos (SILVA, 2020). De forma similar, o espaço e o território também são produzidos
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mediante a todo esse jogo de forças e significações
3
. Tanto o corpo, quanto o espaço, são,
portanto, materialidades construídas pelo discurso (e esse discurso é situado).
Isso nos permite inferir que os marcadores sociais são munidos de espacialidade.
Essas classificações sociais imprimem limites à mobilidade espacial dos corpos.
Inclusive, talvez a mobilidade seja o aspecto mais inteligível para associar corpos e
Geografia: lugares onde os atributos do nosso corpo nos mobilizam; lugares onde
os atributos do nosso corpo nos imobilizam
4
. Isso faz com que, segundo Quijano (2010),
os corpos sejam o nível decisivo nas relações de poder e, em consequência, são também
uma arena de luta política.
Sobre essa articulação entre corpos, escalas e política, chamo atenção também
para as contribuições de Gago (2019). Em A Potência Feminista (GAGO, 2019), a
cientista social aborda o internacionalismo que vem ganhando força no movimento
feminista, fazendo com que ele, de fato, salte escalas. Para Gago (2019), o
internacionalismo chega a desafiar a imaginação geográfica, pois exige a organização de
alianças desde lutas específicas territorializadas que se vinculam, acumulando força em
comum para potencializar-se.
A autora (2019) se questiona sobre quais são os territórios desse
internacionalismo. A resposta encontrada por ela é que são os territórios domésticos, os
territórios indígenas e comunitários e os territórios da precarização. É a partir dos
territórios domésticos que se mobiliza a escala da casa, que geralmente é encarada como
um espaço privado. Porém, esses territórios “conectam as cadeias globais de cuidado, e
onde se discutem os modos de invisibilização que faz com que o trabalho reprodutivo
assuma o custo do ajuste” (GAGO, 2019, p. 221).
Os territórios indígenas e comunitários, por sua vez, tratam de espaços de aliança
onde se denunciam os megaprojetos neoextrativistas e o agronegócio. São os territórios
responsáveis pela apropriação prático-política do conceito de território e pela gênese do
corpo-território enquanto categoria de denúncia e reivindicação. A partir desses
territórios, nesse sentido, “se desenha um diagrama global das dinâmicas extrativistas do
capital às quais se opõem alianças, lutas e redes para resistir a esses avanços neocoloniais
e expulsá-los” (GAGO, 2019, p. 222).
Por fim, os territórios de precarização são hoje relacionados com as novas
dinâmicas de trabalho que se intensificam atualmente. Trata-se dos trabalhos que são
menos reconhecidos globalmente e, por isso, mais explorados e submetidos a expressiva
precarização, sobretudo devido ao desmonte de políticas públicas. Por isso, surgem
“novas dinâmicas sindicais, de acampamentos e ocupações nas oficinas, nas fábricas e
3
Nesse sentido, há uma importante contribuição de Silva, Ornat e Junior (2019) acerca da corporeidade em
The Production of Space ([1974] 1991) de Henri Lefebvre. Os autores chamam atenção para o debate da
corporeidade na filosofia lefebvriana. O autor afirmava que os corpos, justamente por apropriarem-se do
espaço e o significarem, resistem a uniformização do espaço abstrato, promovendo um espaço diferencial.
4
Trata-se de atributos como cor de pele, genitália, opção sexual.
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nas plataformas virtuais, de reivindicações criativas e de denúncias” (GAGO, 2019, p.
222) que explicitam a violenta precarização que parte cada vez maior dos trabalhadores
são submetidos sob efeito do neoliberalismo.
Dessa forma, pode-se afirmar que a autora (2019) nos forneceu um sólido exemplo
para compreendermos como a Geografia pode operacionalizar as escalas para trabalhar
com o corpo. A escala da casa, dos territórios indígenas e comunitários e dos corpos são
potencializados ao unir-se. Um grande exemplo de Verônica Gago (2019) são as greves
e manifestações feministas de 18 de março de 2018, que ganharam força no panorama
internacional. Para ela, esse transnacionalismo qualifica cada situação concreta, sem que
ela tenha que abandonar a sua raiz. Por isso, a articulação entre corpos femininos em
condições de existência tão distintas ao invés de inviabilizar o movimento , torna
possível o salto de escalas, ao acumular força comum.
Do espaço ao corpo: o corpo-espaço
A provocação feita pelo professor Carlos Walter Porto-Gonçalves em sala de aula,
que foi citada na introdução, explicita de forma bem clara e inteligível a relação entre
corpo e espo: do espaço, não dá pra tirar o corpo fora. A articulação entre o corpo e o
espaço na Geografia nasce desse pressuposto inicial, a relação direta entre a materialidade
do corpo e a inerência do espaço: o corpo é espaço e o corpo ocupa espaço (JONHSTON;
LONGHURST, 2010).
Porém, antes de aprofundar essa relação, é necessário esclarecer qual abordagem
sobre o espaço é adotada nesta pesquisa. É a partir dos aportes teóricos de Dooren Massey,
geógrafa britânica feminista e marxista, que esse debate é subsidiado. A geógrafa, não
raramente, chamava atenção para como a globalização, as redes, fronteiras e a
transnacionalidade despertavam interesse das demais ciências sociais e da arte para o
conceito de espaço. Trata-se do que conhecemos na geografia como o giro espacial,
quando a abordagem espacial e o conceito de espaço passaram a ser valorizados depois
de tanto tempo de subordinação a incorporeidade do tempo.
A problemática que permaneceu é que o espaço muitas vezes foi e é associado a
uma materialidade não problematizada. Massey, em seu livro For Space (2005), usa os
mapas como um dos exemplos que fazem com que os sujeitos concebam o espaço
enquanto uma extensão, uma superfície material. Essa percepção, entretanto, torna o
espaço um dado fixo, sem considerar sua densidade.
Por isso, Massey (2005) passa a defender que o espaço comporta uma grande
complexidade. Por exemplo, ela acredita que quando estamos viajando de trem, não
estamos viajando através do espaço-como-superfície, na realidade, basta olhar pela janela
que notamos que estamos viajando através de múltiplas trajetórias. Com isso, sua intenção
é comprovar a sua abordagem alternativa sobre o espaço.
Segundo a sua tese, o espaço não é passivo e fixo, mas é caracterizado por ser I)
produto de inter-relações, em diferentes escalas; II) a esfera da possibilidade da
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coexistência da heterogeneidade; III) constantemente inacabado, ou seja, em constante
construção e IV) político. Dessa forma, para a geógrafa (2005), o espaço é caracterizado
por ser a esfera que comporta uma multiplicidade de trajetórias, que não pode ser
analisada sem articulação com o tempo, e vice-versa. Essa abordagem tira o espaço de
uma perspectiva essencialista e masculinista, porque sendo a configuração de trajetórias
múltiplas, o espaço permite que novas espacialidades/temporalidades entrem no debate
científico e social.
E com o Outro ganhando espaço, o conhecimento científico pode dissolver
hierarquias manifestadas através da classificação social de corpos que
fundamentam a modernidade e a colonialidade. Ao analisarmos o espaço como arranjos-
em-relação-um-com-o-outro (MASSEY, 2005, p. 166), também tornamos esse conceito
capaz de transbordar a pretensa universalidade do discurso, o que viabiliza o
entendimento de como essas hierarquias se manifestam através de marcas nos corpos dos
indivíduos. Dessa forma, o enfrentamento a esse sistema de poder e saber exige que as
ciências sociais, inclusive a geografia, coloquem o corpo no centro de suas análises.
A classificação social de corpos que ocupam determinadas localizações na
sociedade, sejam geográficas ou sociais, é o cerne que levou a Nova Geografia Cultural,
as Geografias Feministas e Queer, além da Fenomenologia, sobretudo a partir da década
de 1990, a se indagar sobre como o espaço geográfico implica nos corpos dos indivíduos.
A elaboração desse questionamento por essa corrente “científico-política” foi essencial
para que importantes críticas fossem tecidas ao conhecimento geográfico, especialmente
“à postura repetitiva da Geografia enquanto disciplina acadêmica, sua instrumentalização
na manutenção e reprodução do poder e a invisibilidade de grupos que compõem o espaço
(SILVA, 2008, p. 5).
Na década de 1980, o grande aforismo da ciência geográfica era a cooperação
existente entre a sociedade e o espaço: reciprocamente, a sociedade e o espaço se
produziam, empregando ao espaço uma forte conotação espacial e o transformando em
uma construção social. Porém, se o espaço é influenciado pelas ações que a sociedade
desempenha nele, e a sociedade é composta por um agrupamento de indivíduos, esses
corpos que compõem a sociedade também incorporam atributos do espaço. O espaço,
portanto, é um dos elementos, assim como a cultura, que significam os corpos.
McDowell (1999) chama atenção para a emergência dos estudos sobre o corpo na
ciência geográfica. Para ela, as transformações que ocorreram nas sociedades industriais
avançadas fizeram com que o corpo deixasse de ser força muscular para a indústria e se
tornasse corpo desejante para o consumo. Por isso, o corpo passa a ser adotado como
recorte de análise para as ciências sociais e, entre o final do século XX e início do século
XXI, o campo da geografia passa a apropriar-se dessa temática. A suposição inicial é a
lógica direta que relaciona a materialidade do corpo com o espaço físico ocupado por ele,
tornando-os munidos de espacialidade.
Nessa linha, Lefebvre (1991), afirma que “a relação com o espaço de um ‘sujeito’
que é membro de um grupo ou sociedade implica sua relação com seu próprio corpo e
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vice ‘versa” (1991 [1974], p. 40). Com isso, ele infere que o corpo, além de viver no
espaço, produz espaço através de seus movimentos, gestos e ações. Lefebvre (1991) ainda
pontua que é através do corpo, das práticas humanas e dos simbolismos criados na
experiência espacial que conseguimos compreender, de fato, as relações de poder e as
práticas que resistem a elas.
Por isso, segundo Lopes (2016) a corporeidade pode ser adotada enquanto recurso
metodológico para trazer novos sentidos a Geografia. Fortemente inspirado pelos aportes
de Merleau-Ponty (1999, p. 437), o autor concorda que “o espaço se sabe a si mesmo
através do meu corpo”. Isso significa que o espaço está investido de corporeidade, que é
uma relação entre os corpos que caracteriza o espaço geográfico, requerendo uma
interpretação da relação corpo-espaço através de uma implicação ontológica complexa e
inesgotável entre homens e mulheres em geral e a realidade objetiva geográfica (LOPES,
2016, p. 2). Sobre o tema, Lopes afirma que:
Logo, refere-se à inferência mutuamente constitutiva entre o corpo e o
espaço enquanto dado geográfico mediador da totalidade. Isto significa
interpretar a corporeidade não somente como uma relação factual entre os
corpos e o espaço, mas, principalmente, um recurso metodológico que
possibilite a identificação de acréscimosde sentidos (de novas formas-
conteúdo) ao espaço geográfico a partir dos aspectos marginais da
experiência ignorados no edifício de objetivação geográfica do real
(LOPES, 2016, p. 2. Grifo da autora)
Elias Lopes (2016), ainda inspirado em Ponty, afirma que o caráter sensível do
corpo impõe uma implicação direta e indireta com o espaço. Desse modo, “os agentes
sociais implicados na reprodução do espaço devem necessariamente estar situados
histórica e geograficamente, do contrário, se restringiriam a objetos meramente
localizados em algum ponto do arranjo espacial” (LOPES, 2016, p. 2). Por isso, o espaço
deve ser compreendido enquanto um produto histórico-social, que tem como atributo a
encorporação de propriedades dos corpos: en-corporar no sentido de ter os corpos
exteriorizados no espaço, o avesso da incorporação.
Outra geógrafa que aborda a corporeidade é Alicia Lindón (2012). Os aportes
dessa autora partem da relação entre o corpo e as emoções nas experiências espaciais,
visto que é através da corporeidade que o indivíduo se apropria do espaço e o designa
significados, transformando-o em espaço vivido. Para Lindón (2012), a experiência
espacial produz emoções como, por exemplo, a sensação de medo ou desconforto para
uma mulher ao caminhar em rua vazia a noite, ou a sensação de prazer que sentimos ao
viajar e conhecer novos lugares. Por isso, seguindo também à Merleau-Ponty, Lindón
(2012) afirma que todo sujeito é um sujeito-corpo e um sujeito-sentimento e, posto que o
sujeito vive no espaço e cria seu próprio espaço, toda experiência espacial é também
emocional e corpórea.
Outra chave interpretativa e metodológica considerada fundamental para
compreender a construção social é a intercorporeidade. Na Fenomenologia, a
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intercorporeidade é compreendida como as circunstâncias onde, na vida cotidiana, corpos
se convergem e através de práticas, ou por habitarem os mesmos contextos, os corpos
podem “habitar parcialmente no sentir do outro(LINDÓN, 2012, p. 713). Simonsen
(2007) também compartilha dessa abordagem, afirmando que a intercorporeidade
possibilita que façamos parte das experiências sensoriais de outros sujeitos corpos.
Essa chave da intercorporeidade é essencial para fundamentar a argumentação da
próxima seção. Entretanto, antes disso, uma pequena síntese: o corpo-espaço, como está
sendo adotado neste artigo, trata de uma reatualização do conceito de espaço, que
possibilite o articular com o corpo dos indivíduos levando em consideração as diferentes
classificações e relações de poder que são corporificadas e, portanto, produzem
experiencias espaciais distintas. Isso significa dizer que uma mulher e um homem
brancos, cisgênero, heterossexuais e classe média para não alargar demais o campo de
possibilidades de atributos não compartilham as mesmas experiências espaciais e as
mesmas sensações ao ocupar os espaços.
Do território ao corpo: o corpo-território
A entrada do corpo-espaço, portanto, parte da noção individual dos corpos, a partir
do momento que cada indivíduo tem no seu corpo sua materialidade mais expressiva. Mas
como podemos pensar no indivíduo a não ser pela construção coletiva? Mais uma vez
mobilizo a provocação que o professor Porto-Gonçalves fez em sala de aula, que
repetidamente nos lembra sobre a incompletude que caracteriza os seres humanos: nós
somos sempre em relação com os outros e com o meio. É exatamente nesta provocação
que mora a crítica ao corpo-espaço e promove o “giro descolonial” até o corpo-território.
O corpo-território transborda as experiências individuais, por isso a chave da
intercorporeidade se torna tão relevante. Ocupar o sentir do outro significa compartilhar
experiências de modo similar ao que Gago (2019) defende quando afirma que conjugar o
corpo e o território em uma única palavra “desliberaliza a noção de corpo como
propriedade individual e especifica uma continuidade política, produtiva e epistêmica do
corpo enquanto território” (GAGO, 2019, p. 107). A autora, de encontro com o professor
Porto-Gonçalves, afirma que “cada corpo nunca é um, mas o é sempre com outros e
com outras formas não humanas” (GAGO, 2019, p. 107).
Mas antes de mergulhar de cabeça no corpo-território, é essencial realizar um
apanhado teórico sobre como o território é mobilizado na ciência geográfica. Porto-
Gonçalves (2015) argumenta que a Geografia também passou por um “giro territorial”
nas décadas de 1980/1990. Para ele, a Aliança dos Povos da Floresta (união entre
camponeses e indígenas na Amazônia) e as duas grandes marchas em defesa da vida, da
dignidade e do território promoveram essa virada, inclusive a partir das contribuições que
os indígenas levaram para a Conferência nas Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento em 1992 (Eco-92).
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Esse conceito, portanto, foi transformado à medida que o movimento popular
latino-americano apropriou-se dele, fazendo com que ele deixasse de ser meramente uma
categoria de análise da academia, chamando atenção para a possibilidade de sua utilização
prático-política, que torna o território “de uso frequente, especialmente entre os
movimentos sociais de grupos subalternos, como o movimento dos agricultores sem teto
e os povos tradicionais (indígenas e quilombolas, sobretudo)” (HAESBAERT, 2014, p.
55).
Porém, é de extrema importância realizar um breve panorama sobre como o
território era mobilizado antes de tal giro. O território enquanto categoria de análise tem
uma larga trajetória conceitual, mas de forma geral é atrelado a uma relação entre o espaço
e o poder. Segundo Souza (2020), por exemplo, o território é “fundamentalmente, um
espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder” (p. 78). Além disso, o
território é interpretado como posterior ao espaço, visto que ele é o espaço analisado a
partir dessas relações de poder que estão inscritas nele.
O poder, no entanto, não implica necessariamente relações de dominação, também
podem ser relações de apropriação, nos termos de Lefebvre (1991). A primeira delas diz
respeito a um processo que funcionaliza o espaço enquanto um recurso, caracterizando o
uso do território pelo seu valor de troca. Por outro lado, o espaço apropriado diz respeito
ao espaço vivido, ao valor de uso e o simbolismo atrelado ao mesmo. Nesse sentido,
Haesbaert (2014) afirma que “enquanto continuum dentro de um processo de dominação
e/ou apropriação, o território e a territorialização devem ser trabalhos na multiplicidade
de poderes, neles incorporados através dos múltiplos sujeitos envolvidos”
(HAESBAERT, 2014, p. 59).
Logo, o território é marcado por dois grandes paradigmas: o hegemônico e o
contra-hegemônico. O paradigma hegemônico, segundo Haesbaert (2014) está
relacionado com a territorialidade do poder hegemônico nesta perspectiva funcionalista.
Isto significa, direta ou indiretamente, que se trata de um território também uni funcional,
universal e des-incorporado. Por outro lado, o paradigma contra-hegemônico é
caracterizado pela prática política dos grupos subalternos e, dessa forma, concebe as
relações ontológicas dos sujeitos e seus corpos com o espaço onde habitam. De acordo
com Haesbaert,
Aquilo que propomos denominar de paradigma territorial contra-
hegemônico, ao contrário dessa visão mais absoluta, homogeneizante e
universal do espaço, o antes de tudo como um espaço vivido, densificado
pelas múltiplas relações sociais e culturais que fazem do vínculo
sociedade-terra (ou natureza, se quisermos) um laço mais denso, em que
os homens não são vistos apenas como sujeitos a sujeitar seu meio, mas como
inter-agentes que compõem seu próprio meio e cujo “bem viver” (como
afirmam os indígenas andinos) depende dessa interação. (HAESBAERT,
2014, p. 54. Grifo da autora.).
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A intercorporeidade foi mobilizada mais uma vez para compreendermos a relação
íntima entre os sujeitos, o seu sentir e o espaço que ocupam. Para Gago (2019), a
conjugação das palavras corpo e território implica o reconhecimento da impossibilidade
de “recortar e isolar o corpo individual do corpo coletivo, o corpo humano do território e
da paisagem” (p. 107), chamando atenção para o compromisso dessa abordagem com a
coletividade e com a defesa e o cuidado com os bens comuns. Em vista disso, até então
podemos inferir que o corpo-território é, essencialmente, uma categoria da prática e está
vinculada à crítica à noção liberalizante do corpo e do território, que os associa/submete
à propriedade privada e à violência, enquanto rompe laços comunitários.
Não podemos deixar de considerar que essa abordagem não assume o território
desde uma perspectiva masculinista. O corpo-território, como afirma Lorena Cabnal
(2013), indígena xinca guatemalteca, nasceu como uma insígnia política e se tornou uma
categoria dentro do feminismo de base comunitária, sendo associado a defesa e a
recuperação do território-corpo-terra (CABNAL, 2013). O enunciado tem origem,
portanto, na atuação de mulheres em movimentos sociais em defesa de seus territórios,
que ao observarem a chegada de vetores capitalistas em suas comunidades, percebem que
são colocadas em um contexto de desvantagens múltiplas (CABNAL, 2010).
Essa categoria também extrapola as ondas de feminismo anteriores, que não
consideravam os corpos dessas mulheres originárias e camponesas em suas pautas. Trata-
se de feminismos de base comunitária que tem como seu primeiro marco de referência a
criação de um programa feminista que acolha uma perspectiva situada histórica e
geopoliticamente desde a crítica a colonialidade (Mendonza, 2014). Por isso, é uma
abordagem e prática feminista subalterna e dissidente, nas palavras de Ulloa (2016), que
tecem uma crítica em torno das lógicas patriarcais, neoliberais, à mercantilização da
natureza e dissolução dos territórios comuns.
Nesse sentido, o corpo-território é “uma epistemologia latino-americana e
caribenha feita por e desde mulheres de povos originários que vivem em comunidade;
quer dizer, a articulação corpo-território põem ao centro o comunitário como forma de
vida” (CRUZ HERNÁNDEZ, 2017, p. 43). Essa categoria, portanto, sugere a necessidade
de aprofundamento no debate acerca do comunitário na Geografia, visto que é uma das
chaves centrais de enfrentamento dos feminismos latino-americanos aos processos
espoliativos que assolam os corpos femininos e seus territórios.
Para apresentar essa abordagem, conto com os aportes de Gutiérrez e Lohman
(2015) que argumentam sobre a capacidade do capital de desmantelar tudo o que é
coletivo. Os entramados comunitários (teias comunitárias) são como constelações de
relações sociais de compartilhamento, que operam com objetivos múltiplos e situados
(como na própria definição de sociedade), com a forma de reprodução da vida centrada
no valor de uso. Dessa forma, ao trabalhar a partir da reprodução social, Gutiérrez e
Lohman (2015) assumem que o capital é uma relação social que deforma a reprodução
da vida sustentada pelo valor de uso e, contra isso,
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lo comunitario o, hasta cierto punto, lo “comunitario-popular”
nos permite visibilizar la reproducción de la vida como núcleo configurador de
relaciones sociales, más allá de la diferenciación étnica que pueda existir entre
matrices culturales. En las relaciones sociales que emergen desde los
entramados comunitarios, lo que entendemos como política y economía son,
de manera clara y evidente, componentes destinados a garantizar la
reproducción de la vida y, por tanto, de la misma red de relaciones que
configura el entramado (GUTIÉRREZ; LOHMAN, 2015, p. 26)
5
Nessa linha de pensamento, Ulloa (2016) cunhou o conceito de feminismos
territoriais para denominar as dinâmicas de luta das mulheres camponesas latino-
americanas. Para a antropóloga, esse conceito compreende as lutas territoriais-ambientais
que são lideradas por mulheres indígenas, afrodescendentes e camponesas que se centram
na defesa do território, do corpo e da natureza e criticam o desenvolvimento e o
extrativismo. Por isso, o comunitário como forma de vida é colocado no centro e o
território passa a ser abordado a partir de múltiplas escalas, inclusive o corpo (CRUZ
HERNÁNDEZ, 2017).
Portanto, feministas adeptas ao pensamento descolonial, ao ecofeminismo e ao
feminismo de base comunitária e indígena vem desempenhando um importante papel na
construção teórica acerca dessa categoria de cunho geográfico. Se inicialmente inferimos
que o corpo-território coloca o comunitário no centro do discurso, também podemos
associar o conceito ao endossamento do patriarcado nos territórios devido a exploração
dos territórios comuns e comunitários.
Esses territórios, entretanto, não necessariamente são territórios rurais. Segundo
Gago (2019), podem ser urbanos, suburbanos, camponeses ou indígenas, mas
compartilham (em seus corpos e em seus territórios) a vulnerabilidade diante de políticas
estatais ou da atuação do setor privado, que as submetem à crescente inseguridade, à
espoliação e a precarização de suas vidas, inclusive mediante à atribuição do valor de
troca ao que era bem comum em seus territórios. Isso significa dizer que a defesa do
corpo-território, uma insígnia de caráter rural, pode ser compartilhado, por exemplo, com
as mulheres de territórios urbanos marginalizados, como as favelas e os subúrbios, que
pautaram iniciativas coletivas para fazer enfrentamento a pandemia da Covid-19.
Conclusão
Os conceitos existem para serem continuamente retrabalhados e re-esculpidos, de
forma a engrenar o conhecimento científico de cada campo teórico. A cristalização de um
conceito, caso ele não seja retrabalhado, aponta mais para a sua ultrapassagem do que
5
“O comunitário — ou, até certo ponto, o ‘comunitário-popular’ — nos permite visibilizar a reprodução da vida como
núcleo configurador de relações sociais, para além da diferenciação étnica que pode existir entre matrizes culturais.
Nas relações sociais que emergem desde as tramas comunitárias, o que entendemos como política e economia são, de
maneira clara e evidente, componentes destinados a garantir a reprodução da vida e, por isso, da mesma rede de relações
que configura a trama” (tradução livre).
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para uma verdade absoluta, visto que a própria sociedade está em constante processo de
transformação. Tendo isso em vista, esse artigo foi uma proposta de síntese sobre como
a categoria de espaço e o conceito de território, tão caros à Geografia, vem sendo
mobilizados através de uma perspectiva feminista.
A importância dessa perspectiva se devido ao entendimento de que a história
do pensamento geográfico é, especialmente, contada a partir da obra (e
consequentemente, do ponto de vista situado) de corpos masculinos. Trata-se, portanto,
de uma disciplina que ainda é fortemente masculinizada, tanto no sentido teórico, quando
na limitada perspectiva de crescimento na prática acadêmica das mulheres. Por isso,
reconsiderar as fontes do conhecimento geográfico permite que o repertório da ciência
seja alargado e conceba uma crítica ao sistema patriarcal.
No entanto, como foi apontado, não basta a crítica feminista que vincula a
experiência corporal individual ao espaço. A crítica ao sistema patriarcal deve andar
acompanhada da crítica ao sistema mundo moderno-colonial. As considerações das
epistemologias originárias, portanto, assim como suas gramáticas de luta são essenciais
para que novos territórios epistêmicos possam ser sonhados como provocou Hollanda
(2020).
Nesse sentido, retrabalhar o conceito de território a partir de sua utilização prático-
político, como é comumente feito na América Latina, e o articular à escala do corpo
permite uma compreensão do corpo enquanto território extenso, matéria ampliada,
superfície extensa de afetos, trajetórias, recursos e memórias (GAGO, 2019). Na mesma
medida, segue com a renovação do conceito de território, no contexto do giro territorial.
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Geografia. Niterói, vol. 8, n. 17, pp. 165-187, jul. 2022.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira. DO CORPO-ESPAÇO AO CORPO-TERRITÓRIO: o que a Geografia Feminista tem a dizer?. Ensaios de
Geografia. Niterói, vol. 8, n. 17, pp. 165-187, jul. 2022.
Submissão em: 18/11/2021. Aceito em: 11/06/2022.
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AO CITAR ESTE TRABALHO, UTILIZAR A SEGUINTE REFERÊNCIA:
OLIVA, Victoria Ferreira. DO CORPO-ESPAÇO AO CORPO-TERRITÓRIO: o que a Geografia Feminista tem a dizer?. Ensaios de
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Submissão em: 18/11/2021. Aceito em: 11/06/2022.
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